INTRODUÇÃO1
A educação física era uma das preocupações do pensamento médico na cidade do Rio de Janeiro, durante boa parte do século XIX. A Historiografia da Educação Física, em trabalhos como o de Carmen Lúcia Soares (2004) e, mais recentemente, de Melo e Peres (2014) e Góis Junior (2013) tem complexificado as reflexões sobre esse tema, trazendo contribuições de metodologias da História Social e Cultural. Esse artigo tem o intuito de contribuir nesse debate trazendo as representações sobre a educação física em dois periódicos de uma importante instituição médica do Rio de Janeiro do século XIX, a Academia Imperial de Medicina. O período tratado nesse artigo se inicia no ano de 1870 e se encerra no ano de 1889. Esse recorte foi escolhido pela efervescência do debate médico da época. Momento em que a medicina brasileira se aproxima cada vez mais do que era chamado de medicina experimental (EDLER, 1992).
A Academia Imperial de Medicina foi fundada, com a designação de Sociedade de Medicina do Rio de Janeiro, em 1829. A ideia de fundar a Sociedade nasceu em um pequeno grupo de médicos e cirurgiões, que exerciam suas funções no principal hospital do Rio de Janeiro, a Santa Casa de Misericórdia, liderados pelo Médico italiano Luiz Vicente De-Simoni e pelo cirurgião brasileiro Joaquim Cândido Soares de Meirelles. Aderiram ao projeto dois médicos franceses, José Francisco Xavier Sigaud e João Maurício Faivre, e o jovem médico brasileiro José Martins da Cruz Jobim. Em comum, entre brasileiros e estrangeiros, havia o fato de que ambos tinham estudado ou trabalhado na Europa, sobretudo na França, o que os fazia compartilhar alguns ideais científicos (FERREIRA, MAIO e AZEVEDO, 1997).
A primeira sociedade de medicina criada no Brasil tinha a intenção explícita de promover a institucionalização da medicina, afirmando seu valor utilitário para a construção de uma sociedade nos moldes de civilização européia nos trópicos. Do ponto de vista organizacional, a Sociedade de Medicina copiava o modelo francês. Seu corpo societário era composto de 25 membros titulares e de um número ilimitado de membros honorários e correspondentes (FERREIRA, MAIO e AZEVEDO, 1997).
Pode-se encontrar indícios da relação entre a Sociedade de Medicina, do Rio de Janeiro, com as práticas corporais institucionalizadas desde a primeira metade do século XIX. Em 1832, ela foi responsável pelo parecer sobre a validade da memória apresentada por Guilherme Luiz de Taube, futuro mestre de ginástica do Colégio de Pedro II, sobre os benefícios da ginástica (CUNHA JÚNIOR, 2008). Já como Academia Imperial de Medicina, essa instituição foi a responsável por recomendações sobre as práticas corporais no ambiente escolar em 1851 (MELO e PERES, 2014).
A fragilidade institucional foi um problema crônico enfrentado pela Sociedade de Medicina do Rio de Janeiro. Mesmo sendo uma sociedade científica, formalmente reconhecida pelo governo imperial, ela não contava com o sustento oficial para sua manutenção, dispondo exclusivamente dos recursos obtidos com as contribuições obrigatórias dos membros titulares. No ano de 1834, as atividades chegaram a ser suspensas por todo o ano. A Sociedade só conseguiu manter suas atividades graças ao patrocínio estatal obtido a partir de 1835, quando a Sociedade passou a ser denominada Academia Imperial de Medicina. Essa mudança implicou em uma reestruturação interna da instituição. Mas a grande diferença entre a Sociedade de Medicina do Rio de Janeiro e a Academia Imperial de Medicina foi o fato desta ter funcionado como órgão corporativo, garantindo privilégios para seus membros e criando mecanismo de definição de uma medicina oficial (FERREIA, MAIO e AZEVEDO, 1997).
Em torno da Academia Imperial de Medicina, uma elite médica empenhou-se na produção de um conhecimento original sobre a patologia brasileira. Desde sua criação, até meados do século XIX, a Academia conseguiu monopolizar duas importantes tarefas: ao mesmo tempo em que se impusera como instrumento da política imperial na saúde pública, ela se tornou o principal árbitro das inovações médico-científicas, contribuindo tanto para sancionar novas tecnologias em diagnósticas e terapêuticas, quanto para incluir novos conceitos e teorias estritamente voltados para o conhecimento da patologia brasileira. Segundo Edler (2003), tal como a Academia de Medicina de Paris, que lhe servira como figurino, ela oferecia prêmios em competições anuais, coletava e examinava informações epidemiológicas, administrava a vacinação antivariólica, auxiliava o governo em matéria de educação médica e de polícia higienista.
A Academia Imperial de Medicina voltou a encontrar dificuldades financeiras e perdeu terreno a partir da década de 1860. Os principais motivos dessa queda de prestígio foram a criação da Junta Central de Higiene Pública, os quais incorporaram muitas das funções da Academia e a organização de outras associações médicas. Embora tenham ocorrido essas dificuldades para a Academia, ela ainda possuía prestígio nos círculos médicos brasileiros. Essa representação pode ser encontrada em discurso proferido pelo Médico José Pereira Rego Filho (REGO FILHO, 1874).
Apesar das alegadas dificuldades financeiras, a instituição manteve a publicação dos seus periódicos nas décadas de 1870 e 1880. Partindo da perspectiva de que tal periódico funcionou como um importante fator de institucionalização, popularização e legitimação da medicina no Brasil Imperial (FERREIRA, 2003; FERREIRA, 1999), o mesmo foi aqui tomado fonte do conhecimento histórico (LARA, 2008). Esse periódico intitulava-se num primeiro momento Annaes Brasilienses de Medicina e, posteriormente, Annaes da Academia de Medicina. Neste caso, para tornar os documentos fontes do conhecimento histórico, nos interessa inquirir em suas páginas os debates, representações e discussões erigidos acerca do tema educação física ao longo da circulação dos mesmos nos anos de 1870 a 1889. Esses impressos foram encontrados no acervo da digitalizado da Biblioteca Nacional, os documentos foram selecionados a partir da busca na base de dados da hemeroteca digital, da Biblioteca Nacional, do termo “educação physica” nos periódicos supracitados. A partir desses critérios, foram selecionados vinte artigos de cerca de dez autores diferentes.
Segundo Gonçalves (2011; 2012), o Annaes Brasilienses de Medicina era sustentado por subvenção pública, tinha publicação mensal e durante todo seu período de circulação se apresentava como um órgão representativo das diversas expectativas que envolviam a Academia Imperial de Medicina. Nesse âmbito, assuntos relativos à higiene pública, à legitimidade profissional do médico e à medicina nacional eram foco dos artigos publicados.
Os editores responsáveis por esse periódico eram eleitos anualmente entre os membros da Academia, sendo o conteúdo nele divulgado definido por tais acadêmicos. Com exceção dos debates quinzenais ocorridos na Academia, que eram sempre publicados nas primeiras páginas, e das Memórias apresentadas à Academia por médicos interessados em participar desta corporação, a escolha das demais matérias ficava sob total responsabilidade do editor, cabendo a ele, selecionar artigos de seus pares, além de traduzir e comentar artigos publicados em jornais estrangeiros. A partir de 1885, o periódico da Academia Imperial de Medicina passou a denominar-se Annaes da Academia de Medicina, mas não houve mudanças significativas na sua estrutura.
Esses periódicos dedicavam-se à compilação de textos originais, à reprodução da correspondência trocada entre médicos e cientistas, à divulgação das atividades desenvolvidas sob o auspício de alguma sociedade ou academia de medicina, à publicação das atas das sessões da Academia, dos relatórios das comissões e os trabalhos escritos pelos acadêmicos da Academia. Os artigos que tratavam do tema da educação física eram, em geral, memórias apresentadas à Academia Imperial de Medicina, discursos proferidos nessa instituição e respostas a perguntas postas a prêmio pela Academia. Nossa análise foi inspirada nas contribuições Prost (2008) em que é a partir do problema criado no presente que o historiador escreve a sua história, mobilizando os documentos que torna fonte. No nosso caso, o problema é compreender as representações e discussões acerca do tema da educação física nas páginas dos periódicos da Academia Imperial de Medicina nos anos de 1870 a 1889.
EDUCAÇÃO FÍSICA, ESCOLARIZAÇÃO E HIGIENE
Na interpretação de alguns setores da medicina, a Guerra do Paraguai tinha mostrado que a população brasileira estava fraca em constituição e saúde. Essa constatação se somou a uma séria de proposições, as quais acabaram por colocar a educação física entre os temas mais importantes no debate sobre o progresso e construção da nação nos anos finais do Império (SILVA e MELO, 2011). Nos periódicos que foram analisados, esse debate costura uma série ampla de temas que abrangeram a educação física dentro do ambiente militar, na infância, na escola, a educação física da criança, do homem e da mulher em suas várias idades. Mas, de que educação física esses médicos estavam discutindo?
Na série de artigos publicados pelo Professor de Patologia Médica da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, João Damasceno Peçanha da Silva, sobre o tema das causas da mortalidade infantil, no periódico estudado (SILVA, 1875a; 1875b; 1875c; 1876; 1879), se afirmava que a educação era composta por três dimensões: intelectual, moral e física. O médico João Pinto do Rego Cesar concordava com essa proposição e somava que esse modelo de educação era baseado nos gregos antigos, além de que deveria servir de base para pensar a educação no momento em que ele escrevia (CESAR, 1878). Cesar dava à educação física uma importância singular. Para ele, essa dimensão da educação era a base da educação moral e intelectual. Um corpo forte e saudável era necessário para servir de suporte para uma mente inteligente e uma vontade moralmente controlada, defendia o médico (CESAR, 1878). Entretanto, para Silva e Cesar, existia na realidade educacional brasileira uma grande ênfase nos aspectos intelectuais da educação e o desprezo pelos aspectos físicos.
Segundo Gondra (2004), a crítica ao modelo de educação baseado somente nos aspectos intelectuais era comum entre os médicos, na cidade do Rio de Janeiro, no século XIX. Na visão desses médicos, a educação estava se desenvolvendo de forma incompleta e, por vezes, perniciosa por não levar em conta o equilíbrio entre as três dimensões da educação. Esse desequilíbrio seria um obstáculo ao modelo de brasileiro forte e saudável que se buscava forjar para o projeto de nação. Como o homem era definido como um ser constituído de aspectos físicos, morais e intelectuais, a educação deveria abarcar todos esses aspectos para ser completa e integral.
Dentro desse projeto, nos artigos analisados, a educação física englobava uma gama ampla de aspectos como: a vestimenta, a alimentação, a ginástica, os cuidados com os recém nascidos, o aleitamento, o desmame e, até, a vacinação. Tudo que estava ligado à dimensão física da educação poderia ser objeto de uma educação física, mesmo a causa da alienação mental poderia ser relacionada à educação física (ANDRADE, 1880; 1881). Parece ser recorrente, dentro do debate médico no período, o entendimento de um conceito de educação física bastante amplo (SANTOS, 2017).
Manoel José de Oliveira, médico do Hospital da Guarnição da Corte, dentro do debate sobre a modificação da constituição racial brasileira e suas relações com o clima, apresentava nas páginas dos Annais a educação física de forma ampla como uma das formas de modificar a população brasileira. Em sua visão, a educação física seria capaz de interferir na hereditariedade. Para isso, era necessário que ela fosse baseada nos saberes da higiene (OLIVEIRA, 1883).
Era recorrente nos artigos analisados o argumento de que a higiene e, por consequência, a educação física baseada na higiene poderia determinar a grandeza ou a decadência de um povo. Peçanha da Silva (1879) afirmava que a medicina deveria ser levada em conta no projeto de construção de uma população mais saudável e forte, no qual a educação física era dimensionada como uma peça fundamental para formar o brasileiro, sendo assim o espaço escolar ganhava uma importância fundamental. Deveria ocorrer a escolarização da educação física baseada na higiene.
Nesse sentido, o clima e a constituição racial do povo brasileiro não seriam determinantes para o destino do Brasil, na visão de Peçanha da Silva (1879) e Oliveira (1883), sendo a escolarização e a educação física capazes de transformar o brasileiro em um povo forte e saudável, proporcionando ao Brasil desenvolvimento condizente às suas riquezas naturais. José Pereira Rego, importante higienista do Império, afirmava em um artigo pesquisado que: “[...] mais poderosa e feliz será a nação que melhores instituições de educação física, moral e intelectual possuir, ou antes, melhores escolas.” (REGO, 1881). Mas, segundo ele, a educação deveria ser aliada à melhora do saneamento e da arquitetura das cidades.
A partir desses documentos, percebe-se que o saber médico buscava propostas para interferir, pela higiene, na educação física por meio de um projeto de constituição da nação. Essa intervenção deveria acontecer em diversas dimensões da educação física tendo o espaço escolar como um dos privilegiados.
IDEIAS QUE VALERAM UM PRÊMIO
Nem todos os médicos acreditavam que o Brasil deveria importar as ideias médicas europeias sem antes adaptá-las à realidade brasileira. Esse ponto pode ser percebido no debate sobre a educação física nos periódicos analisados.
Entrou na agenda de discussão, da Academia Imperial de Medicina, a questão da instrução da mocidade com o intuito de um maior desenvolvimento físico e moral em 1871. Nesse ano, a Academia lançou uma questão posta a prêmio sobre o referido tema. O Dr. Luiz Corrêa de Azevedo foi o responsável pela resposta à questão vencedora e publicada no Annaes Brasilienses de Medicina (AZEVEDO, 1872). Para esse médico, os “vícios” da educação e instrução no Rio de Janeiro eram um dos aspectos principais para o “aniquilamento” do desenvolvimento físico e moral da população.
Em sua visão, para solucionar tal questão o Brasil não deveria buscar respostas no exterior. O Brasil precisava de teorias que dessem conta de sua realidade e a importação de ideias da Europa não poderia resolver os problemas específicos da educação e educação física do Brasil. Segundo ele, “Se em lugar de se consultar gazetas médicas estrangeiras e listas farmacêuticas, tivesse a maior parte dos médicos clínicos a paciência de nacionalizar, de localizar suas investigações [...].” (AZEVEDO, 1872, p. 419).
Além das terapias importadas da Europa, ele criticava os hábitos de alimentação e vestimenta vindos do exterior, ou seja, os elementos de uma educação física vinda da Europa, em sua visão, nada tinham a ver com a população e o clima brasileiro. Assim, para Azevedo, o Brasil deveria educar fisicamente seu povo com saberes médicos criados a partir da realidade nacional, o que faria com que a população ficasse mais educada fisicamente e, consequentemente, melhor moralmente.
O entendimento de que a educação física deveria ser baseada em conhecimentos médicos ligados à realidade nacional não era exclusividade de Luiz Corrêa Azevedo. José Pereira Rego, em discurso proferido na Academia, também defendeu esse mesmo ponto (REGO, 1872). Para ele, a medicina era a ciência que conhecia as leis do corpo humano, contudo essas leis mudariam de acordo com o clima e entre os diferentes povos, fazendo com que a medicina brasileira não devesse importar teorias da Europa para solucionar a questão da educação física.
Para Azevedo e Rego, a medicina brasileira deveria se inspirar em ideias vindas da Europa, mas essas ideias deveriam ser ressignificadas para mais bem se adequar aos projetos e peculiaridades nacionais. Entre alguns médicos, podia-se perceber que a inspiração europeia não significava a cópia do que foi produzido na Europa para a realidade brasileira. Esse movimento podia ser percebido em outros espaços da medicina. Gomes (2009) também apontou que esse debate se desenvolvia no ambiente do Museu Nacional; Edler (1992) percebeu isso nas reformas da Faculdade de Medicina; e Alonso (2002) nas ideias políticas. Essa forma de pensar uma educação física brasileira deveria ser pensada como uma maneira de higienizar especificamente os brasileiros a partir das peculiaridades do seu clima e povo, além de um projeto de Brasil “civilizado”, “moralmente forte” e produtivo.
A CRÍTICA DOS MÉDICOS À (DES)EDUCAÇÃO FÍSICA DAS ESCOLAS
Segundo o médico Peçanha da Silva (1875a), a educação física, responsabilidade do Estado e dos indivíduos, deveria abranger a instrução e a educação de toda a população livre, inclusive dos pobres. Segundo ele, cabia ao Estado formular leis baseadas nos conhecimentos médicos para regrar a vida da população e proporcionar iniciativas educacionais para que ela conhecesse a higiene, ao mesmo tempo cabia a todos a disseminação e o cumprimento das normas higiênicas. Nos periódicos analisados, um dos espaços privilegiados para a disseminação e ensino da educação física deveria ser a escola.
Era recorrente entre os médicos, que escreveram nos periódicos, a crítica de que os estabelecimentos escolares eram voltados apenas para o lucro e não estavam preocupados com a educação física, moral e intelectual das crianças. Segundo o médico Luiz Corrêa Azevedo (1872a), não existia estabelecimento de ensino no Brasil que conseguisse aplicar a educação física de forma satisfatória. Ele afirmava que:
Na maioria dos casos, [era] um estabelecimento industrial, onde se troca poucas coisas do humano saber por algumas remunerações, sempre superiores à instrução que os alunos recebem. São casas onde a educação não é cuidada minuciosamente; aqueles que da família pouco levam, em moral e costumes, deixam nos dormitórios e nos folguedos esse pouco (AZEVEDO, 1872a, p.429).
Na crítica de Luiz Corrêa Azevedo, os estabelecimentos de ensino nada adicionavam no ensino de costumes que ele julgava como melhores. A situação ficava pior, em sua visão, quando nos dormitórios o pouco de “bons costumes” era perdido. O regime escolar e sua relação com a moral não eram uma preocupação apenas de Azevedo. José Pereira Rego compartilhava das mesmas preocupações com relação aos dormitórios dos internatos e julgava que esse regime de ensino poderia se tornar altamente pernicioso se as regras de higiene não fossem seguidas em sua administração (REGO, 1872).
Como o saber médico se julgava como o mais indicado para normatizar e regrar a vida, ele não poderia ser deixado de lado na crítica aos estabelecimentos escolares. As regras de higiene deveriam ser levadas em consideração na construção das escolas, na alimentação dos alunos, nas vestimentas, nos exercícios físicos, ou seja, na educação física. Nesse sentido, Cesar (1878) afirmava que não se encontrava no Rio de Janeiro, e tão pouco no resto do país, estabelecimento de educação que se adequasse às regras de higiene e que se aplicasse a educação física de forma satisfatória. Nem o Colégio de Pedro II estava liberado das críticas de Cesar (1878) quando afirmava que a educação física praticada no Colégio Pedro II era “incompleta”. Esta afirmação demonstra que nem o estabelecimento de ensino modelo na corte, que inclusive contava com um externato com dependências para prática de atividades ligadas à educação física (CUNHA JUNIOR, 2003; 2008), estava próximo dos ideais médicos higienistas na visão desses esculápios.
A MÃE EDUCADA PELA EDUCAÇÃO FÍSICA
A questão de quem deveria ser ensinado pela educação física também era questão importante. Na visão desses médicos, a educação física deveria ser ensinada para ambos os sexos e não somente na escola. Ela também deveria ser ensinada no ambiente familiar, tendo como responsável a mãe. Isso está correlacionado com o processo que ocorreu nas últimas décadas no Brasil do século XIX, em que se percebe que o aumento de defesas da necessidade de educação para a mulher se vinculava à modernização da sociedade, à higienização da família e à construção da nova geração de jovens higienizados (LOURO, 2010).
Segundo, Luiz Corrêa Azevedo (1872b), a educação física começaria pela educação física da mãe, que deveria acatar os preceitos da ciência da higiene e deixar de lado as “leviandades” e os “luxos do mundo” e se dedicar a sua “missão” de ser mãe. Segundo ele:
A ambição das grandezas, o desordenado amor às ruidosas aparências, a falsa luz de celebridade, ofuscaram a mãe como ela deveria ser, e deu-nos apenas uma boa mulher, é verdade, mas uma mulher nula, em cujo espírito a educação e a instrução nenhum sentido tem (AZEVEDO, 1872b, p.447).
Para ele, a própria mãe deveria ser a responsável pela educação física dos filhos e não entregar essa função a terceiros, em especial a escravas. Em sua visão, tudo podia piorar quando a educação e a educação física ficavam sob responsabilidades de mucamas: “escrava obediente e dedica, sensual e imoral” (AZEVEDO, 1872b, p.429). Assim, aumentava-se a responsabilidade da mãe que deveria ser protagonista na educação física das crianças e não delegar essa função para escravas, que em sua visão, poderiam degradar moralmente a criança. Argumentos muito próximos podem ser encontrados nos artigos de Peçanha da Silva sobre a educação física das crianças e sua relação com a amamentação (SILVA, 1875a; 1875b; 1875c; 1876; 1879). Nesses artigos ele defende que a mãe não deve delegar a função da amamentação para outras pessoas, especialmente escravas.
Nem todos os argumentos para que a mãe se responsabilizasse pela educação física das crianças eram de ordem médica. Azevedo utilizava a tese de que Deus confiou à mulher a missão de educar seus filhos (AZEVEDO, 1872b, p.93). Pode-se notar, nas proposições desse médico, que existia uma mescla entre argumentos médicos e religiosos para apontar a mulher como responsável pela educação física das crianças, fazendo com que a função da mulher, como mãe e educadora, tornasse mais do que um mandato biológico, sendo também divino e fazendo com que qualquer desvio dessa função fosse pernicioso para mãe e filhos.
Para realizar sua função de mãe a mulher não deveria se entregar às “vaidades” e aos “prazeres das festas”, riquezas e ostentações e nem se deixar arrastar pelos luxos da “modernidade”. Para Azevedo, a mulher deveria ser “simplesmente santa”. As qualidades delas seriam aquelas relacionadas à sua “pureza” e à sua capacidade de ser mãe. Essa mãe “pura” e “santa” era aquela desejada por Azevedo para gerar e educar os filhos da nação. A mulher era vista, por esse médico, como o berço dos futuros homens.
Ainda segundo Azevedo (1872b), a fraqueza das crianças brasileiras e a sua mortalidade poderiam ser explicadas, em grande medida, pelo abandono das mulheres da sua função de ser mãe para viver no “mundo do luxo”. Segundo ele, “a mulher de hoje perante o médico mal pode definir a sua missão, tal é o esquecimento de seus deveres, e total ignorância de seus destinos.” (AZEVEDO, 1872b, p.99).
A correlação entre a mortalidade infantil e a forma como as mães cuidavam de seus filhos também foi tratada por Teixeira (1887). Segundo esse médico, a educação física das mães poderia atuar na diminuição da morte das crianças. Para ele, uma mãe bem educada teria mais condições de realizar, dentro das regras de higiene, a educação física das crianças. Para tanto, elas deveriam participar de conferências públicas destinadas a elas, como também deveriam ler periódicos destinados às mães. Um desses jornais encontrou as páginas dos Annaes como um espaço de propaganda, esse jornal destinado às mulheres era A mãe de Familia. Em seu anúncio, pode-se notar que a educação física e as indicações sobre a educação física eram usadas como propaganda desse novo jornal voltado às mães. Nele, as mulheres encontrariam as normas que deveriam seguir para criar bem os filhos da nação (ANNAES BRAZILIENSES DE MEDICINA, 1879).
Na visão desses médicos, a mulher era uma das responsáveis pela regeneração do Brasil. A educação física e moral da mulher deveria seguir os preceitos higiênicos para que ela pudesse atuar de forma eficaz na educação física dos filhos; filhos não somente delas, mas da nação. A mulher deveria ser educada para cumprir sua função social e divina de ser mãe.
GINÁSTICA: UMA FORMA DE CRIAR CORPOS FORTES
Para os médicos pesquisados, uma das partes mais importantes da educação física era a ginástica. Ela era tão importante que a Academia Imperial de Medicina lançou uma questão aos seus membros com o tema da ginástica nas escolas primárias. Para responder à essa questão foi nomeada, pelos membros da Academia, uma comissão formada pelos médicos José Pereira Rego Filho, João Pinto do Rego Cesar e João Baptista dos Santos. Essa comissão foi formada a partir de uma discussão sobre a Higiene dos hospitais. A comissão tinha o intuito de esclarecer alguns pontos levantados dessa discussão. Os argumentos do relatório da comissão foram apresentados à Academia Imperial de Medicina e aprovados por unanimidade (REGO FILHO, 1874-1875, p. 298). Para essa comissão a ginástica era:
[...] a arte de desenvolver pelo exercício a força e a agilidade do homem; ela tem por fim submeter o corpo a exercícios regulares, desenvolver por esse meio os agentes motores e ativar as principais funções do organismo, tornando-o mais forte (REGO FILHO, CESAR e SANTOS, 1874, p.70).
Esses médicos afirmavam que a ginástica era de necessidade absoluta nas escolas de ensino primário, e até nas de ensino superior (REGO FILHO, CESAR e SANTOS, p. 77). Segundo eles, no estado em que o conhecimento humano se encontrava, ficava fácil demonstrar as vantagens da ginástica científica no desenvolvimento dos ramos físicos e morais da infância. Por consequência, a ginástica seria de grande utilidade nos estabelecimentos de educação (REGO FILHO, CESAR e SANTOS, 1874, p.70).
Contudo, segundo a comissão, não era qualquer tipo de ginástica que deveria ser escolarizada. Em seus argumentos, nota-se a diferenciação entre as ginásticas científicas e outras ginásticas não científicas, sendo a ginástica científica possuidora de qualidades e as outras ginásticas representantes da antinorma por não ser baseada na ciência (REGO FILHO, CESAR, SANTOS, 1874).
Os médicos da comissão também acreditavam que a ginástica não teria uma boa influência sobre o aparelho locomotor, ela agiria em todo o organismo, modificando toda a “economia corpórea”. Os médicos percebiam uma relação de conjunto no organismo, ou seja, se ocorresse a influência sobre um aspecto da economia física outro também seria afetado, assim a ginástica científica teria uma atuação sobre todo o corpo, constituindo “o melhor meio de prevenir as moléstias e de fortificar o organismo.” (REGO FILHO, CESAR e SANTOS, 1874, p.74).
Para os médicos da comissão, a ginástica deveria ser adotada para ambos os sexos e em todas as idades, entretanto não deveria ser a mesma para todos já que suas funções imaginadas na sociedade e suas naturezas seriam diferentes. Segundo eles:
Passando à aplicação da ginástica em relação aos sexos diremos que se a natureza deu à mulher e ao homem uma organização diferente e disposta à missão que cada um tem de exercer na terra, é claro que nem a mesma educação e nem os mesmos exercícios convêm a ambos; a ginástica ativa, conveniente ao homem, que a providência dotou de força e coração para proteger a família e defender a pátria não pode convir à mulher. (REGO FILHO, CESAR e SANTOS, 1874, p.74).
Segundo a comissão, ao homem cabia o papel de defensor tanto da pátria como da família e, com isso, a ginástica voltada para ele deveria ter esse fim. A busca de um homem forte e preparado para defender a pátria parece ter se tornando mais comum no Brasil após a Guerra do Paraguai (SILVA e MELO, 2011), podendo ter influenciado o modelo de educação física e ginástica para o homem defendido pela comissão.
Mas a preocupação com o físico não era a única dos médicos. Em outro artigo, Cesar, um dos membros da comissão, defendia que a ginástica não agiria somente sobre o físico, sua atuação se daria em todas as dimensões da educação. Para defender esse argumento, esse médico, apontava que um corpo forte teria uma vontade forte e que um corpo forte poderia suportar as intempéries e conservar a inteligência. Citando o Novo guia para o ensino d gymnastica nas escolas publicas da Prússia, Cesar defendia que “[...] [a] ginástica não tem só em vista dar força e destreza ao corpo, mas também vigorar a saúde, despertando e favorecendo, outrossim, a boa disposição do espírito, a firmeza da vontade, a prudência e a coragem.” (CESAR, 1878, p. 343).
Sobre a proteção do corpo contra as intempéries da vida, Cesar apontava que a ginástica protegia o corpo de doenças, combatendo a anemia e a diabetes diminuindo a obesidade, regularizando as funções digestivas e desenvolvendo o apetite, além de imprimir maior atividade à circulação geral (CESAR, 1878). Nota-se que a dimensão do exercício físico, aqui protagonizado pela ginástica científica, era uma das defesas dos médicos pesquisados para se alcançar a educação física. Embora a educação física não se resumisse ao exercício físico, ele representava uma parte importante dessa dimensão da educação.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Pela análise dos documentos, tornados fontes em contextualização com o espírito da época, percebe-se que a educação física estava relacionada à uma preocupação com a formação da Nação brasileira nas décadas de 1870 e 1880. Esse projeto, no caso dos médicos que tinham suas vozes impressas nos periódicos da Academia Imperial de Medicina, deveria ser regido pela ciência da higiene. A higiene deveria criar a gramática de como criar o povo brasileiro pela educação física.
A educação física era entendida de forma a abarcar tudo que pudesse ser relacionado à educação do físico dentro de um modelo de educação intelectual, moral e físico. Embora o exercício físico, no caso a ginástica, fosse uma das principais preocupações, pode-se perceber um debate bastante amplo sobre como o físico poderia atuar na formação integral de homens e mulheres, os quais deveriam estar ressonantes com o projeto de uma Nação brasileira forte, civilizada e produtiva.
Assim, ainda que o pensamento médico tenha tido relevância no debate sobre a educação física, acreditamos que outros olhares sobre a educação física e outras práticas corporais institucionalizadas precisam ser colocados em cena para mais bem compreender a força das práticas corporais no contexto do Rio de Janeiro do final do século XIX. Mas isso é outra história.