INTRODUÇÃO
Desde a metade da década de 2000 é observado o fortalecimento da agenda institucional relacionada às Práticas Corporais e Atividades Físicas (PCAF) no Brasil, resultando na gradual implementação de uma série de políticas e ações no Sistema Único de Saúde (SUS). Mais de uma década depois e percebendo os inúmeros desafios na acepção e operacionalização de ações que articulam Cuidado e Promoção da Saúde, buscamos, por meio deste ensaio, apontar e refletir sobre potências e limitações na perspectiva das PCAF como elemento de aproximação entre eles. O texto, de caráter ensaístico, foi embasado por revisão de literatura de temas relacionados à Promoção da Saúde, ao Cuidado e às PCAF, além de reflexões e vivências dos autores na docência universitária, pesquisa e gestão do SUS.
Breve conceituação de Cuidado e Promoção da Saúde e como as Práticas Corporais e Atividades Físicas se encaixam neste debate
Apesar da polissemia e das distintas questões conceituais que permeiam o Cuidado e a Promoção da Saúde, assim como as discussões relacionadas, as quais, em um sentido mais geral, serão brevemente trazidas no texto, é importante refletir sobre a visão equivocada de compartimentalização entre estes conceitos, de modo a chamar a atenção para a necessidade de que esforços sejam empenhados para a superação do entendimento simplista-dicotômico, que nos parece comum, que compreende que uma ação de saúde ou é vinculada ao Cuidado, ou à Promoção da Saúde.
O Cuidado é definido como “o conjunto de ações interligadas que perpassa todos os níveis da Atenção à Saúde, considerando a integralidade do sujeito e envolvendo os setores que podem intervir nos determinantes sociais da saúde” (BRASIL, 2013), sendo sua produção dependente do ato e da dinâmica relacionamental. Elementos como a qualidade técnica e a ética são imprescindíveis, considerando a importância do reconhecimento dos direitos, da subjetividade e das referências contextuais do usuário, ampliando a garantia de respeito às questões de gênero, etnia, raça, situação econômica, orientação sexual, entre outras (BRASIL, 2013).
Já a Promoção da Saúde é apontada como um dos pilares do SUS e representa, de maneira operacional, um “conjunto de estratégias e formas de produzir saúde, no âmbito individual e coletivo, caracterizando-se pela articulação e cooperação intra e intersetorial, pela formação da Rede de Atenção à Saúde (RAS), buscando articular suas ações com as demais redes de proteção social, com ampla participação e controle social” (BRASIL, 2014).
Em nossa compreensão, a Promoção da Saúde caminha para além das atividades coletivas, educativas, de concepções idealísticas e inalcançáveis relacionadas às condições de vida, assim como de esforços direcionados a mudança de comportamentos a partir de prescrições descontextualizadas, de modo a ser caracterizada quando são abarcadas as complexidades relacionadas à saúde e as múltiplas possibilidades de atuação, que necessariamente consideram princípios e diretrizes relacionadas à concepção ampliada de saúde, equidade, autonomia, empoderamento e protagonismo dos sujeitos (nas esferas individual e coletiva).
De forma semelhante, afirma-se que a Promoção da Saúde recebe importante atenção por parte da Educação Física (EF), mas de forma indiscriminada, sendo necessário o questionamento sobre as simplificações relacionadas aos êxitos ou fracassos das ações de saúde, geralmente atribuídas aos indivíduos, sem uma adequada reflexão sobre as condições de vida, os interesses corporativos e as desigualdades regionais, de gênero e sociais (KNUTH; SILVA; MIELKE, 2018).
Cabe mencionar que muito da compartimentalização que permeia as abordagens do Cuidado e da Promoção da Saúde advém da própria compartimentalização interna entre estes temas, desdobrando-se em distintas vertentes do debate acadêmico e nas práticas - inclusive pela apropriação de outras terminologias, com destaque às diferenças e ruídos históricos relacionados à definição e operacionalização das práticas de ‘Cuidado’ (CARNUT, 2017). Com a Promoção da Saúde ocorreu algo semelhante, dada a já referida polissemia do conceito. Assim, optamos por trazer conceitos no presente texto que partem do acúmulo de discussões e práticas de quase 30 anos no Brasil e no SUS, de 1986 a 2014, desde a Carta de Ottawa, a Constituição Federal e a Lei Orgânica da Saúde.
Isto posto, é possível encontrar importantes interseções entre a Promoção da Saúde e o Cuidado, inclusive na perspectiva conceitual, com destaque para as ações na RAS e a articulação com setores que atuam nos determinantes e condicionantes da saúde, respeitando subjetividades e a integralidade (CARVALHO, 2019). Akerman e Rocha (2018) afirmam que não há dicotomia entre eles, já que nos serviços de saúde e no Cuidado, a Promoção da Saúde implicaria, necessariamente, na ampliação das estratégias a partir da compreensão do adoecimento como um acontecimento na vida dos sujeitos.
Afirma-se que esta dicotomia reflete um falso dilema e, que no encontro singular entre cuidador e usuário, a Promoção da Saúde representa a potência da vida e a singularidade das distintas manifestações na vida de cada pessoa (AKERMAN; ROCHA, 2018). Além disso, salienta-se que em produções técnicas do Ministério da Saúde, a Promoção da Saúde está incluída nas Linhas de Cuidado, que são modos de organização da gestão e da Atenção à Saúde, que articulam, nos diferentes pontos da rede de serviços de saúde, os recursos e as tecnologias para assegurar o acesso ao Cuidado, com a defesa de que a Promoção da Saúde seja partícipe no cuidado com a vida, compondo redes de compromisso e corresponsabilidade (BRASIL, 2013).
Dessa forma, em complemento ao que Akerman e Rocha (2018) apontam, afirmamos que não deveria haver tal dicotomia nas ações e abordagens de Cuidado e de Promoção da Saúde, inclusive, porque muitas vezes esta relação já ocorre, mesmo que de maneira sutil e sem com que profissionais e usuários se deem conta. Entretanto, há necessidade de reconhecer que esta dicotomia existe e é presença marcante na práxis cotidiana do sistema de saúde brasileiro.
No Brasil, as PCAF foram institucionalmente reconhecidas como ação de Promoção da Saúde, pelo menos, desde 2006, com a publicação da primeira versão da PNPS e, para além desta importante política, fazem parte de outras políticas do SUS, como as de Atenção Básica (PNAB), de Práticas Integrativas e Complementares (PNPIC) e do Programa Academia da Saúde. Tais políticas e programas que, além de darem visibilidade à sua importância, partem de sua abordagem como estratégia relevante para a proteção e promoção da saúde, com destaque a ações baseadas nos princípios da humanização e integralidade do cuidado (CARVALHO; NOGUEIRA, 2016; CASEMIRO; BRANDÃO; SILVA, 2019), ainda que existam distintas interpretações sobre o que, de fato, significaria o reconhecimento como Promoção da Saúde e que é importante questionar a linearidade causal entre esta e as PCAF (CARVALHO; NOGUEIRA, 2016; MACIEL et al., 2019).
Já como oferta de Cuidado, mesmo que alguns autores já tragam tal compreensão (CARVALHO; NOGUEIRA, 2016; CARVALHO; CARVALHO, 2018), não há o mesmo reconhecimento, como pode ser exemplificado pela sua ausência em proposta inicial de Carteira de Serviços da Atenção Primária à Saúde Brasileira (CASAPS-BR) na qual consta, dentre outros pontos, a promoção da alimentação saudável. Ou seja, ainda que a proposta seja localizada no tempo e na visão do grupo de gestores que estava no Ministério da Saúde no momento da proposta, é possível inferir que, se as PCAF como oferta de Cuidado fosse algo já estabelecido, seria incompreensível a ausência do seu debate em um documento que busca estabelecer um cenário ‘ótimo’ para a implementação e oferta de serviços nas unidades de saúde (BRASIL, 2019a). Destaca-se que as PCAF foram incorporadas após processo de consulta pública (BRASIL, 2019b).
PRÁTICAS CORPORAIS E ATIVIDADES FÍSICAS NA APROXIMAÇÃO ENTRE O CUIDADO E A PROMOÇÃO DA SAÚDE: potências, dificuldades, desafios e caminhos
O extenso corpo de evidências que aponta que as PCAF são um importante elemento para a prevenção e controle de doenças, assim como para a manutenção e ampliação da saúde (WCRF/AICR, 2018; MANDSAGER et al., 2018; MOK et al., 2019; SPARTANO et al., 2019; RABIN et al., 2019), acaba, por vezes, a levar a um entendimento mais restrito na sua conceituação e operacionalização. Com o debate muitas vezes centrado fundamentalmente nos seus potenciais efeitos nos indicadores biológicos - fato que subsidia, em grande parte, sua justificativa e relação com a saúde a partir da análise de desfechos clássicos de morbimortalidade.
Não se trata de negar a importância das PCAF nestes desfechos, mas de reconhecer que tais práticas podem ir além deles e que é necessária uma compreensão mais ampla e aglutinadora, que não busque separar ou hierarquizar seus benefícios socioculturais e biológicos. Uma vez que ambos estão necessariamente presentes e precisam ser reconhecidos, de modo que se permita um entendimento mais ampliado sobre as PCAF, na qualidade de fenômeno complexo e multideterminado.
A partir desta defesa de uma concepção ampliada das PCAF, neste item apresentaremos aspectos que consideramos indicar suas potencialidades como elo entre o Cuidado e a Promoção da Saúde e posteriormente outros pontos nos quais buscamos discutir dificuldades e desafios, inclusive para deixar claro que não é meramente com a inclusão das PCAF no contexto das ações de saúde que este “elo” irá acontecer e se fortalecer. Evidentemente, todos os pontos (tanto os que indicam a potencialidade, quanto os que discutem dificuldades e desafios) estão, de algum modo, relacionados, não sendo totalmente “independentes”.
Potências
1 - O potencial impacto das Práticas Corporais e Atividades Físicas no desenvolvimento humano e sua contribuição para uma vida mais satisfatória e prazerosa
A partir da assistência individual, curativista, biologicista e fragmentada, as práticas em saúde costumam ser centradas na doença, o que pode ser considerada uma lógica dominante com olhar reducionista para o cuidado com a saúde (PETTRES; DA ROS, 2018). As PCAF também podem seguir essa lógica quando são centradas exclusivamente na “protocolarização das práticas”, nas quais são abordadas em função essencialmente de instrumentos de avaliação física ou de práticas pré-estabelecidas, estando o foco mais no protocolo (ou no alcance de recomendações) do que nas pessoas e no modo como elas inserem as PCAF em suas vidas (OLIVEIRA; WACHS, 2019).
As PCAF são um fator de prevenção para uma série de doenças, agravos, especialmente as doenças crônicas não-transmissíveis (DCNTs), mortalidade precoce e que podem contribuir no tratamento de algumas destas condições e isto está muito relacionado ao modo de inserção das PCAF na vida das pessoas. Este é um ponto que merece atenção, ao se considerar que ainda é forte sua procura enquanto condição de tratamento/terapêutica, reconhecendo-se o considerável número de usuários com condições clínicas, sobretudo DCNTs, que participam das atividades lideradas pelos professores/profissionais de Educação Física (PEF) que atuam nos Núcleos Ampliados de Saúde da Família e Atenção Básica (Nasf AB) (ROMERO et al., 2016), uma das principais formas de oferta das PCAF no SUS, entre outras.
Não discordando, muito menos colocando em dúvida o conhecimento disponível que aponta inúmeros efeitos benéficos à saúde associados às PCAF nestes grupos e considerando que não estar doente e/ou ter suas repercussões amenizadas também faz parte de uma vida satisfatória, mas não se esgota aí, compreende-se que o potencial das PCAF nos indicadores biológicos também são fundamentais para o Cuidado.
Mas, partindo da compreensão da temática que aponta as PCAF como elemento de desenvolvimento humano, em uma perspectiva mais ampliada de busca de benefícios à vida, plena e valiosa, pelo seu potencial de enriquecê-la e ampliar a liberdade de escolha das pessoas para que possam construir oportunidades e usufruí-las (PNUD, 2017), nos parece que sua indicação apenas pela necessidade individual de sobrevivência a partir de determinadas condições clínicas representa uma visão limitada e muito frágil para sua manutenção.
Casemiro, Brandão e Silva (2019), ao abordarem o enfrentamento da obesidade, mas que consideramos ser possível extrapolar para as PCAF no Cuidado e na Promoção da Saúde, afirmam que as mudanças nas formas de compreender tais práticas na saúde decorrem de perspectivas que contam com a convergência de temas como a cidadania, equidade, contextualização das ações, territorialização, respeito à cultura e à diversidade.
Por outro lado, não desconsideramos que as PCAF possam remeter a sentimentos de exclusão e incapacidade, sobretudo nos casos de atividades que possuem um cunho exacerbado de oposição, competição e rendimento, contudo é possível afirmar que, via de regra, estas atividades não ocorrem no contexto dos grupos de PCAF do SUS, pelo seu caráter mais participativo e cooperativo (ROMERO et al., 2016; CARVALHO; CARVALHO, 2018). Nesse sentido, para uma melhor interlocução entre Cuidado e Promoção da Saúde, é importante promover e ampliar o entendimento de que as PCAF também podem estar relacionadas ao prazer, fruição, satisfação, alegria, entre outros sentimentos positivos de valorização da vida, mas nunca como uma condição de imperativa (“ter que fazer/ser obrigado a praticar”).
Agrega-se ao fato que os profissionais que trabalham em atividades coletivas tendem muitas vezes a ser pessoas carismáticas, com habilidades ligadas à liderança e proatividade, etc, por necessidade e características da própria atividade. Destacamos que este é um elemento amplamente explorado nas PCAF e que difere da maioria dos “procedimentos” de saúde. Ainda, percebe-se que a ‘agenda’ do PEF muitas vezes é mais ‘flexível’ do que a de outros profissionais, como, por exemplo, psicólogos e nutricionistas, que muitas vezes são ‘absorvidos’ pelas demandas das Unidades de Saúde, não raramente focadas principalmente no atendimento individualizado.
E, em complemento, diante das associações entre a realização de PCAF e autopercepção positiva de saúde em distintos momentos da vida (ROCHA; FREIRE, 2007; REICHERT; LOCH; CAPILHEIRA, 2012; CONFORTIN et al., 2015; ANDRADE; LOCH; SILVA, 2019), o estímulo para a sua prática pode ser um importante elemento para a promoção do autocuidado, o que será explorado em outro item. Contudo, é importante ponderar que as PCAF se colocam como apenas um dos comportamentos associados à autopercepção positiva de saúde. No mesmo sentido, cabe destacar a evidência de estudos prévios que apontam que adultos e idosos praticantes de PCAF possuem uma melhor percepção de qualidade de vida em relação aos não-praticantes, o que é fundamental para que as pessoas tenham, por exemplo, uma maior adesão ao autocuidado (GUIMARÃES et al., 2012; PUCCI et al., 2012; VAGETTI et al., 2013).
Ao trazer distintas possibilidades para encontros, diversão, maior convivência com amigos e familiares, possibilidade de desfrutar de atividades ao ar livre, melhora da aparência pessoal e da condição física e novas experimentações no que se refere ao corpo e à saúde, indo além da dimensão pragmática das PCAF e saúde mediada exclusivamente pelos benefícios biológicos e mudanças morfofuncionais (USDHHS, 2008; LIMA; LUIZ, 2015; CARVALHO; CARVALHO, 2018), a perspectiva de valorização da vida por meio de sentimentos e vivências positivas apresentadas tem grande potencial para o desenvolvimento humano e para uma vida mais satisfatória e prazerosa.
2 - As Práticas Corporais e Atividades Físicas podem envolver distintas profissões contribuindo para o trabalho interprofissional
As práticas de saúde, como práticas sociais, situam-se e são influenciadas pelos significados que os sujeitos constroem, por oportunidades e questões estruturais de cada contexto. Assim, pensar o Cuidado como agenciamento de recursos, saberes, sujeitos e processos necessários remete ao desafio de formulação de processos de trabalho que busquem um modelo de atenção à saúde centrados nos usuários (CASEMIRO; BRANDÃO; SILVA, 2019). Para este modelo de atenção, a interprofissionalidade é uma exigência da realidade do SUS e a aproximação entre os distintos saberes se dá sob o entendimento que nenhuma categoria profissional é capaz, sozinha, de responder de forma efetiva às complexidades existentes no Cuidado e na Promoção da Saúde.
Para Costa (2019) e Oliz, Dumith e Knuth (2020) o SUS é indiscutivelmente um campo de intervenção interprofissional, sendo possível produzir o Cuidado de forma colaborativa. Dessa forma, no que concerne ao presente texto, ao mesmo tempo que posicionamos as PCAF como principal ferramenta de entrada do PEF na lógica multiprofissional do SUS, destacando suas posições de liderança no matriciamento, prescrição e implementação das ações práticas (independente se individuais ou grupais), reforçamos que as PCAF não são exclusividade desta categoria profissional, não apenas pelo ideário da Promoção da Saúde por si, mas também por conta do potencial de outros atores, como médicos, enfermeiros, agentes comunitários de saúde entre outros na implementação de ações educativas e de aconselhamento (COSTA et al., 2015; RICHARDS; CAI, 2016; CARVALHO, 2016; GORINA; LIMONERO; ÁLVAREZ, 2018; LOCH; DIAS; RECH, 2019).
Nesse sentido, ações de matriciamento e educação permanente podem estreitar ações multiprofissionais pelo favorecimento do debate sobre a promoção das PCAF, no sentido de agregar experiências e esforços tanto para o desenvolvimento de técnicas quanto para a escolha das melhores informações para o aconselhamento, nos diversos níveis de atuação: nos atendimentos nas unidades de saúde, nas visitas domiciliares e como forma de apoio aos mais frequentes grupos do Nasf AB, como de nutrição, gestantes, desenvolvimento humano e tabagismo. Em especial pelo que será discutido abaixo no próximo item, referente à construção do cuidado compartilhado.
3 - As Práticas Corporais e Atividades Físicas podem ser ricas na construção do cuidado compartilhado com as responsabilidades partilhadas entre os sujeitos e os profissionais de saúde
Quando compreendidas como possibilidades para além do apenas se movimentar e do gasto de energia, as PCAF podem conformar um Cuidado produzido que considera princípios e diretrizes da Promoção da Saúde, entre os quais o empoderamento, a autonomia e o protagonismo do sujeito. O que dá outros contornos com um olhar ampliado que permitirá que o sujeito participe efetivamente do processo de Cuidado e não haja um foco exclusivamente medicalizador apenas nos sinais e sintomas (CARVALHO, 2019).
A participação dos trabalhadores e serviços de saúde na busca por ofertas de PCAF que favoreçam o autocuidado e cogestão, com o protagonismo dos usuários, mostra que o processo de cuidado não se esgota no serviço de saúde e no atendimento pelo profissional de saúde. Isso é relevante, pois a construção de projetos terapêuticos factíveis e com maior possibilidade de êxito passa por este reconhecimento, permitindo inferir que os profissionais que ofertarem as PCAF estão preparados para operar o Cuidado e a Promoção da Saúde em suas distintas perspectivas (CARVALHO, 2019). E que os sujeitos terão mais possibilidades na construção e ampliação da autonomia, não no sentido de autonomia para os serviços “lavarem as mãos”, mas no sentido de construção de um Cuidado de fato compartilhado, com responsabilidades de todos os atores envolvidos.
Conforme exposto no item 2, partindo da defesa do trabalho interprofissional e de que é necessário reconhecer que a orientação das PCAF e apoio para a prática, assim como tê-las como hábito de vida, não são exclusividade de uma única categoria profissional, consideramos pertinente que todas as profissões da área da saúde tenham em sua formação e na educação permanente elementos que permitam o aconselhamento para as PCAF, e de maneira mais ampla, de modos de vida saudáveis, para que seja realizado por todas as áreas profissionais da saúde.
Vale mencionar que estamos adotando uma lógica de aconselhamento que vai muito além do “indicar que se deve fazer”. Defendemos uma lógica de aconselhamento que considere as singularidades de cada sujeito, território, etc, mais próximo assim do autocuidado compartilhado. Ademais, temos clareza que o aconselhamento, se pensado de maneira isolada, desarticulada de outras ações, tem sua potencialidade muito limitada.
Assim, a construção do processo de cuidado terá maior possibilidade de ser compartilhada baseando-se na busca por aumento da autonomia, da participação e do envolvimento de sujeitos e coletivos com as decisões relacionadas à saúde. Com isso, na relação entre sujeitos e trabalhadores e serviços de saúde, na qual ocorre negociação e pactuação, compartilha-se o poder de ação, já que são saberes distintos, mas igualmente importantes para a resolutividade (CARVALHO; COHEN; AKERMAN, 2017).
Dificuldades e desafios
1 - Formação profissional na Educação Física ainda focada essencialmente na lógica biomédica, na prática individualizada do exercício físico e com pouca aproximação com o ideário da Promoção da Saúde
No contexto brasileiro, as PCAF, por meio da EF (que é historicamente a principal área relacionada às PCAF, apesar de não ser a única conforme já discutido), se aproximaram com o campo da Saúde Coletiva inicialmente a partir da Epidemiologia e da naturalização da linguagem do risco do sedentarismo/ inatividade física (NOGUEIRA; BOSI, 2017; OLIZ; DUMITH; KNUTH, 2020).
Com isso, na formação em EF, assim como na área da saúde em geral, destaca-se a importância de superar a hegemônica abordagem demasiada no risco e na doença para outra que reconheça a complexidade envolvida na qual o enfoque é nos sujeitos a serem cuidados, sendo possível perceber nesta questão, no tocante as DCNTs, tanto permanências de perspectivas biomédicas restritas, quanto a incorporação da complexidade e multicausalidade (CASEMIRO; BRANDÃO; SILVA, 2019), o que também ocorre com as PCAF. A supracitada incorporação propiciará a superação de perspectivas restritas e permitirão às PCAF, como ação de Cuidado e de Promoção da Saúde, trazer contribuições para uma vida mais saudável e com qualidade.
Especificamente sobre a formação em EF, apesar dos grandes avanços na aproximação dos cursos de graduação (Bacharelados) com o SUS, ainda persiste um modelo de formação que insiste em distanciar os futuros profissionais dos seus princípios e diretrizes, com uma atuação centrada apenas em sinais e sintomas de doenças. Além disso, também pode ser destacado o discurso preventivista, que atribui às PCAF - quando direcionadas ao enfrentamento das DCNTs - um status de ‘remédio’ (COSTA, 2019).
Destacamos que, a priori, em alguns casos, não entendemos como problema a indicação das PCAF, ou de maneira mais específica, o exercício físico, para o tratamento de determinada condição de saúde, muito pelo reconhecimento do papel das PCAF no Cuidado de uma série delas. Pelo contrário, essa indicação pode representar e fortalecer sua recomendação no contexto da saúde. Entretanto, o que nos parece um equívoco é a limitação do olhar das PCAF a este elemento, ignorando diversas outras potencialidades.
Pensando em uma formação mais rica e apropriada para o trabalho multiprofissional, novos esforços poderiam ser feitos para que, desde os momentos iniciais da formação, graduandos do curso de EF possam, para além dos conhecimentos mais abrangentes da grande área Saúde Coletiva, ter contato com outros profissionais de saúde, por meio da oferta contínua, por exemplo, de vivências e imersões nos espaços de ação do SUS. Salienta-se ainda o desafio de apropriação de conceitos, processos e ferramentas de trabalho próprios da atenção à saúde por parte dos profissionais de EF tais como a clínica ampliada, apoio matricial, acolhimento, vínculo, integralidade, longitudinalidade do cuidado, entre outros (CARVALHO, 2016; COSTA, 2019).
Assim, afirma-se que a formação inicial na EF para a atuação no SUS é ainda incipiente (COSTA, 2019) e que muitos dos profissionais não tiveram contato com temas relacionados à Saúde Coletiva, nem em sua formação, ou por meio de educação continuada (ROMERO; GUERRA; FLORINDO, 2018). Por outro lado, percebendo a complexidade relacionada às PCAF, defende-se que a busca por intervenções balizadas a partir da ampliação do olhar para as subjetividades e contextos (COSTA, 2019). Na verdade, até antes da aproximação da EF com a epidemiologia, parece evidente que a aproximação desta área do conhecimento com a Saúde se dava fundamentalmente por seu viés biológico, amparada pelo papel das PCAF nas situações de doenças.
É importante ainda ressaltar que a aproximação da EF com a Epidemiologia ajudou inclusive a se ampliar o enfoque da saúde neste curso, além de ter sido fundamental para a qualificação de muitos trabalhos que produziram evidências sobre a relação entre as PCAF e indicadores de saúde, bem como de investigações que ajudaram na melhor compreensão dos fatores associados e de seus determinantes e condicionantes. Mas o que queremos destacar aqui é a necessidade de ‘olhar’ a relação das PCAF e saúde não apenas pelo viés da epidemiologia, inclusive porque, além dela, no contexto brasileiro, a Saúde Coletiva se sustenta também nas ciências humanas e sociais; e política e planejamento.
2 - Dificuldade na integração das ações e condições de trabalho inadequadas
A longitudinalidade e coordenação do cuidado são diretrizes diretamente ligadas a princípios do SUS e da RAS (BRASIL, 2017), sendo a garantia da longitudinalidade relacionada com resultados positivos (STARFIELD, 2002; CUNHA; GIOVANELLA, 2011; CASEMIRO; BRANDÃO; SILVA, 2019;), em especial nas DCNTs. Assim, um desafio para as PCAF no SUS para se tornar um elo entre a Promoção da Saúde e o Cuidado é a integração das ações.
Maciel et al. (2019) apresentam relatos de não acompanhamento dos usuários após a indicação para o programa público de PCAF limitando a continuidade e resolutividade dos casos. Em contraste, Oliveira e Wachs (2019) abordam as PCAF ofertadas por profissionais a partir do conhecimento da RAS, de outras redes que podem contribuir com o Cuidado e Promoção da Saúde, caracterizando uma atuação dialógica, com o usuário e seu projeto terapêutico. Além do reconhecimento das limitações dos núcleos profissionais e defendendo a centralidade no usuário, já que compreender como ele significa a doença pressupõe um exercício de escuta qualificada e vínculo, com relativo desvencilhamento da doença, a priori (OLIVEIRA; WACHS, 2019).
Mesmo que o trabalho multiprofissional preconizado pelo SUS represente uma inovação nos modos de ofertar saúde pública, suas potencialidades podem ser afetadas por questões concernentes às condições de trabalho. Dessa forma, no sentido organizacional, algumas necessidades são pontuadas, como de uma maior articulação e entrosamento dos profissionais na organização dos processos de trabalho do Nasf AB, sobretudo nas ações de apoio matricial, uma vez que este apoio seja indicado como estratégia primária para a consolidação do trabalho de equipe (BARROS et al., 2015). Por outro lado, também é importante o alinhamento entre os profissionais do Nasf AB e da Estratégia de Saúde da Família (ESF) no que diz respeito às prioridades, ferramentas de trabalho, modelos de gestão e de atuação (GONÇALVES et al., 2015).
A redução das ESF atendidas, de modo que as práticas em grupos possam ser realizadas com maior proximidade e periodicidade, de modo a evitar o inchaço dos Nasf AB (ROMERO et al., 2016) e a dificuldade de diálogo intersetorial, assim como a pouca interseção profissional com PEF que atuam em outros contextos comunitários, como escolas e clubes também são fatores importantes a serem considerados.
Complementarmente, outras questões também são apontadas no sentido da demanda por materiais e espaços para as atividades no âmbito dos centros de saúde (ROMERO et al., 2016). Este talvez seja o ponto estruturante mais importante. Temos clareza que sem condições minimamente adequadas de trabalho, não apenas do ponto de vista do acesso à espaços e materiais adequados para a realização das PCAF, mas também de organização que permita que de fato as potencialidades sejam exploradas, muito pouco se conseguirá fazer no sentido de as PCAF serem realmente um elo entre o Cuidado e a Promoção da Saúde.
Assim, as complexidades do fenômeno das PCAF como oferta de Cuidado devem ser compreendidas e fazer parte do trabalho multiprofissional da equipe de saúde para que não sejam configuradas apenas como qualquer tipo de movimentação, brincadeira ou atividade descompromissada com os objetivos do processo de cuidado, mas que possa ter a perspectiva da fruição e divertimento exploradas conforme abordado.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Tendo clareza que o tema necessariamente precisa ser aprofundado, não só na perspectiva das PCAF, resgata-se a afirmativa inicial de que é um desafio aproximar ações e abordagens de Cuidado e de Promoção da Saúde, o que buscamos mostrar que já ocorre, de alguma forma, ao apontar interseções conceituais nas quais destacamos as ações na RAS e a articulação com setores que atuam nos determinantes e condicionantes da saúde respeitando subjetividades e a integralidade.
Pontuamos que ações de Cuidado e Promoção da Saúde podem ser implementadas de forma articulada no contexto da promoção das PCAF, respeitando-se os escopos e fins de cada uma, com destaque para as intercessões entre elas, sem com que essa aliança promova prejuízos ou mesmo que um conceito/ conjunto de ações relacionado a um subjugue ao outro.
Apesar de ser considerado recente o caminho trilhado pelas PCAF no SUS, há um inegável avanço da área, em especial após a implantação da PNPS. São muitos os relatos e evidências sobre a oferta das PCAF e não apenas na Atenção Básica (CARVALHO; CARVALHO, 2018; MACIEL et al., 2019; AZEVEDO FILHO et al., 2019; SEUS et al., 2019; FERREIRA et al., 2019).
Em vias de conclusão deste ensaio, afirma-se que são distintas as compreensões das PCAF como ação de Promoção da Saúde e de Cuidado, pois, na primeira há maior ancoragem, inclusive em uma política nacional, o que permite pensar nela como campo-mãe das PCAF no SUS. E vale lembrar que também ocorrem debates e embates conceituais, por exemplo, com a prevenção de doenças, mas mais que o rigor conceitual é o cotidiano que vai definir a efetividade das práticas, não uma efetividade medida apenas pelo saber epidemiológico, que também pode ser usado, e sim pela vivência, fruição, usufruto das PCAF também como oferta de Cuidado e de Promoção da Saúde na busca pela saúde que não se limita à atenuação e controle de sinais e sintomas de doenças.
Dada a perspectiva de valorização da vida por meio de sentimentos e vivências positivas, as ações de matriciamento e educação permanente buscando estreitar ações multiprofissionais e, com isso, favorecendo a construção compartilhada do processo de cuidado a partir do aumento da autonomia de sujeitos e coletivos, as PCAF, como um fenômeno complexo e multideterminado nas quais necessariamente perpassam perspectivas socioculturais e biológicas, terão seu potencial fortalecido para a almejada aproximação entre a Promoção da Saúde e o Cuidado. Assim, rechaçando a compartimentalização e defendendo a articulação e buscando as intercessões possíveis entre eles por acreditarmos que com isso serão ampliadas as possibilidades de benefícios para a saúde, compreendendo-a em seu sentido ampliado, por meio das PCAF. E, ainda, ao atuar sobre as dificuldades e desafios, ampliar ainda mais este potencial.