1 INTRODUÇÃO
O presente artigo tem como objetivo compreender a transformação, do ponto de vista do racismo, da escola moçambicana, como resultado da independência. Ele parte do pressuposto de que as diferenciações raciais podem carregar consigo mecanismos e discursos legitimadores de superioridade e inferioridades rácicas que podem levar, por sua vez, à resignação e/ou a reprodução, pelas vítimas, do sentimento de inferioridade e dever natural de sua submissão.
Em Moçambique não há muitos estudos sobre a questão racial. Duas questões provavelmente podem explicar este facto. Primeiro, na estrutura demográfica do país, os negros compõem 99% da população e as restantes raças, nomeadamente mestiço, branco, indiano, paquistanês e chines compõem apenas 1% (INSTITUTO NACIONAL DE ESTATÍSTICA, 2017).
A outra razão prende-se com o facto de que em termos históricos, vimos de uma tentativa de construção de uma sociedade do tipo socialista em que o racismo foi, pelo menos no plano discursivo, alvo de cerrado combate político. Paira, assim, no imaginário de muitos a ideia de que somos um país em que o racismo foi efectivamente vencido ou ultrapassado.
Entretanto, hoje, volvidos 45 anos depois da ascensão à independência nacional, na nossa vivência enquanto moçambicanos constatamos, no quotidiano, sinais de que o fenómeno do racismo de certa forma persiste. Dois estudos realizados no país assim o sugerem. O primeiro foi feito por Serra (2000), em que ele procurou recolher perceções através das quais o outro é visto e, eventualmente, recusado e, também, conhecer os fenómenos a partir dos quais essas perceções são produzidas.
Na pesquisa, Serra (2000) refere que muitos moçambicanos afirmam que algumas cidades moçambicanas estão a ser recolonizadas, tornando-se cada vez mais propriedade dos “brancos” e “indianos”, sendo os “pretos” afastados para os subúrbios. Na pesquisa, por conseguinte, ficou evidente que há a perceção de que há racismo no país e este está intimamente associado a posse ou a privação de recursos de poder.
Assim é porque para os informantes da pesquisa, não obstante os negros constituírem 99% da população do país, quem mais frequentam certo tipo de restaurantes, entenda-se de luxo não são os negros3. Percebem que em termos de propriedade privada, os negros não estão numa situação de destaque. Percebem que no mercado do trabalho, os empregos de maior prestígio e, portanto, melhor remunerados, os negros não são a maioria. Percebem ainda que as zonas de habitação são distribuídas de forma desigual e em função da raça, sendo que os negros vivem em lugares menos valorizados. Em suma “é agudamente sentido que existe uma distribuição assimétrica de riqueza social e que certas raças são privilegiadas no acesso a esses recursos.” (SERRA, 2000, p. 52).
Muito importante referir, no tema racial em Moçambique, concluiu o estudo de Serra (2000) a questão não se coloca apenas na relação entre os negros e os brancos. Os “indianos” e “mulatos”4 igualmente são percebidos como se beneficiando nesta distribuição desigual de riqueza.
Ribeiro (2012) também pesquisou a questão racial em Moçambique. Para ele, em Moçambique, tal como noutras sociedades periféricas, há a particularidade de a fragmentação racial ser um fenómeno das elites e das classes médias, composta por uma elite negra e por diversas minorias raciais, entre brancos, mestiços, “indianos” ou chineses. Segundo ainda o mesmo autor, a questão racial não é propiamente uma preocupação das classes baixas, que são homogeneamente negras.
A partir de um estudo empírico, Ribeiro (2012, p. 24) conclui que “as avaliações sobre as minorias raciais são tendencialmente positivas” e assim é porque, entre outros, em Moçambique, dada a sua situação de subdesenvolvimento, a questão do desemprego é bastante sensível e são exactamente as minorias raciais (brancos, “indianos” e chineses) os proprietários de empresas e, por isso, aqueles que providenciam postos de trabalho. Não por acaso, chama atenção que, em Moçambique, continue a ser relativamente comum ouvir de pessoas com alguma posse material, a expressão “os brancos que ficaram somos nós”, ou então as pessoas da classe popular chamarem por “mulungo/muzungo/mukhunha” (“branco” nas diferentes línguas moçambicanas), ao seu patrão negro ou a uma pessoa para quem prestem serviço.
Entretanto, considera Ribeiro (2012), embora esta avaliação tendencialmente positiva sobre minorias raciais não constitui, em si, obstáculo à existência de tensões. A verdade é que, na actualidade ou no passado, globalmente, o contexto social moçambicano tem sido favorável à afirmação de minorias raciais.
Um aspecto, nas duas pesquisas, que se deve fazer necessariamente referência tem a ver com a questão da mestiçagem racial. Moçambique, tendo tido contacto com o povo europeu e asiático, naturalmente surgiu a mestiçagem racial. Aos dois pesquisadores não escaparam as nuances na relação entre os mulatos ou mestiços com outros grupos raciais, sobretudo aquele que é maioritário, o dos negros. O estudo de Serra (2000) constatou a recusa sistemática da aceitação da mestiçagem sendo que os mulatos são estigmatizados, percebidos como não tendo pátria, como quem diz, como sendo moçambicanos que não são de gema ou “originais”.
Ribeiro (2012) também constata que junto da população negra se percebe um olhar estereotipado sobre os mestiços, fenómeno que até teve origem nas tensões raciais que vem do passado colonial. Aos mestiços, pois, são associados todo um conjunto comportamentos socialmente censuráveis como a vaidade, o distanciamento, a prostituição (no caso delas), o crime, etc. Entretanto o autor chama atenção que embora sejam inegáveis as demarcações raciais no país, os estereótipos são mútuos e não são excessivamente generalizáveis, por isso, na relação negro-mestiço dificilmente se pode falar da existência de racistas e vítimas.
Como se depreende dos dois estudos, provavelmente Moçambique não é um país que possa ser caracterizado pela existência de um racismo de grande intensidade, daí falar-se da existência de um racismo estrutural, de conflitos raciais, racismo explícito, etc. Entretanto, parece-nos, persiste ainda alguma dificuldade. Na verdade, percebemos a partir dos dois estudos, há a perceção nos moçambicanos de que no seu país há racismo, porquanto os bens sociais são desigualmente distribuídos, sendo que os negros, a esmagadora maioria da população, é desfavorecida.
A ideia de que esta perceção poderia ser apenas uma justificativa a que recorrem os desfavorecidos para explicar a sua situação de desvantagem, no quadro das disputas pelos bens sociais, até pode ser alegada. Entretanto, objetivamente, há uma distribuição desigual dos bens sociais, em desfavor dos negros. E trata-se de um quadro que vem do passado e se perpetua. Efectivamente e como bem referiu Ribeiro (2012) o contexto moçambicano tem sido favorável à afirmação de minorias raciais particularmente de brancos, “indianos” e chineses. Verdadeiramente, pelo menos no plano económico elas tendem a tornarem-se hegemónicas. Veja-se, a propósito, temos visto na televisão e não só, que nas reuniões organizadas pelas associações de empresários com seus membros, os seus participantes não refletem a composição racial do país. Há um número desproporcionalmente maior de pessoas ou de raça branca ou então mestiços.
Em face das questões acima discutidas e partindo da ideia de que a educação é das principais instituições sociais que dota os indivíduos de um sentido de mundo, que por sua vez determina o comportamento social desses mesmos indivíduos no mundo social (BERGER; LUCKMANN, 2004), a questão que se pode colocar é: que transformação sofreu a escola formal depois da independência, do ponto de vista racial, para formar cidadãos moçambicanos/africanos livres de ideias e valores coloniais e, assim, capazes de assumir a sua identidade africana com orgulho e dispostos a recuperar e conduzir a sua cultura e história?
Como esta escola prepara os moçambicanos para superaram a manientacão cultural de que foram vítimas e adotarem uma cidadania esclarecida a partir da qual não vão encontrar na raça quer um fator de afirmação, por via da exclusão daquele outro que é diferente, por pertencer a uma outra “raça”?
Importa clarificar acerca de “raça” percebemos o conceito como um constructo social, portanto, mais do que relativo a características físicas dos seres humanos, é sobretudo um constructo social. Na verdade, estamos de acordo com reflexões, como por exemplo de Almeida (2018), que chamam a atenção para a controvérsia a volta do conceito. Explica o autor, trata-se de um conceito historicamente situado na modernidade, dinâmico e à sua volta há contingência, conflito, poder, em suma, trata-se de um conceito histórico e relacional. Entretanto, seja como for, ele tem valor analítico porquanto nos permite perceber o quadro das relações sociais.
Outrossim, como esta escola prepara os moçambicanos para não se inferiorizarem perante o outro, particularmente brancos e mestiços, que historicamente foram considerados como homens superiores a si e agirem no sentido de se afirmarem nos campos económico, artístico, académico, etc.
O argumento no artigo é de que, com a independência, a escola moçambicana não foi suficientemente transformada na sua ideologia racista, no sentido de, nas suas finalidades e consequentes práticas, contribuir de forma efetiva para a não inferiorização do negro. Mais ainda, ela não é ainda um espaço suficientemente consolidado do ponto de vista de desenvolvimento de competências para a liberdade, para a autonomia e para convívio saudável com a diversidade, por parte da esmagadora maioria negra.
2 METODOLOGIA
Em termos metodológicos faremos recurso a uma análise bibliográfica, ao estudo documental das políticas da educação do pós-independência, com realce para a Lei 4/83 que cria o Sistema Nacional de Educação (SNE) em Moçambique, para aferirmos as transformações supostamente operadas em contraposição a carga ideológica da inferioridade do negro, em relação ao branco, da era colonial e as suas consequências.
Assim, no artigo, em termos de estrutura, primeiro, porque o passado colonial tem que ser convocado para se perceber o quadro hoje prevalecente, iremos aflorar a estrutura profundamente racista da sociedade colonial, bem como o papel jogado pela educação para produção e reprodução dessa mesma sociedade. Num segundo momento iremos nos debruçar sobre o projecto de sociedade que se procurou construir no pós-independência e iremos discutir sobre como a educação construída para viabilizar esse (novo) projecto de sociedade Moçambique (não) se transformou no sentido de se tornar numa escola libertária e que forma para uma cidadania orgulhosa da condição de ser negro e, por isso, ativa no sentido de fazer face a todos tipos de discriminação, nomeadamente a discriminação de com base na raça.
3 REVISÃO DE LITERATURA
Numa sociedade como Moçambique em que 99% da população é negra, podemos falar de racismo? Para lograrmos responder a esta questão talvez iniciássemos por afirmar que adotamos neste trabalho, como já dito acima, com Schucman (2014, p. 85), o conceito de “raça social”, entendendo a raça, não como um dado biológico, mas como uma categoria construída socialmente com base em uma ideia biológica errónea, mas “eficaz socialmente, para construir, manter e reproduzir diferenças.” Na mesma senda, dir-se-ia que a existência de raças humanas ainda que não encontre suporto nas ciências biológicas, é, do ponto de vista social, plenamente existente “produto de formas de classificar e de identificar que orientam as ações dos seres humanos.” (SCHUCMAN, 2014). Podemos afirmar que em Moçambique, tal como no mundo, a existência de raças humanas foi uma construção histórica (ALMEIDA, 2018).
Em Moçambique para se compreender o fenómeno do racismo tem que se recuar ao período imperial e colonialista em que devido a necessidade de dominação, o estado colonial recorreu a ideologia essencialista da raça tendo dividido, classificado, hierarquizado, os seres humanos, atribuindo privilégios a uns em detrimento dos outros (BENTO, 2002; SCHUCMAN, 2014). Neste caso, ao sujeito branco foram dados privilégios.
Assim, no racismo “o que está em jogo é que a hierarquia social entre os grupos é definida pela ideia de raça.” (SCHUCMAN, 2014, p. 85). O Moçambique colonial e na África colonizada por Portugal, o racismo é claramente reconhecível a partir das categorias coloniais de indígena, assimilado e cidadão português (Lei 39.666 de 1953). O indígena era o que não era cidadão, o assimilado é aquele indígena que, manipulado se submete aos critérios portugueses para o acesso a alguns serviços básicos, como educação, emprego, tornava-se português à custa do abandono dos seus costumes e cultura.
Poderíamos considerar o fenómeno de assimilação como o processo de branqueamento do africano, conceito sem o qual ficaria muito difícil debater questões de raça e racismo em Moçambique e nas ex-colónias portuguesas mesmo hoje. Mas o branqueamento, no caso também de África, foi possível graças a branquitude. Contrariamente a ideia de que o branqueamento é “um problema do negro que, descontente e desconfortável com sua condição de negro, procura identificar-se como branco, miscigenar-se com ele para diluir suas características raciais.” (BENTO, 2002, p. 5). Nós entendemos, como Eduardo Mondlane de que o africano, a dado passo, percebeu que algumas coisas ligadas à modernidade europeia não eram inseparáveis da cultura europeia (MONDLANE, 1995). Mas também, como Fanon (1968), que o africano se foi imaginando a desfrutar do padrão europeu de vida e daí ter projectado, manipulado, algumas vezes, sua vida nessa direção. Ou seja, através de uma aprendizagem performativa, padrões, modelos, brancos foram sendo assumidos pelo africano sobretudo o assimilado.
Mas no branqueamento, como é visto em alguns estudos de Bento (2002), o branco não foi na África, nem na era colonial nem no presente, passivo em relação ao branqueamento. Este foi inventado, mantido, por ele. O branco, em Moçambique também, parafraseando Bento (2002), se fez de padrão de referência, fez uma apropriação simbólica fundamental, “que vem fortalecendo a auto-estima e o autoconceito do grupo branco em detrimento dos demais, e essa apropriação acaba legitimando sua supremacia econômica, política e social.” (BENTO, 2002). E como dirá ainda esta autora: “O outro lado dessa moeda é o investimento na construção de um imaginário extremamente negativo sobre o negro, que solapa sua identidade racial, danifica sua auto-estima, culpa-o pela discriminação que sofre e, por fim, justifica as desigualdades raciais.” (BENTO, 2002, p. 5).
Por via da introjeção, mais sobretudo da branquitude (BOAVENTURA, 2020; CARDOSO, 2018), o negro acabou, muitas vezes, incorporando os preconceitos e estereótipos racistas coloniais. Por isso no Moçambique independente, falaríamos de racismo estrutural em que, não se manifestando nos indivíduos explicitamente no cotidiano, se encontra inscrito na estrutura social pelo processo de branqueamento. Esta verificação nos remete a um outro conceito que seria útil para se estudar a descriminação em Moçambique a partir de uma pretensa raça que seria o racismo cultural (SCHUCMAN, 2014).
Segundo Schucman (2014, p. 85), contrariamente ao racismo biológico o racismo cultural “justifica as hierarquias sociais com base numa ideia essencialista de cultura em que diferenças linguísticas, religiosas e de modo de vida diferentes grupos são significados como inferiores ou inassimiláveis à cultura dominante.” Neste tipo de descriminação baseada na ideia de raça, temos um racismo sem raça (SCHUCMAN, 2014, p. 85)
Nesta senda, as políticas da educação de Moçambique não trataram directamente do racismo. Elas partiram da ideia de que uma vez derrotado o colonialismo, vivemos numa sociedade sem racismo. Que vivemos numa sociedade global ou universal. Fleuri (apud SILVA; BRANDIM, 2008, p. 53), a propósito, se refere ao carácter opressivo da globalização em relação à identidades culturais diversas “sobretudo quando globalizar pode significar homogeneizar, diluindo identidade e apagando marcas de culturas ditas inferiores.”
Portanto, o problema reside mesmo aqui. Nas sociedades contemporâneas as lutas pelo poder não se desenrolam apenas no campo econômico, mas também e, sobretudo, no cultural. E neste campo, repetimos, há a produção da ideologia do branqueamento, centrada numa visão eurocêntrica e a reversão deste panorama, como assinalado por Santos (1997), passa pela emancipação dos homens.
A reversão só pode surgir no multiculturalismo, quer dizer, num quadro em que impere o respeito e o diálogo intercultural. Sendo, logo, precisamente aqui onde entra o papel da educação. Alguns autores olham para esta com esperança na medida em que o quadro caracterizado pela imposição cultural, “demanda novos saberes, novas competências, um novo jeito de pensar e de agir, enfim um novo perfil de formação de cidadão.” (SILVA; BRANDIM, 2008, p. 55).
Mas o que é o multiculturalismo? Explicam os autores, trata-se um movimento teórico e social, engajado na defesa da diversidade cultural, particularmente no campo da educação, sendo que ele
Questiona os conhecimentos produzidos e transmitidos pelas instituições escolares, evidenciando etnocentrismos e estereótipos criados pelos grupos dominantes, silenciadores de outras visões de mundo. Busca, ainda, reconstruir e conquistar espaços para que essas vozes se manifestem, recuperando histórias e desafiando a lógica dos discursos culturais hegemônicos […] partem da necessidade de compreensão dos mecanismos de poder que regulam e autorizam certos discursos e outros não, contribuindo para fortalecer certas identidades culturais em detrimento de outras. (SILVA; BRANDIM, 2008, p. 61).
Defendemos, por conseguinte, a partir de Santos (1997) que uma educação alicerçada no multiculturalismo teria sido a via a partir da qual a questão do racismo, no contexto moçambicano, poderia e deveria ter sido convocada. Assim é porque se trata de uma educação que, em termos gerais, problematizaria o conhecimento baseado no que Santos (2002) chamou de razão indolente, aquela racionalidade que reproduz formas de pensamento que levam a praticas antidemocráticas ao desprezar relevantes experiências sociais.
4 COLONIALISMO E RACISMO EM MOÇAMBIQUE
Os portugueses, no contexto do expansionismo europeu, chegaram às terras que hoje são de Moçambique, no século XV. A partir de Cabaço (2007) percebemos que num primeiro momento a colonização portuguesa teve um caracter mercantil, com forte pendor esclavagista e depois entrou para uma fase capitalista, em que procurou fazer a ocupação efetiva do território, dada a necessidade do capital industrial e financeiro europeu de se apropriar diretamente das matérias-primas, do controle da produção e dos meios de produção dos territórios ditos ultramarinos.
Para o alcance dos seus interesses coloniais e predadores, logicamente, Portugal teve que construir uma certa ordem social. E esta ordem vai assentar na existência, em paralelo, de duas sociedades diferenciadas, a dominante e a dominada, cuja relação político-económica é permeada pela distinção “racial” (CABAÇO, 2007, p. 37).
Com efeito, surge um quadro social dual, em que num mesmo território coexistem os colonos, brancos, cidadãos de origem europeia e os colonizados, os africanos, chamados na retórica colonial por “indígenas”. A sociedade civil constituída pelos colonos, em direitos humanos e políticos reconhecidos no quadro jurídico-legal das colónias. Com os “indígenas” é diferente. Mas antes, quem eram os “indígenas”? Segundo a Lei Orgânica do Ultramar, o Decreto de Lei nº 39666, no seu artigo segundo, são “Os indivíduos de raça negra, ou seus descendentes que tendo nascido ou vivendo habitualmente nelas, não possuam ainda a ilustração e os hábitos individuais e sociais pressuposto para a integral aplicação do direito público e privado dos cuidados portugueses.” (PORTUGAL, 1954).
A forma como os portugueses percecionaram e enquadraram os africanos foi racista. A palavra “indígena” que simplesmente significa originário de determinado lugar, nativo, autóctone ganha uma conotação profundamente racista. Repare-se que ainda hoje em Moçambique o termo “indígena” tem um sentido bastante pejorativo, quer dizer, a ele está associada a inferioridade cultural ou “civilizacional”. Chamar a alguém de indígena, em alguns círculos sociais, constituiu um insulto.
Como se percebe no extrato citado, o africano, portanto indígena, é visto como aquele que não possui civilidade ou, então, possui cultura inferior ou atrasada, por comparação ao europeu colonizador. Logo, ficou legitimado que no plano dos direitos ou da cidadania, ele não fosse sujeito de direito, mas uma espécie de um cidadão de segunda, diferente do cidadão branco de origem portuguesa, que era um sujeito de direitos.
Como muito bem explica Rognon (1991) as sociedades africanas foram catalogadas pela ideologia colonial, alicerçadas na teoria evolucionista, de “primitivas”, por isso como sociedades sem história, homogêneas, elementares na sua tecnologia, etc. “Apenas para justificar uma política colonial do tipo paternalista: o nosso presente é o porvir dos povos-crianças; temos, portanto, o dever de conduzi-los à maturidade.” (ROGNON, 1991, p. 19).
Foi o que se assistiu em Moçambique. O Estado colonial português promoveu todos os meios ao seu alcance no sentido de desenvolver, segundo sua própria retórica, as aptidões e faculdade naturais dos indígenas para a transformação dos seus usos e costumes primitivos, com vista a uma aparente integração ativa na comunidade, mediante acesso à cidadania.
A educação foi chamada a participar neste esforço de condução dos africanos do seu suposto primitivismo para a “maturidade”. Neste ponto temos que trazer à colação o papel que a Igreja Católica Romana desempenhou, porquanto o Decreto-Lei 31:207, no seu Art. 66 definiu que o ensino destinado aos indígenas seria confiado aos missionários católicos.
O esforço missionário, como se percebe, e como bem aponta Golias (1993), foi integrado na ação colonizadora portuguesa, cabendo a ela o direito e o dever de ser o colonizador mental dos indígenas. Mondlane (1995) vai no mesmo sentido ao ver este ensino como “manientação cultural dos africanos”. A partir dos dois autores, por conseguinte, percebemos que o ensino específico para os indígenas, foi funcional em relação ao projecto de construção de uma sociedade colonial. Ele visava criar as condições subjetivas para o projecto colonial, como fica evidente no extrato abaixo, retirado do Estatuto Missionário, no seu artigo 68, que versa sobre as finalidades educacionais do ensino destinado aos nativos:
O ensino indígena obedecerá à orientação doutrinária estabelecida pela Constituição Política […] planos e programas terão em vista a perfeita nacionalização e moralização dos indígenas e a aquisição de hábitos e aptidões de trabalho, de harmonia com os sexos, condições e conveniência das economias regionais, compreendendo na moralização o abandono da ociosidade e a preparação de futuros trabalhadores rurais e artífices que produzam o suficiente para as suas necessidades e encargos sociais. (PORTUGAL, 1941).
Destacam-se dois aspetos, a questão da nacionalização/moralização do africano e a da sua formação para o trabalho. Em relação ao primeiro importava introjetar na personalidade dos africanos elementos que o fizesse desnaturalizado ou desenraizado, para que rejeitasse a sua sociedade de origem e abraçasse os valores europeus e coloniais, portanto, exógenos.
Para Fanon (2008), o colonizador é que cria o colonizado. Para o pensador martinicano, através do uso da língua do colonizador, o negro da classe média vive uma alienação cultural, afasta-se da sua comunidade e sofre atração pelo mundo colonizador. Quer conhecer a metrópole, quer contrair matrimónio com a mulher ou homem branco, prefere ser confundido com o europeu do que com os seus e, para isso, adota as suas formas de vestir, de calçar, a sua arte, etc., daí a máscara branca para uma pele negra. O negro vive como ser duplo, inautêntico, “ora é ele, ora não é ele” (FREIRE, 2014).
Quanto ao segundo aspecto, porque o interesse colonial era dominar para o saque das riquezas e a exploração dos homens e mulheres africanos, importava desenvolver neles alguma competência técnica para o trabalho. Não por acaso, para que os moçambicanos transitassem de “indígena” para assimilado, quer dizer para adquirirem a cidadania, eles deveriam, cumulativamente:
a) ter mais de 18 anos; b) falar corretamente a língua portuguesa; c) exercer profissão, arte ou ofício de que aufira rendimento necessário para o sustento próprio e das pessoas de família a seu cargo ou possuir bens sufi cientes para o mesmo fim; d) ter bom comportamento e ter adquirido a ilustração e os hábitos pressupostos para a integral aplicação do direito público e privado dos cidadãos portugueses; e) não ter sido notado como refratário ao serviço militar nem dado como desertor. (PORTUGAL, 1954).
Almeida (2018), embora analisando a sociedade contemporânea, é da opinião de que o racismo é sempre estrutural. Quer dizer, ele é o elemento que integra a organização económica e politica da sociedade. Ele fornece o sentido, a lógica e a tecnologia para os quadros de opressão desse outro a quem se pretende oprimir e explorar. Foi o que vimos no período colonial com a politica do assimilacionismo: a este fenómeno Paulo Freire (2014) denominou-o de invasão cultural, em que o opressor impõe os seus valores ao oprimido.
Assim é porque, na ideologia racista, os portugueses não só encontraram a justificativa moral para a colonização, a condução do africano do “primitivismo” para a maturidade, como também encontraram os meios para operacionalizar esse mesmo quadro de dominação colonial, no caso por meio da educação para os indígenas, por meio do sistema do assimilacionismo. Paulo Freire chamaria este fenómeno de manipulação, que consiste em o próprio opressor considerar-se modelo para o sucesso do oprimido nos caminhos que este deve percorrer para o alcance da pretensa civilização (FREIRE, 2014).
Como consequência deste processo anti-dialógico (FREIRE, 2014), iremos notar que o africano acaba, devido algumas falhas de entre os seus, a pensar que realmente é preguiçoso, inferior (FANON, 1968), caindo no que Freire chamaria de auto-desvalia (FREIRE, 2014).
O colonizado, porque realmente precisava dos direitos de que o colonizador usufruía, caiu no dilema de, ao mesmo tendo que odiava o colonizador e as suas práticas, ambicionar o seu padrão de vida (FANON, 1968): ora é ele, ora não é ele, ficando inautêntico, duplo (FREIRE, 2014). Por isso, alguns moçambicanos assimilados, membros da pequena burguesia e/ou da classe média, escolarizados, assalariados geralmente do sector privado, residentes nas regiões periurbanas ou nos bairros urbanos pobres, e muitos deles mestiços que existencialmente transitam entre o mundo dos brancos (dos pais) e dos negros (de suas mães), consideravam-se portugueses e por isso lutavam, não pela transformação radical da situação colonial (independência), mas pelo acesso a cidadania portuguesa, pela integração na sociedade colonial (ZAMPARONI, 2002).
Freire (2014) é do ponto de vista de que os oprimidos (colonizados) aprendem a viver numa situação de subalternidade acabando por naturalizar uma estrutura de sociedade em que uns comandam e outros obedecem, o que leva a que ele tenha medo de se libertar, ou por temer a responsabilidade, uma vez não conhecendo outro modelo de vida senão o que o colonizador o habituou ou então pelo fatalismo.
Banthu Steve Biko (1990), sul africano morto as mãos do Apartheid, é um icónico lutador e pensador da condição dos negros, a quem define como aqueles que por lei ou tradição, são discriminados política, econômica e socialmente, enquanto grupo. Todavia, para ele, ser negro vai para além da aparência física. Segundo explicita, ser negro é o reflexo de uma atitude mental. Por isso, a descrição de si mesmo como negro, já é o início da caminhada rumo à sua emancipação, já é o prenuncio do seu comprometimento com a luta contra as forças que procuram usar a negritude como um rótulo que caracteriza a subserviência (BIKO, 1990)
Dissemos acima, a partir de Berger e Luckmann (2004), percebemos que a educação dota aos indivíduos de um sentido do mundo a partir do qual estes vão agir no meio social. A partir de Biko (1990) percebemos que ser negro não é necessariamente uma questão de cor da pele, é acima de tudo uma questão cultural, de significação de si mesmo e de compressão do seu lugar no mundo, na sua relação com os outros.
Naturalmente, para que o negro se autocompreenda como uma construção socio histórica, como alguém que se enquadra dentro de relações de poder existentes na sociedade e que ocupa uma posição subalterna, faz-se necessário o papel de uma educação emancipadora.
Ate que ponto esta educação que veio com o projecto socialista de sociedade esteve a altura do desafio de contribuir para a desconstrução da personalidade negra produzida pelo colonizador e, desse modo, auxiliando o moçambicano, retomando Biko (1990, p. 66), a desenvolver a consciência negra, que significa
[...] a perceção pelo homem negro da necessidade de juntar forças com seus irmãos em torno da causa de sua atuação - a negritude de sua pele - e de agir como um grupo, a fim de se libertarem das correntes que os prendem em uma servidão perpétua. Procura provar que é mentira considerar o negro uma aberração do “normal”, que é ser branco. É a manifestação de uma nova perceção de que, ao procurar fugir de si mesmos e imitar o branco, os negros estão insultando a inteligência de quem os criou negros. Portanto, a Consciência Negra toma conhecimento de que o plano de Deus deliberadamente criou o negro, negro. Procura infundir na comunidade negra um novo orgulho de si mesma, de seus esforços, seus sistemas de valores, sua cultura, religião e maneira de ver a vida.
Dizíamos acima e a partir de Serra (2000) e Ribeiro (2012) que no país, não obstante os negros serem 99% da população, em termos proporcionais não são eles quem mais se beneficiam dos bens socias existentes e, paradoxalmente, as minorias raciais se vão cada vez mais afirmando, particularmente no campo económico, o que acaba estruturando as relações de poder noutros campos. Evidentemente que várias explicações podem ser convidadas. Mas o nosso processo moçambicano nos impele a considerar fortemente que pode estar por detrás deste quadro o facto de ainda não se ter desenvolvido a consciência negra nos termos postulados por Biko (1990).
A consciência de que se é um sujeito negro, que a história tornou numa mercadoria, mas que tal ocorreu num determinado momento da história da humanidade, devido a vários fatores que não interessam por ora abordar, pelo que a sua condição não deve ser visto como uma fatalidade, portanto algo imutável, deveria perpassar o discurso curricular e as correspondentes práticas escolares. Como bem refere Biko, desenvolver a consciência negra pressupõe procurar infundir na comunidade negra um novo orgulho de si mesma, de seus esforços, seus sistemas de valores, sua cultura, religião e maneira de ver a vida.
As profundas implicações do colonialismo e a sua educação sobre a personalidade dos africanos, deveria ter sido tomada em conta no processo de independência nacional, que não deveria ser só política, mas nas mais diversas dimensões, com destaque para a dimensão cultural e/ou racial, objetivando o desenvolvimento da autoestima do negro, ou então, a consciência negra, se quisermos pensar com Biko (1990). Sobre isto nos debruçaremos em seguida.
5 A TRANSFORMAÇÃO DA SOCIEDADE E DA ESCOLA
Em Moçambique, como seria de prever, sempre houve forte resistência à colonização portuguesa protagonizada pelos diferentes grupos sociolinguísticos africanos e segmentos sociais, que compõem o mosaico social de Moçambique. Entretanto em 1962 foi fundada a Frelimo (Frente de Libertação de Moçambique), que depois de uma insurreição armada que durou 10 anos, proclamou a independência nacional, em junho de 1975, dando inicio à I República moçambicana. O país já independente, dirigido pela Frelimo, procurou erguer uma sociedade socialista. Adotou uma ideologia oficial, o marxismo-leninismo. Na verdade, o marxismo pode ser visto como a referência teórica e pratica que a Frelimo usou, primeiro para lutar contra a colonização e posteriormente para construir o (novo) país.
O estado moçambicano, como mencionado, adotou o modelo de sociedade socialista, com o poder assente na “classe operária e camponesa”. Tal indicia que houve uma férrea vontade de transformar radicalmente a sociedade, tendo sido mudando o modo e a relação de produção capitalista coloniais assente numa relação de exploração, por um modelo coletivista e solidário, de benefício para todos. Não por acaso, uma das mais estruturantes e emblemáticas medidas tomadas logo depois da independência foi a nacionalização da terra, das fábricas, da educação, saúde e habitação.
Em 1983 foi aprovada a Lei 4/83 que criou o primeiro Sistema Nacional da Educação de Moçambique (SNE) do pós-independência. A questão a perceber é se a Lei 4/83, a partir da sua filosofia e das práticas escolares que certamente almejava desencadear, permite uma transformação racial da escola.
À partida, uma vez que esta lei se enquadra no contexto da construção de um novo país, liberto do jugo colonial por via de um conflito que até foi violento ou armado, era expectável que, primeiro, a lei procurasse se contrapor à exclusão que a escola colonial promoveu junto dos africanos, considerando a raça, a sua língua, a história e a cultura (invasão cultural); segundo que a lei enfrentasse o sistema dual (um para brancos e assimilados em escolas laicas e oficiais e outro para negros nas missões católicas e um sistema de formação de trabalhadores para os negros e outro de formação geral que daria acesso as universidades para os brancos e assimilados) e, terceiro, a manipulação.
A escola tornou-se, segundo o plasmado nos princípios gerais da Lei 4/83, num direito e um dever de todos os cidadãos: “a educação é um direito e um dever de todo o cidadão, o que se traduz na igualdade de oportunidades de acesso a todos os níveis de ensino e na educação permanente e sistemática de todo o povo.” (MOÇAMBIQUE, 1983, Art. 01). Esta lei vai vincar, mais ainda, o ensino universal, gratuito e obrigatório. Tal acontecia pela primeira vez para a população nativa e negra que durante o período colonial não viu como seu direito nem seu dever a educação.
O Estado moçambicano, através da Lei 4/83, leva a escola aos operários e camponeses. Com indicado no preâmbulo, o estado garante o acesso a todos operários, camponeses “e dos seus filhos a todos os níveis de ensino” e permite “a apropriação da ciência, da técnica e da cultura pelas classes trabalhadoras.” (MOÇAMBIQUE, 1983). Este grupo era a classe proletária e camponesa, indígena e negra que o colonizador tinha praticamente posto à margem do sistema da educação. Nos seus princípios, esta lei indicava que “a educação reforça o papel dirigente da classe operária e a aliança operária-camponesa” (MOÇAMBIQUE, 1983, Art. 01) para além de ter um papel impulsionador do desenvolvimento social, económico e cultural do país.
Para além de a educação se ter tornado universal, gratuita e obrigatória, a escola moçambicana, pela Lei 4/83, fez-se laica. Tendo sido confessional para os negros, como vimos, durante o tempo colonial, com a independência ela passou a ser livre do controle de qualquer religião.
A escola devia contribuir para a construção do socialismo, uma vez o país ter adotado a ideologia marxista-leninista, naquele quadro da guerra fria. A política da educação concebida logo depois da independência, por conseguinte, contrapondo-se a um sistema que tinha sido a razão da exploração do povo africano, vai conceber o socialismo como o projecto social global.
Na senda da libertação, adotou-se uma escola assente num princípio unitário como o estipulado no Art. 02, “O Sistema Nacional da Educação, composto por vários subsistemas e níveis de ensino, constitui uma estrutura orgânica, assente na unidade de objetivos, conteúdos e metodologias de educação e formação.” (MOÇAMBIQUE, 1983). Ora, sendo que no período colonial, havia um sistema dual, em que o ensino para os brancos tinha como objetivo a formação geral e dos africanos uma formação básica para o trabalho, o sistema nacional do pós-independência estabeleceu um ensino único. Portanto, esta educação, quer fosse no ensino geral quer fosse no profissional, procurava fazer uma formação geral e política dos cidadãos. Tínhamos aqui a formação omnlateral5 presente numa educação dialética (GADOTTI, 1983, p. 59).
A escola depois da independência teve como objetivo a formação do Homem Novo que seria aquele que fosse destituído da mentalidade colonial e dos valores negativos da tradição. Veja-se, a propósito, o preâmbulo da Lei 4/83, do SNE, onde se apresenta a visão filosófica da Frelimo sobre a educação
Na sociedade tradicional, a educação transmitia conhecimentos e técnicas acumuladas na prática produtiva, inculcava o seu código de valores políticos, morais e culturais sociais e dava a visão idealista do mundo e dos fenômenos da natureza. […] A dominação colonial em Moçambique impôs uma educação que visava a reprodução da exploração e da opressão e a continuidade das estruturas colonial-capitalistas de dominação. (…) A luta armada de libertação colonial representa a expressão mais alta da negação e rutura com o colonialismo e as conceções negativas da educação tradicional. […] Na sociedade Moçambicana empenhada na construção do socialismo, a educação constitui direito fundamental de cada cidadão e é instrumento central para a formação e para a elevação do nível técnico-científico dos trabalhadores. Ela é um meio básico para a aquisição da consciência social requerida para as transformações revolucionárias e para as tarefas do desenvolvimento socialistas. Na construção da sociedade socialista, o sistema de educação deve, no seu conteúdo, estrutura e método, conduzir à criação do homem novo. (MOÇAMBIQUE, 1983).
Neste preâmbulo da Lei 4/83 se lê que o colonialismo tinha imposto uma educação que tinha em vista “a reprodução da exploração e da opressão e a continuidade das estrutura colonial-capitalistas de dominação” e no que dizia respeito a tradição afirmava-se que, “Na sociedade tradicional, a educação transmitia conhecimentos e técnicas acumuladas na prática produtiva, inculcava o seu código de valores políticos, morais culturais e sociais e dava uma visão idealista do mundo e dos fenómenos da natureza” e noutro parágrafo afirmava, “Pela iniciação e rito, pelo dogma e superstição, pela religião e magia, pela tradição o indivíduo era preparado para aceitar a exploração como uma lei natural e assim reproduzi-la no seu grupo etário, na sua família, na sua tribo, etnia e raça”. Daí a pretensão de uma formação para uma visão científica e racional do mundo.
No que pode ser visto como um aparente paradoxo, uma vez que o colonizador tinha desprezado as línguas dos indígenas e supervalorizado a língua portuguesa e com base nesta tivesse excluído os indígenas do direito à educação, o sistema nacional de educação do país independente, fixa a língua portuguesa como única língua oficial e de ensino. No Art. 04, sobre os objetivos, temos que o SNE devia “difundir, através do ensino a utilização da língua portuguesa contribuindo para a consolidação da unidade nacional”. Pelo que a língua portuguesa foi assumida como instrumento da unidade nacional para um país que, nesse período, as estatísticas indicavam que existiam mais de duas dezenas de línguas nativas (MAZULA, 1995).
Como que a reparar o artigo anterior, o artigo seguinte (cinco) postula que sobre as línguas moçambicanas: “O SNE deve, no quadro dos princípios definidos na presente lei, contribuir para o estudo e a valorização das línguas, cultura e história moçambicana, com o objetivo de preservar e desenvolver o património cultural da nação”. Mas, ao que tudo indica na lei do SNE não houve ideias sobre como tal poderia ser feito o que concorreu para devotar-se as línguas, a cultura e a história moçambicanas, praticamente ao silêncio.
Pensamos, o facto de as línguas africanas terem sido proscritas do ensino, no plano cultural, representou um abalo, porquanto a língua é um repositório de cultura e por meio dela se promove a identidade de todo um povo, bem como a sua autoestima. Fora esta questão, em termos práticos, a opção pelo português como exclusiva língua de ensino certamente trouxe dificuldades ao nível da relação pedagógica, dado que a esmagadora maioria dos moçambicanos não falavam a língua portuguesa, o que não promoveu a qualidade de ensino, para além de que, pensamos, configurou violência simbólica nos termos de Bourdieu e Passeron (2008).
6 QUALIDADE DA TRANSFORMAÇÃO: RUTURA OU CONTINUIDADE?
A pergunta deste trabalho foi se a escola teria sofrido transformação no concernente ao racismo, no sentido de ela se tornar numa escola libertária e que forma para uma cidadania orgulhosa da condição de ser negro e, por isso, ativa no sentido de fazer face a todos tipos de discriminação, nomeadamente a discriminação com base na raça.
De um modo geral a escola foi transformada, se tomarmos em conta que houve uma mudança profunda da estrutura da sociedade vigente na era colonial. Paulo Freire, afirmava que a transformação da educação depende da mudança profunda de toda a situação de opressão (FREIRE, 2014). No período colonial tivemos uma sociedade colonial capitalista e com a Independência foi abraçado um projecto de uma sociedade socialista. O estado nacionalizou a terra, habitação, a saúde e a educação.
A escola ou a educação passou a ser um direito e um dever para todo o povo moçambicano, e constitui-se num direito para a classe trabalhadora, que era a esmagadora maioria do povo moçambicano. Entretanto para a nova escola os africanos entraram fisicamente, mas a sua alma continuou fora. A Frelimo caiu na armadilha de um marxismo autoritário, ela considerou que a sociedade tradicional africana conduzia a uma “visão idealista do mundo e dos fenómenos da natureza.” (MOÇAMBIQUE, 1983). Considerou que a sociedade autóctone africana teria contribuído através dos ritos de iniciação, “pelo dogma e superstição, pela magia e pela tradição”, para a aceitação e reprodução da exploração. Logo por parte da Frelimo houve a rejeição da cultura ancestral africana.
Como consequência do que afirmamos anteriormente, não encontramos na lei 4/83, uma orientação para o resgate da cultura ancestral africana e a sua introdução no currículo. Sabemos que uma das primeiras medidas do governo no âmbito da educação foi a transformação dos conteúdos que tinham maior conotação ideológica colonial como a língua portuguesa, História e Geografia, que no passado tinham exaltado a cultura, a epopeia do país colonizador, mas não descobrimos nas disposições legais do SNE o esforço de devolver o ethos africano à escola moçambicana.
A língua portuguesa foi escolhida como língua oficial e como língua de ensino sob a justificativa de assim se contribuir para a unidade nacional. O censo de 1980 indicava que em Moçambique havia 16 grupos étnicos e 24 línguas (MAZULA, 1995). Neste cenário seria difícil escolher uma, de entre as línguas moçambicanas, para ser a língua oficial. Embora no Art. 05 da Lei 4/83 se oriente que o SNE devesse contribuir no estudo e valorização das línguas e cultura moçambicanas, a mesma lei ficou silenciosa em relação aos mecanismos claros para a consecução desse objetivo. O benefício da distância histórica nos assegura que muito pouco foi feito. Na lei que temos estado a analisar, seria de esperar que, no mínimo, os idiomas moçambicanos fossem introduzidos (na escola) como línguas secundárias ou auxiliares de ensino.
Mazula (1995) na análise que faz sobre o processo politico e educacional moçambicano no pós-independência é muito critico. Segundo desenvolve, a forma como a Frelimo enquadrou a questão cultural faz com que uma das maiores fragilidades do processo revolucionário que ela realizou, que se expressa, na educação, na construção do homem novo, seja que procurou fazer uma revolução sem uma base antropológica firme. Argumenta Mazula (1995), a Frelimo foi incapaz de, no campo cultural, estabelecer a ponte entre o discurso e a prática. Ao mesmo tempo em que exalta ou via a cultura como essencial (ela dizia que se propunha a resgatar a personalidade cultual do moçambicano), paradoxalmente não incentiva estudos culturais e a adoção de hábitos culturais autóctones, para dar substância antropológica à própria revolução.
Portanto, os dados e as analises existentes sustentam a ideia de que o povo moçambicano, mais uma vez ou naquilo que foi continuidade com o passado, foi sobretudo visto por lentes eurocêntricas, como força de trabalho para o desenvolvimento económico rumo a construção do socialismo e não como sujeito histórico, com cultura e idiossincrasia: eis porque a escola era para o reforço da capacidade dirigente da classe operária-camponesa. A cultura das mesmas pessoas que compõem classe operária-camponesa, é criticada e sobretudo excluída da escola.
Este quadro não é surpreendente segundo Cahen (2005), pois a Frelimo durante a sua constituição era formada pelos antigos assimilados e/ou pela pequena burguesia africana e pelos camponeses e, em sua opinião, o projecto vitorioso foi o da antiga elite africana do tempo colonial (assimilados/pequena burguesia). Partindo deste pensamento, concluímos que a escola edificada teve como matriz a pedagógica colonial (branqueamento), embora paradoxalmente portasse um discurso de ódio, de combate da exploração e opressão colonial.
A escola que o nosso estado implantou, portanto, foi autoritária, o que não permitiu o diálogo entre a elite e a classe trabalhadora que a mesma dizia servir. A consequência foi o grande fracasso escolar que se seguiu depois da explosão escolar entre 1975-1980 e expresso pelas grandes desistências e reprovações (MAZULA, 1995). Este fenómeno concorreu para que houvesse uma reprodução de uma estrutura de classes favorável ao grupo assimilado, para quem era mais familiar a cultura escolar europeia e que, consequentemente, foi se apoderando da maior parte dos recursos nacionais, o que criou uma nova forma de descriminação baseada não na pele, mas na posse dos meios de sobrevivência (ALMEIDA, 2018).
A outra consequência é que à educação concebida pela Frelimo depois da Independência não foi confiada a tarefa de discutir a situação colonial de forma dialógica. A educação foi conduzida por meio de slogans, de comunicados e de cima para baixo (FREIRE, 2014). Em nossa opinião e, na peugada de Freire (2014), a educação para a libertação faz-se pela problematização, pela comunicação, não para os operários e camponeses e sim com eles, numa relação horizontal.
A educação para a libertação deve permitir, como afirmaria Mondlane (1995), em relação ao nacionalismo moçambicano, a criação de uma consciência de uma identidade comum de explorados o que por sua vez aglutina para uma luta comum. O Professor Kabenguele Munanga (2012, p. 12) vai na mesma direcção:
Tomada de consciência de uma comunidade de condição histórica de todos aqueles que foram vítimas da interiorização e negação da humanidade plena pelo mondo ocidental, a negritude deve ser vista também como confirmação e construção de uma solidariedade entre as vítimas.
A escola confessional africana do tempo colonial, de certo modo foi reintroduzida com a doutrinação política de partido único que se tinha referido a si mesmo como guia do povo moçambicano, porquanto o texto constitucional de 1975, no seu Art. 03 referia que a então República Popular de Moçambique era “orientada pela linha política definida pela Frelimo, que é a força dirigente do Estado e da Sociedade. A Frelimo traça a orientação política básica do Estado e dirige e supervisa a ação dos órgãos estatais.” (MOÇAMBIQUE, 1975).
7 À GUISA DE CONCLUSÃO
O presente trabalho tinha como objetivo compreender como a escola racista colonial foi transformada depois da independência em Moçambique. E para isso servimo-nos do estudo documental e analisamos a primeira lei do SNE; procuramos usar bibliografia que se debruçou sobre a estruturação de uma sociedade racista na era colonial, a revolução moçambicana, a mudança da escola, etc.
A nossa reflexão foi sustentada pela ideia de que a escola moçambicana, do ponto de vista racial, não foi transformada. E partimos do pressuposto de que a raça é uma construção social e não uma forma biológica.
A partir da análise feita, podemos perceber que a questão racial em Moçambique está diretamente ligada ao colonialismo, tendo sido o colonizador o criador do mundo colonial, da personalidade do colonizado e da sua alienação (branquitude). Esta última será o que de mais difícil tinha a escola de pós-independência com que lidar. Como se costuma dizer, é mais fácil expulsar o colonizador fisicamente, mas o mais difícil é libertar-se do mesmo mentalmente. Isto não foi diferente em Moçambique. Não só pela falta da capacidade humana desejável, mas também como consequência do próprio colonialismo, como seja, a branquitude.
Denota-se que a política da educação de 1983 foi menos corajosa para expulsar o colonizador mentalmente tendo edificado uma escola de discurso de ódio ao colonialismo, mas de ethos, que continuou dominado pela cultura europeia/ocidental que, no mínimo, o antigo assimilado e seus descendentes é que eram mais próximos, o que resultou na sua vantagem e privilégios para transcendência pelos bens materiais em relação a maioria do povo, o que desemboca para novos tipos de descriminação racial. É este racismo estrutural-cultural que habita hoje a sociedade moçambicana ou que se reencarnou no colonizado com que Moçambique hoje deve se bater.
O marxismo autoritário no país, edificou um socialismo do estilo europeu baseado numa razão eurocêntrica, o que resultou no reconhecimento do operário e camponeses moçambicanos como mão-de-obra e não como seres humanos colonizados portadores de cultura. Esta última categoria não foi tomada na sua dimensão mais ampla, como relação entre o homem, a natureza e outros seres, capaz de produzir símbolos e significados, mas como simples mediador de relação entre o homem (e a mulher) e o mercado laboral.
Não houve desenvolvimento omnilateral para a constituição de sujeitos dialógicos que através da sua linguagem, mediatizados pelo mundo, fossem juntos capazes de nomeá-lo e transformá-lo. A Lei 4/83 não mobilizou os agentes da educação a trabalhar com a alienação do colonizado, com os mitos coloniais, a manipulação, a invasão cultural.
A política moçambicana soube bem o que atacar para transformar a escola do ponto de vista do racismo, trabalhando o colonialismo, mas fê-lo com lentes erradas, ao não se tornar multicultural, continuaram as máscaras brancas de peles negras. Assim, pensamos que esta educação não formou mulheres e homens negros livres, portanto destituídos de toda a carga negativa da educação de pendor racial do período colonial. Pensamos, só com uma educação que aborda a questão racial de forma consciente estarão lançadas as bases para que o cidadão produto da mesma, com autoestima e confiança aborde o futuro, nas múltiplas dimensões da vida. Steve Biko (1990, p. 66) é claro a este respeito: “a libertação tem importância básica no conceito de consciência negra, pois não podemos ter consciência do que somos e ao mesmo tempo permanecermos em cativeiro. Queremos atingir o ser almejado, um ser livre.”
Uma nota. Neste artigo analisamos transformação da escola em Moçambique a partir da Lei 4/83. Entretanto esta lei foi revogada pela Lei 6/92 (1992) que, também, foi posteriormente revogada pela Lei 18/18 (2018). Futuras pesquisas precisam verificar com mais detalhe como é que as duas leis subsequentes lidaram com a questão do racismo. Entretanto, nos parece, ambas não trouxeram ainda mudanças de fundo. Mas esse não é o escopo deste trabalho.