Introdução
A noção de cidadania esteve associada à educação desde a invenção da escola pública. Condorcet, em finais do século 18, já defendia a instituição da instrução pública, por entender que ela promoveria o exercício da cidadania crítica e independente (Piozzi, 2016). Ó (2009, p.114), referindo-se ao processo de consolidação da escola moderna europeia em finais do século 19, aponta que “o poder liberal transferiu para os espaços em que decorria a socialização escolar o essencial das tarefas destinadas à efectivação das categorias modernas de pessoa e de cidadão”.
No Brasil, a Constituição de 1824 garantiu o direito à instrução primária a todos os cidadãos, lembrando que isso excluía escravos. Essa cláusula constitucional foi regulamentada pela Lei das Escolas de Primeiras Letras, de 15 de outubro de 1827, que, contrariando a Carta Magna, previa que apenas nas cidades mais populosas haveria escolas, alijando grande parte da população. Além disso, na lei não havia previsão orçamentária para sustentar essa iniciativa (Paula; Nogueira, 2017). Desse modo, essa disposição legal nunca foi cumprida. Por fim, o Ato Adicional de 1834 descentralizou a instrução primária e delegou a províncias e municípios o poder de legislar sobre essa área (Castanha, 2006).
No Império, a instrução primária teve parcos avanços para aqueles que dependiam de escolas públicas, situação que perdurou durante a República Velha. Apenas a partir de 1930, no primeiro governo de Getúlio Vargas, houve um avanço muito lento e tímido da escolarização. A primeira legislação nacional com regulamentações para a escola primária, que apresentou diretrizes gerais e determinou que estaria a cargo dos Estados, foi promulgada em 1942, no âmbito da chamada Reforma Capanema, assim conhecida por ter sido promulgada na gestão de Gustavo Capanema, ministro da Educação entre 1934 e 1945. Segundo ele:
É com a educação moral e cívica que se cerra e se completa o ciclo da educação individual e coletiva e é por ela que se forma o caráter dos cidadãos, infundindo-lhes não apenas as preciosas virtudes pessoais senão também as grandes virtudes coletivas que formam a têmpera das nacionalidades - a disciplina, o sentimento do dever, a resignação nas adversidades nacionais, a clareza nos propósitos, a presteza na ação, a exaltação patriótica. (Capanema, 1957 apud Schwartzman; Bomeny; Costa, 2000, p. 209).
A citação mostra a preocupação de Capanema com a formação da cidadania. Cabe notar que ele era um eminente representante, juntamente com Alceu Amoroso Lima, entre outros, da corrente católica no campo da Educação, que rivalizava com os escolanovistas do Manifesto dos Pioneiros da Educação, entre os quais se destacam Lourenço Filho e Anísio Teixeira, figuras estreitamente ligadas à Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos (RBEP), que consiste na empiria desta pesquisa. Isso é bastante importante, pois os escolanovistas eram discípulos de John Dewey, cujas teorizações estavam voltadas para pensar a escola como estratégia para formar cidadãos aptos para a vida democrática. Isso sinaliza uma convergência nas preocupações desses grupos, católicos e escolanovistas, em torno da cidadania, embora não necessariamente a partir de um mesmo entendimento.
Este artigo tem por objetivo mostrar como foi significada a cidadania na RBEP no período entre 1944, ano de sua fundação, e 1964. O presente trabalho apresenta parte dos resultados de uma pesquisa que abrange o período de 1944 a 2021. O recorte temporal aqui adotado deve-se ao fato de que a revista foi dirigida nesse período por escolanovistas que marcaram fortemente a orientação do periódico.
Na próxima seção, discutiremos a relação entre cidadania e direitos com base no trabalho clássico de Marshall (2021), Cidadania, classe social e status, cuja primeira edição em inglês é de 1950, e sua situação no contexto do Brasil. A seguir, retomamos as discussões de Westheimer e Kahne (2004) sobre as relações entre cidadania e participação social. Prosseguimos com uma breve apresentação do material empírico e da metodologia. A partir desse quadro, desenvolvemos nossas análises e fechamos o artigo com algumas considerações finais.
Cidadania à brasileira
Marshall (2021), no capítulo 3 de seu livro, faz uma importante discussão sobre o desenvolvimento da cidadania na Inglaterra. Apesar de ser um estudo dirigido a um contexto específico, a consistência de suas análises embasou obras de outros pesquisadores em diferentes países. De acordo com esse autor, a cidadania seria constituída por três elementos, que se formaram, na Inglaterra, em três momentos diferentes. Primeiro, no século 18, vieram os direitos civis, ou seja, direitos à vida, à liberdade, à propriedade, à igualdade perante a lei. No século 19, os ingleses conquistaram os direitos políticos, que se configuram como direito ao voto para eleger representantes, com a ressalva de que nessa época apenas homens com propriedades usufruíam desses direitos. Por fim, os direitos sociais, cuja emergência já pode ser detectada no século 19, quando foi instituída a escola pública, o que se considera o marco inicial para sua constituição, mas que se consolidaram apenas no século 20. Educação, saúde e leis para proteção dos trabalhadores são os destaques nessa área. Essas discussões vão ao encontro do destaque que a cidadania ganha nas discussões educacionais ao longo do século 20. A associação entre os processos de escolarização e a cidadania são recorrentes na RBEP, desde seus primeiros números, na década de 1940, como veremos a seguir, e atravessará todo o período de nossa análise 1.
Carvalho (2021), em obra publicada originalmente em 2001, trata da constituição da cidadania no Brasil, um país que foi colônia portuguesa até 1822 e que manteve a escravidão até 1888. Essa herança colonial e escravista evidentemente fez com que o desenvolvimento da cidadania no País se desse de modo muito diferente e totalmente assíncrono com o inglês. O historiador brasileiro sugere que os direitos políticos são os primeiros que se desenharam no País. A Constituição de 1824 já outorgava direito de voto para homens livres de 25 anos ou mais, com uma renda mínima de 100 mil-réis, bastante modesta para a época, tendo em vista que a maioria dos trabalhadores tinha renda superior. A Constituição permitia, também, que analfabetos votassem. Mulheres e escravos não eram reconhecidos como cidadãos. Cabe notar que, em relação aos homens livres, a Constituição brasileira era muito mais includente do que a maioria dos países, inclusive os Estados Unidos e países da Europa. Para os cidadãos, o voto era obrigatório.
Apesar de reconhecer uma parcela relativamente grande de homens livres como cidadãos, o exercício dos direitos políticos era limitado. Cerca de 90% da população brasileira vivia em zonas rurais, tendo seus votos controlados pelos proprietários de terra. A taxa de analfabetismo era de 85%, a população não tinha acesso a informações, o que facilitava a indução do voto. Os funcionários públicos também sofriam pressões e controle por parte do governo. Desse modo, apesar de haver o reconhecimento formal dos direitos políticos, na prática poucos o exerciam efetivamente. Em 1881, a legislação foi modificada, proibindo-se o voto dos analfabetos e elevando a renda, o que significou um retrocesso na concessão de direitos políticos (Carvalho, 2021).
Na Constituição de 1824, estava enunciado o direito à educação primária, que nunca foi efetivado, conforme mencionado. Desse modo, os direitos sociais não foram reconhecidos durante o Império. Já em relação aos direitos civis, eles eram extremamente limitados. A escravidão retirou todos os direitos de uma parcela significativa da população. Além disso, nas grandes propriedades rurais, a lei não era reconhecida, vigendo as normas do proprietário. Por fim, o Estado imperial era fortemente comprometido com o setor privado, podendo-se dizer que havia uma privatização do setor público (Carvalho, 2021). As leis que foram gradualmente dando liberdade aos escravizados, aparentemente, concediam-lhes direitos civis. Porém, na prática, suas precárias condições de vida faziam que muitos permanecessem vivendo em situação muito próxima da escravidão.
A Proclamação da República, em 1889, pouco mudou esse quadro dos direitos. Até o fim da República Velha, em 1930, o Brasil era um país que não reconhecia direitos sociais, que não garantia os direitos civis reconhecidos em lei e que permitia um exercício muito restrito dos direitos políticos. A Revolução de 1930, liderada por Getúlio Vargas, que assumiu a presidência, trouxe os direitos sociais para a cena. Entre 1930 e 1945, surgiu uma legislação que garantiu direitos trabalhistas e previdenciários, bem como estabeleceu algumas políticas educacionais, ainda que rudimentares. O ápice desse processo se deu em 1943, quando foi promulgada a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). Entretanto, a estrutura sindical criada no período era fortemente dominada pelo governo, restringindo os direitos políticos dos trabalhadores. Os direitos sociais, entretanto, não contemplaram categorias como os trabalhadores rurais e os autônomos.
Os direitos políticos foram suspensos durante o autoritarismo da chamada Era Vargas, que também restringia fortemente os direitos civis, intervindo na liberdade de imprensa e perseguindo adversários políticos. Em 1945, Vargas foi deposto pelo exército, sendo convocadas eleições presidenciais e legislativas para o mês de dezembro. A eleição legislativa visava constituir uma assembleia constituinte para escrever uma nova Carta Magna, promulgada em 1946. Essa nova constituição manteve os direitos sociais conquistados anteriormente e garantiu os direitos políticos e civis que foram restringidos na Era Vargas. Os sindicatos, entretanto, ainda eram fortemente atrelados ao governo e não era reconhecido o direito de greves (embora elas ocorressem).
Retomando as discussões de Marshall (2021), para ele a cidadania implica a participação integral em uma sociedade, em que todos os membros teriam direitos e deveres iguais. Entretanto, suas discussões foram focadas na questão dos direitos, caminho também escolhido, em grande parte, por Carvalho (2021). A discussão dos direitos equilibra-se entre uma análise da legislação e sua efetivação. Portanto, é necessário, para poder analisar os entendimentos de cidadão e cidadania na RBEP, desenvolver discussões dos aspectos relativos à participação na sociedade, ou, como coloca Marshall (2021), das formas como se expressam a lealdade como contrapartida aos direitos que têm para com a comunidade política.
Engajamento social dos cidadãos
Westheimer e Kahne (2004) realizaram uma pesquisa em que analisaram programas educacionais para fomento da cidadania em um contexto democrático, desenvolvendo suas análises com base no ponto de vista de como era pensada a relação dos sujeitos com a sociedade. Como resultado, os autores mapearam três diferentes perspectivas de cidadania que aparecem nesses programas: o cidadão individualmente responsável, o cidadão participativo e o cidadão orientado pela justiça.
O cidadão individualmente responsável assume para si tarefas que possam contribuir com a comunidade, como separar o lixo, doar sangue ou participar de campanhas de coleta de agasalhos e alimentos para os pobres. Ele é trabalhador, cumpre a lei e paga seus impostos. Nesse tipo de programa, os alunos são ensinados a tratar a todos com respeito, controlar a raiva para superar conflitos e agir com gentileza. Não existem discussões acerca das causas das desigualdades, nem questionamentos da estrutura social. É disseminada a crença de que, se cada um fizer sua parte, os problemas sociais serão resolvidos. Enfatizam valores como honestidade, integridade, disciplina e trabalho árduo. Segundo Westheimer e Kahne (2004, p. 239, tradução nossa), esses programas buscam “ajudar a resolver problemas sociais sérios, envolvendo as pessoas de maneira mais eficaz no serviço voluntário”.
Já os programas orientados para desenvolver um cidadão participativo buscam envolver seus alunos de modo ativo nas atividades comunais e nos assuntos cívicos, seja no contexto local ou nacional. O cidadão participativo já não parte da crença de que seja necessário apenas que cada um aja de forma responsável para resolver os problemas sociais, mas que são necessários esforços conjuntos. Ele irá organizar mutirões para limpeza de praças, coletas de alimentos e agasalhos e irá contribuir com escolas e instituições assistenciais de sua comunidade. Embora nesses programas não haja um questionamento mais profundo das estruturas sociais e das causas da desigualdade, esses se estruturam para informar sobre o funcionamento dos órgãos governamentais, sobre as políticas públicas e disseminar a crença de que os problemas sociais podem ser superados pela ação organizada da sociedade. De acordo com os autores, “enquanto o cidadão individualmente responsável contribuiria com latas de comida para os desabrigados, o cidadão participativo organizaria a distribuição de comida” (Westheimer; Kahne, 2004, p. 240, tradução nossa).
Por fim, os programas que visam desenvolver cidadãos orientados para a justiça baseiam-se numa noção de cidadania de maior complexidade. Nesse caso, os sujeitos mais do que se integrarem à sociedade e se preocuparem com a solução de problemas por meio de suas ações, questionam sua estrutura com base na ideia de justiça social. De acordo com Westheimer e Kahne (2004, p. 240, tradução nossa), “estes programas são menos para enfatizar a necessidade de caridade e voluntarismo como fins próprios e mais para ensinar sobre os movimentos sociais e como efetuar mudanças estruturais”. Assim, enquanto os cidadãos participativos organizam ações comunitárias para oferecer comida aos necessitados, os cidadãos orientados para a justiça “estão perguntando por que pessoas passam fome e estão agindo a partir de suas descobertas” (Westheimer; Kahne, 2004, p. 240, tradução nossa). Assim, o seu foco é a crítica ao sistema e aos modos de como torná-lo mais justo. Ainda de acordo com os autores, esse é, de longe, o modelo menos usual entre os três. Poucos programas são desenvolvidos nessa perspectiva.
Ainda em relação ao modelo de cidadão orientado para a justiça, Kahne e Sporte (2008) apontam que, historicamente, os objetivos democráticos na educação têm sido um dos aspectos primordiais para legitimá-la em sua forma pública. Além disso, problematizam a crescente ênfase dos currículos em leitura e matemática, com a redução do espaço para a formação para a cidadania. Os autores trazem que “um estudo recente demonstrou que 71% dos distritos relatados cortaram tempo em outras áreas para dar mais tempo para instrução matemática e a leitura” (Kahne; Sporte, 2008, p. 741). Nesse sentido, parece-nos que isso seja uma inflexão característica de uma racionalidade neoliberal, que percebe a educação apenas como uma estratégia para desenvolver competências para o trabalho. Como mostram autores como Brown (2019) e Chamayou (2020), entre outros, o neoliberalismo funciona corroendo a democracia. Kahne e Sporte (2008, p. 742) questionam “a escola pode promover resultados cívicos?”. Eles destacam:
A importância daqueles achados a respeito do impacto das oportunidades curriculares nos compromissos cívicos dos estudantes é reforçada por estudos demonstrando que adolescentes que expressam maiores compromissos com o engajamento político e social são mais engajados política e civicamente quando adultos do que adolescentes que expressam menos compromisso em agir. (Kahne; Sporte, 2008, p. 741, tradução nossa).
Apesar de esses autores terem desenvolvido suas pesquisas em relação a escolas do início do século 21, entendemos que essa tipologia possa ser utilizada para analisar as relações entre cidadania e participação social no material empírico selecionado.
Até aqui, apresentamos algumas discussões sobre o conceito de cidadania, iniciando pela relação entre cidadania e direitos, a partir do trabalho clássico de Marshall (2021), e prosseguindo com as discussões de Westheimer e Kahne (2004), que enfocam a relação entre cidadania e participação social. A seguir, apresentaremos a Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos (RBEP), que constitui a empiria da pesquisa.
A Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos (RBEP)
A RBEP, uma publicação do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), é o mais antigo periódico da área de Educação ainda em circulação no País. Isso a torna uma importante fonte de pesquisa, embora seja necessário conhecer um pouco de sua história para compreender os limites desse material.
O Inep foi criado em 1937, no governo de Getúlio Vargas. Segundo Rothen (2005, p. 191), “O Inep é criado e se desenvolve num período em que se busca a racionalização do Estado mediante a ação dos técnicos”. De acordo com o autor, a história da RBEP, bem como a história do próprio Inep, é marcada por descontinuidades e crises, com forte relação com as condições políticas de cada época. Cabe destacar que, até o ano de 1983, os artigos publicados eram encomendados pela revista, refletindo as crenças de seus dirigentes. Após essa data, os artigos passaram a ser submetidos pelos autores em regime de fluxo contínuo, sendo avaliados em um sistema duplo cego para sua publicação.
O Inep teve como primeiro presidente Lourenço Filho, um dos signatários do Manifesto dos Pioneiros da Educação e seguidor das ideias de John Dewey, conforme já comentado no início do artigo. A RBEP foi criada em sua gestão. Em 1946, após a renúncia de Vargas, Lourenço Filho foi substituído por Murilo Braga de Carvalho, técnico concursado do Inep, até seu falecimento, em 1952.
Britto (1984), no editorial do v. 65, nº 150, comemorativo dos 40 anos da revista, fez uma análise de sua trajetória até aquele momento, dividindo-a em três períodos. Entre 1944 e 1951, sob a direção de Lourenço Filho e Murilo Braga, foram priorizados artigos tratando de temas eminentemente pedagógicos, em especial gestão e psicologia escolar. Contudo, os temas relacionados à cidadania e à democracia também se faziam bastante presentes, como era de se esperar de uma editoria com uma perspectiva deweyana, como mostram os excertos seguintes.
Por isso que cada aluno será mais tarde um cidadão, e que, na vida democrática, é de suma importância a inteligência, os sentimentos e a consciência social de cada indivíduo, devemos estudar a vida política, para que se considerem as suas deficiências e seus males; e, assim, devemos preparar nossos alunos para que, mais tarde, possam consagrar-se ao bem estar do país e de seus semelhantes. (Washburne, 1944, p. 67).
Se na inteligência se não radicarem as convicções sem as quais a democracia é uma incoerência, se na vontade se não revigorarem as disciplinas, sem as quais a liberdade é uma utopia, não teremos educado os cidadãos para o regime político dos povos adultos; teremos apenas criado mais um mito que, à semelhança de tantos outros, depois de seduzir por algum tempo as massas as levará ao desengano, à decepção e à desesperança. (França, 1947, p. 137).
Em 1951, Anísio Teixeira assume a direção do Inep e da revista. Ainda de acordo com Britto (1984), ele conferiu uma ênfase maior ao tema da democracia no período de sua gestão, que se estende até 1964. Isso pode ser percebido tanto em seus diversos artigos que a RBEP publicou no período, quanto nos artigos dos convidados.
A democracia, assim, não é algo especial que se acrescenta à vida, mas um modo próprio de viver que a escola lhe vai ensinar, fazendo-o um socius mais que um puro indivíduo, em sua experiência de vida, de sorte a que estudar, aprender, trabalhar, divertir-se, conviver, sejam aspectos diversos de participação, graças aos quais o indivíduo vai conquistar aquela autonomia e liberdade progressivas, que farão dele o cidadão útil e inteligente de uma sociedade realmente democrática. (Teixeira,1956b, p. 11, grifos do autor).
Não podemos fugir ao imperativo de que a educação do povo, se bem é, como se disse, obra de salvação pública, é, por igual, a primeira providência dos governos para enriquecer as nações e criar cidadãos para a Democracia. (Maia, 1958, p. 141).
Em 1964, Teixeira foi substituído, por ocasião do golpe militar, por Carlos Pasquale, que, contrariando as expectativas, deu continuidade à maior parte das iniciativas anteriores (Castro, [1999]). Em seu discurso de posse, publicado no nº 94, segue, como seu antecessor, a traçar relações entre educação e democracia.
Do êxito que a obra da educação alcançar, através da espontânea diversidade de formas e variedade de processos, dependerá a consecução dos mais altos objetivos que se impõem à Democracia: a segurança da liberdade, o bom desempenho de todo cidadão na comunidade a que pertence, a garantia das franquias individuais, e o resgate das condições sociais injustas. (Pasquale, 1964, p. 132).
Ainda segundo Britto (1984), partir de 1964, já sob o regime militar, os dirigentes da RBEP já não terão tanta influência sobre os rumos da publicação, que passará a destacar questões técnicas, em especial temas da administração escolar. Saviani (1984), nesse mesmo número comemorativo dos 40 anos da RBEP, aponta que até 1964 o periódico era claramente orientado pelos princípios da Escola Nova, de modo coerente com seus dirigentes. Desde então, gradativamente, aparecem artigos de enfoque tecnicista, corrente que se tornará dominante a partir de 1969. Esse autor nota, ainda, que, até 1984, independentemente da direção e da linha editorial, predominaram artigos de enfoque prático, sendo raras discussões teóricas mais consistentes. Entretanto, ele também indica um avanço nesse sentido: em 1960, na edição nº 79, a revista passou a contar com a seção intitulada “Notas para a História da Educação”, que trazia artigos e resgatava documentos relacionados a esse tema.
Portanto, ao trilhar as páginas da RBEP, no período entre 1944 e 1964, encontramos um periódico de forte orientação escolanovista, o que se reflete nas concepções de cidadania aí presentes. A seguir, apresentamos as linhas gerais da metodologia adotada para a pesquisa.
Nas trilhas da cidadania
Neste artigo, cujo foco é compreender como foi significada a noção de cidadania na RBEP no período de 1944 a 1964, o material empírico foi composto pelos 96 primeiros números do periódico. Desses, 90 estão disponíveis no site da revista e os outros seis foram digitalizados a partir de exemplares disponíveis na biblioteca da Faculdade de Educação da UFRGS.
Foram realizadas buscas pelos termos cidadão e cidadania, que resultaram em um banco de excertos para subsidiar o desenvolvimento das análises. Alguns foram descartados, pois não tinham relação com a pesquisa (por exemplo: O ilustre cidadão...). Após a análise preliminar, obtivemos um conjunto de 279 excertos para compor o corpus da pesquisa.
O próximo passo, seguindo orientações metodológicas sugeridas por Saraiva (2009), foi a construção de focos de análise. Os focos de análise são produzidos com base na própria empiria, constituindo-se já em um movimento analítico, e são fruto da criação dos pesquisadores. Nesse caso, resultaram três focos: a educação produzindo cidadania; o cidadão a serviço da nação; e o cidadão como sujeito de direitos. Os excertos que compõem o corpus foram classificados segundo esses focos, os quais serão desenvolvidos nas seções seguintes. Para contribuir com as análises, foram desenvolvidas nuvens de palavras para cada foco. Isso permitiu visualizar termos que recebem destaque, o que permite a discussão posterior.
A educação produzindo cidadania
O primeiro foco de análise está relacionado com a ideia de que a cidadania é produzida por meio da educação. Para ser cidadão, seria necessário, antes, passar pelos bancos escolares. Cabe destacar que essa concepção está fortemente alinhada com os princípios educacionais de John Dewey, que inspiraram dirigentes do período.
Esse foco de análise foi desenvolvido com base em 152 excertos, distribuídos entre 1944 e 1964. A Figura 1 apresenta uma nuvem de palavras gerada a partir dos excertos que compuseram a base de análise desta seção (desenvolvida pelos autores, utilizando a ferramenta Wordclouds (2023). Utilizamos esse recurso para observar os termos mais recorrentes neste foco de análise, contextualizando as recorrências posteriormente com elementos do corpus.
Chama a atenção, nessa imagem, que, após as palavras relacionadas com a própria garimpagem dos dados - educação, cidadão(s), cidadania, escola e ensino -, aparecem os termos democracia e democrática. Isso está alinhado à constatação de que a RBEP, nesse período, traz inúmeras referências da relação entre democracia e educação, como já mostramos anteriormente.
Também se destacam os termos sociedade e vida, o que aponta para a ideia de que cidadania se relaciona com viver em sociedade. O excerto a seguir mostra essa interrelação, a qual se repete em outros artigos.
A sociedade é, por sua própria natureza, e antes de mais nada, um organismo, ou pelo menos, uma organização política. Esse simples enunciado demonstra que a escola não pode dispensar a contribuição da Política, que é a mais antiga das ciências sociais e a mais importante de todas na formação do cidadão. [...] Se a democracia brasileira nos parece freqüentemente tão defeituosa e imperfeita, é porque o nosso homem ainda se encontra mal preparado para a vida democrática. (Martins, 1957, p. 133).
O termo primária tem destaque na imagem, mas secundária também está presente, mostrando a tensão que aparece nas discussões da revista, que ora indicam a escola primária como suficiente para a produção da cidadania, ora declaram sua insuficiência e a necessidade de escolarização secundária. Em seguida, mostramos como isso se faz presente no material empírico. Os dois primeiros excertos destacam que a escola primária é a base para formação da cidadania. Já os dois últimos afirmam que a formação da cidadania exige avançar para a escola secundária.
Na educação primária, põe o regime a base de sua existência. É como se dissesse: sem educação primária generalizada, universal, gratuita e obrigatória, não há cidadania. Sem cidadania não pode haver vida nacional no sistema representativo. Logo, sem educação primária, não há a nação. (Lourenço Filho, 1952, p. 56-57).
Com efeito, a educação escolar de nível superior e médio foi, em todo o passado, a educação da classe dominante ou a educação de especialistas, com privilégios semelhantes aos das classes dominantes e, como tal, a educação de indivíduos para formarem a chamada elite social ou de espírito. Não será, pois, aí que iremos encontrar os métodos da formação democrática. Somente a escola primária, de constituição muito mais recente, buscou a formação do cidadão comum e orientou-se para a educação democrática. (Teixeira,1956b, p. 8).
Vencida a etapa da escola primária obrigatória, em que todos os brasileiros devem se curar da cegueira da ignorância, as escolas do 2.° grau constituem o instrumento mais próprio para o início da formação dos cidadãos. (Informação do País, 1951, p. 156).
Sem recusar, de todo, os processos da escola secundária tradicional, mas também sem a eles submeter-se intransigentemente, a nova escola secundária há de ser variada e flexível. Seu objetivo primeiro passa a ser esse desenvolvimento harmonioso e pleno da adolescência, em função das aptidões e preferências de cada educando, com vistas à formação do cidadão prestante de uma sociedade democrática. (Góis Sobrinho, 1958, p. 38).
De acordo com Schwartzman, Bomeny e Costa (2000, p. 216), Capanema já havia expressado sua opinião em relação ao papel das etapas educacionais para a formação da cidadania:
Os diversos níveis de ensino [...] deveriam cumprir funções distintas. O importante na escola primária seria a transmissão do "sentimento patriótico", no estilo "Por que me ufano do meu país, bandeira, hino etc.", conforme anotação de próprio punho de Capanema. A escola secundária iria mais longe: ela deveria formar uma verdadeira "consciência patriótica" própria de "homens portadores das concepções e atitudes espirituais que é preciso infundir nas massas, que é preciso tornar habituais entre o povo”.
Portanto, se essa relação entre os diferentes níveis de ensino e a cidadania será problematizada de forma distinta pelos autores que escrevem na revista, para Capanema cada nível tem um papel diferente na produção de cidadania.
Outras palavras chamam a atenção na nuvem da Figura 1, como conhecimento, cultura e problemas, mostrando uma possível associação entre cidadania, estudo e solução de problemas. Os excertos abaixo tensionam essa relação. O primeiro toma o conhecimento como condição fundamental para a cidadania, porém o segundo afirma que isso não é suficiente.
A tudo o conhecimento açode, informando, reformando, planejando. Dir-se-ia que a civilização contemporânea não admite, ou, pelo menos, não compreende, a sobrevivência do cidadão, distanciado do mínimo de conhecimentos que a cultura se encontra em condições de propiciar. Essa distância, quando há, é a causa do desajustamento, do mal-estar, das inquietações. (Kelly, 1954, p. 37).
Ninguém pretende diminuir a importância de se possuírem conhecimentos em profundidade. Mas mesmo uma base sólida em matemática e em ciências físicas e biológicas, associada à facilidade de ler em várias línguas (e poderíamos acrescentar - inclusive o latim), não é suficiente para que o indivíduo que a possua possa ser considerado cidadão digno de uma nação de homens livres. (Mariani, 1957, p. 175).
Portanto, entre 1944 e 1964, a RBEP, com a orientação editorial escolanovista, que na época era responsável pela seleção do que seria publicado, evidenciavam-se recorrentes associações da educação com a produção da cidadania e com a preparação para a vida em sociedades democráticas. Ainda que, eventualmente, seja possível perceber divergências entre os autores sobre como desenvolver a cidadania, essa crença foi replicada inúmeras vezes nas páginas das edições do período. A seguir, passamos a desenvolver análises em relação ao segundo foco.
O cidadão a serviço da nação
Neste segundo foco de análise, iremos discutir a ideia de que o cidadão tem deveres para com a pátria e para com a comunidade. Aqui, aparece a ideia de que os cidadãos são responsáveis pelo bom funcionamento e desenvolvimento da nação e que a escola deve fomentar nos alunos esse sentimento de dever para com a sociedade. A Figura 2 apresenta uma nuvem de palavras gerada a partir dos 88 excertos que compuseram a base de análise desta seção (desenvolvida pelos autores).
Observando a imagem, destacam-se os termos que disparam a pesquisa: cidadão(s), educação, cidadania. Os termos democracia e democrático já não são mais tão destacados como eram no foco anterior. Por outro lado, social e vida estão mais proeminentes. Também aparecem os termos formação, sociedade, comunidade, profissional, participação, contribuir, preparar e viver. Assim, a nuvem sinaliza que a escola deve proporcionar uma formação que prepare o cidadão para participar de uma vida social e comunitária e que seja um profissional.
Chama a atenção que, neste foco relacionado com os deveres, aparecem os termos livre e liberdade. O excerto a seguir mostra essa articulação entre os deveres e a liberdade: a preservação desta última seria possível apenas se o cidadão agir de modo responsável, acatando as restrições sociais.
A liberdade política, portanto, para perdurar através das gerações, não pode significar cada qual por si, nem a defesa de cada um em seus estreitos interesses pessoais. Nem pode significar lutar cada classe, grupo, associação ou partido por si próprio. A manutenção de um regime de liberdade individual, é, assim, vasto empreendimento social. Não pode ser o regime sob o qual o cidadão seja liberado de responsabilidades e de todas as restrições não impostas pela lei ou pela necessidade. (Counts, 1957, p. 24).
A análise do corpus mostra que é recorrente no material empírico a ideia de que o cidadão que contribui para o crescimento do país é aquele que se conduz adequadamente em sua vida individual, sendo trabalhador e com padrões morais elevados, identificando-se com o que Westheimer e Kahne (2004) chamaram de cidadão individualmente responsável, o qual contribui para a harmonia e não para a discórdia.
O objetivo do ensino secundário técnico é dar uma educação harmoniosa e liberal, unindo os ramos culturais e utilitários e preparando os alunos para se tornarem cidadãos capazes, animados de um ardente desejo de trabalhar [...]. (Informação do Estrangeiro, 1948, p. 201).
Em relação ao ensino primário, oficina de integração social, modeladora dos cidadãos, esperamos que se consagre um sistema educativo destinado a preparar indivíduos para manter uma sociedade livre, viver nela e desenvolvê-la e destinado a incutir nos adolescentes a "lealdade dos conhecimentos e a disciplina de homens livres". (Carvalho Filho, 1953, p. 134).
Também identificamos, porém com menor frequência, chamados para uma postura mais ativa, o que estaria relacionado com o que Westheimer e Kahne (2004) denominaram de cidadão participativo. A participação deve se dar no sentido de resolver problemas nacionais sem lutas, nem mesmo críticas, como aponta o último excerto.
A educação é a forma ativa de nossa cooperação. Já o fato de viver o homem agrupado - em cidades, digamos - e participando da vida dessas agrupações - cidades ou nações - coloca-o na obrigação de constituir-se em membro ativo, na obrigação de ser cidadão, de atuar em momentos e situações distintas daquelas em que se sente e se comporta só como ente privado. (Reissig, 1946, p. 27).
As democracias precisam, como nenhuma outra forma de governo, de um alto nível educacional da totalidade do povo, pois cada cidadão deve estar preparado para assumir responsabilidades e participar de forma efetiva de sua direção. (Reissig, 1952, p. 84-85).
Quem possui este "espírito cívico" não fica esperando que o governo dê remédio para todos os males que vê e, como é costume, aponta em críticas azedas nas conversas infecundas de agrupamentos ociosos, ou em artiguelhos facciosos. Procura saná-los, com sua ação pessoal se for o caso, ou conclamando outras pessoas para ajudar, se for necessário apoio coletivo. Desta disposição pessoal para agir altruisticamente, que deve ser o denominador comum dos cidadãos de uma sociedade democrática, é que nascem as instituições sociais úteis e beneméritas. (Rovai, 1958, p. 90, grifos do autor).
A justiça é considerada importante, mas deve ser obtida sem críticas à estrutura social. Ela seria alcançada pela solidariedade e pela coesão nacional. Em nenhum momento, identificamos questões que orientariam uma cidadania voltada para a justiça social, que direcionariam para lutas por mudanças mais profundas.
À medida que a nação brasileira se emancipa, integrando todos os seus cidadãos na consciência nacional, mais se tornará necessário que a educação não só acompanhe esse movimento de amalgamação e unidade, como se torne o cimento consolidador e o óleo redutor de atritos e de injustiças do grande processo de desenvolvimento nacional. (Teixeira, 1958, p. 101).
Pelo nacionalismo, os indivíduos da nação se fazem verdadeiramente irmãos e tudo que atinja a cada um passa a atingir a todos. Por isto mesmo, antes de mais nada, o nacionalismo aguça em cada um o sentimento de justiça para com os demais habitantes do país, impondo a participação de todos na vida nacional e fazendo crescer a coesão e a consciência de igualdade entre eles. Passam todos, efetivamente, a se sentirem cidadãos da mesma pátria, com direito à mútua solidariedade e a certa igualdade fundamental. (Teixeira, 1960, p. 205).
Cabe notar que Dewey pensava a participação na vida democrática como adaptação. “A escola deve ser a casa da confraternização de todas essas influências, coordenando-as, harmonizando-as, consolidando-as para a formação de inteligências claras, tolerantes e compreensivas” (Dewey, 1967 apudGaliani; Machado, 2009, p. 909). Nesse sentido, um cidadão voltado para a justiça social, que questiona a estrutura desigual da sociedade, não estava no horizonte da perspectiva teórica desse filósofo, que era a adotada pela revista no período em análise. Anísio Teixeira, um dos mais ardorosos defensores das teses de Dewey, escreve, em um artigo de 1961, em que discute as relações entre desenvolvimento e educação, que “nos radicalizamos numa luta entre os extremos da direita ou da esquerda” (Teixeira, 1961, p. 85). O autor então mostra sua preocupação com esses confrontos:
A verdade é que estamos cada vez mais longe da formação do cidadão indispensável ao difícil funcionamento da democracia liberal. E por isto mesmo é que a análise da situação educacional é suscetível de tornar patente grande parte dessas contradições que, a meu ver, podem quebrar a coesão e a contextura de nossa sociedade. (Teixeira, 1961, p. 86).
Assim, no período analisado, os artigos que estão na RBEP apontam para a necessidade de produzir cidadãos responsáveis, integrados à vida social e comunitária e disponíveis para participar da solução dos problemas nacionais, sem que haja lutas. O cidadão deve assumir suas responsabilidades cívicas sem comprometer a coesão nacional. Porém, a cidadania também comporta a dimensão dos direitos nesse período, ainda que de modo menos enfático, como mostramos na próxima seção.
O cidadão como sujeito de direitos
Este foi o foco com menor volume de material empírico, tendo sido composto por apenas 43 excertos. Assim como nos outros focos, desenvolvemos uma nuvem de palavras, apresentada na Figura 3.
Observamos, agora, que os termos de maior destaque continuam sendo os disparadores da pesquisa. De todos os focos, é neste que democracia tem o maior destaque, sinalizando uma associação entre direitos e Estado democrático. Chama a atenção que direito tem uma maior relevância nessa imagem do que nas Figuras 1 e 2. Aparecem, ainda, com realce os termos igualdade, voto, social, oportunidades, sinalizando o modo como são compreendidos os direitos. Os excertos a seguir mostram a associação de cidadania e igualdade de oportunidades.
Mas esta função discriminativa só pode ser realizada por uma escola que não seja cúmplice das desigualdades convencionais, uma escola que diga ao mais humilde dos cidadãos que ali está o lar intelectual dos seus filhos. (Augusto, 1944, p. 346).
No sentido amplo do regime, essa programaticidade tem como ponto de fé a capacidade de aperfeiçoamento do homem pela cultura. Uma democracia que não tenha em conta o processo cultural, e que não ofereça a seus cidadãos igualdade de oportunidades para tal aperfeiçoamento é uma mentira e uma fraude: mentira social, e fraude política. (Lourenço Filho, 1952, p. 60, grifos do autor).
O sujeito que surge na revista tem direito à educação, sendo essa, inclusive, a condição para a conquista de todos os outros.
Para ser justa, a educação deve ser extensiva a todos os cidadãos. Sem privilégio algum, a não ser dos dons naturais de receptividade pessoal. (Freitas, 1945, p. 348).
Por isto mesmo, sublinha, com intencional relevo o caráter político da educação, que constitui o direito dos direitos. Todos os outros, com que acena a democracia ao cidadão, seriam vãos, se o homem continuasse ignorante e desaparelhado para gozá-los, ou conquistá-los. (Projeto..., 1953, p. 94).
O direito político de decisão por meio do voto e de participação democrática também é enfatizado em vários artigos. A educação aparece como elemento importante para a participação no processo democrático, que é concebido como uma forma de transformar as realidades que causem descontentamento sem rupturas.
Em resumo, a democracia, assim compreendida, possui a vantagem acima de todas as demais vantagens, que é esta de dar aos cidadãos descontentes a liberdade e a possibilidade de manifestar a sua hostilidade ao governo, por meio de outra arma que não são bombas, nem revoluções, nem subversão da ordem. (Gomes, 1947, p. 289).
As democracias, porém, sendo regimes de igualdade social e povos unificados, isto é, com igualdade de direitos individuais e sistema de governo de sufrágio universal, não podem prescindir de uma sólida educação comum, a ser dada na escola primária [...]. (Teixeira, 1956a, p. 25).
A participação política exige um cidadão com capacidade crítica, a qual será desenvolvida por meio da educação.
Como já se fez notar, este método é de valor fundamental para toda sociedade democrática, na qual todos têm o dever e o direito de tomar parte na discussão dos assuntos públicos. A esperança da democracia está na capacidade dos cidadãos para estudar as questões de interesse geral, para chegar a conclusões dignas de confiança, e para separar o joio do trigo em opiniões individuais ou sociais, tidas como certas. (O ensino..., 1945, p. 449).
Ocasionalmente, aparece o direito social a uma vida digna, sem miséria e sem fome.
Uma justa organização política da comunidade não pode descansar nos fundamentos de uma economia injusta. Nem poderá exercer livremente os direitos da cidadania, o trabalhador dependente na sua subsistência das arbitrariedades de outro cidadão. Importa libertar todo o homem da insegurança, do medo à miséria e à fome, da incerteza angustiosa do amanhã no seu lar. (França, 1947, p. 135).
Os direitos civis são os menos mencionados. O excerto abaixo foi uma das poucas afirmações nesse sentido, ao indicar o direito à liberdade de expressão.
Quem diz democracia, diz direito do voto, ou voto livre; mas quem diz voto livre deve dizer também possibilidade de ajuizar, de discernir, de criticar construtivamente; para tanto, é preciso saber utilizar os instrumentos de aquisição desses conhecimentos fundamentais. Do contrário ficará o cidadão na dependência de informações de terceiros, já passadas pelo subjetivismo de outros; receberá tais informações, na maior parte das vezes, deformadas, adulteradas, falsificadas, de acordo com os interesses partidários dos que lhas fornecem. (Cardoso, 1956, p. 84).
Assim, o cidadão que a RBEP apresenta será um sujeito com direito à educação primária, a viver em uma sociedade menos desigual, a ter poder de decisão política e direitos individuais. Ainda segundo a revista, o exercício do direito ao voto é a estratégia para canalizar o descontentamento popular sem rupturas e conflitos.
Comentários finais
Conforme mostramos ao longo do artigo, a noção de cidadania presente na RBEP, entre 1944 e 1964, é de que essa deve ser desenvolvida pela escola e é condição para o desenvolvimento da nação. Dessa forma, os cidadãos devem viver de modo harmonioso, sem lutas, mas colaborando para a promoção da igualdade. Essa igualdade de condições é um direito, bem como a educação. Também são direitos a participação política e os direitos individuais.
As concepções de cidadania que encontramos nesse período estão afinadas com os princípios escolanovistas de John Dewey, o que já era esperado, tendo em vista que, em grande parte desse tempo, a RBEP foi dirigida por discípulos desse filósofo e que os artigos eram escolhidos pela editoria. Assim, a escola aparece como uma estratégia potente para preparar cidadãos para viverem em uma sociedade democrática.
Publicações futuras mostrarão as transformações que a noção de cidadania irá sofrer, primeiramente durante o período da ditadura civil-militar e, posteriormente, no período da redemocratização.