Introdução
Neste trabalho, discutimos a respeito do currículo do curso de Licenciatura em Filosofia, oferecido na modalidade a distância (EaD) pela Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes). Nossa reflexão é motivada por um problema que detectamos ao observar as respostas dos alunos concluintes do referido curso ao Questionário de Percepção da Prova, por ocasião da aplicação, em 2017, do Exame Nacional de Desempenho dos Estudantes (Enade).
Comporta sublinhar que, além das atribuições legais que constituem o Enade como uma das pernas do tripé que sustenta os processos avaliativos do Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior (Sinaes)
1, nosso objeto de análise traz ao primeiro plano o fato de o Enade também operacionalizar o Questionário de Percepção da Prova, por meio do qual os alunos externam suas opiniões sobre determinados aspectos que compõem o exame.
Esse questionário, que integra o Caderno de Prova, era composto de nove questões fechadas, tendo o respondente de escolher uma das cinco opções oferecidas em cada questão e assinalá-la no espaço correspondente do Cartão-resposta2. A disponibilidade dos dados coletados por esse instrumento permite comparar os resultados efetivamente alcançados pelo desempenho dos estudantes com um conjunto de informações de natureza mais subjetiva (pessoal ou qualitativa), concernente à percepção dos estudantes a respeito de certos componentes da prova, a saber: o grau de dificuldade do exame, a extensão e o tempo gasto para concluí-lo, a clareza dos enunciados, o conhecimento do conteúdo abordado e a suficiência das instruções fornecidas.
Com vista a inteligir sobre o resultado mensurado acerca do parecer dos estudantes concluintes do curso presentes à prova, o Quadro 1 foi elaborado para realçar algumas informações que sobressaíram durante o processo de análise e discussão que esta pesquisa pôs em curso. Nele são retratadas algumas das questões do Questionário de Percepção da Prova, acompanhadas da distribuição percentual das categorias fornecidas como opção de resposta.
O recorte trazido pelo Quadro 1 mostra que os estudantes concluintes do curso de Licenciatura em Filosofia da Ufes, por meio do Questionário de Percepção da Prova, manifestaram dificuldade para responder aos itens do Enade 2017 devido à diferente forma como neles são abordados os conteúdos curriculares. Essa informação se expressa na porcentagem de 55,3% (Questão 7), aparentando destoar de outros valores que fariam esperar por resultado bem diferente, pois o Quadro 1 também indica que: 44% afirmam que estudaram e compreenderam o conteúdo das questões objetivas (Questão 8); 48,9% dizem que estavam suficientemente instruídos para resolvê-las (Questão 6); e 53,3% concordam que seus enunciados eram claros e objetivos (Questão 5).
Esses dados preliminares ensejam o esforço de se lançar luz sobre tal “forma diferente de abordagem do conteúdo”, a fim de sabermos do que se trata e o que ela denota, em específico na situação que remonta à percepção dos estudantes concluintes de Licenciatura em Filosofia a distância da Ufes.
O suporte legal que possibilitou a constituição e a consequente oferta do curso se constitui das referências que definem e regulamentam a chamada “educação a distância”, bem como do Decreto nº 5.800/2006 (Brasil, 2006), que institui o Sistema Universidade Aberta do Brasil (Sistema UAB), com os objetivos - entre outros - de “estabelecer amplo sistema nacional de educação superior a distância” (art. 1º, inc. VI) e “fomentar o desenvolvimento institucional para a modalidade de educação a distância” (art. 1º, inc. VII), ampliando assim “o acesso à educação superior pública” (art. 1º, inc. IV).
A modalidade de educação a distância vem se associando, cada vez mais, ao uso das “diversas mídias interativas de comunicação e informação” (Salvucci; Lisboa; Mendes, 2012, p. 51)3, o que não deve (ou não deveria) eclipsar a importância de vários outros requisitos imprescindíveis, como a existência de polos descentralizados de apoio presencial, dotados de infraestrutura adequada e de pessoal capacitado.
É o caso, portanto, da graduação em Filosofia EaD no grau acadêmico de licenciatura, ofertada pela Ufes entre os anos de 2014 e 2019, autorizada em 12 polos presentes em municípios de diferentes regiões do estado do Espírito Santo4, onde aconteciam os encontros presenciais obrigatórios, semanalmente, e se dava suporte midiático (disponibilização de computadores com interface web) para que os estudantes acessassem o Ambiente Virtual de Aprendizagem (AVA) em momentos semipresenciais, assistissem à transmissão síncrona de videoconferências, interagissem entre si de forma colaborativa e recebessem os materiais didáticos distribuídos em formato impresso.
Tanto a Ufes como a maioria das universidades que participam do Programa Universidade Aberta do Brasil (UAB) adotaram a metodologia semipresencial, seguindo assim o modelo híbrido (blended-learning ou b-learning) ou bimodal, no qual a carga horária obrigatória é distribuída entre atividades presenciais nos polos e o uso de recursos virtuais disponibilizados por meio da plataforma Moodle (Padilha, 2013). As estratégias pedagógicas adotadas, associadas à relativa proximidade entre os polos UAB, distantes entre si não mais do que 65 km, deram assento para que 155 estudantes colassem grau até 2019 (85% deles em 2018).5
Isso justifica a participação dos formandos da graduação em Filosofia-Licenciatura a distância da Ufes no ciclo avaliativo trienal correspondente ao Enade 2017, aplicado aos cursos de licenciatura e bacharelado cujos estudantes “tinham expectativa de conclusão [...] até julho de 2018 ou com oitenta por cento ou mais da carga horária mínima do currículo do curso da IES concluída até o final das inscrições do Enade/2017” (Brasil. Inep, 2018b, p. 3).
De acordo com o Inep, a prova foi resolvida por 143 estudantes (48% do total de 298 inscritos) do curso. Eles obtiveram rendimento assinalado à faixa dois do intervalo correspondente ao Conceito Enade. Insta arrazoar sobre as causas desse resultado díspar, se comparado às faixas três e quatro alcançadas pelo curso, respectivamente, no Indicador de Diferença entre os Desempenhos Esperado e Observado (IDD) - em que o percentual de estudantes com nota no Enem é de 35% - e no Conceito Preliminar de Curso (CPC), no qual se registra a nota padronizada cinco para seus mestres e doutores.6
Haveria relação entre o desempenho no Enade e a alegada “forma diferente de abordagem”?
Metodologia
O problema de pesquisa explicitado na introdução surge da observação de fontes indiretas, ou seja, dos insumos colhidos por instrumentos produzidos pelo Inep e divulgados pelo Instituto como relatórios públicos (devolutivas). Esta análise se pauta no documento intitulado Relatório de Curso (Brasil. Inep, 2018a), no qual estão mensuradas as respostas dos alunos da Filosofia-Licenciatura a distância da Ufes aos itens fechados propostos pelo Questionário de Percepção da Prova (Quadro 1), e no Relatório Síntese de Área (Brasil. Inep, 2018b), a fim de compor um quadro conceitual e estatístico mais completo.
Nosso objetivo consiste em buscar parâmetros para delinear o sentido da expressão “forma diferente de abordagem do conteúdo”, pela qual os alunos concluintes do curso, em sua maioria, externam a razão de sua dificuldade para a resolução dos itens do componente específico da prova de Licenciatura em Filosofia do Enade 2017.
É pertinente ressaltar que o Brasil. Inep (2018b, p. 132-171) desenvolve uma descrição pautada em semelhantes coordenadas, correlacionando o desempenho dos estudantes com suas respostas ao Questionário de Percepção da Prova. Ao passo que o Inep o faz num enfoque macrorregional, nosso estudo se concentra nas informações relativas ao curso a distância de Licenciatura em Filosofia da Ufes.
Ambos os relatórios são cotejados com os dados do Colegiado de Curso (Ufes, 2018), coletados das respostas de 66 alunos concluintes que participaram da enquete virtual disponibilizada online através do Formulários Google (Google Forms), a respeito da percepção quanto ao rendimento alcançado por eles no Enade 2017.
A utilização dessa ferramenta tecnológica tem sido vislumbrada para a pesquisa acadêmica de opinião e para a prática pedagógica. Além de ser gratuita para qualquer usuário que possua uma conta Google, a comodidade de ser acessada em diversas plataformas, inclusive de smartphones, e em qualquer horário, confere “agilidade na coleta de dados e análise dos resultados” (Mota, 2019, p. 373). “O autor pode enviar para os respondentes via e-mail, ou através de um link, assim todos poderão responder de qualquer lugar” (Mota, 2019, p. 373); uma praticidade que acompanha o benefício de organizar os resultados na forma de gráficos e planilhas.
Apesar de o nome “formulário” consistir, a rigor, num roteiro de perguntas que o pesquisador não apenas enuncia, mas também preenche com as respostas do pesquisado, a técnica condiz mais exatamente com a definição de “questionário”, pois este é “constituído por uma série de perguntas que devem ser respondidas por escrito e sem a presença do pesquisador” (Lakatos; Marconi, 1992, p. 107).
Em função dessa característica do próprio instrumento, é previsível que o número de respondentes em cada questão seja menor quando comparado ao total de participantes que aderiram ao questionário. De fato, como se verifica nos resultados divulgados pelo Colegiado (Ufes, 2018), as opções deixadas em branco não são contabilizadas no percentual das respostas, o que torna necessário considerar, no trato de cada item, suas amostragens específicas. Isso também leva a circunscrever a análise de dados ao conteúdo de respostas efetivas, permitindo verificar a hipótese de uma corroboração ou de possíveis divergências na observação dos construtos abordados no Questionário de Percepção da Prova.
Com exceção de três itens abertos em que o estudante podia elaborar a resposta com suas próprias palavras, as demais oito questões eram fechadas e, como tal, suas respostas eram escolhidas entre as opções predefinidas (Severino, 2007, p. 123). Embora algumas viessem a retomar temas idênticos aos já tratados no Questionário de Percepção da Prova, como o tempo para concluí-la e o grau de dificuldade para resolvê-la, outras buscavam suplementar seus tópicos, indagando, entre outros assuntos, sobre: a autoavaliação quanto ao desempenho na prova; a identificação dos campos filosóficos abordados pelo exame; a correspondência entre o conteúdo das questões e os ministrados na grade curricular e trabalhados pelos materiais didáticos do curso; a importância da função avaliativa desse instrumento (Ufes, 2018).
Finalmente, cabe lembrar que é o método hipotético-dedutivo que tradicionalmente engloba abordagens que se iniciam com a percepção de uma lacuna para, em seguida, inferir deduções no sentido de se buscar conhecimento sobre um objeto ou uma questão (Lakatos; Marconi, 1992, p. 106). Dando atenção a isso, na seção relativa à discussão, colocamos em curso duas linhas de investigação, de modo a testar como determinadas hipóteses se comportam em função de uma compreensão mais exata da expressão “forma diferente de abordagem”.
No eixo formal, verifica-se se os concluintes foram capazes de reconhecer o campo filosófico de que tratavam os itens do componente específico. No aspecto conceitual, assume-se que os itens do Enade 2017 foram elaborados com a finalidade de aferir o descritivo de oito competências estabelecidas pela matriz de avaliação da prova. Seria possível, em tese, verificar em que medida os alunos as desenvolveram, conforme o percentual de erros/acertos aos itens destinados a avaliá-las.
Ambas as perspectivas serão intercruzadas (Quadros 4 e 5) por dois cálculos psicométricos que o Inep adota da Teoria Clássica dos Testes (TCT) para o âmbito do Enade, a saber: as noções de dificuldade e de discriminação. Embora sejam parâmetros que norteiam procedimentos de formação do exame, pois estão voltados a selecionar os melhores itens para constituí-lo (Sartes; Souza-Formigoni, 2013, p. 243), eles são aqui requisitados em tempo a posteriori, ou seja, tendo o exame sido oficialmente aplicado, a fim de auxiliarem na elucidação de fatores supostamente envolvidos na referida dificuldade quanto à “forma diferente de abordagem”.
O índice de dificuldade diz respeito à proporção de respostas corretas ao item, este considerado gradativamente mais difícil quanto maior for a proporção de erros e mais fácil quanto maior a proporção de acertos (Campos, 2013, p. 59), conferindo-se o mesmo tratamento à média das respostas de todos os indivíduos (Sartes; Souza-Formigoni, 2013, p. 243). Como o Relatório de Curso (Brasil. Inep, 2018a, p. 18) fornece tais valores percentuais - de acerto dos itens objetivos e de média dos itens discursivos - concernentes às respostas ao componente de conhecimento específico da prova de Filosofia-Licenciatura, torna-se viável interpretar a dificuldade conforme a classificação apresentada pelo Relatório Síntese de Área. (Brasil. Inep, 2018b, p. 22). O ordenamento de “muito difícil” e “muito fácil”, convencionado pela escala, é reproduzido nos Quadros 4 e 5 da discussão.
Faz-se pertinente esclarecer, mediante as palavras de Hogan (2006, p. 176), que “a ‘dificuldade’ do item é, na verdade, um indicador de sua ‘facilidade’, uma vez que corresponde ao percentual daqueles que acertaram a questão”. Embora o Inep (2018b, p. 21-22) empregue a expressão “Índice de Facilidade” em sua devolutiva, optaremos pelo termo “Índice de Dificuldade”, que já está bastante arraigado na literatura.
O índice de discriminação é a medida para saber o quanto um item é “capaz de diferenciar alunos com alto nível de conhecimento de alunos com baixo nível de conhecimento” (Campos, 2013, p. 59), sujeitos com desempenhos diferentes (Sousa; Braga, 2020, p. 243) ou, ainda, “grupos de indivíduos que tiveram alta pontuação total dos que tiveram baixa pontuação total no teste” (Sartes; Souza-Formigoni, 2013, p. 243). Como na prática são encontrados vários tipos de coeficientes de correlação usados para representar o grau de discriminação de um item (Hogan, 2006, p. 177), o Brasil. Inep (2018b, p. 22-23) informa que optou pela estatística do ponto-bisserial e que eliminou do cômputo das notas as questões objetivas com índice de discriminação fraco.
Decerto, “o item é mais discriminativo quanto maior for o seu valor” (Sartes; Souza-Formigoni, 2013, p. 243). No entanto, quando encontramos questões que, em seu poder de discriminação, não se mostram aptas para avaliar os alunos do curso, abre-se o viés de uma apreciação mais qualitativa, ligada não tão estritamente ao bom ou ao mau desempenho dos estudantes que acertam e erram (Campos, 2013, p. 60), e sim à “análise de distratores [que] pode fornecer informações úteis sobre a compreensão - ou sobre a falta de compreensão - que os examinandos podem ter de um determinado item” (Hogan, 2006, p. 177).
O encaminhamento que nos interessa, nesse caso, não é, obviamente, ponderar sobre a revisão da anatomia do item do Enade. Questões consideradas inadequadas pelo critério da discriminação podem indicar, é claro, problemas de má interpretação de seu enunciado e/ou de suas alternativas, ou que a maioria dos estudantes ainda não detém um conhecimento satisfatório para solucioná-las. Mas também sugerem que eles aprenderam seu conteúdo, independentemente de pertencerem ao grupo que sabe mais ou que sabe menos. No Relatório de Curso, o Inep (2018a, p. 18), infelizmente, não apresenta a distribuição da proporção de escolhas das alternativas das questões objetivas específicas com coeficiente ponto-bisserial fraco. Entretanto, será instigante notar, no Relatório Síntese de Área (Brasil. Inep, 2018b, p. 221), que os valores de referência do percentual de acertos em questões pouco discriminantes ajudam a comprovar certas tendências e a consolidar uma leitura a seu respeito.
Resultados
Os dados da pesquisa do Colegiado de Curso são consonantes com o Quadro 1, no qual estão sintetizados alguns dos objetos que foram matéria de opinião dos concluintes do curso, a respeito da qualidade e da adequação da prova do Enade 2017. Os valores percentuais de ambos os questionários também convergem ao se observar outros fatores, a exemplo da percepção quanto ao tempo de duração total de quatro horas (Brasil. Inep, 2018a, p. 3).
De acordo com o Relatório de Curso (Brasil. Inep, 2018a, p. 11-12), a extensão do exame foi sentida como adequada por 40% dos estudantes, e considerada longa (28,1%) e muito longa (27,4%) por mais da metade (total de 55,5%) deles. Não se conjectura desinteresse ou o acometimento de algum outro efeito desidioso, pois 60,6% afirmam o terem realizado em, no mínimo, três horas, com 12,1% chegando ao limite de quatro horas. Com base numa amostragem de 56 respostas, o Colegiado de Curso (Ufes, 2018) expõe que quase 90% de seus alunos concluintes levaram pelo menos três horas para fazê-lo, entre os quais 42,9% afirmam ter chegado a quatro horas.
Dentro de um total de 60 respostas, os estudantes do curso manifestaram que o Enade é um instrumento relevante (60%) ou muito relevante (20%) para avaliar o ensino superior e prover-lhe qualidade (Ufes, 2018), o que, de certo modo, saúda o Relatório Síntese de Área (Brasil. Inep, 2018b, p. 7), ao transcrever da Lei nº 10.861/2004 (art. 1º, § 1º), que instituiu o Sinaes, o intento de trazer melhorias na qualidade da educação superior, aumentando sua eficácia institucional e efetividade acadêmica e social (Brasil, 2004, p. 3).
A falta de motivação não aparece como fator proeminente que pudesse interferir no empenho que o aluno dedicou à prova. Apenas 9,8% indicam esse aspecto, de acordo com o Inep (2018a, p. 12), enquanto 87,9% (referente a 58 respostas) declaram ao Colegiado (Ufes, 2018) ter feito todos os itens discursivos do componente específico.
É também expressivo apontar, com base no Quadro 1, que 47% dos respondentes afirmam ter aprendido a maior parte dos conteúdos (ou todos) das questões objetivas da prova e que, numa amostragem de 58 respostas (Ufes, 2018), 55,2% avaliam como “bom” o próprio desempenho no Enade 2017, superando a soma das 24 respostas divididas entre os que se autoavaliam com desempenho “regular” (36,2%) e “ruim” (5,2%). Mas a ferramenta do Colegiado detectaria uma adesão ainda maior por parte do grupo de desempenho “ruim/regular” que, cedendo 30 respostas a item específico, indicou como principal fator a dificuldade de compreensão dos itens avaliativos (56,7%), superando a soma das demais alternativas.
O que poderia ter obstruído a necessária compreensão dos itens do Enade? A que se devem tais dificuldades? Como explicitá-las em meio a manifestas disposições para se fazer a prova e a otimistas expectativas quanto ao seu resultado?
Embora seja significativo rastrear possíveis lacunas do currículo trabalhado num curso de graduação - pois 16,7% disseram desconhecer o assunto tratado nos itens do Enade 2017 e 53% se diversificam entre aqueles que não estudaram e/ou não aprenderam os conteúdos das questões objetivas (Brasil. Inep, 2018a, p. 12), conforme o Quadro 1 -, cabe supor que um conteúdo, mesmo se exaustivamente exposto, pode não ter sido adequadamente compreendido pelo estudante de graduação.
Para 64,4% dos respondentes, todos ou a maioria dos itens da prova de componente específico de área se mostraram claros e objetivos (Quadro 1). As instruções para a resolução das questões só não teriam sido suficientes para 23,7% dos participantes (Brasil. Inep, 2018a, p. 12). Apesar desses indicativos, é relevante o percentual de 55,3% que relatam terem tido dificuldades em assimilar a forma como o conteúdo foi abordado no Enade 2017 (Quadro 1).
Em síntese, mesmo que um estudante de graduação na Licenciatura em Filosofia EaD da Ufes tenha compreendido os enunciados da prova e que a prova tenha sido bem sucedida em fornecer as informações necessárias para a resolução de suas questões, ganha corpo a hipótese de que um cursista que estudou e compreendeu os conteúdos avaliados, que leu e entendeu os enunciados dos itens, que teve tempo hábil e estava interessado em fazer a prova, teve, ainda assim, dificuldades para lidar com a “forma diferente de abordagem do conteúdo” levada a cabo pelo Enade 2017. No que consiste essa dificuldade? Ela se deve a algum fator específico e determinante?
Discussão
Aspecto formal: campos da Filosofia x índice de dificuldade
Para se ter uma ideia mais clara do que significaria a expressão “forma diferente de abordagem”, importa fazer uma verificação observando se os respondentes apresentaram maiores dificuldades nas questões relacionadas a determinado campo filosófico. Em caso positivo, constituir-se-ia uma fonte de esclarecimentos identificar quais conteúdos se mostraram mais difíceis e a que áreas da Filosofia eles dizem respeito. A hipótese é de que a forma de abordagem guarde relação com o formato da prova.
É sabido que o componente específico da área de Filosofia-Licenciatura do Enade 2017 não possui um formato aleatório, mas corresponde ao estabelecido pelo artigo 7º da Portaria nº 495/2017 do Inep (Brasil. Inep, 2017, p. 35-36), no qual está previsto o referencial filosófico que os conteúdos das questões devem contemplar. O art. 4º, § 1º, determina o total de 30 questões, três discursivas e 27 de múltipla escolha, por meio das quais tal referencial é distribuído conforme a encomenda divulgada pelo Anexo IXA do Relatório Síntese de Área (Brasil. Inep, 2018b, p. 728-730).
O Quadro 2 expõe o formato adotado pelo componente específico da área de Filosofia-Licenciatura no Enade 2017, correlacionando os itens da prova aos campos filosóficos admitidos à matriz de avaliação.
Fonte: Elaborado pelos autores com base em Brasil. Inep, 2017, p. 36; 2018b, p. 728-730. A Não inclusos os itens 31, 32, 33, 34 e 35, que, conforme previsto no art. 4º, § 2º, da Portaria nº 495/2017, possuem referências importadas da área de Pedagogia. B C Quesitos exclusivos da Licenciatura. D Item avaliativo duplicado em referenciais distintos do conhecimento específico, pela encomenda
É passível de questionamento por que, no elenco de conteúdos curriculares, há tópicos que foram desacoplados das épocas históricas; por exemplo, os tópicos V (Lógica e Filosofia da Ciência) e VII (Estética e Filosofia da Arte). Também se deve suspeitar dos critérios, não explícitos, pelos quais a Filosofia da Linguagem não é listada em Filosofia Antiga e nem em Filosofia Moderna; a Filosofia da Natureza só aparece em Filosofia Antiga; e Moral, apenas na Filosofia Moderna. Afinal, os demais períodos da História da Filosofia carecem, material e formalmente, dessas linhas?
O Quadro 2, em suma, gera uma inquietação, pois alguns campos temáticos são enquadrados dentro de períodos históricos, enquanto outros vêm listados, sem justificativa, no mesmo patamar desses períodos.
Além disso, há de se questionar, de maneira mais incisiva, a presença de tópicos e subtópicos que escapam do que está expresso no Parecer CNE/CES 492/2001, do Conselho Nacional de Educação (CNE):
O elenco tradicional das cinco disciplinas básicas (História da Filosofia, Teoria do Conhecimento, Ética, Lógica, Filosofia Geral: Problemas Metafísicos, além de duas matérias científicas) tem se comprovado como uma sábia diretriz. Tal elenco vem permitindo aos melhores cursos do País um ensino flexível e adequado da Filosofia. Entretanto, tendo em vista o desenvolvimento da Filosofia nas últimas décadas, algumas áreas merecem ser consideradas, como: Filosofia Política, Filosofia da Ciência (ou Epistemologia), Estética, Filosofia da Linguagem e Filosofia da Mente. (Brasil. MEC. CNE, 2001, p. 3-4).
A enumeração de algumas disciplinas básicas e outras mais recentes não soa como um imperativo, mas como uma coordenada por onde encaminhar certo arranjo programático que pode se configurar de múltiplas formas, mediante a combinação dos elementos disponíveis.
Para efeito, então, de uma observação mais bem posicionada, convém evocar um consenso difuso quanto à demarcação das grandes disciplinas da Filosofia. Com maiores ou menores divergências, e sem que isso se torne uma diretriz rígida contra a adoção de critérios diferenciados, nem se faça móbil de rejeição a linhas mais recentes de investigação, a Filosofia se organiza habitualmente com as seguintes referências: Metafísica, (Teoria do) Conhecimento, Ética, Política, Estética, Lógica/Linguagem, sendo pertinente que, para a Licenciatura, também se considere o campo da Educação.7
Seria previsível ocorrerem nuances e variações, diferenças e divergências em localizar os itens em uma ou outra disciplina, mesmo em caso de discordância com a categorização manifestada pela encomenda oficial. De qualquer modo, propomos recorrerem a esses terrenos as questões discursivas (3 a 5) e objetivas (9 a 35), que se distribuem no Quadro 3.
Fonte: Elaborado pelos autores com base em Brasil. Inep, 2018b, p. 653-669. A Não estão considerados os itens 34 e 35, pertencentes a áreas afins da Filosofia (Psicologia da Educação e Teorias Pedagógicas), e os itens 31, 32 e 33, que se referem a conhecimentos e metodologias sobre Planejamento e Avaliação, Libras e temas transversais, como previsto no art. 4º, § 2º, da Portaria nº 495/2017. Optou-se por não referenciar os nomes de Vygotsky (item 34) e Piaget (item 35), assim como o de Caetano Veloso, mais ligado à música (item 14
A classificação não apela para rigorismos, servindo fundamentalmente para que nos orientemos em meio a uma multiplicidade sobre a qual desejamos inteligir, dando conta do período histórico relativo aos nomes dos pensadores considerados.
Em que pese a conjugação da Ética com a Filosofia Política no formato adotado pelo Enade 2017 (Quadro 2), esta se estendeu, além do Contemporâneo, ao período Moderno, enquanto aquela, mais precisamente, às épocas Antiga e Medieval. Teoria do Conhecimento, Lógica/Linguagem e Estética também se estabeleceram dentro de uma curta faixa temporal (Quadro 3). Enquanto esses campos (à exceção da Ética) se atêm a no máximo dois, os itens de Metafísica percorrem todos os quatro períodos, sendo, portanto, essa a disciplina que, no Enade 2017, mais circulou pela História da Filosofia (Quadro 3).
Esse quinhão se reflete numa importante percepção dos alunos concluintes do curso a distância de Licenciatura em Filosofia da Ufes. Questionados sobre quais áreas filosóficas foram exploradas pelas questões da prova de componente específico do Enade 2017, numa amostragem de 58 respostas está identificada, primeiramente, a Metafísica (29,3%), seguida de Educação e Ética (ambas 19%) e Epistemologia (12,1%) (Ufes, 2018).
O resultado coincide razoavelmente com o Quadro 3, indicando que, de maneira geral, os estudantes souberam discriminar a natureza dos temas propostos pelo Enade 2017. Mas também suscita uma questão acerca das áreas que não galgaram distinções equivalentes. Lógica (6,9%), Política (5,2%), Estética (5,2%) e Linguagem (3,4%) quase não foram discriminadas (Ufes, 2018), o que impõe sondar por que também não se estamparam em explícita diferenciação.
Importa, por isso, saber quais foram as questões com menor aproveitamento e em quais campos da Filosofia elas se enquadram, assim configurando um fator explicativo para as dificuldades quanto à mencionada “forma de abordagem”.
Ao colocar tal fator em relevo, chama a atenção que, num conjunto específico - a saber, os itens 11, 13, 15, 16, 19, 23 e 26 -, o enunciado joga com uma relação lógica entre duas sentenças, exigindo que o aluno não só identifique o desdobramento do texto, mas também avalie a relação entre duas possíveis conclusões. É interposto um “porque”, a fim de se solicitar não só a identificação da asserção correta como o entendimento sobre duas possíveis asserções, além de falsas ou verdadeiras, guardarem ou não entre si um tipo de relação, subordinativa ou apenas coordenativa.
Destacados (em negrito) no Quadro 4, esses sete itens requerem não apenas o conhecimento dos temas e dos filósofos evocados, como também uma desenvoltura no que diz respeito à Lógica, isto é, à noção de argumentos. Mas será que tais questões possuem um maior grau de dificuldade?
A indagação pode ser respondida tomando-se como base as estatísticas dos itens, apresentadas conforme as faixas percentuais registradas no Quadro 4.
Fonte: Elaborado pelos autores com base em Brasil. Inep, 2018a, p. 18; 2018b, p. 21-22. * O percentual de acertos concerne ao desempenho dos respondentes concluintes do curso de Licenciatura EaD em Filosofia da Ufes. A Não incluso o conjunto de cinco itens (31, 32, 33, 34 e 35) que, conforme o art. 4º, § 2º, da Portaria nº 495/2017 , é tomado da área de Pedagogia para compor o componente específico da área de Filosofia-Licenciatura
O Quadro 4 evidencia que, no âmbito do Enade 2017, as respostas de erro/acerto são ordenadas em níveis percentuais de dificuldade, tornando possível identificar os campos filosóficos (Quadro 3) que impuseram maiores impedimentos à correta resolução das questões por parte dos alunos do curso, participantes do Enade 2017.
Pode-se, inicialmente, verificar que dois dos itens focalizados (13 e 19), ambos de Metafísica, não atingiram o índice mínimo de discriminação para que, segundo o Inep, sua estatística de erros/acertos pudesse ser considerada no cálculo das notas. É curioso, mesmo assim, notar que eles são classificados como “muito difíceis” pelo índice de dificuldade, com apenas 9% e 10% de acertos (respectivamente) entre todos os respondentes de Filosofia-Licenciatura (Brasil. Inep, 2018b, p. 221). Trata-se, portanto, dos itens mais difíceis da prova de componente específico do Enade 2017, e mesmo os estudantes com maior proficiência não obtiveram êxito em suas resoluções.
Quanto à localização dos demais itens em negrito, vê-se que eles se espalham por campos variados - Metafísica, Conhecimento, Ética, Lógica/Linguagem - e acomodam-se em níveis que indicam uma classificação média (11, 23 e 26) e difícil (15 e 16), dessa vez referente ao desempenho dos alunos do curso, respondentes ao Enade 2017.
O Quadro 4 também evidencia dois itens classificados como muito difíceis em face do desempenho alcançado pelos alunos do curso de Licenciatura EaD em Filosofia da Ufes. Como, no Relatório de Curso, o Inep não disponibiliza a distribuição percentual das respostas dadas por esses estudantes aos itens com índice fraco de coeficiente ponto-bisserial, podemos admitir que foi o item 20 - sobre uma definição lógica de inferência - o que apresenta a menor porcentagem de acertos (11,9%) por parte dos concluintes do curso.
Esse também é um elemento de cujas estatísticas não dispomos, de modo específico, em relação ao rendimento dos respondentes do curso de Licenciatura EaD em Filosofia da Ufes. Entretanto, similarmente aos itens 13 e 19, há pouco discutidos, trata-se de uma questão com índice de dificuldade “difícil”, quando considerados todos os estudantes da área (Brasil. Inep, 2018b, p. 221). Logo, é possível conjecturar, como sugerido na metodologia, que as causas para essa dificuldade não excluem, prontamente, a hipótese de haver alguma defasagem relativa ao conhecimento do conteúdo curricular correspondente.
Esses dados sugerem que Lógica/Linguagem pode ter sido o campo que mais impôs dificuldades aos estudantes. Seus itens são os que, proporcionalmente, situam-se mais próximos dos índices de maior dificuldade. Essa tendência ocorre também em razão daquelas questões que, mesmo sendo de outros campos, estão igualmente dotadas com a prerrogativa lógica descrita acima.
Seja analisando o comparativo dos itens em face dos grandes campos da Filosofia, seja observando, independentemente do conteúdo, a composição lógica de algumas questões, o índice de dificuldade parece atingir valores percentuais mais baixos no campo de Lógica/Linguagem.
Ao opinarem negativamente a respeito da forma como o Enade 2017 abordou os conteúdos curriculares (Quadro 1), os alunos concluintes estariam repercutindo uma espécie de dificuldade mais acentuada e, portanto, ligada aos itens de Lógica/Linguagem e/ou ao exercício de um raciocínio lógico mais austero implicado na resolução da questão.
Decerto, constata-se haver um aspecto pontual determinando um limite que pouquíssimos estudantes suplantaram. Resta verificar se esse aspecto se confirma sob a análise de outro fator: as competências cujo desenvolvimento o Enade se pôs a avaliar.
Aspecto conceitual: competências x índice de dificuldade
De acordo com o Brasil. Inep (2018b, p. 11), os itens do Enade 2017 devem aferir se o concluinte desenvolveu as competências descritas no artigo 6º da Portaria nº 495/2017, que estabeleceu as diretrizes da matriz de avaliação da prova8. Isso, em tese, possibilita saber em que medida os alunos respaldam as competências exigidas para um licenciado em Filosofia, ao passo que também viabiliza examinar como esses resultados se comportam, principalmente, com respeito às questões vinculadas ao campo de Lógica/Linguagem.
De modo geral, e como se visualiza no Quadro 5, a prova específica aplicada à área de Licenciatura em Filosofia se mostrou como um exame de dificuldade proeminente. Conforme 59 respostas enviadas ao Colegiado de Curso, 47,5% dos alunos concluintes se somam entre os que acharam o exame difícil (40,7%) e muito difícil (6,8%) (Ufes, 2018), enquanto, para o Brasil. Inep (2018a, p. 11), esse valor chega a 50,3%. É plausível conjecturar uma tendência à dificuldade, em vista daqueles que disseram que a prova teve um grau de dificuldade médio (46,7%) (Quadro 1) ou regular (49,2%). (Ufes, 2018).
Seguindo essa disposição, o Quadro 5 sugere haver, para a maioria das competências, uma repartição quase simétrica dos itens de porte “médio” e “difícil”. Entretanto, numa observação minuciosa, vê-se que as competências III e IV (não obstante a competência II) acentuam essa propensão, desequilibrando-se para o polo de dificuldade ainda mais austera.
Fonte: Elaborado pelos autores com base em Brasil. Inep, 2017, p. 35-36; 2018a, p. 18; 2018b, p. 21-22. * O percentual de acertos concerne ao desempenho dos respondentes concluintes do curso de Licenciatura EaD em Filosofia da Ufes. IA. analisar os problemas filosóficos que emanam dos diversos campos do conhecimento, propondo alternativas e possíveis soluções; IIB. refletir criticamente sobre a realidade social, histórica, política e cultural; IIIC. interpretar e comentar filosoficamente a produção científica e cultural, em suas diversas manifestações; IVD. analisar, explicar, interpretar e comentar filosoficamente a produção filosófica, em seus diversos gêneros textuais; VE. promover a interação entre filosofia, ciência, arte e cultura; VIF. favorecer a integração da filosofia à conduta humana nas esferas pública e privada; VIIG. exercitar a crítica filosófica na promoção integral da cidadania, do respeito à pessoa, da defesa dos direitos humanos, do respeito ao meio ambiente e aos demais seres sencientes; VIIIH. elaborar, aplicar e avaliar estratégias pedagógicas e materiais didáticos
Entre as oito competências descritas no artigo 6º da Portaria nº 495/2017, os dois itens considerados estatisticamente “muito difíceis” pertencem justamente àquelas que preconizam expressamente a aptidão para interpretar, esteja ela voltada ao texto filosófico (competência IV) ou aos acontecimentos socioculturais (competência III). Significa haver alguma deficiência em matéria de hermenêutica.
E, para saber quais os campos filosóficos representados nos itens que se puseram a avaliar a competência de interpretar, cruzamos o Quadro 5 com as informações do Quadro 4, no que concerne às competências III e IV. Observamos que:
- o item 12, de Metafísica, possui um índice de discriminação “fraco”, como ainda um índice de dificuldade “muito difícil” no tocante ao conjunto da área (Brasil. Inep, 2018b, p. 221);
- o item 4 é de Estética e o item 18 é de Teoria do Conhecimento;
- dois itens (16 e 20) são de Lógica/Linguagem, e três (31, 32 e 34) enquadram-se na previsão referenciada pela área de Pedagogia.
Vê-se que, entre as questões formalmente ligadas ao estudo filosófico, são as relacionadas ao campo de Lógica/Linguagem que mais reivindicam a competência para interpretar. Essa constatação ratifica e aprimora as linhas de investigação trabalhadas neste artigo, tanto formal quanto conceitualmente. A expressão “forma diferente de abordagem”, remetida aos itens de conhecimento de área do Enade 2017, estaria acenando para uma situação em que os alunos se encontrem desprovidos, em certa medida, de algum expediente lógico-hermenêutico relevante.
Propostas
O aclaramento obtido com os resultados e a discussão sedimenta uma resposta às interrogações formuladas. Neste caso, a elucidação de um problema está acompanhada por um plano de ação, justificando-se a necessidade de se propor algumas estratégias que visem causar repercussões e impactos, no sentido de conferir um deslinde efetivo às falhas identificadas.
Fomentar metodologias dialógicas para os estudos acadêmicos de Lógica
Poderia soar implausível conceber uma ação baseada em conteúdos programáticos de Lógica, considerando que suas disciplinas (Lógica I e Lógica II) constituíam parte do núcleo fundamental da grade curricular do curso, e que suas ementas previam a exposição regular - como é de se esperar - de seu universo conceitual.
Essa nossa impressão se intensifica tomando os requisitos de Velasco (2010, p. 19), para quem “os conceitos de inferência e argumento não somente pertencem ao escopo da Lógica, como são de relevância crucial, visto constituírem o próprio objeto de estudo da disciplina”. Não é possível concluir nada de contrário em sondagem aos materiais didáticos de uma graduação que se mostrou razoavelmente atenta a esse campo. Conteúdos como tipos de argumentos e regras de silogismos, dedução e indução, falácias, seguidos de lógica simbólica, operadores e conectivos, tabelas de verdade e cálculo proposicional, ministrados principalmente nos semestres de 2015 (com dois anos de precedência da data de aplicação do Enade 2017), sem dúvida não esgotam o acervo da Lógica, mas saúdam o que é oferecido pela própria Velasco (2010) ou por Walton (2012), por exemplo.
Por outro lado, fixando-nos ao item 20 (Quadro 2), vemos que ele se mostrou ainda mais difícil para os estudantes do curso (Quadro 4) do que para os concluintes da área de Filosofia-Licenciatura em geral. Esse desempenho ruim se consolida perante um índice “bom” de discriminação em nível de área (Brasil. Inep, 2018b, p. 221), pois disso se depreende que acertou quem conhecia e errou quem não conhecia o assunto abordado.
As estatísticas de área em torno do item 16 confirmam esse entendimento. Com índice de discriminação “muito bom” e de dificuldade situado na mesma faixa dos alunos do curso (Quadro 4), procede asseverar que o baixo desempenho destes não foi devido a problemas na redação do item.
É ponto passivo que não houve - ao menos não veio a ser confirmada pelo desempenho no exame - a aprendizagem esperada dos estudantes do curso para os conteúdos ministrados de Lógica. É fato que as questões de Lógica/Linguagem se mostraram difíceis também no cômputo de toda a área de Licenciatura em Filosofia. Esses resultados impelem para um debate articulado sobre a presença da Lógica no cenário acadêmico mais imediato nacionalmente, como pode suscitar para o desafio de se desenvolver metodologias de ensino contextualmente mais eficazes, buscando uma relação mais sintonizada, adaptada ou - por que não dizer? - “dialógica” (Freire, 1980) com o perfil do público do curso.
Não se trata, portanto, de taxar negativamente toda uma iniciativa de ensino e de esforços didático-pedagógicos engendrados num curso de ensino a distância, modalidade que ainda é alvo de preconceitos e desconfianças, mas de construir pontes, nas palavras de Walton (2012, p. 1-2, grifo nosso), entre a teoria lógica - que tradicionalmente “tende a enfatizar as relações semânticas [...] e se preocupa basicamente com as proposições que constituem o argumento” - e a pragmática lógica, que se “interessa pelo uso racional dessas proposições num diálogo, tendo em vista um objetivo”.
Se nosso objeto fosse a avaliação, e não necessariamente o ensino de conteúdos de Lógica - porquanto refletimos sobre o ensino com base em resultados de uma avaliação de desempenho -, forjaríamos talvez melhores condições para comentar sobre quão sensível ou não foram as provas do Enade ao longo dos anos no tocante a essa diferença traçada por Walton. Em todo caso, essa não parece ser uma aspiração recente. Como se entrevê na dissertação de Dell’Isola (1988), o processo inferencial, longe de ser uma atividade de uma faculdade racional pura, é indissociável das visões de mundo, das condições econômicas, das realidades sociais, das experiências de vida que os sujeitos têm por conta das classes sociais a que pertencem.
Não obstante, é como Velasco (2010) sutilmente posiciona a ciência da Lógica ao dar a sua obra o subtítulo “Contribuições do Ensino da Lógica”, e não “para” a Lógica. Ela é, por conseguinte, vista como um campo de saber que tem algo a oferecer (Velasco, 2010, p. 149-152) para as diversas realidades de seus interessados, não uma esfera plácida, irrestritamente fleumática, intocavelmente inerte.
Urge que esse deslocamento, por assim dizer, seja debatido e se consolide, torne-se palpável em experiências plurais, uma vez que o Enade afere competências que, durante a graduação, devem ser adquiridas para o exercício profissional, para a conduta ética, para a responsabilidade cidadã (Severino, 2007, p. 22-23). É a competência de interpretar que os resultados desta pesquisa, pelas razões demonstradas, oferece para ser aprofundada.
Inserir a disciplina de Hermenêutica na grade curricular
Para lidar com a defasagem na competência de interpretar, contaríamos com estratégia diversa à da Lógica, ou seja, desta vez implementando o estudo da Hermenêutica, inserindo-a como disciplina unitária ou concatenada que falta à grade curricular do curso. A princípio, pensamos numa introdução à teoria hermenêutica, em uma disciplina que pudesse recorrer a nomes como os de H. G. Gadamer, Emílio Betti, Paul Ricouer, Luís Pareyson, Gianni Vattimo (Reale; Antiseri, 2006), para citar alguns, entre tantos outros.
Evidentemente, o contato com referências da abordagem hermenêutica não termina no ato de lecionar determinadas teorias, mas supor que elas valham de prerrogativa para forjar a competência de examinar, apreciar e comentar, ou mesmo de fazer perguntas adequadamente situadas (Castillo Córdova, 2013, p. 146-148). A ementa cumpriria, então, o propósito de não só transmitir o conceito básico, mas abordar tanto um conjunto de técnicas e metodologias ligadas à leitura, análise ou explicação de uma obra, um texto ou um vocábulo, quanto de acontecimentos sociais e históricos.
É importante frisar que, quando se trata da formação em Filosofia e dos textos que a subsidiam, não está em questão a habilidade de apenas ler, mas todo um processo cujos recursos demandam a passagem do nível da leitura para o nível da leitura analítica (Severino, 2009, p. 11-22).
Há, nesse aspecto, um consenso de que essa destreza não é alcançada sem uma exercitação constante (Folscheid; Wunenburger, 2006). Para Saunders et al. (2009, p. 30-33), uma leitura filosófica tem certas exigências devido a certas peculiaridades dos textos filosóficos. “Identificar [...] o problema filosófico que está em discussão [...] exigirá que você pense criticamente enquanto lê” (Saunders et al., 2009, p. 36), pois “na filosofia, entender qual é [o] problema e porque ele merece nossa atenção filosófica envolve não só a identificação do assunto, mas também a apreciação de sua importância” (Saunders et al., 2009, p. 34).
Gostaríamos de pontuar que essa atenção solicitada para a Hermenêutica se lastreia na etimologia do verbo latino intelligere, composto pela associação de inter (entre) e lego (leio) (Quicherat, [s.d.], p. 622). Trata-se mesmo da preposição inter (Ferreira, 1988, p. 620) funcionando tanto para efetuar separação como reciprocidade (Quicherat, [s.d.], p. 623; Ferreira, 1988, p. 622), não do advérbio intus, referente a “dentro” ou “no interior” (Ferreira, 1988, p. 632).
Os dicionários, todavia, aludem a um sentido mais primitivo do verbo legere, fornecendo o testemunho de juntar ou reunir os elementos colhidos, como as flores e as frutas, e também as letras (Ferreira, 1988, p. 667). É desse trabalho de apanhar, ajuntar e recolher que advém, como importância, a ação de eleger e fazer escolhas (Quicherat, [s.d.], p. 669), tendo para isso de examinar, espiar, percorrer os indícios, revistar (Ferreira, 1988, p. 667).
“Inteligir” reporta-nos, portanto, a algo mais do que discernir, distinguir, intender, compreender, conceber, reconhecer, saber (Quicherat, [s.d.], p. 622). Tais palavras aduzem a perspicácia de fazer inferências ou de determinar o sentido preciso, porém oculto, de sutilezas das quais só se conhecem os indícios, como no fato de decifrar códigos expressos por sinais gráficos ou não linguísticos. O termo intelligere vai além, pactuando-se mais profundamente com aquilo que na “interpretação” estão implicadas acepções como compreender e explicar, reconhecer, decidir e julgar (Ferreira, 1988, p. 627; Quicherat, [s.d.], p. 627). Ele se refere propriamente à recombinação de significados, impingindo a uma palavra ou frase, um texto ou evento este ou aquele sentido, dando-se conta de seus traços e peculiaridades (Faria, 1962, p. 513; Ferreira, 1988, p. 620).
Forja-se, assim, o intérprete como aquele que não apenas explana o sentido de algo, fixando um entendimento certo, mas que também espreita e surrupia, portando-se como agente de surpresas e improvisos, promovendo furtos e outras perturbações. Ao graduando seria irrenunciável oferecer a experiência da Hermenêutica como um laboratório de leituras, dando a perceber o caráter essencialmente plástico e versátil, dobrável e flexível, arqueável e deslizante da interpretação.
Considerações finais
Em resposta ao Questionário de Percepção da Prova relativo ao Enade 2017, os estudantes concluintes do curso a distância de Licenciatura em Filosofia da Ufes manifestaram uma dificuldade quanto à “forma diferente de abordagem” referida aos itens constitutivos do exame.
Identificamos que tal dificuldade, em relação ao componente específico de área, consiste em alguma incapacidade lógico-linguística. Não só as questões desse campo filosófico acarretaram proporcionalmente o menor desempenho, como também os itens nos quais está especialmente representada a competência de interpretar, como prevista na matriz de referência.
Por isso esboçamos uma percepção conjunta do horizonte lógico-hermenêutico, visto que foram o campo de Lógica/Linguagem e a competência de interpretrar os fatores mais resistentes a nossas conjecturas, portanto os mais representativos da expressão “forma diferente de abordagem do conteúdo”. As propostas tratam de reverberar cada um deles, buscando manter especialmente ativa a promoção de suas conexões.
Não se está pensando num esforço para melhorar o desempenho dos alunos formandos em um exame situado, tampouco para familiarizá-los com certa metodologia de avaliação, e sim para responder a uma necessidade educacional. Essas evidências apontam para a necessidade de ações incisivas e multilaterais, orientadas ou por critérios científico-metodológicos, ou didático-pedagógicos, desde que almejem atravessar toda a experiência de formação em Filosofia.