INTRODUÇÃO1
O documento normatizador da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) fora aprovado em sua totalidade no Brasil, no ano de 20182. Precedeu-lhe a Lei nº 13.415/2017, decorrente da Medida Provisória (MP) nº 746/2016. É a mais recente alteração feita sobre a última etapa da educação básica.
A promulgação da Lei nº 13.415/2017 e, no ano seguinte, a aprovação definitiva do documento da BNCC do ensino médio (BNCC-EM), pelo Conselho Nacional de Educação (CNE), órgão vinculado ao Ministério da Educação (MEC), foram efetivados em um momento histórico de embates, especialmente, no âmbito político.
O processo de construção e a aprovação da BNCC-EM, deram-se após um momento de golpe jurídico-parlamentar (FREIRE, et al., 2016), que retira a democraticamente eleita, Dilma Rousseff, da presidência do Brasil, redirecionando seu vice, Michel Temer, ao cargo. Segundo Jinkings (2016), o objetivo da ação do impeachment da presidenta está alinhado ao rentismo internacional e na garantia do neoliberalismo, materializados no mercado, na concentração de renda e na perda de direitos. O golpe de 2016 está relacionado ao contexto de disputas políticas e econômicas, que segundo Frigotto (2017), dão-se no campo internacional dos grandes organismos e conglomerados empresariais, os quais vêm disputando a hegemonia do projeto de formação, para o capital e o lucro - contrários, portanto, aos processos de luta, construídos ao longo da história das políticas públicas educacionais em países em desenvolvimento, como o Brasil.
Nesse cenário, a BNCC é aprovada. De maneira progressiva, tem-se: a Resolução nº 02, de 2 de dezembro de 20173, que institui e orienta a implantação da BNCC, a ser respeitada obrigatoriamente ao longo das etapas e respectivas modalidades no âmbito da Educação Básica; a Portaria nº 1.570, de 20 de dezembro de 20174, na qual o MEC, no Art. 1º, homologa o Parecer CNE/CP nº 15/2017, aprovado na Sessão Pública de 15 de dezembro de 2017, que junto ao Projeto de Resolução a ele anexo, instituem e orientam a implantação da BNCC, explicitando os direitos e objetivos de aprendizagem e desenvolvimento, a serem observados obrigatoriamente ao longo das etapas e respectivas modalidades no âmbito da Educação Básica; a Portaria nº 331, de 5 de abril de 20185, que institui o Programa de Apoio à Implementação da BNCC - ProBNCC e estabelece diretrizes, parâmetros e critérios para sua implementação; a Resolução nº 03, de 21 de novembro de 20186, que estabelece as Diretrizes Curriculares para o ensino médio em atualização às diretrizes anteriores (2012); a Portaria nº 1.348, de 14 de dezembro de 20187, que institui e orienta a implantação da BNCC do Ensino Médio (BNCC-EM); a Resolução nº 04, de 17 de dezembro de 20188, que institui a BNCC-EM, como etapa final da Educação Básica, nos termos do Art. 35 da LDBEN/96, completando o conjunto constituído pela BNCC da Educação Infantil e do Ensino Fundamental, com base na Resolução CNE/CP nº 02/2017, fundamentada no Parecer CNE/CP nº 15/2017; a Portaria nº 1.432, de 28 de dezembro de 20189, que estabelece os Referenciais Curriculares para a Elaboração de Itinerários Formativos e institui ação de apoio a projetos de pesquisa sobre didáticas específicas, voltados à realidade da sala de aula, que contribuam para a melhoria da aprendizagem nos anos finais do ensino fundamental e no ensino médio das redes públicas de educação básica; a Portaria nº 756, de 3 de abril de 201910, que altera a Portaria nº 331, de 5 de abril de 2018, que institui o Programa de Apoio à Implementação da BNCC - ProBNCC. A elaboração e a formulação desses textos normativos, constituem complementaridade à Lei nº 13.415/2017 e, consequentemente à BNCC-EM.
A BNCC passa a redimensionar o grau de importância dos componentes curriculares, bem como cercar o caráter epistêmico dos diversos conhecimentos desses componentes, inclusive da educação física (EF) - objeto de análise do texto aqui proposto -, a qual se relaciona às práticas corporais, tem discussão epistêmica histórica, realizada por professores, pesquisadores e comunidade acadêmica. O objetivo do estudo se pauta na análise do campo da EF, na BNCC-EM, atentando para as concepções e perspectivas denotadas à EF, por esse documento oficial.
A relevância acadêmico-científica está na análise de um projeto normatizador, proveniente de um cenário influenciado pelo mercado, pelos organismos internacionais, que primam por um projeto de educação e de EF alinhados a esses interesses. Socialmente, o estudo é relevante, à medida que admite um sentido de ser humano e sociedade, engendrados no documento.
A fim de atender ao objetivo, o estudo apresenta o material e métodos utilizados; posteriormente, trata dos resultados e discussões - inicialmente, analisa o processo organizativo do ensino médio no Brasil, a partir da Lei nº 13.415/2017 e, em seguida, as bases conceituais e perspectivas presentes na BNCC-EM, especificamente no que se refere à EF. Finalmente, aponta as conclusões correlacionadas.
MATERIAL E MÉTODOS
Metodologicamente, o estudo realiza análise em textos legais, para tratar da organização do ensino médio e, em especial, da EF, no Brasil. Utiliza, portanto, a pesquisa documental, considerando o documento da BNCC-EM, especialmente na seção que trata sobre a EF. Para Rodrigues e França (2010), esse tipo de pesquisa possibilita o trato analítico de acordo com os objetivos do estudo; as informações necessárias à análise, para alcançar os objetivos propostos, estão nas fontes documentais, que podem ser encontradas ou tratadas, por exemplo, nos documentos oficiais.
Para tal, o estudo faz pesquisa documental na BNCC-EM (2018), especialmente, em relação à EF. No entanto, destaca no processo analítico da organização do ensino médio, no Brasil, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN) nº 9.394/96, a MP nº 746/2016, a Lei nº 13.415/2017, que consubstanciaram a BNCC-EM (2018). Também analisa a EF nas legislações, especialmente na BNCC-EM.
O estudo recorre ademais, à pesquisa bibliográfica, que de acordo com Rodrigues e França (2010, p.55) “se utiliza fundamentalmente das contribuições dos diversos autores sobre determinado assunto”, inclusive servindo de baliza ao trato documental.
Para fazer o tratamento dos dados, advindos da pesquisa documental, o estudo articula a análise de conteúdo, que segundo Bardin (2011, p.37) “é um conjunto de técnicas de análise das comunicações”. Assim, primeiramente foram escolhidos os documentos da Lei nº 13.415/2017 e da BNCC-EM/2018; em seguida, buscou analisar o processo organizativo do ensino médio nesses documentos. A partir daí, foi feito recorte específico sobre EF, especialmente na BNCC-EM; finalmente, os dados foram interpretados.
Todo esse procedimento metodológico, balizou-se no método dialético, por permitir o trato dos nexos e contradições históricas sobre o fenômeno do ensino médio - analisados a partir dos documentos e bibliografia -, produzidos no e para o contexto brasileiro, bem como à EF. Nesse sentido, as concepções e perspectivas da EF, na BNCC-EM, considera o contexto no qual o documento foi produzido, os interesses, as estratégias, as contradições e as lutas que envolvem a disputa entre projetos educativos, de ser humano e de sociedade.
RESULTADOS E DISCUSSÕES
O processo organizativo do Ensino Médio no Brasil
Apesar dos ranços que a LDBEN nº 9.394/96 apresenta, há avanços, conforme análise de Demo (1997). De maneira geral, para falar sobre os ranços, logo após a promulgação da lei, Demo (1997, p.67) destaca nessa legislação uma “visão relativamente obsoleta de educação”, que se alinha ao ensino e a múltiplas terminologias, redundando-a e se mostrando ultrapassadas. Quanto aos avanços, o autor considera positiva a questão da formação dos profissionais da educação, que se relaciona à qualidade da educação; o direcionamento dos investimentos financeiros à valorização do magistério; entre outros aspectos (DEMO, 1997). Na análise, o autor não se descuida do olhar crítico na construção da LDBEN nº 9.394/96, apontando que esta é lançada “depois de um parto interminável e em meio a algumas satisfações e muitas insatisfações” (Ibid, p.09).
Transcorridos mais de vinte anos, a LDBEN nº 9.394/96, substancialmente não foi modificada, embora tenha passado por várias atualizações, que se articulam a diferentes movimentos políticos. Conforme Souza, Araújo e Silva (2017), após vinte anos da LDBEN, com a luta da sociedade civil, dos movimentos de educadores e pesquisadores pela educação e de parlamentares comprometidos com a questão, algumas lacunas foram preenchidas. No entanto, Ferreti e Silva (2017) ao abordarem o ensino médio - última etapa da educação básica, de acordo com a LDBEN nº 9.394/96 -, nos contextos dos governos Fernando Henrique Cardoso (FHC) e Luís Inácio Lula da Silva, apontam que embora tivessem agenda educacional distinta, esta não deixou de estar subjugada ao neoliberalismo. Ainda assim, o governo Lula concedeu mais atenção à questão social, naquilo que é produzido pelo neoliberalismo de terceira via, ou seja, sua agenda buscou a promoção de condições para a ativação da sociedade, por meio da ajuda mútua, solidariedade e harmonização de classes (LIMA; MARTINS, 2005 apud FERRETI; SILVA, 2017). Essa análise, mostra a imbricação do viés político-governamental também no setor educacional e em suas legislações.
A mais recente atualização da principal lei da educação brasileira, ocorre no governo Temer, entre os anos de 2016 a 2018. Segundo Araújo (2018), o modo como se deram essas atualizações - a partir de MP, com força de lei, sem a participação de professores, pesquisadores e estudantes e, ao mesmo tempo, alinhada ao grande empresariado, como o Todos pela Educação, por exemplo - expressa o caráter antidemocrático da própria reforma.
Em relação ao ensino médio, pauta do presente texto, a LDBEN nº 9.394/96 o destaca como etapa final da educação básica, que na análise de Demo (1997), denota característica de curso de passagem, versão que acaba conflitando com a ideia de formação permanente, ou nas palavras do autor “aprendizagem permanente” (Ibid, p.89).
De acordo com a LDBEN nº 9.394/96, o ensino médio é tratado nos Art. 35 e 36, especificamente. No Art. 35 são destacadas as finalidades do ensino médio e o Art. 36, aporta-se no currículo e diretrizes.
Nas atualizações incluídas pela Lei nº 13.415/2017, que se refere à Reforma do ensino médio e que integra a BNCC-EM, ao Art. 35 foi acrescida a BNCC como definidora dos direitos e objetivos de aprendizagem do ensino médio, dividindo-o em quatro áreas do conhecimento (linguagens e suas tecnologias; matemática e suas tecnologias; ciências da natureza e suas tecnologias; ciências humanas e sociais aplicadas) (Art. 35 - A), somadas a uma quinta área, que trata da educação técnica e profissional. De maneira geral, apresenta que os sistemas de ensino deverão cumprir 1.800 horas da BNCC, comum aos estudantes (Art. 35 - A § 5º); incluir obrigatoriamente, nos três anos, os ensinos de língua portuguesa e matemática (Art. 35 - A § 3º); a língua inglesa deverá estar incluída no currículo do ensino médio (Art. 35 - A § 4º); os currículos deverão considerar a formação integral dos estudantes, atentando ao projeto de vida dos alunos e a formação dos aspectos físicos, cognitivos e socioemocionais (Art. 35 - A § 7º) (BRASIL, 1996)11.
Já o Art. 36 foi modificado, ao se organizar o currículo, mediante a orientação da BNCC e dos itinerários formativos já expostos no Art. 35 - A. Destaca que as áreas precisarão desenvolver competências e habilidades definidas pelos sistemas de ensino (Art. 36 § 1º); aponta itinerário formativo integrado, considerando os componentes curriculares da BNCC e dos itinerários formativos (Art. 36 § 3º); apresenta a possibilidade de o aluno cursar mais de um itinerário formativo, ao término do ensino médio (Art. 36 § 5º); bem como, a possibilidade de o aluno realizar a formação técnica e profissional na instituição ou em parcerias com outras instituições (Art. 36 § 8º); entre outras modificações (BRASIL, 1996)12.
Silva (2017) adjetiva o ensino médio proveniente da reforma de “ensino médio líquido”, fundamentando seu argumento na exposição de algumas características, como a divisão do currículo em uma parte comum de 1.800 horas e outra composta pelos itinerários formativos “escolhidos” pelos estudantes - que, na verdade, considerará a disponibilidade do sistema de ensino; à exceção de língua portuguesa e matemática, as outras disciplinas não são obrigatórias, abrindo espaço a suas diluições umas nas outras.
Araújo (2018) aponta que a reforma favorece a minimização do ensino médio, tanto pela obrigatoriedade comum apenas em 1.800h, bem como pela redução da importância de se estudar a ampla gama de conhecimentos. Analisa ainda, que na forma de organização e oferta da formação técnica e profissional, instaura-se uma espécie de “vale-tudo”, pois pode ser realizada fora da instituição, em centros e programas ocupacionais nacionais ou internacionais, bem como, a reforma admite a realização dessa formação por meio de educação à distância (Ibid).
Esse ordenamento legal faz parte de um conjunto de reformas realizadas pelo governo Temer, como a fiscal, por meio de Emenda Constitucional (EC) nº 95/201613, que altera o ato das disposições constitucionais transitórias para instituir o novo regime fiscal e dá outras providências, ou seja, limita por vinte anos os gastos públicos, incluindo a educação; a Lei nº 13.467/201714, que altera a Consolidação das Leis do Trabalho; a terceirização e o trabalho temporário, Lei nº 13.429/201715; além do anúncio da reforma da previdência, que está em tramitação.
Analisa-se que todas essas reformas estão intimamente relacionadas, especialmente com o ensino médio. Veja-se que ao congelar os gastos públicos, como na educação, por exemplo, os sistemas de ensino não poderão arcar com todos os itinerários formativos propostos, sendo que alguns alunos migrarão, com dificuldades, para instituições particulares, enquanto que a maioria dos estudantes das escolas públicas, fará o itinerário oferecido pela instituição ou será empurrada rapidamente para a formação técnica, fora da instituição e, ao mercado de trabalho, o qual apresenta novas formas de organização e relação de trabalho, como o “acordo” entre empregados e empregadores.
Infere-se que essa rede conectada, por meio das reformas, busca automatizar os estudantes a uma subserviência asseverada e açodada ao mercado, prenhe na lógica capitalista, rechaçando princípios constitucionais, que sublinham uma educação voltada à cidadania e, obstaculizando sobremaneira, uma educação emancipatória.
A Educação Física na lei nº 13.415/2017 e na BNCC do ensino médio
Especificamente à EF, na Lei nº 13.415/2017, o documento aponta no Art. 3º § 2º “A Base Nacional Comum Curricular referente ao ensino médio incluirá obrigatoriamente estudos e práticas de educação física, arte, sociologia e filosofia” (BRASIL, 2017, p.01).
Com esse destaque, a Lei nº 13.415/2017 registra assegurar o componente EF nos currículos da educação básica. Este componente já se encontrava na própria LDBEN nº 9.394/96, em seu Art. 26 § 3º “A educação física, integrada à proposta pedagógica da escola, é componente curricular obrigatório da educação básica,” (BRASIL, 2016, p.19).
É preciso registar que no processo de formulação da Lei nº 13.415/2017, foi cogitada a retirada da EF, do ensino médio, como se pode resgatar na MP nº 746/2016, que traz em seu Art. 26 § 3º “A educação física, integrada à proposta pedagógica da escola, é componente curricular obrigatório da educação infantil e do ensino fundamental,”16 (BRASIL, 2016, p.01).
Após manifestações17 de estudantes, professores e pesquisadores, a Lei nº 13.415/2017 apresenta a inclusão obrigatória dos estudos e práticas da EF no ensino médio brasileiro. Mas, será que isso garante a EF como componente curricular obrigatório ao ensino médio? Para fazer um adendo ao processo da Reforma do Ensino Médio, especificamente, quanto à MP nº 746/2016, Silva e Scheibe (2017, p.26), resgatam a ausência do diálogo com a sociedade, diante de um tema que atinge milhares de jovens brasileiros, mas não realizado sem contestação, como ressaltam
as entidades que compõem o Movimento Nacional em Defesa do Ensino Médio estiveram nas audiências públicas e nas manifestações da sociedade civil contrárias à aprovação da Medida Provisória 746/2016. Das resistências a essa aprovação, é preciso dar o devido destaque às ocupações de mais de 1.200 escolas, Institutos Federais e Universidades por estudantes de todo o país.
Ao dizer, “estudos e práticas”, a Lei não abriga a EF como campo de conhecimento obrigatório; apenas inclui estudos e práticas referentes à EF, flexibilizando não apenas o currículo da EF, mas sua importância epistêmica, ontológica, política na educação de maneira geral, e no ensino médio, de forma específica.
Soares, Abreu e Teixeira (2018) analisam ainda que os termos “estudos e práticas” aparecem separados na sentença e, que pela revisão histórica de sentido à EF, há um reforço a um dualismo entre teoria e prática, fragmentando o campo da EF, que implica em um pragmatismo e um funcionalismo, voltados à produtividade capitalista.
Na BNCC-EM, a EF está na área de linguagens e suas tecnologias, sabendo-se que é a língua portuguesa que tem obrigatoriedade nos três anos do ensino médio, como componente curricular, inclusive com habilidades específicas, para além das habilidades da área.18
Infere-se que essa primazia de um componente curricular, denota que os demais componentes trabalharão como meios para garantir o desenvolvimento do componente primaz, ou seja, a língua portuguesa, que se compreende tão relevante como os demais componentes, já que são conhecimentos historicamente produzidos pela humanidade, enriquecidos de concepções, contradições e possibilidades.
Nesse sentido, a EF é diluída na área de linguagens e suas tecnologias, servindo como uma possibilidade, por meio de estudos e práticas, para a garantia do componente primaz nesse desenho estrutural para o ensino médio, apresentado na BNCC.
Dessa maneira, analisa-se que o desenvolvimento laboral e a carga horária do professor de EF, no ensino médio, ficam comprometidos, pois este precisará buscar estratégias para garantir sua existência e permanência profissional na escola, assegurando a EF no currículo. Essa estrutura legal à EF, na BNCC-EM, implica ao professor, por exemplo, que organize a EF em algumas temáticas específicas deste campo e as estruture em torno de carga horária disciplinar/créditos, podendo acarretar a subsumissão de outros conhecimentos e, mesmo, a própria compreensão da EF, como campo de conhecimento ampliado, que trata das práticas corporais. Essa situação implica a precarização da relação de trabalho do professor de EF no ensino médio, pois este conhecimento não está realmente garantido pela BNCC-EM, na área de linguagens. Na verdade, há uma diluição/transversalização da EF para garantir o conhecimento prioritário dessa área, que é a língua portuguesa. Logo, a EF e o trabalho do professor, tornam-se, nesse modelo curricular, marginalizados.
A BNCC destaca que o ensino médio deve atender ao estudante nos aspectos da diversidade-singularidade; do respeito à pessoa humana e a seus direitos; do protagonismo no processo de escolarização; na definição de seu projeto de vida, no que diz respeito aos estudos e ao trabalho (BRASIL, 2018). Para tal, aponta como finalidades consolidar e aprofundar os conhecimentos adquiridos no ensino fundamental; a preparação para o trabalho e a cidadania; o aprimoramento do educando como pessoa humana; além da compreensão dos fundamentos científicos e tecnológicos do processo produtivo (BRASIL, 2018). No entanto, não referencia diretamente todos os componentes curriculares, pois a BNCC se pauta na
flexibilidade como princípio de organização curricular, o que permite a construção de currículos e propostas pedagógicas que atendam mais adequadamente às especificidades locais e à multiplicidade de interesses dos estudantes, estimulando o exercício do protagonismo juvenil e fortalecendo o desenvolvimento de seus projetos de vida (BRASIL, 2018, p.468).
Na verdade, interpreta-se que a BNCC-EM propõe a redução da diversidade formativa, ao diminuir o currículo e flexibilizar os componentes curriculares. Dessa maneira, negligencia conhecimentos; rompe com a noção de sólida e ampliada formação, como direito social; define uma relação competente entre currículo, formação e produção, para a sociedade capitalista.
O protagonismo juvenil, então, mostra-se romantizado e fragilizado na BNCC-EM. O jovem não terá a oportunidade ampla para sua formação, para suas escolhas. Possivelmente fará o itinerário formativo que a escola puder oferecer, tendo em vista as modificações no financiamento à educação, inclusive pós Emenda Constitucional (EC) nº 95/2016. Silva e Scheibe (2017) analisam que são os sistemas estaduais de educação que distribuirão esses itinerários pelas escolas, bem como, a reforma do ensino médio admite a relação com o setor privado, para, no mínimo realizar o itinerário de formação técnica e profissional, contradizendo o chamado protagonismo juvenil.
Quanto à EF, é preciso resgatar que a BNCC-EM, denota-lhe espaço reduzido e/ou mesmo, possivelmente transversalizado, quando aponta estudos e práticas, ou seja, conhecimentos ampliados das práticas corporais, que poderiam ser tratados no ensino médio, poderão ser suprimidos e/ou imiscuídos em outras disciplinas, não oportunizando aos jovens o alargamento e a solidez necessárias e contributivas a seu protagonismo.
Segundo a BNCC-EM
formação geral básica, os currículos e as propostas pedagógicas devem garantir as aprendizagens essenciais definidas na BNCC. Conforme as DCNEM/2018, devem contemplar, sem prejuízo da integração e articulação das diferentes áreas do conhecimento, estudos e práticas de: V - educação física, com prática facultativa ao estudante nos casos previstos em Lei; (BRASIL, 2018, p.476).
O registro “facultativo” está na LDBEN nº 9.394/96, Art. 26 § 3º, apontando:
A educação física, integrada à proposta pedagógica da escola, é componente curricular obrigatório da educação básica, sendo sua prática facultativa ao aluno: I- que cumpra jornada de trabalho igual ou superior a 6 (seis) horas; II- maior de 30 (trinta) anos de idade; III- que estiver prestando serviço militar inicial ou que, em situação similar, estiver obrigado à prática da educação física; IV- amparado pelo Decreto-Lei nº 1.044, de 21 de outubro de 1969; V- (vetado); VI- que tenha prole (BRASIL, 2016, p.19).
Se a LDBEN nº 9.394/96 já traz limites de compreensão e de inserção da EF na escola19, retirando esse direito integral e ampliado das práticas corporais aos estudantes, a BNCC-EM, aprofunda o prejuízo envidado pela lei, pois cerceia ainda mais os conhecimentos, traduzidos em estudos e práticas, que estão subsumidos na área de linguagens e suas tecnologias, ou seja, não há ênfase na relevância epistêmica, ontológica, social, política, cultural da EF, podendo servir apenas como um meio para alfabetizar20 os alunos.
Na seção da BNCC-EM que discursa sobre a EF, tem-se
Na área de Linguagens e suas Tecnologias, a Educação Física possibilita aos estudantes explorar o movimento e a gestualidade em práticas corporais de diferentes grupos culturais e analisar os discursos e os valores associados a elas, bem como os processos de negociação de sentidos que estão em jogo na sua apreciação e produção. Nesse sentido, estimula o desenvolvimento da curiosidade intelectual, da pesquisa e da capacidade de argumentação. [...] No Ensino Médio, além da experimentação de novos jogos e brincadeiras, esportes, danças, lutas, ginásticas e práticas corporais de aventura, os estudantes devem ser desafiados a refletir sobre essas práticas, aprofundando seus conhecimentos sobre as potencialidades e os limites do corpo, a importância de se assumir um estilo de vida ativo, e os componentes do movimento relacionados à manutenção da saúde. É importante também que eles possam refletir sobre as possibilidades de utilização dos espaços públicos e privados que frequentam para desenvolvimento de práticas corporais, inclusive as aprendidas na escola, de modo a exercer sua cidadania e seu protagonismo comunitário. Esse conjunto de experiências, para além de desenvolver o autoconhecimento e o autocuidado com o corpo e a saúde, a socialização e o entretenimento, favorece o diálogo com as demais áreas de conhecimento, ampliando a compreensão dos estudantes a respeito dos fenômenos da gestualidade e das dinâmicas sociais associadas às práticas corporais. Essa reflexão sobre as vivências também contribuem para a formação de sujeitos que possam analisar e transformar suas práticas corporais, tomando e sustentando decisões éticas, conscientes e reflexivas em defesa dos direitos humanos e dos valores democráticos (BRASIL, 2018, p.483-484, espaçamentos nossos).
A EF na BNCC-EM traz a ideia de movimento e gestualidade, associados à corporeidade, em relação com a saúde e o entretenimento. Analisa-se que os termos não problematizam as contradições e complexidade presentes nas relações, nas produções humanas, no interior da sociedade capitalista; não interrogam os projetos históricos de classe, de educação, de EF; não questionam as condições reais de saúde das pessoas; não inquirem o papel do capital na organização do lazer; ou seja, mostra uma EF idealizada, balizada em termos também considerados idealizados.
Em entrevista concedida a Nogueira, Taffarel (1998/1999, p.06) analisa “Não acredito em produções teóricas que negam, desconhecem, subsumem, ignoram, ocultam os nexos e determinações históricas. Os cientistas, os professores, a ciência e o ato pedagógico não são neutros.” Além de limitar a EF, nesse molde paradigmático, idealizando-a e, consequentemente, contribuindo para a reprodução do modo de produção capitalista, a BNCC-EM, flexibiliza a EF, no currículo, diminuindo cada vez mais o alcance e a possibilidade formativa das práticas corporais para o enfrentamento do capital.
Nas competências específicas para a área de linguagens e suas tecnologias no ensino médio, a competência cinco destaca “compreender os processos de produção e negociação de sentidos nas práticas corporais, reconhecendo-as e vivenciando-as como formas de expressão de valores e identidades, em uma perspectiva democrática e de respeito à diversidade” (BRASIL, 2018, p.490). O documento explica que essa competência específica
indica que, ao final do Ensino Médio, o jovem deverá apresentar uma compreensão aprofundada e sistemática acerca da presença das práticas corporais em sua vida e na sociedade, incluindo os fatores sociais, culturais, ideológicos, econômicos e políticos envolvidos nas práticas e nos discursos que circulam sobre elas. Prevê também que o jovem valorize a vivência das práticas corporais como formas privilegiadas de construção da própria identidade, autoconhecimento e propagação de valores democráticos. Nessa direção, é importante que os estudantes possam refletir sobre suas preferências, seus valores, preconceitos e estereótipos quanto às diferentes práticas corporais. Cada conjunto de práticas corporais (jogos e brincadeiras, danças, lutas, ginásticas, esportes e atividades corporais de aventura) apresenta especificidades de produção da linguagem corporal e de valores e sentidos atribuídos às suas práticas. Essa diversidade de modos de vivenciar e significar as práticas corporais é objeto de aprendizagem da área. Para o desenvolvimento dessa competência, é fundamental que os jovens experimentem práticas corporais acompanhadas de momentos de reflexão, leitura e produção de discursos nas diferentes linguagens (BRASIL, 2018, p.495).
Em relação ao desenvolvimento dessa competência específica, o conjunto de habilidades que se seguem, envolvem
(EM13LGG501) Selecionar e utilizar movimentos corporais de forma consciente e intencional para interagir socialmente em práticas corporais, de modo a estabelecer relações construtivas, empáticas, éticas e de respeito às diferenças. (EM13LGG502) Analisar criticamente preconceitos, estereótipos e relações de poder presentes nas práticas corporais, adotando posicionamento contrário a qualquer manifestação de injustiça e desrespeito a direitos humanos e valores democráticos. (EM13LGG503) Vivenciar práticas corporais e significá-las em seu projeto de vida, como forma de autoconhecimento, autocuidado com o corpo e com a saúde, socialização e entretenimento (Ibid).
Analisa-se que o sentido de diversidade atribuído ao componente EF fica comprometido nas competências e habilidades exigidas para este campo, na área de linguagens, na BNCC-EM, pois não há garantia para uma efetivação ampliada de práticas corporais, para um pensar crítico e criativo das diversas formas de ser e estar no mundo. Há ênfase em um movimento e corporeidade voltados ao modo produtivo da sociedade capitalista, buscando desenvolver formas de linguagem alfabetizadora para o mercado de trabalho, pois não aponta maneiras de questionar a realidade concreta, complexa e contraditória de vida das pessoas, no interior da sociedade capitalista.
O que se percebe é que a EF não parece ser um componente essencial de aprendizagem, mas uma atividade meio, visando estabelecer formas de contribuir para uma alfabetização mercadológica, que reproduza e aprofunde as desigualdades sociais, pois retira a possibilidade de desenvolver a EF, como campo de conhecimento ampliado e crítico das práticas corporais.
CONCLUSÃO
O texto procurou realizar análise das concepções e perspectivas denotadas ao campo de conhecimento da EF, pela BNCC-EM, considerado um documento normativo, gerado em um ambiente político brasileiro conturbado.
Analisou-se que o ensino médio, no Brasil, mediante atualizações da LDBEN nº 9.394/96, pela Lei nº 13.415/2017 e inclusa na BNCC-EM, minimiza o currículo para essa etapa da educação básica e a própria importância dos diversos conhecimentos, os quais são diluídos uns nos outros.
Inferiu-se que, na verdade, a reforma do ensino médio está intimamente ligada a outras reformas e, nessa rede relacional, os alunos do ensino médio serão prejudicados, pelo estabelecimento de um ensino fragmentado, enfraquecido, empobrecido, que terá a função de reorientar os alunos aos mandos do mercado e os alinhar à lógica capitalista.
Em relação à EF, observou-se um processo de resistência de professores, estudantes, pesquisadores e, mesmo, de instituições que pensam diferentemente a EF - como o CBCE e o CONFEF -, para mantê-la no currículo do ensino médio, já que foi cogitada sua retirada, como consta na MP nº 746/2016.
Interpretou-se que a forma como a EF se manteve na LDBEN nº 9.394/96 flexibiliza seu currículo e sua importância epistêmica, ontológica e política. Na BNCC-EM, analisa-se que a EF assessora o componente curricular primaz da área, a qual está vinculada, pois o interesse desta se encontra na alfabetização. Nesse sentido, conceitualmente a EF se apresenta como atividade meio e é transversalizada, quando a BNCC-EM aponta “estudos e práticas da educação física”.
As perspectivas à EF na BNCC-EM indicam para a possível supressão e/ou diluição deste campo de conhecimento, induzindo as práticas corporais à ação alfabetizadora mercadológica capitalista. Perspectiva, portanto, uma EF a-histórica e distorcida epistemológica, humana e socialmente, afastando-a do debate educacional aprofundado e a balizando em fragilidades e inconsistências.