Introdução
Este trabalho trata de um relato de experiência sobre a prática pedagógica no início da carreira docente, com base em uma análise de prática (Carvalho; Souza Neto, 2019; Wittorski, 2014), considerando as quatro ações da reflexão crítica (Ortiz, 2005; Smyth, 1992) como um dispositivo de formação (Gatti et al., 2019; Penteado; Souza Neto, 2021).
Para Tardif (2014), os dispositivos de formação devem se voltar às práticas profissionais, propiciando formação, ação e pesquisa, enquanto Marcel et al. (2002) esclarecem que os dispositivos podem contribuir para a investigação e a compreensão da prática. De tal modo, os dispositivos podem colaborar com três objetivos principais ligados à compreensão da análise de prática:
um objetivo formativo (centrado no desenvolvimento de competências e construção identitária), um objetivo de transformação e evolução das práticas e um objetivo de produção do conhecimento sobre as práticas, o objetivo heurístico tradicional de pesquisa1 (Marcel et al., 2002, p. 136, tradução nossa).
Nessa perspectiva, entendemos que esses dispositivos podem permitir a revisão de competências profissionais, mas também de constituição de uma identidade profissional, assim como da própria evolução das práticas que são perpassadas na aquisição paulatina de uma cultura profissional formada pelo discernimento, pela aprendizagem da profissão (aquisição de um habitus) e pela ética profissional (Tardif, 2014), devendo incorporar um “ponto de vista pedagógico” (Azanha, 2006) no modo como analisamos as rotinas, os esquemas e os processos de ensino.
Com essa compreensão, escolheu-se um plano de aula construído e desenvolvido por uma professora alfabetizadora iniciante, pois se tem como hipótese que nele há a proposição de reflexões sobre os saberes mobilizados e produzidos nesse percurso formativo, embasando-se na intrínseca relação entre pressupostos teóricos e práticos.
Dessa forma, a experiência, aquilo que nos toca, perpassa e marca (Larrosa-Bondía, 2002) o saber experiencial (Tardif, 2014), desde o momento em que se entra no magistério oficialmente, formado por rotinas, esquemas e práticas, e a experiência, no âmbito do triângulo do conhecimento, precisa ser desvelada, pois é ela que dá origem ao conhecimento profissional docente (Nóvoa, 2019a). Porém, para isso, Gauthier et al. (2013) dirão que esse saber experiencial precisará sair de uma jurisprudência pessoal vinculado apenas àquilo que o professor pensa individualmente e ser fundamentado cientificamente no saber da ação pedagógica, tornando-se público. Enfim, o relato de experiência (Daltro; Faria, 2019, p. 227) precisa ser transformado em uma narrativa na fala do sujeito/pesquisador para que dele se extraiam as “novas significações inscritas na realidade de seu corpo, deslocando-o para uma posição de autor e simultaneamente sujeito”. Dessa construção documental ou textual que está sendo realizada, Daltro e Faria (2019, p. 229) esperam “novos conceitos teóricos com capacidade de provocar a emergência de problematizações de conhecimento científico, organizados pela experiência/versão do autor”.
Nessa direção, o início da docência constitui-se como um período permeado por desafios e perspectivas no campo profissional. Uma fase de agruras e descobertas marcada pela transição da discência para a docência, da inserção no ambiente de trabalho, do “choque com a realidade”, “choque de transição” ou, ainda, “choque cultural” (Tardif; Raymond, 2000), do comprometimento com a carreira, da compreensão desse papel social, do engajamento com a profissionalização e do devir docente em toda a sua complexidade.
Esse processo de socialização profissional suscita muitas sensações, reflexões, reestruturações, redescobertas (conceituais e pessoais) e resistências por parte dos profissionais que em suas subjetividades e individualidades se conectam a um coletivo, a uma cultura profissional, a um projeto de escola e realidade que resulte num conforto inicial de “sobrevivência” (Tardif; Raymond, 2000).
O ingresso na carreira docente assume múltiplas nuances e características próprias. Huberman (1995) aborda o ciclo vital dos professores, considerando que a primeira fase desse ciclo, que consiste na entrada na carreira, pode ser vinculada aos dois ou três primeiros anos. Para o autor, essa fase é composta por aspectos de sobrevivência e descoberta. Esses aspectos perpassam questões de necessidade de controle das situações, momentos de inseguranças, preocupações em relação ao trabalho a ser desenvolvido ou em desenvolvimento, conformismo a regras e normas, entre outros. Ao lado das descobertas está a possibilidade de aprender com os alunos e as relações estabelecidas com eles, as quais são permeadas por afeto e acolhimento.
Nóvoa (2019a) define esse período como “entre-dois”, no qual o professor se situa entre o fim da formação e o início da profissão, compreendido ainda como o período de indução profissional. Nesse contexto, destaca a relevância dos primeiros anos de exercício da docência, período de três a quatro anos, apreendendo-os como um momento decisivo na vida profissional do professor, uma vez que “marcam” as relações estabelecidas, tanto com os alunos como com os demais colegas e com a própria profissão. Diante da especificidade e importância conferida a essa fase, Nóvoa (2019a, p. 201) preconiza que a indução profissional deveria ancorar-se nos “[...] três vértices do triângulo [...]”, composto por universidades, políticas educacionais e professores da educação básica.
Desse modo, há um destaque: a necessidade da criação de ambientes que favoreçam o processo de socialização profissional, aliado à constatação da relevância que a dimensão do coletivo docente adquire, ao considerar que tanto as universidades como as escolas são espaços de formação e a cooperação entre ambas pode trazer contribuições para a construção do que o autor denomina “terceiro lugar institucional”. Esse terceiro lugar é definido como um “[...] lugar de coordenação interna das universidades e de articulação externa com as redes escolares, reforçando assim os processos de formação docente [...]” (Nóvoa, 2019a, p. 207).
Diante da complexidade inerente ao trabalho do professor, o campo de discussão dos saberes docentes é teorizado por diversos autores (Gauthier et al., 2013; Shulman, 1987; Tardif, 2014), com fundamentações teórico-conceituais singulares, que contribuem para o avanço nas discussões sobre a temática.
Gauthier et al. (2013) discorrem acerca do saber disciplinar, que diz respeito ao conhecimento sobre o conteúdo a ser ensinado; do saber curricular, que se articula à forma de organização dos saberes nos programas das escolas; do saber das ciências da educação, que se refere aos conhecimentos profissionais; do saber da tradição pedagógica, que consiste no saber advindo da cultura escolar coletiva; do saber experiencial, proveniente das próprias experiências dos professores em seu contexto de trabalho; e do saber da ação pedagógica, que se traduz no saber experiencial que se torna público e, a partir disso, passa a ser utilizado em pesquisas acadêmicas. Tardif (2014) constata que há uma pluralidade inerente a esses saberes, entre os quais se situam os saberes advindos da formação profissional (saberes pedagógicos), assim como os disciplinares, curriculares e experienciais. Shulman (1987, 2014), ainda, pressupõe que o trabalho docente abarca o conhecimento pedagógico do conteúdo, redimensionado por Tardif (2014) e Gauthier et al. (2013) como saber experiencial e, por Nóvoa (2019b), como saber da experiência, dando origem ao “conhecimento profissional docente” - expressão apresentada por Shulman (1987).
Soma-se a isso o dimensionado por Tardif (2014) ao discorrer acerca dos saberes profissionais e conhecimentos universitários, compreendendo que há uma polarização entre eles, a qual pode ser articulada à dicotomia entre a prática e a teoria, respectivamente. Os saberes profissionais (saberes pedagógicos) são aqueles mobilizados em práticas concretas de ensino, enquanto os conhecimentos universitários estão relacionados aos advindos da universidade, por meio dos quais há uma valorização da formação universitária de alto nível, ancorada em conhecimentos científicos (Tardif, 2014).
Não obstante, Tardif (2000, 2014) aborda a temática sob o viés sociológico, enquanto Shulman (1987, 2014) parte de uma perspectiva cognitivista. Para tanto, os autores fazem uso de diferentes tipologias, dialogando entre si, na medida em que versam sobre os conhecimentos profissionais docentes e como os professores os mobilizam em múltiplas situações de ensino.
Com base no exposto, este texto apresenta um relato de experiência advindo de reflexões e experiências vivenciadas em uma disciplina do programa de pós-graduação em Educação de uma universidade pública do interior paulista. A proposição do estudo articula-se com o defendido por Nóvoa (2017, p. 1123), ao discorrer acerca da formação de professores enquanto uma formação profissional, enfatizando a importância e a necessidade da criação de “comunidades profissionais docentes”, dado que “a profissão docente está a evoluir, rapidamente, de uma matriz individual para uma matriz colectiva”. Por conseguinte, o trabalho envolvendo grupos de professores, em diferentes âmbitos, e a sua intrínseca dimensão coletiva tornou-se um espaço potencializador para reflexões sobre o fazer docente.
Sendo assim, este relato de experiência se justifica como uma forma de “[..] sair de si mesmo para se tornar pessoal; noutras palavras, é preciso tornar público o nosso ofício privado” (Gauthier et al., 2013, p. 23). Nesse ínterim, compreendemos que a análise de prática pode se constituir como um dispositivo de formação docente, especialmente do professor em início de carreira, pois, na medida em que possibilita uma relação entre a teoria e a prática, partindo de problemas latentes aos contextos escolares, proporciona possibilidades de compartilhamento e reflexões sobre ações docentes (Nóvoa, 2017). Os dispositivos de formação podem, ainda, ser vinculados aos estudos que discorrem sobre a formação do professor, o desenvolvimento profissional docente e a cultura profissional (Cyrino; Souza Neto; Sarti, 2020; Ferreira; Souza Neto, 2021).
Assim, tendo em vista o quadro que foi apresentado, há três questões norteadoras que perpassam as discussões que serão estabelecidas: Como se dá a profissionalização do professor alfabetizador iniciante? Quais saberes o professor alfabetizador iniciante mobiliza e produz? Como a análise de prática auxilia no processo de reflexão e desenvolvimento docente? Buscando respostas para tais questionamentos, este trabalho, baseado nos estudos de Smyth (1992), objetivou realizar uma análise de prática de uma professora alfabetizadora iniciante com base em um plano de aula e em alguns aspectos da implementação dessa aula.
Caminhos da pesquisa
A pesquisa consiste em um relato de experiência de um plano de aula, baseado em pressupostos autoetnográficos, visando realizar uma análise de prática de uma professora alfabetizadora em início de carreira, para identificar quais saberes são mobilizados em suas ações e refletir em que medida esses saberes podem contribuir para o processo de formação e desenvolvimento docente.
Segundo Adams, Jones e Ellis (2015, p. 12, grifos dos autores), o estudo autoetnográfico faz uso da experiência pessoal do pesquisador, visando pormenorizar práticas, bem como experiências pessoais, envolvendo com isso o “[...] uso de autorreflexão crítica e profunda - tipicamente conhecida como ‘reflexividade’ - para nomear e interrogar as interseções entre o self e a sociedade, o específico e o geral, o pessoal e o político”.
Diante das características desse tipo de estudo, a título de compreensão da escrita do texto, é de pertinência destacar que, no decorrer da apresentação das análises, haverá momentos em que as reflexões serão desenvolvidas na primeira pessoa do singular, devido ao caráter das situações compartilhadas e ao fato de estas serem essencialmente de cunho pessoal ao exercício da profissão.
É oportuno salientar também que o contexto em que esse relato de experiência se insere é referente a uma rede pública de ensino de uma cidade do interior do estado de São Paulo, em uma escola de ensino fundamental, que atende do 1º ao 5º ano. O plano de aula condiz com o trabalho desenvolvido no início de 2020, com uma turma de 1º ano do ensino fundamental composta por 19 alunos, com idades entre 5 e 6 anos.
Com essa premissa, após a leitura dos textos de Ortiz (2005) e de Carvalho e Souza Neto (2019), haverá a exposição do plano de aula selecionado, com base nas quatro ações descritas por Smyth (1992) que podem auxiliar na “reflexão crítica” sobre a prática: descrever (consiste na descrição da situação escolhida pelo sujeito, que deve ser explicitada sem julgamentos); informar (é o momento de encontrar um significado nas ações por meio de uma análise dos dados apresentados, buscando identificar teorias que estão subjacentes às práticas e possam explicar determinadas escolhas); confrontar (constitui-se na compreensão das causas das ações realizadas, visando confrontar as conexões estabelecidas); e reconstruir (consiste no momento de avaliação e síntese, por meio do qual o objetivo é refletir sobre as possibilidades de repensar a prática e outras maneiras do fazer pedagógico).
Complementa esse processo a análise de conteúdo, de Bardin (2016), para a interpretação dos dados de acordo com a identificação de eixos temáticos. A análise de conteúdo é compreendida como um conjunto de técnicas voltadas para a análise das comunicações, “[...] visando obter por procedimentos sistemáticos e objetivos de descrição de conteúdo das mensagens indicadores [...] que permitam a inferência de conhecimentos relativos às condições de produção/recepção [...] dessas mensagens” (Bardin, 2016, p. 48).
Assim, para o desenvolvimento deste estudo, focalizou-se a organização estabelecida por Bardin (2016) no concernente às três fases definidas como: pré-análise, exploração do material e tratamento dos resultados. As etapas da pré-análise envolveram a leitura flutuante; a escolha dos documentos, nesse caso o plano de aula; a formulação de hipóteses; e a referenciação de índices. A exploração do material centrou-se na escolha da unidade de registro e contexto, nas regras de enumeração e na categorização. Nesta investigação, a unidade de registro empregada foi o tema, e as categorias criadas levaram em conta o critério semântico. A terceira e última fase foi dedicada ao tratamento dos resultados para a elaboração de inferências e interpretações.
Por fim, cabe ressaltar que este projeto não foi submetido ao sistema de Comitês de Ética em Pesquisa/Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CEP/Conep) por se enquadrar nos casos de trabalhos que têm dispensa prevista no bojo da Resolução CNS nº 510, de 7 de abril de 2016 - artigo 1º, parágrafo único, conforme estabelecido nos itens 6 e 7 das diretrizes (Brasil. CNS, 2016).
Os saberes/conhecimentos docentes: entre desdobramentos e implicações para a prática pedagógica 2
Antes de iniciar a análise do plano de aula, é importante ressaltar que o perfil formativo da professora alfabetizadora, parceira da pesquisa, é o de uma profissional graduada em Pedagogia em uma universidade conceituada do estado de São Paulo, com o título de mestre em Educação, que, no momento da escrita, cursava o doutorado no Programa de Pós-Graduação em Educação da referida universidade. Em relação ao contexto de trabalho, a professora revela a inserção na carreira em 2018, como docente da educação infantil, e o ingresso nos anos iniciais do ensino fundamental em 2020, quando começou o trabalho de forma efetiva como professora alfabetizadora.
Assim, o plano de aula corresponde a um fragmento do universo da aula ministrada, e a análise de prática busca estabelecer uma interlocução com o plano de aula enquanto um documento construído pela professora em início de carreira e, ao mesmo tempo, revelar aspectos subjacentes à aula em questão. A análise, portanto, parte do olhar da professora pesquisadora, bem como dos professores da universidade, responsáveis pela proposição do trabalho de conclusão da disciplina, embasando-se nas quatro ações de Smyth (1992) - descrever, informar, confrontar e reconstruir -, assim como nos pressupostos da análise de conteúdo, de acordo com Bardin (2016). As etapas de análise foram definidas com a seguinte proposição:
a) Descrever: o que faço? (Plano de aula)
A aula selecionada ocorreu no mês de fevereiro de 2020, mais especificamente, na segunda semana do ano letivo. Essa aula foi escolhida devido a aspectos organizacionais e à importância que atribui ao início do trabalho didático-pedagógico com a turma.
Quanto aos aspectos organizacionais, o plano de aula foi construído tendo como base um dia em que não havia outras aulas diversificadas, desenvolvidas por professores especialistas, como Educação Física, Arte ou Projeto de Leitura. Diante disso, dispúnhamos de um maior tempo hábil para o desenvolvimento das atividades propostas, sem que houvesse interrupções das discussões e dos encaminhamentos estabelecidos. Logo, esse relato condiz com um dia letivo com cinco aulas de 50 minutos, abarcando o período das 13h às 17h30.
A importância atribuída a esse plano de aula está relacionada ao que considero um momento decisivo em minha experiência como docente: os primeiros dias de trabalho em uma escola de ensino fundamental. O planejamento dessa aula foi posterior ao que a rede de ensino define como a semana de adaptação, isto é, o momento em que os estudantes conhecem a nova escola e têm um primeiro contato com os novos professores, a forma de organização das aulas, entre outras questões. Como professora, considero que também passo por esse momento de adaptação, ao conhecer um novo grupo e identificar as principais características das crianças, tanto no concernente a aspectos individuais como coletivos.
As vivências decorrentes dessa aula em particular destacaram-se, na medida em que pressupostos do que Tardif e Raymond (2000) e Huberman (1995) denominam “choque com a realidade” estavam latentes, visto que me deparei pela primeira vez com o fato de ser a professora regente de uma turma em processo de alfabetização, com as demandas condizentes com a ocupação desse espaço. Desse modo, ser professora efetiva de uma turma traz consigo uma inerente responsabilidade, que tem como cerne a aprendizagem dos estudantes, mas que envolve também questões que vão muito além disso e, por conseguinte, geram sentimentos e sensações, passando pela euforia, expectativa e descobertas, assim como envolve inseguranças, preocupações (Huberman, 1995) e até mesmo mal-estar (Lima et al., 2007) diante de tantos acontecimentos novos.
Ademais, o momento em que tenho uma real consciência da função social e política de meu papel pode ser relacionado a um “devir docente”, que se entrelaça a outros fatores que, em maior ou menor medida, incidem no trabalho que desenvolvi em sala de aula, sendo que dois deles se destacaram: a dificuldade de se inserir em um grupo de docentes com muitos anos de magistério e que já possuíam uma dinâmica de trabalho e a instabilidade no contato com as famílias. Embora sejam dois grupos distintos, há um sentimento comum de solidão (Lima et al., 2007), que se generalizou em diferentes situações.
Especificamente em relação à forma de organização de minhas aulas, opto por organizá-las em atividades permanentes e atividades diversificadas. As permanentes acontecem todos os dias, com algumas variações, e as diversificadas englobam propostas coletivas, individuais, no caderno, no livro didático, entre outras, e se alteram conforme os dias da semana. Nessa aula, houve um trabalho direcionado à aquisição do sistema de escrita alfabética, por intermédio da exploração dos nomes próprios, enfatizando o reconhecimento e a nomeação de letras, a ordem alfabética e a oralidade. A seguir, as atividades, relacionadas conforme sua sequência de desenvolvimento, e o plano de aula do dia escolhido serão expostos no Quadro 1.
Diante da descrição dos dados expostos no Quadro 1 e da própria organização de minhas práticas, é possível estabelecer articulações com o constatado por Gauthier et al. (2013) e Tardif (2014) quanto à pluralidade que permeia o saber docente e à complexidade dos conhecimentos mobilizados e produzidos na prática pedagógica. Para Tardif (2014), entre essa diversidade de saberes estão os saberes da formação profissional, saberes disciplinares, saberes curriculares e saberes experienciais.
Os saberes da formação profissional (saberes pedagógicos) consistem no “[...] conjunto de saberes transmitidos pelas instituições de formação de professores” (Tardif, 2014, p. 36). Tal aspecto, nesse contexto, é visível por intermédio da diferenciação que estabeleço entre atividades permanentes e diversificadas, algo que remonta aos estudos desenvolvidos em minhas aulas na graduação. As atividades permanentes concentraram-se nas primeiras horas de aula do dia. Tomando como base o plano de aula, tais propostas envolveram do tópico “a” ao tópico “e”, o que me levou à percepção de que é justamente nessas atividades que dispendíamos um tempo maior de nossa rotina diária.
Os saberes disciplinares estão articulados à incorporação de saberes sociais, que são definidos e selecionados pelas universidades. No contexto deste estudo, tal pressuposto pode estar vinculado à “divisão” das aulas em disciplinas, como Língua Portuguesa, Matemática etc. Embora haja uma matriz curricular que regulamente essa questão, dividir as aulas entre diferentes disciplinas já era algo “natural” em minha prática. Portanto, ao mesmo tempo que esse ponto pode ser relacionado aos saberes disciplinares, ele se relaciona também ao saber experiencial.
Os saberes curriculares referem-se a “[...] discursos, objetivos, conteúdos e métodos a partir dos quais a instituição escolar categoriza e apresenta saberes sociais por ela definidos e selecionados como modelos da cultura erudita e de formação para a cultura erudita” (Tardif, 2014, p. 38). Esses saberes, em maior ou menor medida, “moldam” e/ou “direcionam” o trabalho do professor. Por meio da análise do plano de aula, identifica-se que o trabalho inicial com o nome próprio parte desse pressuposto, uma vez que, além de várias pesquisas da área da alfabetização discorrerem acerca da importância dessa temática e de sua função social, há documentos de caráter normativo que definem esse conteúdo, como o plano de ensino anual construído pelas escolas da rede na qual atuou ou ainda a Base Nacional Comum Curricular.
Por fim, há o saber experiencial que consiste em saberes oriundos do trabalho cotidiano, adquiridos no meio em que se atua. Esse saber pode ser articulado às pequenas estratégias que aprendi e internalizei no decorrer de experiências anteriores em sala de aula, como criar uma atmosfera de suspense para chamar a atenção das crianças ou organizá-las em roda para estabelecer conversas mais produtivas.
A partir deste tópico de análise, é possível também enfatizar outra característica que se sobressaiu e que se refere, portanto, à rotina e/ou rotinização do trabalho. Perante a descrição realizada, é perceptível que a primeira atividade do dia é justamente a escrita da rotina em conjunto com as crianças, sendo que essa rotina foi elaborada previamente, intentando abordar as diferentes disciplinas da matriz curricular, assim como os conteúdos que deveriam ser retratados.
Diante do exposto, considero que há aproximações com as proposições de Tardif (2014) a respeito das rotinas. O autor considera que “as rotinas, que são fenômenos fundamentais no ensino, permitem dar uma boa ideia daquilo que chamamos de consciência prática” (Tardif, 2014, p. 215), pois dizem respeito a um “saber-fazer”, indicando com isso que os professores agem através do tempo, em uma “[...] dimensão sociotemporal do ensino [...]” (Tardif, 2014, p. 126), que auxilia não apenas na forma de organização do trabalho docente, mas, nesse contexto específico, cumpre também a função de um instrumento para as crianças se situarem no tempo.
b) Informar: o que significa isto? Qual o significado das minhas ações?
Tendo como ponto de partida a segunda ação definida por Smyth (1992), consigo identificar que, em termos conceituais, tanto a organização das aulas como a proposição das atividades se baseiam especialmente nos princípios defendidos por Soares (2018), quando considera que a aprendizagem inicial da leitura e escrita possui diversas facetas, entre elas a faceta linguística (apropriação do sistema alfabético-ortográfico), a faceta interativa (habilidades de compreensão e produção de textos) e a faceta sociocultural (diferentes situações e contextos do uso da escrita). Desse modo, as atividades propostas eram planejadas de acordo com objetivos e habilidades específicas, mas havia constantemente uma preocupação quanto à sua contextualização.
No concernente à minha forma de planejamento escrito, percebo uma influência direta das disciplinas de estágio supervisionado que cursei durante minha graduação. Nessas disciplinas, havia um incentivo constante à escrita docente, assim como à elaboração de planos de aulas adequados ao contexto de trabalho, à proposição de registros reflexivos sobre atividades e participação dos alunos.
Assim sendo, nota-se que experiências advindas do início de minha formação influenciam em minha prática diária, mesmo que de modo inconsciente, tal como nas formas de organização de meu trabalho, e isso articula-se à importância de uma boa formação de base. Essa constatação ratifica os achados de Lima et al. (2007, p. 151, grifos dos autores), quando consideram que existe uma forte influência das experiências vivenciadas como estudantes nas práticas dos professores iniciantes e que “[...] a formação inicial não é inócua, como mostram algumas políticas da área de Educação (não sem segundas intenções)”.
Ainda nesse sentido, embasando-me em Tardif (2014, p. 107), constato que essa prática cotidiana favorece o desenvolvimento de “certezas experienciais” e, ao mesmo tempo, proporciona uma avaliação de outros saberes, por meio das condições impostas pela experiência no exercício da docência.
c) Confrontar: Como me tornei assim? Como cheguei a agir dessa forma?
Ao ponderar sobre a terceira ação descrita por Smyth (1992), reconheço inicialmente que os diversos saberes que emergem em minha prática estão relacionados a uma dimensão social; isso quer dizer que há elementos da cultura pessoal e profissional que atuam de forma concomitante e são influenciados por variadas fontes (Tardif, 2014), como questões pessoais, meu percurso escolar e experiências como estudante da educação básica e/ou do ensino superior, recursos e ferramentas que utilizo em sala de aula, e até mesmo características da organização da escola em que atuo e da postura assumida pela equipe gestora.
De modo mais detalhado, considero que a forma como organizo as aulas (atividades permanentes e diversificadas) e dou ênfase a determinados conteúdos apresenta uma nítida influência de minha formação na graduação, especialmente da disciplina “Metodologia do ensino fundamental: alfabetização”, assim como de minha experiência como bolsista de iniciação científica (IC) e participante de projetos de extensão direcionados a esse assunto. Acredito, também, que minha trajetória como pesquisadora no mestrado contribuiu diretamente para pensar em possibilidades de trabalho em sala de aula. Porém, há outras questões que entram em cena, dado que a escolha dos conteúdos a serem trabalhados com cada ano escolar recebe influência de documentos nacionais de caráter normativo, como já mencionado.
À vista disso, identifico que tanto a formação advinda da disciplina específica de alfabetização na graduação (que, embora significativa, não foi suficiente) como as experiências em pesquisas com o mesmo tema (leitura e escrita/alfabetização), por meio da IC, do mestrado e agora do doutorado, podem ser vinculadas à tese de Shulman (1987) sobre conhecimento pedagógico do conteúdo. Esse conceito se relaciona a conhecimentos que estão na base da docência, sendo que como professora constantemente tenho que transformar o conhecimento do conteúdo de maneira que seja compreendido pelos estudantes de forma significativa, utilizando para isso diferentes estratégias didático-metodológicas, visando facilitar o aprendizado das crianças. Com isso, esse conhecimento é construído e modificado na prática e envolve eventos nos quais preciso refletir sobre determinada situação, para adequar minha aula ao contexto em que estou inserida.
Para Shulman (2014), a heterogeneidade dos alunos exige que o professor desenvolva uma compreensão sobre o conteúdo, que é flexível e multifacetada, na medida em que fornece diferentes explicações sobre um mesmo assunto. Assim sendo, “[...] vários aspectos do conhecimento do conteúdo, portanto, são devidamente entendidos como uma característica central da base de conhecimento para o ensino” (Shulman, 2014, p. 208).
Por certo, compreendo que o domínio do conteúdo me confere maior confiança mediante a exploração de determinado tema com a turma. No entanto, tenho consciência de que apenas o conhecimento não é suficiente, visto que, como professora iniciante, muitas vezes há dificuldades em articular esses conteúdos às demandas cotidianas, em especial, nos momentos que exigem improvisações devido a uma infinidade de variáveis, como alunos que apresentam dificuldades na compreensão de uma proposta, por exemplo.
Não obstante, Tardif (2014) pressupõe que conhecer a matéria a ser ensinada é sim uma condição necessária para o ensino, contudo, não é suficiente para o trabalho pedagógico, porque o conteúdo ensinado em sala de aula não se baseia na mera transmissão de conceitos para os alunos, ele exige transformação, adequação e seleção em função das necessidades dos estudantes. Portanto, depreendo que tais conjecturas se coadunam com o afirmado no parágrafo anterior e consistem em uma das dificuldades encontradas por professores iniciantes que estão relacionadas ao estabelecimento de articulações e reflexões entre teoria e prática, diante da diversidade inerente ao contexto educacional, de forma a se encontrar coerência entre o nível do discurso e da ação.
d) Reconstruir: Como posso fazer diferente? Como posso me transformar?
Ao refletir sobre a quarta e última ação descrita por Smyth (1992), identifico que as atividades permanentes demandavam muito tempo de nossa rotina diária, característica que gerava uma sensação de inquietude de minha parte para as atividades mais sistemáticas envolvendo, sobretudo, o registro escrito. Ao ponderar sobre essa questão, estabeleço articulações com o que Larrosa-Bondía (2002) descreve como “destruição generalizada da experiência”, em outras palavras, o tempo que os professores passam na escola está cada vez maior, porém, paradoxalmente, esses mesmos professores têm cada vez menos tempo. Menos tempo para a experiência como algo “[...] que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca” (Larrosa-Bondía, 2002, p. 21). Por conseguinte, os acontecimentos e as vivências na escola são marcados pela pressa, por um ritmo acelerado. Em relação, particularmente, ao plano de aula, foco da análise, havia a pressa de minha parte em fazer tudo o que estava planejado, em dar conta do conteúdo em si, quando na verdade tal característica pode ter influenciado negativamente na participação da turma diante dos momentos que envolviam a oralidade.
Além disso, foi possível identificar que na atividade de construção do cartaz coletivo a turma apresentou uma nítida disparidade, visto que houve alunos que conseguiram fazer o proposto muito rápido e outros que necessitaram de um tempo maior. Nesse contexto, os alunos que terminaram rapidamente ficaram impacientes por ter de esperar os colegas, o que gerou muita conversa e agitação. Penso que deveria ter elaborado a proposta dessa atividade com diferentes níveis de complexidade, exigindo mais dos alunos que já escrevem o nome com facilidade ou acrescentando solicitações extras.
A necessidade de adequar o conteúdo de acordo com diferentes níveis de dificuldade e/ou de complexidade pode ser articulada também à tese de Shulman (1987) já mencionada, sobre o conhecimento pedagógico do conteúdo, uma vez que é necessária uma compreensão do conteúdo e uma adequação não só à turma, mas segundo as características individuais dos estudantes, isto é, apesar de o trabalho envolver essencialmente um grupo, os objetivos que devem ser atingidos são individuais. Logo, isso ratifica o afirmado por Tardif (2014, p. 129), quando considera que, “embora ensinem a grupos, os professores não podem deixar de levar em conta as diferenças individuais, pois são os indivíduos que aprendem, e não os grupos”.
Desse modo, reconheço que o trabalho docente que desenvolvi exigiu a mobilização de diversos saberes, que são, ao mesmo tempo, saberes personalizados e situados. Entre eles, destaca-se o saber experiencial, que se constitui e aperfeiçoa na prática diária em sala e no contato direto com as crianças, sendo a prática em si um processo de aprendizagem docente que exige adaptação, bem como uma “retomada crítica” dos saberes oriundos da formação inicial, também compreendida como formação profissional (Tardif, 2014). Soma-se a isso a consideração de que esses saberes são “[...] construídos e utilizados em função de uma situação de trabalho particular, e é em relação a essa situação particular que eles ganham sentido” (Tardif, 2014, p. 266).
Tendo isso em conta, desvelar os caminhos de meu trabalho como docente mostrou-se uma atividade enriquecedora e construtiva, na medida em que analisar as práticas proporciona um espaço para verbalização, que sem essa oportunidade ficariam incorporadas à ação e, portanto, não seriam identificadas (Wittorski, 2014) e problematizadas. Para Wittorski (2014), ao analisar as práticas, não há apenas a identificação delas, mas uma compreensão de tendências e princípios organizadores, favorecendo com isso o desenvolvimento de “formas identitárias”. Ainda de acordo com o autor, a análise de prática é entendida como contribuição para a transformação desses conhecimentos e saberes, visando a potenciais motivadores de novas práticas.
Em síntese, com base nas quatro ações que podem auxiliar na reflexão sobre a prática, preconizadas por Smyth (1992), foi possível identificar a complexidade do saber docente e, por conseguinte, da formação de professores, a qual envolve muito mais do que uma mera transposição de saberes teóricos para a prática em sala de aula, ou da prática pela prática, mas implica a mobilização de múltiplos saberes e conhecimentos de forma consciente e crítica.
Diante do manifesto, e embasando-se nas proposições de Bardin (2016), constatam-se por meio da análise desse plano de aula três eixos temáticos: 1) formação inicial, 2) estágio supervisionado e 3) professor iniciante como produtor de saberes.
No alusivo à formação inicial, evidencia-se a relevância das disciplinas cursadas durante a licenciatura plena em Pedagogia em uma universidade pública na constituição da identidade docente da professora iniciante, na medida em que houve uma influência na seleção das atividades desenvolvidas com os alunos, na forma de organização, no planejamento das aulas e no posterior registro, assim como nas estratégias utilizadas para o desenvolvimento das propostas. Tais ponderações legitimam a importância de uma boa formação de base que alie ensino, pesquisa e extensão, dado que experiências na pesquisa e extensão também influenciaram questões relacionadas ao conhecimento pedagógico do conteúdo (Shulman, 1987, 2014).
Atrelada a isso, percebe-se a preponderância das disciplinas de estágio supervisionado. Nesse sentido, coaduna-se com Iza et al. (2014), ao constatar que o estágio supervisionado é uma forma de iniciação à docência por parte dos estagiários e, com isso, torna-se um espaço em que o professor pode trazer os seus saberes para o centro da formação, visto que as relações estabelecidas entre os estudantes de licenciaturas e os professores da educação básica são extremamente importantes e podem auxiliar até mesmo na concepção de “políticas de indução profissional”, visando facilitar a inserção dos estudantes ou jovens professores nas escolas (Tardif, 2014).
E em relação à última categoria destacada, referente ao professor iniciante como produtor de saberes, por intermédio da análise do plano de aula selecionado, foi possível evidenciar que, como professora em início de carreira, houve a mobilização e a produção de diferentes saberes, como os saberes profissionais (pedagógicos), disciplinares, curriculares e experienciais (Gauthier et al., 2013; Tardif, 2014), sendo que o saber docente se mostrou plural, temporal, heterogêneo, personalizado e também situado e relacional, envolvendo, portanto, um “saber-ser” e um “saber-fazer” e uma intrínseca e inegável relação entre teoria e prática (Tardif, 2014). Ademais, infere-se que a professora em questão utilizou essa pluralidade de saberes advindos de sua formação, de maneira a buscar coerência entre a articulação teoria e prática e entre o nível do discurso e da ação pedagógica.
Constatou-se ainda que a identidade do professor alfabetizador se constrói em consonância com suas experiências pessoais e profissionais (formação inicial e continuada, experiências em sala de aula) e está em constante evolução. Dessa forma, o início da carreira constitui-se como um grande desafio, permeado por descobertas e rupturas, ocasionadas por conflitos oriundos da prática em confronto com a teoria, e transformações, inerentes à mobilização de diferentes saberes e à inserção na cultura profissional docente - discernimento, aprendizado da profissão (incorporação de um habitus - o habitus docente em rotinas e práticas de ensino) e ética profissional (Tardif, 2014).
Dadas essas circunstâncias, o percurso do professor iniciante é calcado sob muitas dificuldades e conflitos, portanto, preconiza-se que desprivatizar as práticas (Cochran-Smith, 2012) e, consequentemente, socializar experiências fundamentando “o que se faz” e “como se faz”, por meio de uma articulação problematizadora entre teoria e prática, constitui uma forma de empoderamento e uma maneira de não silenciar e dar visibilidade a esse período, visto que a saída da universidade e o ingresso na escola são um percurso que traz consigo muitos desvios e deve ser foco de discussões, reflexões e proposições, tanto dos professores da educação básica como dos docentes da universidade.
Sob tal perspectiva, ao ponderar sobre o professor iniciante, em uma conjuntura que é específica, como os anos iniciais do ensino fundamental, e desenvolver o presente estudo, cujo foco estava nos pressupostos autoetnográficos, tornou-se possível inferir que o “devir docente” permeou as reflexões estabelecidas, atreladas à análise de prática como um dispositivo de formação decorrente dos pressupostos que mobilizaram o movimento de profissionalização docente.
Outrossim, ao compreender a docência como uma atividade complexa, que está disposta em dois pontos básicos: a valorização de aspectos tanto da história individual como coletiva dos docentes e a compreensão de que a formação docente ocorre em um continuum, conforme indicado por Gatti et al. (2019) no estudo desenvolvido acerca dos professores do Brasil, atrelado a novos cenários de formação docente, há ainda várias críticas relacionadas à incipiente articulação entre a teoria e a prática, bem como entre as universidades e as escolas. Há alguns consensos na área - os quais, apoiados em Nóvoa (2017), os autores mencionam como “consensos discursivos” -, que são reconhecidos nas pesquisas, mas raramente postos em prática. Entre eles, alguns podem ser mencionados: a relevância de se dar a devida atenção aos primeiros anos de exercício, o aprendizado ao longo da vida e a cultura colaborativa. Dadas essas circunstâncias, além da tentativa de tornar público um ofício que é “privado” (Gauthier et al., 2013), este estudo é uma iniciativa para sair do discurso e entrar na dimensão da ação.
Considerações finais
O objetivo deste relato de experiência consistiu em realizar uma análise de prática de uma professora alfabetizadora em início de carreira com base em um plano de aula, buscando identificar quais saberes são mobilizados em suas ações e refletir em que medida esses saberes podem contribuir para o processo de formação e desenvolvimento docente. Portanto, houve interlocuções do plano de aula como um documento e de aspectos subjacentes à aula foco de análise.
Por conseguinte, a análise de prática proposta, embasada nas quatro ações de Smyth (1992), constituiu um dispositivo de formação docente, que possibilitou a identificação da diversidade de saberes mobilizados e produzidos por uma professora alfabetizadora iniciante e da prerrogativa de que, mesmo diante de tantas vicissitudes, o ingresso na carreira pode ser compreendido como um período positivo, atrelado à ponderação de que a reflexão sobre a prática traz também contribuições ao desenvolvimento do trabalho didático-pedagógico, proporcionando articulações entre a teoria e a prática e uma revisão crítica sobre o trabalho desenvolvido; ao mesmo tempo, constitui uma faceta do movimento de profissionalização docente.
Considera-se, ainda, que a mobilização desses saberes é algo extremamente melindroso, principalmente perante a diversidade existente em cada sala de aula e, em especial, nas turmas de alfabetização. Assim sendo, profissionalização, cultura profissional, devir profissional, reflexão docente, planejamento, estágio supervisionado, experiência, trajetória de pesquisa e conhecimentos pedagógicos são palavras-chave que perpassam e estabelecem um fio indutor entre diferentes aspectos abordados neste texto, prenunciando que o início da carreira não consiste em mera reprodução dos conhecimentos universitários (Tardif, 2000).
Nesse sentido, a desprivatização das práticas desvela-se como um exercício formativo que pode contribuir para a construção da identidade do professor em início de carreira, assim como para a própria aprendizagem da profissão, isto é, para a aquisição de um habitus docente, a imersão em uma cultura profissional, com destaque para o conhecimento profissional docente (Nóvoa, 2019a) ou o saber experiencial (Tardif, 2014).
Os limites deste relato de experiência estão ligados à consideração de que a análise de prática como um dispositivo de formação não visa à proposição de um único modelo de dispositivo, generalizável a todos os contextos e situações, todavia, mostra-se como uma alternativa que se entrelaça à formação de professores, assim como ao desenvolvimento profissional docente, podendo contribuir para a inserção de professores iniciantes na cultura profissional.
A despeito das descobertas e dos avanços, com base no referencial teórico adotado e no contexto de produção deste estudo, constatam-se as possibilidades de desenvolvimento profissional por intermédio da propositura de comunidades de investigação (Nóvoa, 2017). É possível indicar ainda ponderações que abrem precedentes para investigações futuras, entre elas a necessidade de redes de apoio coletivas ao professor iniciante, tendo em vista contribuir para sua inserção nas escolas diante de grupos já formados há muitos anos. A outra questão está articulada à importância e à necessidade da socialização do trabalho docente, que muitas vezes se restringem aos “muros” da escola, e, portanto, à esfera privada e à prerrogativa de como essa circulação de saberes/conhecimentos pode contribuir tanto para a formação (inicial e continuada) e o desenvolvimento docente quanto para as pesquisas acadêmicas, a própria prática em sala de aula e a afirmação da posição dos professores, especialmente dos iniciantes, como produtores de saberes.