Introdução
A Constituição da República Federativa do Brasil reconhece a educação e a educação infantil como dever do Estado, concretizando, sobretudo, o atendimento das crianças em creches e pré-escolas (Brasil, 1988). As legislações infraconstitucionais brasileiras, como a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN), postulam a educação infantil como a primeira etapa da educação básica, ao atender crianças de 0 a 5 anos de idade (Brasil, 1996). Por se tratar da mais tenra idade, o objetivo dessa etapa de ensino se ancora no educar e cuidar, utilizando-se desses dois aspectos como algo indissociável do processo educativo (Brasil. MEC, 2017) e reconhecendo a importância deste nessa fase escolar.
Os documentos nacionais que orientam a educação infantil (Brasil. MEC, 2010, 2017) ressaltam que a criança se apropria de conhecimento por meio da ação, especialmente de brincadeiras e da interação. Dessa forma, estas são tidas como eixos norteadores das práticas pedagógicas em creches e pré-escolas. Esse fato não exclui a necessidade da intencionalidade educativa durante o processo de aprendizagem.
Nesse cenário, é comum encontrar crianças com as mais diversas características e, entre elas, estão as que se destacam por seus altos potenciais em comparação aos seus pares etários (Alencar, 2014). Contudo, o tema das altas habilidades/superdotação em crianças tão pequenas suscita diversas interpretações na literatura, especialmente no que diz respeito às características se perpetuarem ou não no futuro (Dal Forno, 2011; Guenther, 2006; Mosquera; Stobaüs; Freitas, 2014; Terrassier, 2005, 2009; Winner, 1996). Uma delas é a precocidade, conceito que tratamos com base em Winner (1996), pois permite que a criança tenha uma maior facilidade em aprender e progredir em determinados temas, se comparada a seus pares etários. Dessa forma, a escola deve estar preparada para identificar e atender às necessidades educacionais dos discentes.
Para o atendimento educacional a esses estudantes, há a educação especial, que é uma modalidade transversal, a qual perpassa por todos os níveis de ensino (Brasil. MEC, 2008) e surgiu para assegurar os direitos dos alunos que fazem parte desse público, entre eles, aqueles com altas habilidades/superdotação (Brasil, 1996; Brasil. MEC, 2008). Por ser uma modalidade transversal, a educação especial está presente na educação infantil, que marca o início do processo educacional da criança. Nessa perspectiva, entende-se o papel importante da educação especial nesse processo, sobretudo na atenção voltada às crianças que estão iniciando sua vida escolar.
De acordo com a Política Nacional da Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva, de 2008, consideram-se alunos com altas habilidades/superdotação os que demonstram potencial elevado em qualquer uma das seguintes áreas: intelectual, acadêmica, liderança, psicomotricidade e artes. Eles também apresentam grande criatividade, envolvimento na aprendizagem e realizações de tarefas em áreas do seu interesse (Brasil. MEC, 2008). Esse conceito corrobora os pressupostos teóricos de Renzulli, que entende o comportamento superdotado (termo utilizado em traduções do inglês giftedness) como a intersecção de três fatores: a habilidade acima da média, a criatividade e o comprometimento com a tarefa (Renzulli, 2004, 2014a, 2014b).
A habilidade acima da média consiste em um nível de potencial alto de desempenho se comparado com a média geral, podendo apresentar-se em uma ou mais das seguintes áreas do conhecimento: Matemática, Filosofia, Religião, Ciências da Vida, Artes Visuais, Ciências Sociais, Linguagem, Ciências Físicas, Direito, Música e Artes Performáticas. O comprometimento com a tarefa, segundo o autor, refere-se à energia conduzida para o desenvolvimento de uma atividade, na área em que o indivíduo se destaca. A criatividade consiste em originalidade de pensamento e abordagens inovadoras, engenhosidade construtiva, habilidade para desconsiderar procedimentos padrões e aptidão para conceber implementações inéditas e efetivas (Renzulli, 2014a).
A partir desse pressuposto, Renzulli (2004, 2014a, 2014b) criou o Modelo Triádico de Enriquecimento como forma de atender alunos com altas habilidades/superdotação. Esse modelo surgiu de pesquisas sobre avaliação de “[...] superdotados e das observações das práticas educacionais nos programas para superdotados nas décadas de 60 e 70” (Renzulli, 2004, p. 93). Foi originalmente elaborado para o atendimento que incentivasse a criatividade por meio da disposição de vários temas, áreas de interesse e campos de estudo, divididos em Enriquecimento do Tipo I, II e III, conforme apontam Renzulli (2014b), Baum, Renzulli e Hébert (1995) e Reis e Renzulli (2010).
No Tipo I, os alunos são expostos a diversos temas que não estão diretamente relacionados ao currículo regular. Dessa forma, a escola deve planejar e buscar recursos humanos e meios para oferecer o que for necessário aos estudantes, com a ajuda deles e da comunidade escolar. Uma vez motivados por essas experiências, os alunos seguem para as próximas etapas (Tipos II e III), as quais são fases avançadas na busca pelo conhecimento e desenvolvimento de área ou assunto pelo qual o discente despertou interesse (Renzulli, 2014b).
A Figura 1 demonstra o Modelo Triádico original, implementado em programas para alunos com altas habilidades/superdotação acadêmica.
Para este relato, será apresentado o Enriquecimento do Tipo I, que foi desenvolvido com o aluno participante. A Figura 2 indica sugestões de atividades exploratórias para o Enriquecimento do Tipo I.
Conforme mencionado, o Enriquecimento do Tipo I foi elaborado com o intuito de “[...] expor os alunos a uma variedade de disciplinas, temas, profissões, hobbies, pessoas, locais e eventos que normalmente não estão incluídos no currículo regular” (Renzulli, 2014b, p. 545). O autor ainda expõe que, para oferecer essa abordagem nas escolas, é necessário o apoio de recursos humanos (pais, professores e alunos) para organizar e planejar as diferentes experiências que serão oferecidas.
Mas como atender crianças com potencial elevado na educação infantil? Para responder tal questionamento, considerando a escassez de atendimento às altas habilidades/superdotação nessa etapa e em outros níveis de ensino no Brasil, buscou-se levantar e conhecer artigos científicos nacionais que tratassem sobre o enriquecimento escolar para alunos com altas habilidades/superdotação. O objetivo foi subsidiar as discussões propostas.
Os resultados indicaram que a maior parte das publicações não mostra pesquisas sobre a implementação de atividades de enriquecimento nas escolas de educação básica, especialmente na educação infantil. Os temas desses estudos versam sobre a identificação de altas habilidades/superdotação (Azevedo; Mettrau, 2010); apresentam programas de atendimento voltados para esse público (Delou, 2014; Ogeda et al., 2016); discutem sobre políticas públicas (Freitas; Rech, 2015; Matos; Maciel, 2016); ou trazem levantamentos bibliográficos sobre o tema (Mendonça; Mencia; Capellini, 2015). Com isso, denota-se que a proposta de enriquecimento para alunos com altas habilidades/superdotação ainda é uma temática pouco discutida no meio acadêmico, o que possivelmente se reflete nas poucas ações na realidade da educação básica brasileira.
Vale lembrar que a Constituição Federal tem como princípio de educação a igualdade nas condições de acesso e permanência (Brasil, 1988). Dessa forma, alunos que apresentem notável desempenho em uma ou mais áreas do conhecimento têm o direito de ter suas habilidades reconhecidas e condições para seu desenvolvimento em sala de aula, evitando, assim, frustrações que podem desmotivar esse público a permanecer na escola (Sabatella, 2008). Assim como as Diretrizes Nacionais para a Educação Especial orientam os sistemas de ensino para receber os alunos de seu público (Brasil. MEC, 2001), cabe às escolas se organizarem para oferecer uma educação de qualidade para todos.
A partir dessa perspectiva, surgiram os seguintes questionamentos do estudo desenvolvido que culminou no presente relato: é possível implementar enriquecimento a alunos na educação infantil? Como se dariam as ações pedagógicas, tendo em vista a tenra idade das crianças?
Assim, o objetivo desta experiência foi elaborar e aplicar o Plano de Ensino Individualizado de Enriquecimento a uma criança identificada com altas habilidades/superdotação na educação infantil. O objetivo específico foi verificar como se deram as ações pedagógicas durante a intervenção, por meio do planejamento de situações de ensino baseadas nos pressupostos teóricos de Renzulli (2004, 2014a, 2014b) e Burns (2014). A relevância acadêmica e social deste relato está na ampliação de conhecimento sobre modelos práticos de atendimento às altas habilidades/superdotação para alunos da educação infantil e, com isso, propiciar o reconhecimento social às suas potencialidades.
Método
Este relato se refere ao desdobramento de uma experiência mais ampla (Braz; Rangni, 2020), cujo objetivo foi identificar possíveis indicadores de altas habilidades/superdotação em uma criança na educação infantil e aplicar um plano de intervenção. Para tanto, a pesquisadora utilizou o Manual de Identificação de Altas Habilidades/Superdotação (Pérez; Freitas, 2016). Após a verificação dos indicativos de altas habilidades/superdotação na criança, foi elaborado e aplicado o Plano de Ensino Individualizado de Enriquecimento, evidenciado neste trabalho. Partiu-se da hipótese de que o enriquecimento estimulará o aluno com atividades de seu interesse, auxiliando no desenvolvimento de suas habilidades.
Para a intervenção na escola, a pesquisadora entrou em contato com a secretaria de educação da cidade, apresentou a experiência e obteve autorização. Em seguida, buscou-se por escolas que aceitassem a intervenção em seu espaço físico, encontrando uma escola de educação infantil do município em que a diretora já tinha notado comportamentos e características de habilidades acima da média em uma criança, mas não sabia como proceder diante de tal situação. Sendo assim, a escola aceitou prontamente colaborar com as etapas da intervenção.
Os critérios para inclusão na experiência foram: ser uma criança indicada pelo instrumento (Pérez; Freitas, 2016); estar matriculada na etapa escolar da educação infantil; e aceitar participar do projeto. Para tanto, após os resultados obtidos na primeira fase da experiência, a pesquisadora conversou com a direção da escola, o professor e a mãe da criança, explicando os motivos e a importância de dar seguimento ao projeto, por meio de atividades de enriquecimento. Da mesma forma, a pesquisadora conversou com a criança indicada, explicou como o trabalho seria conduzido e a convidou a participar. Os participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, além de assinatura do responsável pela criança.
O Plano de Ensino Individualizado de Enriquecimento ocorreu em uma escola pública de educação infantil no interior do estado de São Paulo. Participou um menino de seis anos que estava inserido no último ano dessa etapa de ensino. Para fins de identificação, ele será chamado pelo nome fictício de Daniel. A criança mencionada participou da primeira etapa, sendo indicada pelo instrumento utilizado (Pérez; Freitas, 2016), com sinalização de altas habilidades/superdotação na área acadêmica. Ressalta-se que, após a primeira etapa, quando houve a indicação de altas habilidades/superdotação da criança, a pesquisadora orientou a família que prosseguisse com a investigação de identificação com profissionais externos ao ambiente pedagógico, visto que é um processo complexo que precisa ser realizado por uma equipe multidisciplinar.
Oliveira (2014) destaca a importância da identificação na escola, pois, por meio da avaliação, é possível planejar ações pedagógicas diferenciadas. A autora complementa dizendo que, uma vez que essas crianças não são identificadas da forma correta, as suas necessidades educacionais específicas não são contempladas, acarretando práticas equivocadas e impedindo o desenvolvimento e a estimulação de seus potenciais. Destaca-se que, em casos assim, a atenção às crianças que apresentam um potencial superior pode dar-se por meio do atendimento educacional especializado e do oferecimento de desafios suplementares e de enriquecimento em sala comum (Martins, 2013).
Daniel tem dois irmãos - sendo uma irmã mais velha e um irmão mais novo - e está alfabetizado. De acordo com sua mãe, ele começou a escrever as primeiras letras aos três anos de idade e a ler aos quatro anos e meio. Gosta de ler livros sobre assuntos de seu próprio interesse, não apenas os que são oferecidos pela escola. Geralmente são livros mais difíceis do que aqueles esperados para a sua idade. Quanto à escrita, ele utilizava letra de molde, ainda não escrevia com letra cursiva.
O aluno apresentou grande interesse em conversar sobre trens, especialmente sobre o desenho “Thomas e seus Amigos”; em jogos eletrônicos e de estratégia; em ler; em escrever; e em números. Em sala de aula, ele antecipa as respostas para perguntas feitas pelo professor, termina rapidamente as atividades e as propõe a seu jeito e, por vezes, não deixa espaço para que os outros alunos possam participar da aula. A aproximação da pesquisadora com ele ocorreu na escola. Por algumas semanas, ela acompanhou as aulas integralmente, duas vezes por semana, observando o comportamento de Daniel. Com o passar do tempo, o menino se mostrou receptivo e demonstrou para ela interesse em aprender coisas diferentes do que estava sendo oferecido a ele em sala de aula. Desse modo, as atividades foram planejadas para o atendimento individualizado em horário de aula, condição acordada e permitida pela escola e pelo professor. Não foi possível a realização do enriquecimento no contraturno, conforme recomenda a legislação (Brasil, 2011).
Resultados
Entendendo que as atividades de enriquecimento devem atender aos interesses da criança, Burns (2014) caracteriza as atividades iniciais como convites para explorar os interesses e aprender mais sobre eles. A pesquisadora utilizou como critério de avaliação as observações feitas em sala de aula na fase inicial do projeto, que serviram para conhecer o aluno, bem como o registro criterioso durante a realização das atividades, por meio de diário de campo. As informações obtidas foram analisadas posteriormente, considerando o contexto de vida da criança. Por exemplo, se eventualmente ela não estiver bem de saúde no dia ou se dormiu mal na noite anterior, certamente essas ocorrências poderão interferir em seu engajamento para realizar a atividade.
A elaboração da proposta de enriquecimento ocorreu em duas etapas. Na primeira, foram considerados os interesses indicados pelo aluno, requisito básico para proposta e desenvolvimento das atividades. Sendo assim, antes de planejar o enriquecimento, foi aplicada ao aluno a Teia de Interesses (Burns, 2014), para que ele apontasse seu tema de interesse principal e secundário. Explicou-se a ele como deveria preencher a teia, atentando-se para que no centro estivesse o seu maior interesse e nas ramificações, assuntos secundários que ele gostaria de explorar, a partir de seu interesse central.
Daniel preencheu a teia escrevendo no centro “Trem de Thomas”, em referência a Thomas e seus Amigos. Relacionado ao centro, ele indicou desenho (desenho animado e desenhos para colorir) e vídeos. Entretanto, para a indicação dos outros itens de interesse, o aluno teve dificuldade e foi auxiliado pela pesquisadora com perguntas como: além disso, o que você mais gosta de fazer? O que você gostaria de saber mais? A Figura 3 demonstra a Teia de Interesses proposta pelo aluno.
Com base nas informações coletadas com o aluno sobre seus interesses, foi elaborado o Plano de Ensino Individualizado de Enriquecimento sobre trens, representado no Quadro 1.
Após o planejamento do enriquecimento, a pesquisadora conversou com Daniel sobre como seria realizado o trabalho. Discutiram-se algumas questões, como o dia dos encontros, o horário, o local onde aconteceria o desenvolvimento das atividades e o que seria trabalhado.
Em conversa com a direção da escola e o professor da sala, ficaram acordados os seguintes pontos:
As intervenções ocorreriam em um ou dois dias da semana, no turno das aulas, a depender do planejamento delas.
Os atendimentos teriam duração de 50 minutos, em média.
A escola disponibilizaria um espaço para o desenvolvimento das atividades.
Notou-se, logo nos primeiros encontros para a realização das atividades, que os interesses expostos na teia não condiziam com a sua real intenção, já que Daniel se recusou a desenvolvê-las. Verificou-se que, no ambiente escolar, seu interesse estava relacionado às atividades de sala de aula, referentes ao conteúdo da educação infantil, mas que sempre havia um trenzinho presente (especialmente Thomas e seus Amigos), ilustrando a folha, para que ele pudesse pintar.
Daniel não explicou o motivo que o levou a não fazer as atividades propostas. Então, ao contactar a mãe e o professor, a pesquisadora compreendeu que, apesar de ele demonstrar o interesse inicial em alguns assuntos, houve um receio de realizar atividades muito diferentes daquelas que seus colegas faziam. Segundo Renzulli (2014a), um dos propósitos da educação de superdotados está na autorrealização deles. O desejo de Daniel naquele momento era aprender mais sobre os assuntos de seu interesse, sem se afastar do caráter pedagógico empregado nas atividades escolares que ele conhecia. Assim, a Teia de Interesses foi reelaborada pela pesquisadora, como forma de nortear a reestruturação do Plano de Ensino Individualizado de Enriquecimento.
Nesse sentido, foram considerados trens ao centro (citados pela mãe em conversa com a pesquisadora), especialmente Thomas e seus Amigos. Nas ramificações, são indicados os interesses do aluno com base nos conteúdos escolares: matemática, leitura e escrita (indicações do professor) e artes, por se tratar de atividades ministradas na educação infantil. Os interesses de Daniel estão representados na Figura 4.
Após a reformulação da Teia de Interesses, os objetivos do plano foram alterados (conforme consta no Quadro 2) e propostos ao aluno, que os aceitou.
Cabe ressaltar que o acordo realizado entre a pesquisadora e a escola sobre dias, horários e duração da intervenção se manteve inalterado nessa fase, modificando-se apenas o planejamento do conteúdo do plano, que foi disponibilizado para a escola. Para descrever os resultados do plano de enriquecimento, separaram-se as atividades em dois tópicos: português e matemática. Destaca-se que não se criou um tópico específico para artes, porque aparece nas atividades de português e matemática, de forma interdisciplinar. A seguir os resultados das atividades são apresentados.
Português
Envolvendo o conteúdo de português, foram desenvolvidas cinco atividades, denominadas: 1) O trenzinho de Nicolau; 2) Procurando e salvando; 3) Caça-palavras; 4) Produzindo um livro; e 5) Sequência didática.
Notou-se que, durante a realização das atividades de português, o aluno apresentou dificuldades na criação de textos e frases, de forma livre, usando a imaginação, ou de forma dirigida. Sendo assim, nas atividades 1, 2 e 4, os objetivos gerais não foram atingidos, especialmente pela recusa do aluno em desenvolvê-las.
Já a sequência didática proposta na atividade 5 se pautou em completar as frases com as palavras indicadas. Observou-se que, em alguns trechos, o aluno completou com palavras que deixaram a frase sem coerência. Por exemplo, na frase “Como é gostoso passear de trem”, havia uma lacuna no local em que as palavras “gostoso” e “trem” deveriam ser preenchidas. Daniel completou as lacunas da seguinte forma: “Como é gostoso passear de ‘maquinista’”. Na sequência, a frase era: “Eu também quero passear no trem de alegria”, sendo que as palavras “passear” e “alegria” deveriam ser preenchidas.
No desenvolvimento das atividades, observou-se que aspectos como a criatividade e o comprometimento com a tarefa estiveram ausentes em alguns momentos. Segundo Sabatella (2008), apesar de ser bem aceito, o modelo de identificação baseado nos princípios da Teoria dos Três Anéis não funciona em todo contexto. A autora explica que, ao adotarmos somente esse modelo, “podemos negligenciar algumas crianças superdotadas que, por várias razões, estão impossibilitadas ou pouco dispostas a mostrar os talentos da forma como estão sendo medidos” (Sabatella, 2008, p. 110).
Vale pontuar o perfeccionismo de Daniel, observado pela pesquisadora, durante o desenvolvimento das atividades. Outro aspecto notado se refere à intransigência, já que ele não aceitava ser contrariado e corrigido, além de rejeitar ajuda quando acreditava estar certo, fato que aconteceu durante a execução das tarefas.
Alencar (2014, p. 152) caracteriza o perfeccionismo como “uma combinação de pensamentos e comportamentos geralmente associados a altos padrões ou expectativas com relação ao próprio desempenho”. Para a autora, essa característica pode estar relacionada a diversos fatores, entre eles:
[...] medo de desapontar os outros, ausência de experiência prévia de fracasso acadêmico, além de mensagens da mídia, professores e colegas, que valorizam de forma exagerada o sucesso e o alto desempenho, fazendo com que o indivíduo internalize que tem que ser sempre o melhor (Alencar, 2014, p. 153).
Mosquera, Stobäus e Freitas (2014) também destacam o perfeccionismo como uma das características marcantes na personalidade do aluno com altas habilidades/superdotação. Apesar de esse termo ter uma conotação negativa quando relacionado à insatisfação constante mediante o sentimento latente de atingir a perfeição, essa característica “pode ser, de fato, uma boa qualidade se isso significar a adoção de objetivos ambiciosos, visto que pode, uma última análise, conduzir ao êxito” (Winner, 1996, p. 236).
Quanto à atividade de caça-palavras, Daniel se interessou em responder. Apesar de apresentar dificuldade para encontrar a palavra disposta em diagonal, ele conseguiu desenvolver a tarefa com certa facilidade.
Matemática
As atividades de matemática tiveram resultados positivos, em comparação com os conteúdos de português. Foram desenvolvidas seis atividades, sendo: 1) Formas geométricas; 2) Ligue os pontos; 3) Desafio matemático; 4) Conjuntos: conhecendo os meios de transporte; 5) Sequência numérica em dezenas; e 6) Números ordinais: o trem dos bichinhos.
Foram aplicadas diversas formas geométricas, de cores e tamanhos diferentes, para trabalhar conceitos. As cores e as formas chamaram a atenção de Daniel, que ficou livre para construir a imagem que quisesse. Observou-se, durante a execução do plano, que havia um interesse maior por parte do aluno na área lógico-matemática. O desenvolvimento da atividade consta na Figura 6.
O aluno se manteve focado e se engajou na execução da atividade de ligar os pontos, realizando-a com facilidade. O fato de o desenho formado por meio da ligação dos números ser seu personagem favorito facilitou o desenvolvimento da tarefa.
No desafio matemático, foram trabalhados o raciocínio lógico e os conceitos de maior e menor. Daniel realizou a atividade com facilidade, especialmente no domínio em contas mentais, utilizando adição. Entretanto, ele teve dificuldades iniciais para entender os conceitos de maior e menor, as quais superou posteriormente.
Para trabalhar o conceito de conjuntos, utilizou-se um tema que interessou muito ao aluno - os meios de transporte. Enfatizou-se a definição de meio de transporte e suas categorias. Daniel se manteve engajado no desenvolvimento da atividade, representada na Figura 8.
Outros dois conceitos foram apresentados ao aluno durante as atividades de enriquecimento: a sequência numérica em dezenas e os números ordinais. Os resultados obtidos foram satisfatórios. Nota-se que, apesar de o aluno estar alfabetizado e essa característica ter surgido cedo, suas habilidades na área lógico-matemática se destacam em comparação com a área linguística.
As atividades de enriquecimento, de acordo com Burns (2014, p. 49), “[...] são convites para você explorar interesses, aprendendo mais sobre eles”. Daniel, talvez pela pouca idade, não conseguiu expressar o seu real interesse. Porém, com o auxílio da mãe e do professor da sala regular e por meio das observações realizadas em sala de aula pela pesquisadora, foi possível desenvolver um trabalho que enriquecesse os conhecimentos do aluno. Observa-se que os ganhos referentes à intervenção estão no aumento do repertório de conhecimento do aluno e no estímulo pela novidade, já que ele se mostrava muito animado na escola nos dias em que a pesquisadora estava presente. Burns (2014) destaca que essas atividades podem ser realizadas em sala de aula regular ou no atendimento educacional especializado, com a turma toda, com um grupo reduzido de alunos ou individualmente.
Entende-se que o ambiente no qual ocorreram as atividades de enriquecimento não foi favorável, apesar dos esforços e da disponibilidade da direção da escola. Por se tratar de uma instituição escolar pequena, não havia uma sala de recursos ou outro espaço disponível. Esse cenário implicou a distração do aluno em muitos momentos, por causa do excesso de estímulos visuais e sonoros.
Daniel foi indicado por meio da aplicação de instrumentos de identificação, de Pérez e Freitas (2016), e prosseguiu-se com as atividades de enriquecimento para observar os indicadores de altas habilidades/superdotação e suplementar1 seus interesses. Sobre o enriquecimento, Sabatella (2008) destaca que, na impossibilidade da realização de identificação, a orientação é que a oportunidade de enriquecimento não seja reservada apenas aos estudantes reconhecidos como superdotados, mas que seja ofertada a outros alunos. Para essa autora, tal prática educacional favorece a todos e, ao mesmo tempo, estimula aqueles que necessitam de uma aprendizagem qualitativamente diferente.
Considerações finais
O enriquecimento é considerado uma proposta eficaz no atendimento a estudantes com altas habilidades/superdotação. Ele pode ser realizado com todos os alunos da sala de aula ou aplicado individualmente. O objetivo apresentado neste relato foi elaborar e aplicar o Plano de Ensino Individualizado de Enriquecimento a uma criança identificada com altas habilidades/superdotação na educação infantil. Nesse caso, as atividades foram feitas como forma de atendimento individualizado em decorrência do tempo disposto pela escola e do nível de desenvolvimento do aluno. Os resultados mostraram que a estratégia adotada foi eficaz para o trabalho nessa etapa de ensino, de acordo com os interesses apresentados pela criança.
Discutir sobre as altas habilidades/superdotação na educação infantil é um tema relevante, pois envolve o início da escolarização de crianças com potencial superior. Entretanto, ainda se evidenciam poucas pesquisas nessa etapa de ensino, como demonstraram os levantamentos das produções. Ademais, apesar das discordâncias teóricas que envolvem precocidade e altas habilidades/superdotação, na prática, a escola deve estar preparada para atender às necessidades que abrangem o desenvolvimento de talentos em qualquer idade. Sendo assim, professores da educação especial e da sala regular carecem de exemplos de experiências bem-sucedidas para nortear o trabalho pedagógico.
Quanto aos entraves encontrados mediante a ação empreendida com o aluno, verificou-se que houve a necessidade de espaço adequado para o atendimento individualizado, uma vez que Daniel se dispersou durante as atividades devido ao excesso de estímulos sonoros. Além disso, apesar do acordo firmado entre escola, professor e pesquisadora para os horários do atendimento não serem em contraturno, isso possivelmente se configurou como limite no processo, pois a criança saiu de seu ambiente de aula.
Apesar disso, o planejamento e a aplicação do Plano de Ensino Individualizado de Enriquecimento mostraram-se satisfatórios no cumprimento dos objetivos propostos. Dessa forma, sugere-se a aplicação do estudo em quadros educacionais parecidos e em investigações que expandam a amostra, de modo a afirmar categoricamente benefícios fidedignos.