Introdução
Em tempos nos quais a tônica acerca da avaliação educacional tem sido as propostas de avaliação externa em larga escala, focadas no desempenho acadêmico discente e tendo como consequência o ranqueamento das escolas, abordar o tema da avaliação para a educação infantil implica vislumbrar horizontes distintos. O ponto de partida deve ser a própria finalidade e identidade desse segmento da educação básica, voltado de modo explícito à formação ampla das crianças e não à instrução e ao ensino de conteúdos específicos comprometidos com a preparação para o ensino fundamental.
O objetivo deste artigo é apresentar e discutir abordagens colocadas em curso em Portugal e na Itália, considerando seus pressupostos e suas concepções, por se constituírem como avaliações internas, podendo inclusive estabelecer um contraponto a experiências em avaliação da educação infantil já realizadas no Brasil, de larga escala ou de caráter externo.
Trajetória brasileira recente: em busca da construção de uma política nacional de avaliação para a educação infantil
A avaliação da educação infantil no Brasil está estabelecida em dois marcos legais importantes. A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional - LDBEN (Brasil, 1996) determina que a avaliação da criança é uma competência da escola e não pode ter objetivos de promoção, classificação ou retenção. O Plano Nacional de Educação - PNE (Brasil, 2014) propõe, entre suas diretrizes, metas e estratégias para a implantação de avaliação nacional da educação infantil com base em parâmetros de qualidade.
A partir de 2009, o Ministério da Educação (MEC) investiu de modo sistemático na proposição e na discussão da avaliação institucional para a educação infantil, tendo publicado os Indicadores da qualidade na educação infantil (Brasil. MEC, 2009b). O documento, embasado em princípios democráticos e participativos, constitui-se em um instrumento de autoavaliação, organizado com base em sete dimensões com indicadores para verificação. Nesse sentido, propõe que equipes gestoras das instituições e das secretarias, professores, auxiliares, famílias e pessoas da comunidade reflitam e discutam sobre a realidade do atendimento, posicionando-se sobre a qualidade da educação ali realizada, e elaborando um plano de ações de melhoria a ser efetivado a seguir.
Nesse mesmo período, 2009 e 2010, foram divulgados os resultados de uma pesquisa de avaliação intitulada “Educação infantil no Brasil: avaliação qualitativa e quantitativa”, gerenciada pela Coordenação-Geral de Educação Infantil, ligada à Secretaria de Educação Básica do Ministério da Educação (Coedi/SEB/MEC), financiada pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e executada pela equipe da Fundação Carlos Chagas. A pesquisa avaliou a qualidade dos serviços oferecidos e dos ambientes de uma amostra de instituições (públicas, conveniadas e privadas) de seis capitais (Belém, Campo Grande, Florianópolis, Fortaleza, Rio de Janeiro e Teresina) das diferentes regiões geográficas do País, utilizando versões traduzidas (para os fins da investigação) das escalas Infant/Toddler Environment Rating Scale Revised Edition (ITERs-R) e Early Childhood Environment Rating Scale Revised Edition (ECERs-R). O processo corresponde à tipologia de avaliação externa, na qual pesquisadores especializados que receberam formação no uso dos instrumentos realizavam observações e coleta de informações a fim de responder ao proposto (Campos et al., 2011). Os resultados foram impactantes por indicarem níveis insatisfatórios de qualidade das creches e pré-escolas investigadas. Alguns aspectos implícitos ao processo e mesmo relativos ao conteúdo dos instrumentos suscitaram discussões durante a realização do Seminário Avaliação da Qualidade da Educação Infantil. Embora dispondo de discussões e proposições em âmbito ministerial sobre a questão da qualidade da oferta educativa para as crianças da educação infantil, voltadas a outra cultura avaliativa (Brasil. MEC, 2009a, 2009b, 2012), temos lidado com diferentes obstáculos para tal perspectiva (Sordi; Ludke, 2009).
Em 2011, movimentos sociais, pesquisadores e formadores testemunharam e se contrapuseram (Corrêa; Andrade, 2011; Neves; Moro, 2013), veementemente, a uma proposição de testagem em larga escala das crianças pequenas, desde bebês. Tratou-se da defesa, por parte da Secretaria de Assuntos Estratégicos (vinculada à Presidência da República), da adoção do Ages and Stages Questionnaires 3 (ASQ-3), com base na aplicação realizada em uma amostra de 46.650 crianças em creches, na cidade do Rio de Janeiro (Filgueiras, 2011), que estava sendo pensada e discutida como política pública nacional.
Também na perspectiva de avaliação das crianças, mas de outra natureza, temos as realidades de diferentes cotidianos institucionais, algumas relatadas e criticadas em pesquisas (Bauer; Horta Neto, 2018; Cançado, 2017; Corrêa, 2007; Godói, 2010; Moro; Souza, 2014; Ribeiro, 2018) que revelam e denunciam a exposição das crianças, desde bebês, a avaliações meritórias e classificatórias, dos mais variados tipos. Ambas as circunstâncias, a avaliação em larga escala, incluindo a testagem “psicológica” das crianças, e a avaliação do processo de desenvolvimento das crianças realizada pelas instituições educativas, além de não considerarem informações acerca das condições da educação a elas ofertadas, são, de maneira inerente, adversas tanto para as crianças como para as instituições e redes municipais de educação.
Os resultados desses processos avaliativos que focalizam o desempenho das crianças tendem a justificar e promover “ações de aprimoramento da formação dos profissionais da educação e de apoio às crianças que apresentem dificuldades de aprendizagem” (Sousa; Pimenta, 2018, p. 1295). Contudo, não impactam mudanças necessárias à cultura institucional e sequer aos processos educativos praticados com meninos e meninas, dos bebês às crianças de 4 e 5 anos; podem, de outro modo, contribuir para o “controle e limitação das práticas institucionais” (Neves; Moro, 2013, p. 281) mediante um referencial de desenvolvimento infantil padrão.
Voltando ao campo lato das políticas públicas, no ano de 2011, o MEC instituiu um grupo de trabalho para produzir subsídios para a definição da política de avaliação da educação infantil no Brasil. Os trabalhos desse grupo resultaram no documento intitulado Educação infantil: subsídios para a construção de uma sistemática de avaliação, o qual reafirma que “a avaliação deve ser concebida e construída com a participação de diversas instâncias e segmentos envolvidos com a educação infantil, possibilitando uma avaliação democrática” (Brasil. MEC, 2012, p. 14). Além disso, propõe diretrizes que, sobretudo, demarcam o compromisso com uma avaliação articulada aos contextos a serem avaliados; coerente com as finalidades e especificidades da educação infantil brasileira (Brasil. CNE. CEB, 2009); participativa, democrática e formativa; que considere propostas e experiências nacionais e internacionais e que possa subsidiar outras políticas de melhoria da qualidade (Brasil. MEC, 2012, p. 18-19).
Entre 2013 e 2015, foi realizado o projeto “Formação da rede em educação infantil: avaliação de contexto”, fruto de uma parceria técnica e financeira do MEC com o Núcleo de Estudos e Pesquisas em Infância e Educação (Nepie), da Universidade Federal do Paraná, que coordenou a atuação de outras três universidades brasileiras (Universidade Federal de Minas Gerais, Universidade Federal do Rio de Janeiro e Universidade do Estado de Santa Catarina), além de uma italiana (Università degli Studi di Pavia). Entre os objetivos do projeto, havia o interesse de difundir outra cultura de avaliação, radicada em princípios formativos, reflexivos e participativos. Para tal, partiu-se da análise e do uso dos instrumentos italianos com base na metodologia originalmente proposta. Fez-se uma investigação de multicampos, a fim de colocar em debate os indicadores presentes nesses instrumentos, em articulação com as realidades brasileiras e o desenho metodológico de pesquisa-formação-avaliação (Moro; Coutinho; Barbosa, 2017; Souza; Moro; Coutinho, 2015; Souza et al., 2017). As ações do projeto culminaram no documento Contribuições para a política nacional: a avaliação em educação infantil a partir da avaliação de contexto (Brasil. MEC, 2015), o qual foi construído pelos pesquisadores do projeto em diálogo aberto com uma rede de debatedores e interlocutores da educação infantil, ancorados na documentação da pesquisa de campo realizada (e dela fazem parte as vozes dos sujeitos das instituições de educação infantil envolvidas), na bibliografia especializada de avaliação de contexto e nas referências brasileiras de propostas e normatização que focalizam essa etapa - com especial destaque às Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil.
Em 2013, o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) instituiu a Comissão de Especialistas da Avaliação da Educação Infantil, com vistas a contribuir com proposições para a implementação da avaliação dessa etapa. A Diretoria de Avaliação da Educação Básica (Daeb) do Inep, coordenadora da comissão, constituiu o Grupo de Trabalho de Avaliação da Educação Infantil, que, em maio de 2015, apresentou a proposição de uma avaliação com foco no monitoramento das condições de oferta coerente com o preconizado pelo PNE.
Seguiu-se um período de rupturas decorrentes do golpe parlamentar que veio a alterar a política governamental em âmbito federal, com a usurpação da Presidência da República, em 2016. Diante de inúmeras políticas e programas privatistas que se sucederam e fizeram retroagir muitas ações e concepções afetas à educação infantil, em 2019, o Inep anunciou o novo Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb), incluindo a educação infantil. Simultaneamente, em caráter de estudo-piloto, fora deflagrado um processo avaliativo da educação infantil , com base em dados contextuais coletados por intermédio de questionários eletrônicos dirigidos às secretarias estaduais e municipais de educação e às escolas - direção e corpo docente.
Recentemente, de forma dissonante às políticas anteriores, o MEC editou a Portaria nº 458/2020 (Brasil. MEC, 2020), que institui normas para o cumprimento da Política Nacional de Avaliação (PNA), na qual se explicita a realização anual de avaliação com caráter censitário para aferir o domínio das competências e das habilidades esperadas ao longo da educação básica. Simultaneamente, temos observado ditames claros de antecipação da escolarização, na esteira do Decreto nº 9.765, de 11 de abril de 2019 que dispõe sobre a atual Política Nacional de Alfabetização - os artigos 5º, 7º e 8º mencionam diretamente a etapa da educação infantil) -, com as proposições de “literacia emergente” e “numeracia” para as crianças da “primeira infância” (Brasil, 2019) e com a distribuição e adoção de livros didáticos na pré-escola, possibilitadas pelo Edital PNLD 2022 (Brasil. FNDE, 2022). Ainda que a PNA não disponha sobre a educação infantil, reacende dúvidas e receios de mais retrocessos, com o risco evidente de proposições que incluam a avaliação de desempenho das crianças, principalmente do segmento de pré-escola.
Experiências da Itália numa abordagem reflexiva, formativa, participativa e dialógica de avaliação
A educação infantil italiana há tempos é tema de estudos e pesquisas no Brasil e em outras partes do mundo ocidental. É também referência de práticas educativas que respeitam e valorizam as potencialidades das crianças, desde muito pequenas, nas situações institucionais cotidianas. A partir dos anos 1970 e 1980, instaurou-se naquele país um debate ampliado sobre a infância e a educação destinada às crianças pequenas. Oportunizou-se às educadoras acesso a “análises e dados capazes de promover um conhecimento mais preciso da complexa experiência da criança na creche, promovendo ao mesmo tempo uma reflexão coletiva para definir uma pedagogia da primeira infância” (Catarsi, 2008, p. 6, tradução nossa).
Egle Becchi, Anna Bondioli, Monica Ferrari, Donatella Savio e outros, a partir dos anos de 1990, dedicaram-se a estudos e pesquisas acerca da interface entre educação-qualidade-avaliação, incluindo os contextos institucionais de creches e pré-escolas. O grupo iniciou suas pesquisas, de caráter formativo, em diferentes municípios italianos (Bondioli, 2002; Bondioli; Ghedini, 2000; Cipollone, 1999, 2014; Becchi; Bondioli, 2003; Bondioli, 2004; Bondioli; Savio, 2013). Instrumentos e indicadores para avaliar a creche: um percurso de análise da qualidade (Cipollone, 2014) é a primeira publicação em língua portuguesa que traz na íntegra um instrumento autóctone elaborado por pesquisadoras italianas - Indicadores e Escalas da Qualidade Educativa da Creche (Indicatori e Scala Della Qualità Educativa del Nido), conhecido como Isquen. Outro instrumento criado para o contexto italiano é autoavaliação da pré-escola (Autovalutazione della Scuola dell’Infanzia), AVSI , que contempla indicadores próprios às realidades nas quais se realizaram os processos avaliativos (Bondioli; Ferrari, 2008).
Entre os anos de 2012 e 2021, nutriu-se um intenso diálogo com as pesquisadoras Anna Bondioli, Donatella Savio e Elena Mignosi sobre a avaliação em educação infantil, com a vinda delas para o Brasil em diferentes ocasiões. Em muitas dessas oportunidades, trataram das concepções, dos princípios e dos instrumentos relativos a processos de avaliação participativa e formativa, em contexto, a partir do envolvimento dos profissionais da instituição, da comunidade educativa ampliada (crianças, pais e outros interessados) e de participantes externos (formadores). As pesquisadoras enfatizam que é fundamental para um bom andamento e desfecho de processos avaliativos, nessa abordagem, a responsabilização de todos os envolvidos na educação e no cuidado das crianças pequenas.
Bondioli (2013) assevera que o objeto de um processo avaliativo deve ser a experiência educativa que uma instituição oferece às crianças pequenas e a seus familiares (destinatários desse serviço), o que é diferente de avaliar as aprendizagens das crianças. Para a autora, a avaliação da qualidade de um serviço educacional não coincide com a avaliação dos sujeitos envolvidos na prática educativa - crianças ou docentes. Assim, esse processo deve ser realizado com base na efetiva capacidade formativa de cada instituição educativa, perspectivada pela qualidade desejada, o que implica considerar: o ambiente físico, relacional e social; as experiências educacionais propostas; a organização do trabalho entre os educadores; o relacionamento com as famílias; e as atividades profissionais, entre outros.
No entendimento de Bondioli (2013), a avaliação de contexto problematiza a avaliação das aprendizagens, pois as metas formativas alcançadas pelas crianças se entrelaçam com a qualidade da oferta, com o contexto relacional e de aprendizados oferecidos. A pesquisadora faz ainda a ressalva de que não é possível avaliar a educação infantil partindo de modelos de avaliação apropriados para outras realidades institucionais, que não possuam a mesma especificidade e finalidade formativa das creches e pré-escolas.
O modelo de creche subjacente ao instrumento avaliativo elaborado leva em consideração a finalidade eminentemente educativa dessa instituição, mas também as especificidades ligadas à sua história e ao seu configurar-se como órgão extradoméstico para crianças abaixo dos três anos (a creche se oferece ainda como lugar de custódia infantil para as famílias que precisam). Uma instituição que se declara educativa tem, por definição, uma clara finalidade pedagógica, uma intenção de transformação para melhor diante dos destinatários da ação formativa. A sua qualidade pode e deve ser avaliada em relação à capacidade de alcançar esse específico objetivo formativo. Não se justifica, portanto, utilizar critérios de julgamento extrínsecos nem valer-se de instrumentos de avaliação pensados para órgãos institucionais com finalidades diferentes [...]. A creche é uma instituição educativa não somente porque tem como objetivo promover o crescimento das crianças que a frequentam, mas porque oferece também aos adultos responsáveis pelas crianças (educadores e pais) a possibilidade de refletir sobre o próprio papel educativo, de crescer do ponto de vista profissional e na capacidade de desempenhar o “ofício de pais”. (Bondioli, 2013, p. 34-35).
A avaliação formativa na perspectiva italiana, protagonizada pela pesquisadora de Pavia, requer uma verificação do contexto educativo, o que implica a coleta de informações, um período de observação em que cada integrante é chamado a participar - porção que responde pela avaliação interna. Requer o envolvimento de um grupo de trabalho que se comprometa com o debate, a negociação, a partilha de critérios e os êxitos do processo avaliador. Esse grupo, via de regra, é composto também por um ou mais avaliadores externos com funções específicas. Requer o envolvimento direto dos membros do grupo no processo como um todo, desde a análise crítica dos instrumentos que serão utilizados, a avaliação propriamente, a discussão dos dados encontrados durante o processo avaliativo, até a tomada de decisões acerca das ações de melhorias nas instituições. Nesse sentido, encerra uma tipologia auto e heteroavaliativa, a fim de configurar um processo referenciado externa e internamente. A avaliação se realiza por e para benefício de um ou mais grupos de referência de uma determinada instituição, educadores e famílias.
Bondioli (2013) e Bondioli e Savio (2015) salientam o papel e a importância dos instrumentos de avaliação dentro de um processo avaliativo de contexto, destacando que eles demarcam um modelo de objeto a avaliar, ao indicarem as dimensões do contexto que será avaliado; identificam quais informações coletar; declaram, para cada aspecto, os padrões e pontos de excelência que se pode ou se pretende alcançar; e definem os critérios que fundamentam a apreciação. Além disso, elas enfatizam que todo e qualquer instrumento de avaliação expressa uma “filosofia de qualidade”, sendo portador de valores e de ideias pedagógicas - ideias sobre a criança, a relação educativa.
Cabe ressaltar a compreensão de que toda avaliação, em especial a relativa a contextos educativos, tem uma “natureza eminentemente política”. Para Bondioli (1999, p. 48), “avaliar significa aceitar ou definir critérios ‘baseados em valores’. Tampouco a escolha das abordagens, dos modelos, dos instrumentos de avaliação é uma questão puramente técnica, porque tal escolha depende da ‘ideia’ que se tem acerca da natureza do objeto a ser avaliado”.
Bondioli e Savio (2015) se propuseram a dar a conhecer e discutir as reflexões e as experiências que vinham sendo desenvolvidas na Itália por distintos grupos de pesquisa ou entes executivos locais. Segundo elas, surgiram diferentes iniciativas, seja para atender as exigências legais (como é o caso de regiões que requerem procedimentos para credenciamento das instituições), para compor atividades formativas ou para responder à iniciativa de um grupo de docentes ou de um gestor interessado em realizar um percurso avaliativo. Entretanto, o quadro se apresentava “um pouco facetado”, em virtude das diferentes tipologias institucionais e da pluralidade na sua gestão (municipal e privada para instituições voltadas aos 0/3 anos, municipal, federal e privada para as instituições voltadas aos 3/6 anos e outros serviços experimentais para essa mesma faixa de idade) ou dos propósitos e ênfases distintas às quais os processos avaliativos se voltavam (Bondioli; Savio, 2015). Apesar da ausência de um “quadro unitário”, diversas experiências significativas vinham sendo realizadas, nas quais se refletia, em diferentes âmbitos, sobre a importância e os modos de efetivar percursos avaliativos na educação infantil; assim como se construíram instrumentos específicos para os serviços para a infância (Bondioli; Ferrari, 2008; Bondioli; Ghedini, 2000; Marcuccio; Zanelli, 2013; Moro, 2018; Savio, 2011
;entre outros). A finalidade precípua de cada percurso é sempre resultar em projetos/planos de melhoria da oferta educativa, os quais deverão ser efetivados com as crianças e suas famílias.
A experiência demandada pelo Ministério da Educação de Portugal: avaliação em parceria como estratégia de construção da qualidade
Com a mesma intenção de melhoria da oferta educativa, Portugal, a partir de 2007, realizou o projeto “Desenvolvendo a Qualidade em Parcerias” (DQP), que se baseou na aplicação de um modelo de avaliação e desenvolvimento da qualidade relacionado com o paradigma contextual, que parte do envolvimento de todos (crianças, profissionais e pais).
Oliveira-Formosinho (2009), tendo atuado como consultora e produzido documentação acerca do projeto, discorre sobre a análise da qualidade da educação e a classifica em dois paradigmas: o tradicional, no qual o processo de avaliação e desenvolvimento da qualidade está embasado em produtos e resultados previamente determinados, sendo realizado por agentes externos e de forma não colaborativa, permitindo comparações com padrões preexistentes e orientando-se para generalizações independentes das particularidades exclusivas de uma dada realidade; e o contextual, o qual fundamenta o projeto DQP e reconhece a especificidade dos processos e produtos na qual a avaliação e o desenvolvimento da qualidade se baseiam. Realiza-se por intermédio da colaboração dos agentes internos (crianças, profissionais, pais), eventualmente apoiados por agentes externos (amigos críticos, formadores em contexto), e se relaciona a uma construção particular, coletiva e dinâmica, voltando-se a uma leitura singular de determinada realidade. Essa leitura será útil diretamente aos próprios envolvidos com a construção da qualidade da instituição e àqueles que desejem dialogar com essa realidade sobre a pequena infância e a educação ali ofertada.
Apoiado no paradigma contextual, o DQP disponibiliza um conjunto de procedimentos e instrumentos de pesquisa (documentos de explicitação acerca do processo avaliativo; fichas diversas - sobre a instituição, a sala de cada turma, as famílias, os educadores etc. -; roteiros de entrevistas, de relatórios e do plano de ação; instrumentos de observação e avaliação; material para a formação), que podem ser utilizados para a formação profissional, para o desenvolvimento institucional e no monitoramento e revisão das práticas realizadas nos diferentes tipos de estabelecimentos em que se desenvolve a educação pré-escolar (não está compreendido, nesse projeto, o atendimento a crianças com menos de 3 anos de idade).
O projeto DQP foi proposto e iniciado pela Direção-Geral de Inovação e de Desenvolvimento Curricular (DGIDC), que compõe o Ministério da Educação, e inspirado no projeto Efective Early Learning (EEL) [Aprendizagem Eficaz na Infância], de autoria dos pesquisadores Christine Pascal e Tony Bertram, concebido na Inglaterra. Em Portugal, manteve-se a essência da proposta contida no projeto EEL, centrada na ideia de que a avaliação visa à transformação e não à mera apreciação. É executada em parcerias que envolvem os agentes internos da instituição, por intermédio de processos de colaboração e negociação em torno da compreensão da realidade atual que se deseja modificar, dos meios para fazê-lo e dos resultados que são alcançados.
Inicialmente, constituiu-se uma equipe ampliada de educadores e pesquisadores que estudaram as possibilidades de utilização do referencial DQP em diferentes contextos de educação de infância. Sob a coordenação da professora e pesquisadora Júlia Oliveira-Formosinho, 15 estudos de caso foram realizados e publicados como apoio à reflexão sobre a ação do educador no processo. Em 2009, a DGIDC publicou o Manual DQP (Bertram; Pascal, 2009) e o conjunto de Estudos de Caso (Oliveira-Formosinho, 2009), que serviram de suporte à contextualização do projeto para a realidade portuguesa.
A referência avaliativa do projeto DQP implica um princípio de flexibilidade na realização da autoavaliação da qualidade da oferta educativa, podendo se utilizar integralmente ou parcialmente do instrumental predisposto pelo projeto. A intenção dos envolvidos é que determinará o seu uso, no sentido de buscar encaminhamentos para a questão ou preocupação inicialmente colocada por aquele grupo. Para além da coleta de um manancial de dados qualitativos acerca da oferta educativa, é também possível o levantamento de dados com instrumentos de observação que realçam e refletem os processos e a eficácia das aprendizagens das crianças.
.A Metodologia DQP foi concebida de modo a dar ênfase à importância aos processos de aprendizagem. A avaliação centra-se, portanto, em dois factores-chave da qualidade e eficácia da aprendizagem na infância. Em primeiro lugar, o modo como a criança se envolve no processo de aprendizagem. Em segundo lugar, o estilo de interacções que os adultos têm com as crianças. Para tal adaptaram-se dois instrumentos de observação de Ferre Laevers: a Escala de Envolvimento da Criança e a Escala de Empenhamento do Adulto. (Oliveira-Formosinho, 2009, p. 125)
Com o objetivo de desenvolver e disseminar esse modelo de avaliação aos profissionais e instituições de educação da infância da rede nacional de educação pré-escolar, a DGIDC convidou um conjunto de especialistas/formadores, com domínio do referencial e metodologia DQP, para realizar a formação de educadores, nos seus contextos educativos, para serem futuros formadores desse modelo. Nesse sentido, ocorreram, em âmbito nacional, em Portugal, ações de formação de formadores, prevendo-se inicialmente em torno de 120 formadores que, por sua vez, ficariam habilitados a formar outros educadores. Tendo como perspectiva a disseminação desse modelo, esses grupos também ficaram responsáveis pela produção de materiais e de conteúdos de suporte à formação e à aplicação do referencial DQP, a serem disponibilizados num campo mais ampliado e de forma generalizada.
Em 2012, duas profissionais que atuaram no projeto DQP - a professora Gabriela Portugal, da Universidade de Aveiro, e a educadora de infância Lúcia Santos - estiveram no Brasil, quando participaram do Seminário Internacional: Educação e Avaliação em Contextos da Educação Infantil, organizado como parte das ações do Nepie/UFPR. Naquela oportunidade, discutiram as vicissitudes de tal experiência, enaltecendo a iniciativa como potencializadora de reflexões e ações em prol da melhoria da qualidade da oferta em educação infantil. Também ponderaram acerca da complexidade para a realização das proposições do projeto DQP na sua integralidade.
Pôr em curso tal processo requer das instituições de educação infantil não só interesse e disponibilidade por parte dos profissionais e demais envolvidos, mas condições concretas para a sua consecução. Em razão de condições concretas, basicamente as professoras, considerando suas publicações acerca de avaliação (Portugal; Laevers, 2011; Santos, 2009), fizeram referência à necessidade de um tempo alargado no cotidiano de trabalho, afora o tempo com as crianças, seja para a efetividade do processo, seja para a formação durante o processo. Nesse sentido, ambas as professoras veem a proposição como um grande desafio, passível de efetivação; entretanto, poucas instituições têm conseguido assumi-lo e implementá-lo na sua totalidade.
É importante referir o enorme impacto que essa metodologia tem nas organizações que a utilizam total ou parcialmente. Desde logo, a confirmação de que os instrumentos produzem um retrato fiel da pré-escola, uma imagem em que a comunidade educativa se revê e que a motiva para o questionamento e a ação sobre as práticas educativas, apoiando de forma consistente e significativa uma vivência de partilha e corresponsabilização pela qualidade do contexto educativo (Santos, 2010).
Tal como no Brasil, também em Portugal, vários obstáculos têm sido levantados a essa perspectiva, assistindo-se a uma tendência de subordinação à lógica escolar que se traduz na proliferação de fichas de avaliação organizadas por idades com a respectiva listagem de aquisições. Essa situação foi favorecida quando as escolas públicas portuguesas começaram a se organizar em agrupamentos que incluíam o pré-escolar. Isso conduziu a uma excessiva apropriação do modelo escolar tradicional por parte dos educadores, quer voluntariamente, quer por imposição das direções dessas escolas. Essa tendência tem sido sucessivamente contrariada pelo Ministério da Educação, que vem emitindo circulares (Portugal. ME, 2007, 2011) clarificando o caráter holístico e específico da avaliação na educação infantil, cujos processos devem ser coerentes com os princípios subjacentes às orientações curriculares, sublinhando o seu caráter formativo e de valorização dos progressos das crianças. No entanto, não se verifica por parte do Ministério o mesmo empenho no acompanhamento da implementação das Orientações Curriculares para a Educação Pré-Escolar (Ocepe) que coloca no acompanhamento e na monitorização dos currículos dos níveis de ensino obrigatório, o que por si só poderia ser suficiente para contrariar aquela tendência.
As Ocepe (Portugal. ME, 2016), cujos fundamentos e princípios apontam para uma imagem de criança competente, única e singular, protagonista, sujeito e agente da sua aprendizagem, requerem um educador igualmente competente, capaz de gerir a imprevisibilidade das situações de aprendizagem e de reconhecer o potencial de cada criança. De acordo com esse documento, a avaliação “não envolve nem a classificação da aprendizagem da criança, nem o juízo de valor sobre a sua maneira de ser, centrando-se na documentação do processo e na descrição da sua aprendizagem, de modo a valorizar as suas formas de aprender e os seus progressos” (Portugal. ME, 2016, p. 15). Isto é, a avaliação é um processo partilhado e colaborativo, de construção de sentido, em que cada um se afirma ao lado dos outros e não em comparação com os outros.
É também importante referir que em ambos os países há uma extensa discussão e inúmeras proposições relativas à “documentação pedagógica” como processo avaliativo da trajetória individual de cada criança ou da trajetória coletiva dos grupamentos por turma, que permite enriquecer e tensionar a avaliação de contexto (Balsamo, 1998; Benzoni, 2008; Malavasi; Zoccatelli, 2013; Sá-Chaves, 2004, 2005; Savio, 2006); sendo que esta também pode problematizar a avaliação da criança. Contudo, uma não substitui e não deveria existir sem a efetivação da outra, estando ambas entremeadas. Em Portugal, está sendo elaborada, pelo Ministério da Educação, uma nova publicação sobre planejamento e avaliação com enfoque na documentação pedagógica e se espera que seja um apoio coerente, consistente e concreto para o trabalho dos educadores e para a afirmação da especificidade da educação de infância junto não apenas dos próprios educadores, mas também da comunidade educativa mais alargada.
A experiência portuguesa se aproxima da estratégia que vinha acontecendo no Brasil, entre os anos de 2009 e 2017, por se relacionar a uma proposição governamental, de âmbito nacional, envolvendo a responsabilidade do Ministério da Educação.
Considerações para seguir com o desafio
As experiências em avaliação desses dois países, nas suas especificidades como processo, mesmo sendo em contextos macrossociais específicos, fornecem inúmeros elementos para pensar, discutir e implementar ações no Brasil. Nesse sentido, é importante a continuidade de estudos e pesquisas acerca dessas e de outras experiências de avaliação levadas a cabo para atender os direitos das crianças de 0 a 6 anos de idade e de seus familiares a uma educação de qualidade, a fim de debater, problematizar e constituir instrumentos e metodologias que sirvam às nossas realidades em âmbito nacional.
As palavras de Paulo Freire se articulam com as questões implícitas às abordagens de Portugal e Itália aqui relatadas: “Esta avaliação crítica da prática vai revelando a necessidade de uma série de virtudes ou qualidades sem as quais não é possível nem ela, a avaliação, nem tampouco o respeito do educando” (Freire, 1997, p. 26). Só podemos avançar, enquanto escola, professoras, crianças, quando tomamos consciência da nossa situação e das nossas ações e de como estas influenciam os outros, o próprio indivíduo e a sociedade. Consciência e intencionalidade são especificidades do ser humano que precisam ser constituídas no cotidiano e que na área da educação se fazem imperiosas no sentido de mobilizar o potencial formativo inerente aos processos de cuidado e educação na infância.
Fazendo uma síntese dos principais indicativos das experiências apresentadas, cabe destacar:
a “natureza construída” e “situada” do processo avaliativo e de seu objeto (Moro; Souza, 2014, p. 122), assim como o caráter político das escolhas feitas;
a necessária participação daqueles implicados e que pertencem à instituição, para um processo democrático e autêntico de autoavaliação;
a importância da atuação de profissional externo a fim de assegurar o estranhamento necessário que transponha a autorreferenciação, o qual tem um papel fundamental de buscar a explicitação de percepções dissonantes, negociando o debate com o grupo, tendo como foco os critérios para melhoria da qualidade;
a oportunidade de reflexão sobre a identidade da instituição e suas forças e fraquezas no propósito de realizar seu projeto educativo com as crianças e seus familiares;
o processo sinérgico na construção de acordos e consensos, como resultantes do debate e da negociação e não como pontos de partida para se averiguar a qualidade;
a dimensão formativa, ao possibilitar maior conscientização acerca dos propósitos da educação infantil e maior intencionalidade dos profissionais nas ações educativas;
o fortalecimento (empowerment) da profissionalidade individual e, sobretudo, coletiva das professoras e demais profissionais da instituição;
o conhecimento e a escolha do ou dos instrumentos avaliativos pelas pessoas envolvidas no percurso de avaliação ou a construção ad hoc de instrumento próprio; e
o indispensável investimento dos gestores interessados, seja em termos de contemplar o devido tempo requerido na rotina cotidiana das instituições de educação infantil para avaliação, seja em termos de possibilitar formação de profissionais para o papel de avaliador externo que deve acompanhar tais percursos.
Conhecer as experiências de avaliação da Itália e de Portugal na relação com as do Brasil, não em simetria ou comparação em si, mas em debate e diálogo experiencial, permite pensar como os percursos brasileiros se fazem também em espectro a partir do outro. Contribui para recolocar em pauta a necessidade e a importância da avaliação para o fortalecimento da concepção de educação infantil e, principalmente, para a garantia do direito das crianças à educação infantil de qualidade.