Introdução
Os últimos 40 anos no Brasil foram marcados pela expansão dos sistemas escolares. Já no início do século 21, alcançou-se a universalização do ensino fundamental; nas décadas seguintes, assistiu-se à ampliação do acesso aos demais níveis de ensino (Oliveira, 2007). Ainda que, por si só, seja positiva a abertura das escolas a segmentos sociais que antes não tinham acesso a ela, não se pode ocultar o corolário de desafios que todos os profissionais da educação tiveram que enfrentar nesse contexto.
Em primeiro lugar, está o desafio trazido pela intensificação da complexidade das relações intraescolares, sobretudo diante de um público tão heterogêneo. Em segundo, aparece a necessidade de assumir papéis que outrora não se destacavam entre as funções da escola, como as demandas urgentes próprias de um público em situação de vulnerabilidade social, cenário que Nóvoa (2009) descreve como “escola transbordante”. O terceiro desafio consiste na realização de tarefas administrativas cada vez mais estafantes, a exemplo de registros, controles, reuniões, e na manutenção da ordem e disciplina no ambiente escolar.
Recentes pesquisas apontam que a insatisfação com o trabalho está relacionada ao mal-estar profissional e que, na educação, a síndrome de Burnout atinge níveis preocupantes (Gonçalves, 2023). Desafios semelhantes já foram apontados por Esteve (1999), o qual, valendo-se da expressão “mal-estar docente”, demonstrou que tão importante quanto estudar as mudanças sociais seria esmiuçar “o conjunto de reações dos professores como grupo profissional desajustado devido à mudança social” (Esteve, 1999, p. 97).
Um panorama das investigações sobre bem-estar docente no Brasil demonstra que
[…] entre os anos de 2003 e 2007, há uma tendência oscilante entre a quantidade de defesas efetivadas, mas, a partir de 2008, há um aumento gradativo. Em 2012, percebe-se um aumento no número de dissertações e teses defendidas, ou seja, na última década, houve um crescimento de mais de 100% das pesquisas relacionadas a esse tema. (Lazzari; Silva, 2014, p. 6).
Entre os elementos comuns desse mal-estar, destaca-se a insatisfação com a profissão. Em pesquisa centrada nos professores de Portugal, Moreno (2019) salienta que, de modo geral, a maior preocupação dos pesquisadores é identificar os fatores que impactam a satisfação docente.
No Brasil, Kasper e Rinaldi (2017) analisaram 51 trabalhos disponíveis no Banco de Dados de Teses e Dissertações (BDTD) que, em síntese, apontam os seguintes fatores como os principais geradores da insatisfação: “desprestígio/desvalorização social”, “baixos salários”, “escassez de recursos” e “descaso da família com os alunos”.
Ainda que divirjam acerca do grau de influência dos diferentes fatores sobre a satisfação docente, os estudos apresentam certo consenso no sentido de essa satisfação ser multideterminada (Poloni, 2019; Costa; Prottis, 2019; Dias; Nascimento, 2020; Poloni; Lopes; Oliveira, 2022) Também é pacífico o entendimento de que esses fatores estão imbricados uns nos outros e, sinergicamente, correlacionados (Poloni, 2019; Dias; Nascimento, 2020; Gonçalves, 2023).
[...] a satisfação/insatisfação profissional envolvem medidas de valor e crenças pessoais, mas [...] estas questões não prescindem de critérios formais, de valores e do julgamento do outro ou de referências sociais. Na perspectiva dialética que adotamos, isso envolveria tanto os desafios e tensões da atividade docente nas condições concretas, institucionais, em que ela é promovida, quanto os processos psíquicos do professor (sua percepção, motivação, interesse, pensamento etc.) e sua saúde. Envolveria também a influência de fatores sociais e culturais determinantes, porque o sujeito não é indiferente aos indicativos da vida social, que também podem causar efeitos na autoestima docente e na satisfação/insatisfação profissional. (Dias; Nascimento, 2020, p. 80).
Um terceiro ponto de convergência dos estudos é o de que a satisfação docente impacta a qualidade da educação como um todo (Biagi, 2017; Costa; Prottis, 2019; Silva, 2021; Poloni; Lopes; Oliveira, 2022). Nessa perspectiva, Costa e Prottis (2019, p. 355) argumentam que “não cabe apenas ao professor a responsabilidade pelo êxito de seus alunos, no entanto, é consenso que a satisfação e o engajamento do docente na realização do seu trabalho têm papel fundamental para a melhoria da qualidade da educação”.
No mesmo sentido, vale registrar o alerta de Lorenzo (2020, p. 17), para o qual “os problemas de saúde docente, embora pareçam dificuldades de âmbito pessoal, de imediato, não são. Ao contrário, eles devem ser uma preocupação coletiva, visto que seus efeitos interferem no entorno e comprometem a qualidade da educação”.
Diante desse cenário, este estudo tem como objetivo verificar como as características profissionais, territoriais e dos sistemas de ensino se associam à satisfação docente.
1 Aspectos teórico-metodológicos
1.1 A satisfação profissional e a Teoria das Discrepâncias Múltiplas
Perante a multiplicidade e a interdependência dos fatores, considera-se que as dimensões objetiva e subjetiva se retroalimentam continuamente (Costa; Pereira, 2017; Folle et al., 2008). Assim, a satisfação não resulta somente dos contextos, depende da “predisposição para interpretar as situações, as experiências de vida, de forma tanto positiva quanto negativa, e essa propensão influenciaria a avaliação da vida. Em outras palavras, a pessoa aproveitaria os prazeres porque é feliz e não vice-versa” (Giacomoni, 2004, p. 45).
Uma das formas de considerar essa interação entre as dimensões é a abordagem pela Teoria das Discrepâncias Múltiplas, proposta por Michalos (1985), segundo a qual o indivíduo avalia a sua realidade a partir de múltiplas discrepâncias, considerando diferentes temporalidades. Ao avaliar sua vida, compara-se a vários padrões, incluindo outras pessoas, condições passadas, aspirações, necessidades ou metas. O julgamento das satisfações está baseado nas discrepâncias entre as condições atuais e esses padrões de comparação. A discrepância que envolve uma comparação superior (quando o padrão é mais elevado) resultaria na diminuição da satisfação, ao passo que uma comparação em direção inferior ocasionaria um aumento da satisfação.
Michalos (1985) propõe uma temporalidade específica para a avaliação e sugere a comparação daquilo que se tem hoje com a expectativa que se tinha há três anos e com o que se espera ter daqui a cinco anos. Memórias e expectativas, no entanto, são elaborações complexas. Se podem ser tomadas como modelos ideais para a avaliação da condição atual, também as condições atuais - inclusive aquelas experimentadas por outras pessoas do convívio, como os colegas de trabalho - podem sugerir modelos para a construção de expectativas e memórias (Silva, 2020).
Atualmente, a Teoria das Discrepâncias Múltiplas, apesar de estar presente nos estudos da área da Psicologia Social (Silva; Pereira, 2005; Pereira, 2007; Nadaf, 2013), tem sido pouco utilizada, de modo direto, nas pesquisas sobre a satisfação docente. Acreditamos que as contribuições desse modelo possam ser úteis para a interpretação de diversas particularidades relacionadas à realidade dos professores.
1.2. Os fatores elencados para este estudo
É singular para este trabalho o estudo de Both et al. (2017) sobre o bem-estar docente. Os autores consideraram fatores como a localização das escolas - a região Sul, seus estados e as mesorregiões existentes em cada estado -, a dependência administrativa, as características sociodemográficas dos professores e as particularidades das carreiras em cada sistema. Entre os resultados, os autores apontam que:
As associações em todas as análises das dimensões remuneração e oportunidade de progressão na carreira revelam a forte evidência da existência de diferentes políticas públicas entre os estados sobre essas duas dimensões. De fato, o maior índice de satisfação sobre os salários e a menor frequência de insatisfação em relação à progressão na carreira dos professores de Educação Física do Paraná podem estar associados à política de progressão da carreira docente do estado denominada Programa de Desenvolvimento da Educação (Paraná, 2004b), a qual foi instituída por meio de lei estadual complementar e possibilita o afastamento temporário do professor de suas obrigações relacionadas ao ensino para fazer formação continuada com supervisão dos professores das universidades públicas paranaenses. No fim desse programa o docente recebe um aumento salarial. (Both et al., 2017, p. 384-385).
Como se verifica, a maneira pela qual as carreiras se encontram positivadas nas legislações - e como essas normas são efetivamente cumpridas - importa para os professores ao avaliarem sua satisfação profissional. Note-se que cada ente federado tem sua própria arena relacionada às políticas de carreira. Não se trata apenas da legislação, mas da cultura política local, o que envolve, por exemplo, o padrão de atuação do Poder Legislativo, o grau de associativismo docente e as tendências de entendimentos dos Tribunais de Justiça (Oliveira, 2018, 2020).
Considerando a Teoria das Discrepâncias Múltiplas, nesse contexto, é provável que cada professor efetivo, ao avaliar a sua realidade atual no tempo - tendo como parâmetros os três anos passados e os cinco anos futuros -, considere como um dos principais pontos de comparação as perspectivas na carreira: estabilidade, progressão, melhores condições de escolha nos processos de atribuição de aulas etc.
Mesmo sendo a carreira uma prerrogativa dos professores com vínculo efetivo, os demais também podem levar em conta a carreira de seus colegas de trabalho, aspirando, por exemplo, a serem aprovados em concursos públicos.
Ao discutir a carga de trabalho docente, Tardif e Lessard (2014) já destacavam o fator “localização da escola”, se no meio rural ou urbano, se em um bairro pobre ou violento, se marcado ou não pelo tráfico de drogas, inclusive envolvendo crianças. Chamam atenção, ainda, para outras variáveis:
Embora a carga de trabalho de um professor varie dependendo de diversas variáveis (país, regiões, ordenamento do ensino, qualificações, categoria etc.), esse trabalho comporta em toda parte a mesma estrutura básica. Em todo lugar, duas variáveis - o tempo de ensino e o tamanho das turmas - são objetos de discussões, negociações e regulamentações, pois, com os salários pagos ao pessoal da educação, elas constituem os parâmetros básicos a partir dos quais se estimam os custos da educação e se avalia a carga de trabalho dos professores. Estima-se também que elas têm efeitos sobre a educação dada às crianças, efeitos que nem sempre são simples, diretos e lineares. (Tardif; Lessard, 2014, p. 115).
Para Marques (2007, p. 73), os professores vão, continuamente, experimentando “estratégias para fazer face às exigências da profissão, configurada por um certo ‘cenário’, situado num tempo e num local, dentro de um determinado nível de ensino e num contexto institucional delimitado”.
No Brasil, estudos que tratam do tema com base em fatores relacionados à territorialidade e ao contexto institucional tendem a adotar o recorte de uma rede específica (Marques, 2007; Vieira; Pereira Junior, 2020; Gonçalves, 2023). Uma visão mais abrangente é oferecida por Gatti et al. (2019) que, ao discutirem os vários elementos da condição docente - inclusive a satisfação, mas principalmente a formação -, fazem-no de modo muito preocupado com as diferenças regionais e institucionais (Gatti; Barreto; André, 2011; Gatti et al., 2019).
Mesmo que sejam importantes e robustos os achados das pesquisas até o momento, identificamos certa lacuna com relação a dados quantitativos, de abrangência nacional, que permitam interpretações que considerem, além das características dos professores, as diferenças territoriais e institucionais. Dentre as pesquisas que poderiam fornecer dados abrangentes que dialoguem com tais cenários, despontam os questionários contextuais do Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica (Saeb), respondidos por alunos, professores e diretores de escolas.
A escolha de um survey bastante consolidado como fonte oferece vantagens - abrangência e confiabilidade no rigor do levantamento - e desvantagens - menor flexibilidade na seleção das variáveis com as quais trabalhar. Considerando as restrições concretas à execução deste estudo - sobretudo disponibilidade e universo quantitativo dos dados -, optamos por delimitar o questionário dos professores do Saeb aplicado em 2019 como fonte de dados.
Com efeito, foi possível selecionar as variáveis apresentadas no Quadro 1.
Fonte: Elaboração própria com base no Questionário do Professor - Saeb 2019 (Brasil. Inep, 2019). Notas: EF: ensino fundamental EM: ensino médio CLT: Consolidação das Leis do Trabalho
Sabemos que salta aos olhos, no Quadro 1, a ausência das informações sociodemográficas. Era nossa intenção incluir as variáveis “sexo”, “idade”, “raça” e “renda”, presentes nos levantamentos anteriores do Saeb. No entanto, na edição de 2019, apenas os dados sobre “raça” foram coletados. Consideramos ser mais viável um estudo à parte quando tivermos acesso a um conjunto maior dos dados sociodemográficos.
Já a ausência da rede privada ocorre em virtude da variável “vínculo funcional”. Ao longo dos ensaios de representação gráfica, notamos que a inserção dessa rede exigiria constantes ressalvas, diante de seus reduzidos números absolutos e de sua grande diversidade de tipos de vínculo. Consideramos mais prudente, por ora, trabalhar com o cenário das redes públicas.
Para a seleção das variáveis dependentes, valemo-nos do bloco de questões denominado “Concepções”, presente nos questionários dos professores do Saeb. Registre-se que as questões desse bloco se assemelham às existentes na Pesquisa Talis1, conduzida pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).
Na edição de 2018, a Pesquisa Talis contou com a participação de 48 países. Entre as questões relacionadas à satisfação, três estão alinhadas às que constam no questionário do professor do Saeb, no ciclo de 2019. A Tabela 1 traz o percentual de professores que “concordam” ou “concordam totalmente” com cada afirmação presente no questionário:
Afirmação | Nível de ensino | Brasil (%) | Média Talis (%) |
Eu acho que a profissão de professor é valorizada pela sociedade | Anos finais do EF | 11,7 | 32,0 |
Ensino médio | 11,0 | 36,0 | |
As vantagens de ser professor superam claramente as desvantagens | Anos finais do EF | 62,8 | 74,1 |
Ensino médio | 59,0 | 77,7 | |
De modo geral, estou satisfeito com meu trabalho | Anos finais do EF | 86,1 | 89,6 |
Ensino médio | 83,9 | 90,4 |
Fonte: Elaboração própria com base nos resultados da Pesquisa Talis 2018 (OCDE, 2018a, 2018b).
A maioria dos professores não acredita que a profissão seja valorizada pela sociedade; em contrapartida, eles avaliam que as vantagens superam as desvantagens. Em ambos os casos, há uma diferença substancial entre o Brasil e os demais países da pesquisa, indicando que, na visão dos professores, a profissão, em nosso País, é menos valorizada pela sociedade e as vantagens não superam tanto as desvantagens.
Para a afirmativa “De modo geral, estou satisfeito com meu trabalho”, há maior proximidade entre o Brasil e os demais países da OCDE. Nos dois cenários, há uma forte concordância com a afirmativa, que chega, em média, a 87,5%. No questionário do Saeb de 2019, as questões mais relacionadas à satisfação estão agrupadas no bloco “Concepções”, como mostra a Figura 1.
Observa-se que apenas a “questão 6” do Saeb não encontra uma outra correspondente na Pesquisa Talis. Registre-se, no entanto, que várias outras questões da Pesquisa Talis estão voltadas para o “desejo de tornar-se professor”.
1.3 Procedimentos metodológicos
A pesquisa com grandes volumes de dados brutos exige uma relação de longo prazo entre o pesquisador e seu conjunto de dados. Requer um processo não linear de acesso, extração, armazenamento, tratamento, produção de estatísticas, elaboração de informações e análises. Nenhum desses procedimentos é estritamente técnico e imparcial, o que tem impulsionado o interesse das pesquisas pelas chamadas técnicas transnumerativas (Cazorla; Utsumi; Monteiro, 2021) e, ao mesmo tempo, pela dimensão artesanal desse trabalho (Santos, 2009).
Para o tratamento dos dados, acessamos e extraímos os microdados do Saeb 2019, disponibilizados no sítio do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (Inep)2. A base conta com 140 variáveis e 311.597 observações. Criamos, ainda, a variável “região geoeconômica” e as variáveis de agrupamento “discordo” e “concordo”, o que permite o uso da regressão logística binária.
A respeito do constructo “região geoeconômica”, cabe observar que, durante as aproximações dos dados, percebemos que os estados mais ao norte do País apresentavam dados bem distintos dos situados mais ao sul. Produzimos, então, informações com base nas macrorregiões geoeconômicas do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), porém, com cada estado pertencendo a uma única região. Maranhão, Tocantins e Mato Grosso vincularam-se à região Amazônica, e Minas Gerais, à região Centro-Sul.
Com efeito, a base de dados usada neste artigo apresenta 16 variáveis: a) região geoeconômica; b) área; c) localização; d) dependência; e) série; f) anos como professor; g) quantidade de escolas em que trabalha; h) tipo de vínculo; i) realização de sonho; j) profissão valorizada; k) vantagens superam desvantagens; l) satisfação com a profissão; m) realização de sonho - binária; n) profissão valorizada - binária; o) vantagens superam desvantagens - binária; p) satisfação com a profissão - binária.
As oito primeiras variáveis (de “a” a “h”) são tomadas como independentes, com a função de segmentar o conjunto das observações, sendo utilizadas para classificar os professores em grupos distintos e, então, observar se o fato de pertencer a algum desses grupos está associado à resposta que o professor escolheu sobre as concepções.
Para uma abordagem exploratória dos dados, usamos ferramentas da escala Likert. Para a análise dos fatores que impactam as respostas dos professores, utilizamos a regressão logística binária.3 Na sequência, construímos as tabelas de contingência e usamos o teste qui-quadrado para identificar a associação entre as variáveis.
Ainda que a Tabela 2 pareça árida à primeira vista, ela é indispensável para demonstrar que a associação entre as variáveis é estatisticamente significativa, ou seja, o fato de o professor pertencer a um grupo e não a outro - variáveis independentes - guarda alguma relação com as respostas que selecionou no questionário do Saeb - variáveis dependentes. Essa associação ocorre quando o valor de P for menor que 0,05.
Fonte: Elaboração própria com base nos microdados do Saeb 2019 (Brasil. Inep, [2022]).
Notas: (1) Para todos os modelos, o pressuposto de ausência de multicolinearidade foi testado e atendido. As análises foram conduzidas no software R (versão 4.1.3) para o Windows. O nível de significância (ɑ) adotado foi de 5% (0,05).
(2) GL = grau de liberdade.
Para a afirmativa “Tornar-me professor(a) foi a realização de um dos meus sonhos”, constatou-se que apenas a “dependência administrativa” não se mostrou associada à concordância com a afirmação. Por outro lado, os professores se posicionaram de modo significativamente diferente considerando a série em que atuam e as características territoriais e profissionais.
Com relação às variáveis “satisfação com a profissão”, “vantagens superam desvantagens” e “profissão valorizada”, todas as variáveis - territoriais, de sistema e profissionais - mostraram-se associadas à concordância com as afirmações trazidas no questionário.
2 Apresentação e discussão dos resultados
Como já mencionado, as quatro questões selecionadas como variáveis dependentes fazem parte do bloco “Concepções” do questionário do professor do Saeb 2019. Nesse bloco, o comando das questões é: “Indique o quanto você concorda ou discorda em relação aos seguintes temas envolvendo o seu trabalho como professor(a) da educação básica”. Os posicionamentos dos docentes diante das afirmativas constam no Gráfico 1.
Como evidenciado no Gráfico 1, os professores, apesar de entenderem que a profissão é desvalorizada pela sociedade e de se mostrarem divididos a respeito de as vantagens superarem as desvantagens da profissão, afirmaram estar satisfeitos com o seu trabalho e identificaram que estar na docência representa a realização de um sonho.
Esses números sugerem que a relação dos professores com a profissão vai além do aspecto financeiro. Na opinião de 84% dos participantes, a profissão não é valorizada pela sociedade; mas, para 89% deles, ser docente é a realização de um sonho.
A correlação entre o “desejo de tornar-se professor” e a “satisfação docente” já foi apontada por Costa e Prottis (2019) em pesquisa que analisa os dados do Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (Pisa) 2015.
[...] diante do contexto contemporâneo do trabalho docente, muitas vezes considerado penoso - com salários defasados, permanente declínio de prestígio da profissão e pesada carga de trabalho (atividades extracurriculares, preparação das aulas, avaliação da aprendizagem, interação com os pais, reuniões pedagógicas e administrativas da escola etc.) -, vimos também que há fatores que podem contribuir para que os docentes permaneçam engajados em sua profissão: a satisfação no trabalho, o desejo de se tornar professor, uma percepção mais positiva da carreira e a interação com colegas. [...] quando analisamos os resultados obtidos no presente estudo com base nos dados do Pisa 2015, fica evidente que aqueles que gostariam de seguir na carreira são mais engajados afetivamente na profissão e mais resilientes. (Costa; Prottis, 2019, p. 354, grifos nossos).
No entanto, o resultado exposto no Gráfico 1 - que corrobora as apreciações de Costa e Prottis (2019) - refere-se ao conjunto dos professores, desconsiderando estratificações pelos fatores territoriais, profissionais ou de sistema.
Nos tópicos seguintes, analisaremos cada uma das questões na sequência utilizada no Gráfico 1, considerando os diferentes segmentos representados pelas variáveis independentes.
2.1 Apresentação e interpretação dos gráficos4
Organizamos os resultados estatísticos em quatro gráficos distintos, um para cada variável dependente. Os gráficos são do tipo forest plot, apresentando o eixo de valores na horizontal e o das categorias na vertical.
A leitura do Gráfico 2 permite identificar que, se comparadas à região Amazônica, as demais regiões têm mais chances de concordarem com a afirmativa “Tornar-me professor(a) foi a realização de um dos meus sonhos”. Constatamos que, para cada 10 professores da região Amazônica, temos 15 da região Centro-Sul que concordam com essa afirmativa. Verifica-se, também, que a concordância com a afirmativa ocorre mais entre os professores do interior que os da capital e mais entre os da área rural que os da área urbana.
Quanto aos níveis de ensino, os docentes do 5º ano têm quase 50% mais chances de concordarem com a afirmativa que os do 9º ano. Já os do 3º ano do ensino médio (EM) têm menos chances de concordarem com a afirmativa.
Tomando como referência os professores iniciantes (primeiro ano de atuação), constata-se que aqueles que têm de 3 a 5 anos e os que têm 20 anos ou mais de docência apresentam mais chances de concordarem com a afirmativa. Identificamos, ainda, que, quanto maior o número de escolas em que o docente atua, menores são as chances de concordância. No tocante especificamente aos temporários, constatamos que, para cada 10 efetivos, existem 16 temporários que concordam que ser professor é a realização de um sonho.
Entre todos os dados apresentados no Gráfico 2, o tipo de vínculo é o que evidenciou maior variação. Se comparados aos efetivos, os professores temporários5 e celetistas têm mais chances de concordarem com a afirmativa, e os terceirizados têm 60% menos chances de concordância.
O Gráfico 3 traz os dados relacionados à satisfação com a profissão. Já assinalamos que, em geral, os professores se mostraram satisfeitos com o seu trabalho (Gráfico 1). A estratificação desses dados, porém, aponta algumas variações internas.
Com relação à territorialidade, verifica-se que os professores da região Nordeste tendem a estar mais satisfeitos que os das regiões Amazônica e Centro-Sul, e os da área rural e do interior, mais satisfeitos que os da área urbana e das capitais.
Quanto às características do sistema de ensino, nota-se uma dispersão acentuada, pois os docentes das redes estaduais apresentam cerca de 50% mais chances de concordarem com a afirmativa que os das demais redes; os professores do 9º ano têm menos chances de se mostrarem satisfeitos que os dos demais anos.
No que tange às características profissionais, distinguimos três padrões. Os iniciantes mostram-se mais satisfeitos que os mais experientes. Todavia, verifica-se uma curva em “C” nessa variável, ou seja, uma parábola com eixo de simetria horizontal e com vértice à esquerda. Nesse caso, o vértice está representado pela categoria “11 a 15 anos de docência”. Essa curva indica uma maior satisfação no início da carreira, uma queda nos anos seguintes e uma pequena retomada ao final.
No Gráfico 3, ao se constatar que, quanto maior o número de escolas em que o professor atua, menos ele concorda com a afirmativa de satisfação, tem-se um segundo padrão, pois esses mesmos professores concordavam menos que estar na profissão representava a realização de um sonho (Gráfico 2).
Um terceiro padrão que inicia a se despontar é a diferença entre professores efetivos, de um lado, e temporários e celetistas, de outro. O Gráfico 3 indica que estes últimos têm mais chances de se mostrarem satisfeitos com a profissão do que os efetivos - mesmo desenho verificado no Gráfico 2.
O Gráfico 4, sobre a relação entre vantagens e desvantagens da profissão, merece destaque, em primeiro lugar, por apresentar um equilíbrio maior entre os posicionamentos de concordância e discordância dos professores - em comparação às demais afirmativas - e, em segundo lugar, porque é a questão cujos resultados mais diferem daqueles apurados na Pesquisa Talis. Isso evidencia que a percepção dos docentes perante essa afirmativa se mostra mais sensível aos diferentes contextos e cruzamentos de fatores.
Ao interpretarmos o Gráfico 4, confirmamos que os professores da região Amazônica, da área rural e do interior têm uma percepção mais positiva sobre as vantagens da profissão. Verificamos, também, que a curva em “C”, referente aos anos de docência, mantém-se, significando que, no início da carreira, há uma percepção maior das vantagens, que se reduz nas fases centrais da carreira e volta a ser mais alta nos anos finais. Além disso, professores que atuam em menos escolas, assim como os temporários ou celetistas - se comparados aos efetivos -, tendem a concordar mais com a afirmativa.
Chama-nos atenção, ainda, a posição dos professores terceirizados, que se mostraram tão insatisfeitos com o trabalho quanto os efetivos (Gráfico 3), tinham menos chance de ver o “estar na profissão” como a realização de um sonho (Gráfico 2) e, apesar disso, são os que mais consideram que as vantagens superam as desvantagens (Gráfico 4).
Nesse caso, é de se supor que, a depender do vínculo funcional, as expectativas dos docentes mudam substancialmente. Ao avaliarem o seu emprego de professor, os terceirizados talvez queiram se valer da máxima popular: “ruim com ele, pior sem ele”.
O Gráfico 5 traz as estatísticas para a variável “profissão valorizada”. De um modo geral, 84% discordam da afirmação de que “a profissão de professor(a) é valorizada pela sociedade”.
Na análise por segmentos, verificamos que os professores das regiões Nordeste e Centro-Sul concordam menos com a afirmativa em tela que os da região Amazônica; os das capitais, menos que os do interior; os da área urbana, menos que os da área rural. Presume-se que a estrutura das escolas e a remuneração dos docentes sejam maiores no segundo grupo - urbano, capital, Centro-Sul -, justamente o dos que mais discordam da afirmativa de que a “sociedade valoriza a profissão”.
Outra constatação retratada no Gráfico 5 é a de que os professores da rede estadual têm menos chances de concordarem com a afirmativa do que os das demais redes; os do 9º ano, do que os dos demais anos; os efetivos, do que aqueles com outros vínculos.
Destaque-se, ainda, que, no caso da variável relacionada aos anos de docência, a curva em “C” mantém-se.
2.2 Uma síntese a partir dos territórios, dos sistemas de ensino e das características profissionais
Quanto à territorialidade, os professores das áreas urbanas das capitais da região Centro-Sul - em comparação aos das áreas rurais dos municípios do interior da região Amazônica - têm mais chances de verem a profissão docente como um sonho realizado, porém, são os mais insatisfeitos com as condições concretas do espaço de trabalho.
Assim, a forte correlação entre a “realização de um sonho” e a “satisfação com a profissão” (Gráfico 1) não se confirmou. Ao menos no recorte aplicado nesta pesquisa, a inclusão do fator territorial causa interferências naquela correlação.
Essa constatação nos leva a várias indagações. Nos grandes centros urbanos, há mais diversidade de cursos superiores. Essa maior oportunidade de escolha não tenderia a reduzir o número de compelidos a seguirem o magistério? De outro lado, o difícil acesso às universidades nas áreas rurais dos municípios do interior da região Amazônica teria impulsionado esse percentual maior dos que ingressaram no magistério por motivos mais contingenciais?
A maior insatisfação dos professores das áreas urbanas das capitais da região Centro-Sul (Gráfico 3) não estaria relacionada às oportunidades avistadas por eles para além dos muros das escolas? Essa insatisfação não estaria relacionada à discrepância entre a “percepção da realidade” e as “expectativas alimentadas pelos sujeitos”, como aponta Michalos (1985), em sua Teoria das Discrepâncias Múltiplas? O reduzido mercado de trabalho na área rural dos municípios do interior da região Amazônica não reduziria o número de oportunidades a serem comparadas com a realidade atual, impactando uma menor insatisfação?
Com relação a “vantagens superarem as desvantagens” (Gráfico 4), temos um panorama similar. Há um percentual maior de professores dos grandes centros que discordam dessa afirmativa, se comparados aos das localidades menos populosas. Nesse caso, estaria o docente incluindo, em seu julgamento, a comparação entre as vantagens de estar ali, como professor, com as possíveis vantagens de estar em outros cenários?
As indagações dos três últimos parágrafos não são solucionadas nesta investigação. Trata-se de um esboço de dúvidas às quais chegamos. Por ora, constatamos somente a importância do aspecto territorial enquanto contexto para o estudo da satisfação docente, pois, ao considerá-lo nas equações, os resultados modificam-se substancialmente.
Quanto às características dos sistemas de ensino, não identificamos padrões expressivos relacionados às dependências administrativas. Porém, quanto às séries, os professores do 5º ano tendem a concordar mais com todas as afirmativas propostas.
No entanto, é preciso levar em conta que estamos limitados a professores das disciplinas de Português e Matemática. É possível que, indiretamente, estejamos comparando não apenas os níveis de ensino, mas também as áreas de conhecimento, uma vez que, em muitas redes, os docentes do 5º ano são generalistas, já os do 9º ano e do 3º ano do ensino médio devem ser licenciados em suas áreas específicas.
No que concerne às características profissionais, detectou-se um forte padrão com relação aos anos de docência: para todas as afirmativas, identifica-se a tendência de maior concordância nos anos iniciais e finais da carreira. Esses achados corroboram a tese de que os anos de experiência são fatores relevantes para a satisfação docente, como aponta a maioria dos estudos. Porém, a simples correlação positiva, conforme demonstra a literatura (Ferguson; Frost; Hall, 2012; Poloni; Lopes; Oliveira, 2022; Gonçalves, 2023), não foi confirmada.
O maior nível de insatisfação ficou concentrado nos anos centrais da carreira. É provável que, para os professores iniciantes considerados no recorte deste estudo, o “choque de realidade” tenha pesado menos que a “descoberta”.
Para Huberman (2000, p. 39), “o aspecto da descoberta traduz o entusiasmo inicial, a experimentação, a exaltação por estar, finalmente, em situação de responsabilidade (ter a sua sala de aula, os seus alunos, o seu programa), por se sentir colega num determinado corpo profissional”. É no meio da carreira que se escolhe mais definitivamente a profissão, que se investe em caminhos diversificados dentro da própria carreira - em busca da identidade profissional - e que, geralmente, põe-se em questão. Talvez a marca dessa fase consista “em fazer o balanço da sua vida profissional e em encarar a hipótese, por vezes com algum pânico, de seguir outras carreiras, ‘durante o pouco tempo em que isso ainda é possível’” (Huberman, 2000, p. 43).
Já com a variável que leva em conta o número de escolas em que o professor atua, temos uma correlação mais linear e inversamente proporcional, ou seja, quanto maior o número de escolas, menor é a satisfação. Esse resultado tende a ser ainda mais intenso para docentes de disciplinas não abarcadas neste estudo, posto que, em Língua Portuguesa e Matemática, os professores têm mais chances de fechar sua carga horária em uma única escola.
Com referência ao vínculo funcional, percebem-se diferenças entre os professores efetivos, de um lado, e os temporários e celetistas, de outro. Temporários e celetistas tendem a concordar mais com todas as afirmativas propostas. Supõe-se que o que é prioridade para esse grupo pode não ser para o dos efetivos, o que interfere na sensação de satisfação.
Os professores temporários - apesar de o ordenamento jurídico considerar sua contratação como algo excepcional - têm assumido um papel permanente nas redes de ensino do País (Seki et al., 2017). Para esse grupo, que representa um terço dos professores nas redes públicas (Feldman; Gouveia, 2022), as condições de trabalho mostram-se precárias (Ferreira; Abreu, 2014; Santos Filho; Magalhães Junior, 2020)
Diferentes pesquisas apontam a relação entre a condição dos temporários e as características dos municípios em que atuam (Feldman; Gouveia, 2022). Para professores de Mocajuba, Pará, “o lado bom de se trabalhar como professor temporário no município era apenas a oportunidade de ter um emprego, mas existiam muitos contras como o atraso de salários e o medo de perder o trabalho caso o ‘seu político’ não conseguisse se eleger” (Feldman; Martins, 2023, p. 12).
Assim, os momentos em que estão com vínculos trabalhistas ativos nas redes de ensino podem ser percebidos, pelos professores temporários, como mais satisfatórios que os momentos sem emprego; pelo mesmo motivo, para esses professores, as vantagens de estar na docência tendem a superar as desvantagens.
Considerações finais
Os resultados encontrados oferecem sinais relevantes de que as redes públicas de ensino no Brasil são formadas por segmentos bastante distintos e multifacetados e que os fatores mantêm interdependências tão intensas que dificultam conclusões inflexíveis. Cada professor vive todos esses fatores dentro de si, atribuindo importância distinta às diferentes dimensões da vida profissional.
Com efeito, consideramos como inconclusivos os resultados a respeito do impacto das características dos sistemas de ensino sobre a satisfação docente. Por outro lado, identificamos que as particularidades territoriais - região geoeconômica, área e localização - impactam os níveis de satisfação docente, sendo fundamental levar em conta as persistentes desigualdades regionais no País.
Seriam necessários outros estudos para verificar o quanto fatores como o “mercado de trabalho” e o “padrão de consumo” estariam influenciando o julgamento dos professores sobre a sua realidade em comparação às realidades avistadas no entorno, nas memórias e nas perspectivas de futuro.
Seriam relevantes, também, estudos qualitativos sobre como os professores interpretam os enunciados dos questionários do Saeb, o que contribuiria tanto com as investigações acadêmicas quanto com o próprio Inep, ao sugerirem adequações nos instrumentos de coleta.
No tocante aos anos de docência, confirmamos a importância dessa variável, como apontam os estudos. No entanto, não se verificou uma correlação linear, sendo os professores dos anos centrais da carreira os mais insatisfeitos. Caberiam pesquisas mais específicas a respeito dos professores nessa fase do ciclo de vida profissional. Diferentemente daqueles das fases iniciais, esses docentes possuem alguma experiência com a profissão para colocarem sobre a mesa de avaliação; e, diferentemente daqueles em final de carreira, esses docentes tendem a se enquadrar e ter um maior número de oportunidades no mercado de trabalho da região em que vivem.
Quanto ao vínculo institucional, verificou-se que os celetistas e os temporários são os mais satisfeitos em estar na docência, se comparados aos efetivos. Supõe-se que os projetos de vida para cada grupo sejam bastante distintos. Porém, acredita-se que levem em conta a atratividade da carreira docente na região e o nível de regularidade dos concursos públicos nas redes de ensino.