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Revista Práxis Educacional

On-line version ISSN 2178-2679

Práx. Educ. vol.16 no.42 Vitória da Conquista  2020  Epub May 17, 2024

https://doi.org/10.22481/praxisedu.v16i42.6636 

Artigos

INTERAÇÕES DISCURSIVAS SOBRE A CONTEXTUALIZAÇÃO MATEMÁTICA NA EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS

DISCURSIVE INTERACTIONS ON MATHEMATICAL CONTEXT IN YOUTH AND ADULT EDUCATION

INTERACCIONES DISCURSIVAS SOBRE EL CONTEXTO MATEMÁTICO EN LA EDUCACIÓN DE JÓVENES Y ADULTOS

Neomar Lacerda da Silva 1  
http://orcid.org/0000-0002-1683-2237

Andréia Maria Pereira de Oliveira 2  
http://orcid.org/0000-0002-8011-5179

Marlécio Maknamara 3  
http://orcid.org/0000-0003-0424-5657

1Universidade Federal da Bahia - Brasil nlsmat@hotmail.com

2Universidade Federal da Bahia - Brasil ampo@ufba.br

3Universidade Federal de Alagoas - Brasil maknamaravilhas@gmail.com


RESUMO

Resumo: O artigo objetivou problematizar o discurso da contextualização matemática e sua relação com práticas discursivas mobilizadas pelos sujeitos curriculares da Educação de Jovens e Adultos (EJA). Para tanto, usamos informações secundárias produzidas por meio de entrevistas com estudantes e professores/as que ensinam matemática nessa modalidade de ensino. Em diálogo com autores (as) do campo da Educação Matemática, operamos com ferramentas teórico-analíticas como discurso e poder-saber na perspectiva pós-crítica de estudos curriculares, sobretudo aqueles que se inspiram nas contribuições de Michel Foucault e colaboradores, para assumir as práticas de numeramento enquanto discursivas, portanto, produtoras de verdades acerca do Ensino de Matemática. A análise sugere que práticas de numeramento que têm lugar na EJA encontram-se atravessadas por relações de poder-saber, que estabelecem, compreendem e produzem discursos como o da contextualização matemática, engendrados no mecanismo da aplicabilidade, para instituir regimes de verdade que naturalizam a hegemonia da matemática formal (acadêmica e escolar) e o discurso da contextualização, e de como os sujeitos curriculares da EJA são capturados por esse discurso.

Palavras-chave: Contextualização matemática; Discurso; Práticas de numeramento

ABSTRACT

Abstract: The objective of the article was to problematize the discourse of mathematical contextualization and its relation with discursive practices mobilized by the subjects of Youth and Adult Education. For that, we used secondary information produced through interviews with students and teachers who teach mathematics in this teaching modality. In dialogue with authors from the field of Mathematics Education, we operate with theoretical-analytical tools such as discourse and power-knowledge in the post-critical perspective of curricular studies, especially those inspired by the contributions of Michel Foucault and collaborators, to assume numeracy practices as discursive, therefore, producing truths about the Teaching of Mathematics. The analysis suggests that numeracy practices that take place in Youth and Adult Education are crossed by relations of power-knowledge, which establish, understand and produce discourses such as that of mathematical contextualization, engendered in the mechanism of applicability, to institute regimes of truth that naturalize the hegemony of formal mathematics (academic and school) and the discourse of contextualization, and of how the subjects of Youth and Adult Education are captured by this discourse.

Keywords: Discourse; Mathematical contextualization; Numeracy practices.

RESUMEN

Resumen: El artículo tuvo como objetivo problematizar el discurso de la contextualización matemática y su relación con las prácticas discursivas movilizadas por las asignaturas curriculares de la educación de jóvenes y adultos. Para eso, utilizamos información secundaria producida a través de entrevistas con estudiantes y maestros que enseñan matemáticas en esta modalidad de enseñanza. En diálogo con autores del campo de la Educación Matemática, operamos con herramientas teórico-analíticas como el discurso y el conocimiento del poder en la perspectiva poscrítica de los estudios curriculares, especialmente aquellos inspirados en las contribuciones de Michel Foucault y colaboradores, para asumir las prácticas de numeración como discursivas, por lo tanto, producir verdades sobre la Enseñanza de las Matemáticas. El análisis sugiere que las prácticas de numeración que tienen lugar en la educación de jóvenes y adultos están cruzadas por relaciones de poder-conocimiento, que establecen, comprenden y producen discursos como el de la contextualización matemática, engendrados en el mecanismo de aplicabilidad, para instituir regímenes de verdad que establece la hegemonía de las matemáticas formales (académicas y escolares) y el discurso de contextualización, y cómo las materias de Educación de Jóvenes y Adultos son capturadas por este discurso.

Palabras clave: Contextualización matemática; Discurso; Prácticas de numeración

1 Introdução

Quais efeitos discursivos são produzidos pelo currículo no Ensino de Matemática na Educação de Jovens e Adultos (EJA)? Como os discursos1 sobre a contextualização matemática determinam qual saber é considerado legítimo e qual não o é? Como os sujeitos curriculares2 da EJA se produzem no, e produzem o, discurso da contextualização matemática? Quais práticas de numeramento são constituídas e/ou mobilizadas nas narrativas dos sujeitos curriculares da EJA? E quais as constituem? Essas são algumas das questões que mobilizam as discussões que pretendemos realizar neste artigo.

Os depoimentos analisados foram extraídos do material empírico produzido numa pesquisa realizada pelo primeiro autor, a qual investigou o ensinar e o aprender matemática em turmas da EJA (SILVA, 2014). Naquele momento, o propósito foi compreender a influência de pressupostos emancipadores no Ensino de Matemática, utilizando uma compreensão teórica com base em referenciais críticos sobre educação e currículo. Nesse sentido, como esses dados foram produzidos originalmente para outros propósitos, são denominados de secundários (JOHNSTON, 2017). Aliás, nas pesquisas sob uma perspectiva pós-crítica, “preferimos chamar de ‘produção’ de informação” (MEYER; PARAÍSO, 2012, p.17, grifo das autoras), uma vez que não existem dados prontos a serem coletados.

Agora, numa releitura daquelas informações e imbuídos da desconfiança para com conceitos como emancipação, libertação e autonomia, “que supõe, todos, uma essência subjetiva que foi alterada e precisa ser restaurada” (SILVA, 2002, p. 150), e na busca por suspender significados e interrogar os textos à procura de outros caminhos, buscamos inspiração nos estudos pós-críticos3 para “montar, desmontar e remontar” (PARAÍSO, 2014, p. 37) o que fora dito.

A perspectiva pós-crítica em educação e currículo compreende o sujeito como uma invenção cultural, social e histórica e, portanto, ele não possui nenhuma propriedade essencial ou originária (SILVA, 2002). As teorizações pós-críticas não buscam uma superação das teorias críticas, mas uma ampliação no campo de discussões. Para além das questões de classe social, ampliaram as análises e “fortaleceram a resistência aos ditames da sociedade classista e alertaram que as relações de poder operam também por meio de outros marcadores sociais: etnia, gênero, religião, tempo de escolarização, local de moradia etc.” (NEIRA, 2011, p. 199).

Nessa perspectiva, sentimos a necessidade de problematizar de outros modos, ao flagramos nas narrativas produzidas com professores/as e estudantes jovens e adultos, atravessamentos discursivos sobre a contextualização no Ensino de Matemática que evidenciam tensões entre o formal e o contextual, forjadas no confronto entre uma matemática formal (acadêmica e escolar), feita por quem sabe “matemática de verdade”, e outra contextualizada, “fingida”, de certa forma mobilizada por todos, mas destinada a “facilitar” a aprendizagem daqueles que têm maior dificuldade com a disciplina.

Ao discutirmos as tensões entre o formal e o contextual não temos a pretensão de reificar verdade alguma, mas refletir e denunciar as relações de poder que atravessam os discursos e produzem práticas, sujeitos e desigualdades, engendradas nos modos de valorizar este ou aquele modo de fazer matemática, numa sociedade que é grafocêntrica4, e que assume a quantificação como seu principal critério de avaliação e tomada de decisão (FONSECA, 2015, 2017).

As discussões que suscitamos neste artigo, e os argumentos aqui desenvolvidos, se somam a outros trabalhos já desenvolvidos no campo da Educação Matemática, como em Knijnik e Duarte (2010), Souza e Fonseca (2010), Souza (2012) e Souza e Fonseca (2013), dentre outros, os quais tematizaram, se utilizando de uma perspectiva foucaultiana, sobre os regimes de verdade instaurados pela matemática acadêmica e escolar e problematizaram o enunciado5 de se trazer para a sala de aula a “realidade” de estudantes.

Knijnik e Duarte (2010), por exemplo, analisaram produções de dois importantes congressos científicos em Educação Matemática para problematizar o enunciado sobre a importância de trazer a “realidade” do estudante para as aulas de matemática. Segundo as autoras, esse enunciado é assumido, muitas vezes, enquanto inquestionável, uma “verdade” imprescindível à apresentação do conteúdo matemático (KNIJNIK; DUARTE, 2010; KNIJNIK; WANDERER; GIONGO; DUARTE, 2012). Apoiados nas teorizações foucaultianas, compreendemos que os enunciados se tornam naturalizados, enquanto verdades, pela força de suas conexões com outros, do mesmo campo discursivo, como o campo educacional (CALDEIRA; PARAÍSO, 2017).

Os discursos sobre a matemática acadêmica pregam uma ciência de números e fórmulas, desenvolvida por matemáticos profissionais, cujo ensino de procedimentos relativos ao que é próprio dos seus princípios dedutivos e indutivos fica a cargo da matemática escolar (D’AMBROSIO, 2005). A contextualização matemática se volta, pois, para os encadeamentos lógicos, formais, históricos, políticos e cotidianos do conteúdo matemático, contextualizando-o, a fim de colocá-lo a serviço do desenvolvimento intelectual, afetivo, político e cultural do estudante (DAVID; MOREIRA; TOMAZ, 2013).

Encontramos, ao menos, dois entrelaçamentos no enunciado de trazer a “realidade” do estudante para aulas de matemática: (i) trabalhar a “realidade” do estudante para torná-lo crítico e socialmente participativo; e (ii) trabalhar a “realidade” do estudante para tornar os conteúdos matemáticos significativos e despertar seu interesse. Neste trabalho, portanto, ao problematizarmos o enunciado descrito acima, nos valemos de argumentos já postos na literatura (KNIJNIK; DUARTE, 2010; SOUZA; FONSECA, 2010; KNIJNIK et al., 2012; SOUZA, 2012), seja para reconhecer as discussões já apresentadas nesses trabalhos, ou para corroborar com as análises desenvolvidas neste texto.

Se considerarmos essas tensões no Ensino de Matemática na EJA elas se tornam ainda mais complexas, pois envolvem, além da hegemonia da matemática formal, produzida discursivamente (BAMPI, 1999), o discurso da necessidade de se contextualizar seu ensino para sujeitos com especificidades delineadas por traços de exclusão sociocultural (SOARES; GIOVANETTI; GOMES, 2007; FONSECA, 2015). Outro discurso é a necessidade de usar materiais concretos no trabalho com os conteúdos matemáticos, e, ainda, a enunciação de que a matemática está presente em todos os lugares, daí a importância de sua presença nos currículos escolares (KNIJNIK et al., 2012). No entanto, neste artigo, analisaremos a enunciação relacionada à necessidade de se trabalhar com a “realidade” do estudante.

Enunciados como os que trouxemos acima conformam e estabelecem verdades entre os sujeitos curriculares da EJA e o Ensino de Matemática, sendo continuamente proferidos por estudantes e professores/as acabam por legitimar certas práticas e modos de se fazer e ensinar matemática, produzidos discursivamente, e que interferem e implicam diretamente em ações educativas para esse campo (QUARTIERI; KNIJNIK, 2012). É com esse olhar que buscaremos interrogar essas tensões e o discurso da contextualização matemática, compreendendo nossa perspectiva como uma “caixa de ferramentas” teóricas (DELEUZE; FOUCAULT, 2003) selecionadas dos estudos foucaultianos e deleuzianos para mobilizarmos o constructo práticas de numeramento (BAKER; STREET; TOMLIN, 2003; BARWELL, 2004; FONSECA, 2017).

Com base nos autores supracitados, as práticas de numeramento se inserem nas práticas de letramento, uma vez que são relacionais aos contextos nos quais se constituem e que são por elas constituídos, no bojo de uma sociedade grafocêntrica. São práticas constituídas na negociação em relações compostas por “dilemas, interpretações, valorações, escolhas, composições, imposições, enfrentamentos, adequações ou resistências que permeiam as práticas sociais” (FONSECA, 2015, p. 268) e que envolvem procedimentos, orais e/ou escritos, associados ao que conhecemos como matemática (SOUZA, 2012; FONSECA, 2015)

Para tanto, nos inspiramos em Souza (2012) para assumir as práticas de numeramento enquanto práticas discursivas, ou seja, como práticas que produzem os objetos dos quais falam (FOUCAULT, 1972), que definem os regimes dos seus objetos (FISCHER, 2001). Nelas, estudantes e professores/as fazem uso social da matemática ao produzirem significados na relação com enunciações que associamos, por seu objeto, métodos e/ou intencionalidades, àquilo que aprendemos a identificar como matemática. Enunciações sobre práticas implicadas em “ações de poder, de legitimação ou de recusa de determinados modos de fazer matemática, na medida em que conferem maior valor social a quem domina e mobiliza esse ou aquele modo, e não outros, de pensar, falar, produzir e utilizar matemática” (FONSECA, 2015, p. 268).

Ao elegermos o constructo práticas de numeramento para operacionalizar nossa análise, compreendemos as práticas matemáticas dos sujeitos da EJA enquanto “práticas sociais, produzidas por, e produtoras de, significados” (SOUZA, 2012, p. 84), nas quais estudantes e professores/as são posicionados/as pelos efeitos discursivos que ecoam no currículo (REIS; PARAÍSO, 2014) a respeito da contextualização no Ensino de Matemática. Ademais, em tais práticas, identificamos em funcionamento o mecanismo a que denominamos aplicabilidade, por meio do qual o discurso da contextualização insere-se e sustenta-se.

Assim como em Souza e Fonseca (2013), vimos o constructo práticas de numeramento ser fértil para as discussões realizadas neste trabalho, uma vez que são práticas relacionais às experiências matemáticas mobilizadas por estudantes e professores/as da EJA quando falam ou fazem matemática (FONSECA, 2015, 2017). Nossa intenção se volta, portanto, não a análise e a identificação de habilidades matemáticas desses sujeitos, mas as posições que eles ocupam no jogo interdiscursivo quando se envolvem ou falam de matemática.

Nesse ensejo, o objetivo deste artigo é problematizar o discurso da contextualização matemática e sua relação com práticas discursivas mobilizadas pelos sujeitos curriculares da EJA. No intuito de colocar tal discurso em suspensão, organizamos o estudo em seções intercaladas, a saber: esta introdução; a segunda seção com considerações metodológicas e a perspectiva de análise; a terceira seção com os discursos da matemática acadêmica e da matemática escolar; na quarta seção, o discurso de que é preciso se trabalhar com a realidade de estudantes e seus entrelaçamentos e, por fim, nossas considerações (in)conclusivas.

2 Considerações metodológicas e a perspectiva analítica

O material empírico que subsidiou nossas análises foi produzido prioritariamente por meio de observação de aulas e entrevistas com estudantes da EJA (trabalhadores e trabalhadoras) e com 02 professoras e 02 professores que lecionavam matemática nas turmas, numa cidade do interior da Bahia (SILVA, 2014). Contudo, neste artigo, nos interessa as transcrições das entrevistas as quais recortamos os trechos que consideramos significativos, enunciações em que os discursos foram forjados dentro de uma racionalidade de matriz cartesiana, que confere à matemática o poder de controlar e ditar posições hegemônicas. Como já anunciado, faremos uma releitura dessas informações à luz de contribuições foucaultianas. São, portanto, dados secundários, isto é, produzidos e registrados para outra interrogação de pesquisa (JOHNSTON, 2017); contudo, ao revê-los, surgiram outras problematizações.

O estudo foi desenvolvido em 03 (três) escolas que ofertavam o segmento II, organizado com os módulos I, II, III e IV, que correspondem ao Ensino Fundamental do 6° ao 9° ano. As entrevistas semiestruturadas foram utilizadas como forma de dissolver dúvidas que ficaram com a observação, além de registrar as posições desses sujeitos (professores/as e estudantes) sobre aquilo que falam ou fazem com a matemática, foco do nosso interesse neste artigo.

As entrevistas foram realizadas com alguns estudantes logo após as aulas, e com os/as professores/as foram realizadas durante as reuniões semanais de planejamento pedagógico que ocorreram no espaço da própria escola. Elas foram gravadas em áudio com a permissão dos estudantes e professores/as e com a assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE)6. A escolha dos/as professores/as, e consequentemente das escolas e das turmas nas quais trabalhavam, foi motivada por ensinarem matemática na EJA, além de manifestarem disponibilidade em participar e cooperar com a pesquisa. Por questões éticas e para preservar o anonimato de professores/as e estudantes, utilizamos nomes fictícios.

Quadro 1 Professores/as participantes da pesquisa 

Nome Formação/ Licenciatura Tempo na EJA Módulo Aulas observadas
Helena Matemática 14 anos III e IV 08 h/aula
Iza Matemática 02 anos I e II 06 h/aula
Cláudio Matemática 08 anos III/IV e IV 08 h/aula
Milton Matemática 14 anos I e III 06 h/aula

Fonte: Elaboração com base no material empírico (SILVA, 2014).

Nas abordagens teóricas conhecidas como pós-críticas, os pressupostos e procedimentos teórico-metodológicos são selecionados e organizados em razão da especificidade de cada estudo, sendo os conceitos compreendidos como ferramentas para operar e conduzir as investigações (PARAÍSO, 2014). Desse modo, ao selecionarmos os estudos foucaultianos para a nossa análise, nos inspiramos em Souza (2012) para assumir as práticas de numeramento enquanto práticas discursivas, para interrogar e suspender discursos sobre o currículo e o Ensino de Matemática que instituem à matemática formal (acadêmica e escolar) e à matemática contextualizada seus efeitos de verdade (SOUZA, 2012; SOUZA; FONSECA, 2013).

Tal perspectiva faz-nos analisar os discursos em termos de suas positividades, isto é, de suas condições de realidade para enunciados (FISCHER, 2001). Isso significa perguntar pelos efeitos de verdade e poder dos discursos, por seus mecanismos e estratégias produtivos (FOUCAULT, 2004). Perguntar, por exemplo, por meio de quais mecanismos e estratégias de poder o discurso da contextualização matemática empreende seu exercício produtivo.

Para tanto, na análise, buscamos identificar enunciações discursivas que valorizam um modo específico de se fazer matemática em detrimento de outro, muito por conta de uma lógica fundamentada numa racionalidade de matriz cartesiana, que gera tensões entre os discursos da matemática acadêmica e escolar e da contextualização. Sem, contudo, desconhecer ou negar os critérios utilizados para diferenciar essas unidades, conforme diz Foucault, na Arqueologia do Saber (1972), é preciso partir das unidades dadas, estudar sua configuração interna, mas não se colocar no interior dessas unidades duvidosas. Assim, apoiar-se nelas apenas o tempo suficiente para perguntar que unidades formam, e, então, mantê-las em suspensão, “sacudir a quietude com a qual as aceitamos; mostrar que elas não se justificam por si mesmas, que são sempre o efeito de uma construção” (FOUCAULT, 1972, p. 29).

Para tanto, Baker, Street e Tomlin (2003) e Barwell (2004) observam que as práticas de numeramento não são unidades observáveis de análise, e propõem uma distinção entre eventos e práticas de numeramento. Segundo esses autores, eventos de numeramento correspondem a momentos nos quais uma atividade de numeramento constitui as interações e os processos interpretativos entre as pessoas, ou seja, quando elas fazem, ou falam sobre matemática. As práticas de numeramento, no entanto, são “não apenas os eventos nos quais há uma atividade numérica envolvida, mas concepções culturais mais amplas que dão significado ao evento” (BAKER; STREET; TOMLIN, 2003, p. 12).

Desse modo, é com o olhar nos eventos de numeramento narrados por estudantes e professores/as da EJA para problematizarmos as práticas de numeramento, que esta pesquisa opera com ferramentas teórico-analíticas como discurso e poder-saber, na perspectiva pós-crítica de estudos curriculares, sobretudo aqueles que se inspiram nas contribuições de Michel Foucault e colaboradores, para problematizar o Ensino de Matemática (KNIJNIK; DUARTE, 2010; SOUZA; FONSECA, 2010; KNIJNIK et al., 2012; QUARTIERI; KNIJNIK, 2012; SOUZA, 2012; SOUZA; FONSECA, 2013), na busca por contribuir com modos diferentes de analisar verdades acerca desse ensino (SILVA; GARNICA, 2012),.

3 Matemática acadêmica e matemática escolar como discursos

Ao ressignificar currículos, mostrar o que pode um currículo e registrar suas forças, seus limites e possibilidades (PARAÍSO, 2014), os estudos pós-críticos nos ajudam a compreender os processos por meio dos quais nos tornamos aquilo que somos (SILVA, 2002). As teorias pós-críticas desconfiam e denunciam que o currículo é para além de conceitos técnicos como ensino e eficiência, ou categorias psicológicas de aprendizagem e desenvolvimento, ou ainda, de imagens fixas como grade curricular e prescrições de conteúdos disciplinares. Nessa perspectiva, o currículo funciona “como linguagem, é uma prática social, discursiva e não-discursiva, que se corporifica em instituições, saberes, normas, prescrições morais, regulamentos, programas, relações, valores, modos de ser sujeito” (CORAZZA, 2004, p.10).

Como a “realidade” se constrói por dentro de uma trama discursiva (FISCHER, 2001), “o sujeito é um efeito das linguagens, dos discursos, dos textos, das representações, das enunciações, dos modos de subjetivação, dos modos de endereçamentos, das relações de poder-saber” (PARAÍSO, 2014, p. 31), e o currículo, como uma linguagem, “também produz ideias, práticas coletivas e individuais, sujeitos que existem, vivem, sofrem e alegram-se, num mundo que se produz atravessado por complexas redes de relações” (CORAZZA, 2004, p. 3-4).

Conforme os referenciais pós-críticos, o sujeito é um artifício da linguagem, ele não está dado, mas é uma produção discursiva, um efeito das relações de poder-saber, sendo aquilo que dele se diz (PARAÍSO, 2014). Conquanto, a produção discursiva é controlada, selecionada e organizada por um procedimento ao qual Foucault (2004) denominou de interdição do discurso, uma vez que “não se pode falar de tudo em qualquer circunstância, que qualquer um, enfim, não pode falar de qualquer coisa” (p. 9). Assim, ao sujeito do discurso, é imposto um conjunto de regras “segundo o qual se “sabe” o que pode e o que deve ser dito, dentro de determinado campo e de acordo com certa posição que se ocupa nesse campo” (FISCHER, 2001, p. 203, grifos da autora), perfazendo uma formação discursiva7, na qual os sujeitos nela se reconhecem, e um conjunto de enunciados que formam o discurso e que nela se apoia (FOUCAULT, 2004).

Segundo Fischer (2001), o ato enunciativo ou um ato de fala se inscreve no interior de algumas formações discursivas segundo um certo regime de verdade, ou seja, obedecemos sempre a um conjunto de regras, dadas historicamente, e que afirmam verdades de um tempo, de modo que as coisas ditas estão amarradas às dinâmicas de poder e saber de seu tempo. A verdade, assim, é sempre construída e nunca inerente aos fatos e as coisas, ditando o que pode ser aceito. No entanto, nas teorizações pós-críticas, o poder não é exercido de um único ponto, ele é multiforme, está em toda parte e funciona por meio do discurso, construído, fortalecido e aceito pela repetição de enunciados, que são produzidos e produzem o mundo, e que só tem sentido a partir dos ditos que funcionam como regimes de verdade (SILVA, 2002).

Nas tramas do currículo de matemática ecoam discursos que escondem e marginalizam determinadas práticas e saberes, que conformados ao currículo da matemática escolar se tornam familiares. Esses conhecimentos, ditos acumulados pela humanidade, estão de tal forma naturalizados que não nos questionamos sobre a contribuição particular a que se referem, e como delimitam o que conta como “verdadeiro” ou “falso” (KNIJNIK et al., 2012). Destarte, a matemática acadêmica e a matemática escolar estão diretamente implicada na produção de subjetividades8 (SOUZA; FONSECA, 2013), como uma das engrenagens da maquinaria curricular escolar que funciona na produção de sujeitos (SILVA, 1996; DÍAZ, 1998).

Na produção de sujeitos curriculares, imersos nos discursos da matemática acadêmica e escolar, estão implicadas as práticas pedagógicas. Essas práticas, numa perspectiva foucaultiana, encontram-se circunscritas em seu regime de verdade constituído por discursos e práticas considerados válidos, por objetos que ali são valorizados e por regras que determinam o que é aceitável e o que tem valor. Portanto, partem do poder e produzem poder, conformam e regulam os objetos e sujeitos sociais, contribuem para assujeitar e controlar, mantendo e reforçando posições hegemônicas. Conforme alerta Díaz (1998, p. 19), as práticas pedagógicas se estruturam por meio de “distintos campos discursivos, os quais competem no estabelecimento de um significado para a escola, para o professor, para o educando, e por tornar hegemônica uma determinada forma de organização e processo educativo”. Ainda, segundo o autor, nesse esforço, os discursos competem por tornar hegemônicas formas de subjetividade.

O discurso hegemônico da matemática acadêmica, marcado por mecanismos de exclusão desde a constituição do campo, é recorrente, também, para a matemática escolar, com as marcas da transposição herdadas da hegemonia acadêmica (SILVA; GARNICA, 2012; DAVID; MOREIRA; TOMAZ, 2013). Como vimos, somos assujeitados, sujeitos curriculares que nos tornamos o que somos e a forma como compreendemos aquilo que somos, e o mundo, em conjunto com nossas experiências e aprendizagens, e de como isso foi prescrito no currículo, em particular, na matemática escolar. Nesse sentido, o currículo é um artefato social e cultural que produz conhecimentos, verdades, valores e subjetividades, funcionando como um conjunto de práticas que institui modos de ser e de se comportar (PARAÍSO, 2014).

Tomar as práticas de numeramento como discursivas significa compreender que nelas se produzem, e por elas são produzidas, relações de poder-saber (SOUZA, 2012; SOUZA; FONSECA, 2013). Assim, elas estabelecem, compreendem e produzem significados sobre o Ensino de Matemática, e conformam discursos sobre a matemática acadêmica e a escolar que se afirmam como verdades e nos dizem como é, ou deve ser, o currículo e as metodologias para a EJA, de forma a produzir sujeitos curriculares de determinados tipos.

Enquanto discursos, a matemática acadêmica e a escolar podem ser analisadas como produtoras de relações de poder-saber que constituem seus regimes de verdade que atuam na fabricação de concepções sobre o currículo, as metodologias, os modos de agir de professores/as e estudantes (KIPPER; DE OLIVEIRA; GOMES, 2019) ,e até mesmo agencia a atuação dessas áreas na sociedade, delimitando quais conhecimentos e práticas são válidos, demarcando diferenças e construindo identidades (REIS; PARAÍSO, 2014).

No conjunto da obra de Foucault, os regimes de verdade estão sujeitos a transformações devido mudanças das sociedades e de suas convenções ao longo do tempo. O autor focaliza sua análise a partir dessas rupturas, denominadas de descontinuidades, por meio da “descrição minuciosa de práticas sociais em sua descontinuidade histórica - mergulhadas em relações de poder, produzidas discursivamente e ao mesmo tempo produtoras de discursos e de saberes” (FISCHER, 2001, p. 201). Os estudos pós-críticos buscam compreender e denunciar como, historicamente, são produzidos efeitos de verdade no interior de discursos, não assumindo juiz de valor se falsos ou verdadeiros, bons ou ruins, certos ou errados, mas analisando como o sujeito se constitui a partir de práticas sociais que são jogos de verdade (SILVA, 1996).

Em vários campos da vida social, mas de modo especial no espaço escolar, identificamos discursos que disputam espaços em enunciações que conformam a matemática acadêmica e a matemática escolar enquanto verdades. Esses discursos trazem as marcas do poder conferido à matemática para selecionar os sujeitos como capazes, ou não.

A matemática é exata, não tem como dar errado. Por isso, quem sabe, sabe! (João, 32 anos, estudante).

É isso.... Perdi o ano muitas vezes quando era mais jovem porque não sei matemática! Já era para eu ter terminado os estudos. Mas, não sei matemática mesmo! (Carmen, 36 anos, estudante).

Digo que a matemática é importante para conseguirem melhores condições de vida, um emprego melhor, com boas condições de trabalho. (Helena, professora de matemática há 14 anos na EJA).

Começo a fazer perguntas e querem [os estudantes] logo que eu vá para o conteúdo. Mas, matemática é assim mesmo... Dar o conteúdo e depois resolver exercícios. Matemática é difícil. E alguns estudantes não conseguem mesmo aprender! (Iza, professora de matemática há 02 anos na EJA).

Os excertos discursivos, acima, apresentam enunciações constitutivas de enunciados relacionados à confiabilidade, à exatidão, à segregação e à ideologia da certeza (BORBA; SKOVSMOSE, 2011), tanto na matemática acadêmica, quanto na matemática escolar, que conformam maior valor às práticas de numeramento acadêmicas e escolares, de matriz cartesiana (SOUZA; FONSECA, 2013). São enunciações tantas vezes repetidas e reativadas em diferentes espaços e tempos que soam como naturalizadas. O discurso da confiabilidade, da exatidão e da ideologia da certeza convergem para reafirmar a matemática como parte da linguagem de poder, contendo o argumento definitivo e infalível (KNIJNIK; DUARTE, 2010; KNIJNIK et al., 2012). A segregação, também, está associada à linguagem de poder, nesse caso, o poder discursivamente a ela atribuído para selecionar e ditar quem é capaz.

Os enunciados que conformam os discursos da matemática acadêmica e da matemática escolar (KNIJNIK et al., 2012), assim naturalizados, funcionam como prescrições legitimadas nos currículos e se tornam parâmetros (CORAZZA, 2004), guiando decisões do que aceitar como conhecimento válido, nesse caso, práticas de numeramento sob jurisdição da matemática acadêmica, como, também, decisões no âmbito pedagógico, sobre o que levar em consideração ao propor práticas pedagógicas e estratégias metodológicas para o Ensino de Matemática.

Enunciados como os citados acima, são, em geral, considerados inquestionáveis, incorruptíveis e impassíveis, sendo tomados como verdades (SOUZA, 2012). Além desses, ainda, temos o discurso da matemática contextualizada, em contraste a uma prática descontextualizada, que distante da realidade e do cotidiano do estudante não propiciaria um Ensino de Matemática capaz de cumprir sua função libertadora, transformadora e emancipatória, como tanto almejado pelos estudos críticos.

No entanto, as “novas” situações demandadas pela contemporaneidade do discurso educacional, muitas delas de caráter conservador e autoritarista, se distanciam dos ideais propagados pelas teorizações críticas, e exigem das teorizações pós-críticas desafios outros, para além de uma visão realista da realidade, bem como da noção polarizada de poder. Com isso, não temos a pretensão de deixar quaisquer dúvidas sobre o quanto são importantes os pressupostos críticos, apenas levantamos modos outros de problematizar discursos.

Isso posto, a seguir, analisamos esse discurso e seus entrelaçamentos, partindo da regularidade com que ele vem sendo enunciado pelo discurso educacional contemporâneo.

4 É preciso trabalhar com a realidade de estudantes e seus entrelaçamentos

Para o conteúdo sobre porcentagens levei para a turma questões que duas estudantes revendedoras de cosméticos me pediram. Elas estavam com dificuldades em realizar os cálculos com porcentagens e extrair os descontos. (Milton, professor de matemática há 14 anos na EJA).

A aula para jovens e adultos deve privilegiar o diálogo e a problematização com a sua realidade. Eles se sentem mais autônomos e críticos quando compreendem os cálculos em situações corriqueiras, como trabalho, compras, contas, etc.! (Helena, professora de matemática há 14 anos na EJA).

Os temas envolvem experiências no comércio, agricultura, atividades domésticas e relações familiares. O conteúdo é desenvolvido nessas situações-problema. O estudante fica interessado na aula, ele percebe a matemática com significado na vida! (Cláudio, professor de matemática há 08 anos na EJA).

As enunciações são referentes a narrativas de eventos de numeramento por estudantes da EJA, bem como enunciações de professores/as que parecem privilegiar certos modos de apresentar o conteúdo matemático, preferencialmente contextualizado e por escrito, denotam uma valorização por práticas de numeramento escolares contextualizadas e discorrem sobre verdades recorrentes sobre o ensinar e o aprender matemática, relacionadas ao contexto de vida.

Esses eventos, conformam práticas de numeramento relacionadas à “realidade” do estudante que conferem reconhecer esse sujeito e seu espaço para a produção de conhecimentos, para legitimar as diversas formas que a matemática se apresenta em suas vidas e ampliar a compreensão da matemática institucionalizada para além do disposto nos currículos. Esse discurso é, ainda, mais potencializado quando se trata da EJA, sujeitos de direitos e cujas especificidades (SOARES; GIOVANETTI; GOMES, 2007) demandam uma ação pedagógica direcionada a um público marcado por traços de exclusão sociocultural (FONSECA, 2007).

Nas enunciações, portanto, há o privilégio e a valorização por práticas extraídas da “realidade” dos estudantes, como: “levei para a turma questões que duas estudantes revendedoras de cosméticos me pediram [Prof. Milton]/ Os temas envolvem experiências sobre o comércio, a agricultura, as atividades domésticas e as relações familiares [Prof. Cláudio]”, com o discurso de que a matemática escolar quando contextualizada desperta o interesse, a criticidade e a consciência desses sujeitos. Além disso, as interações discursivas dos/as professores/as, demonstram como foram capturados/as por esse discurso.

Para além desse foco, as enunciações trazem o discurso da “realidade” do estudante como forma de facilitar a aprendizagem matemática como um instrumental na prática social. Dessa forma, contextualizar os conteúdos seria relevante para dar significado à matemática escolar, como nas enunciações: “Eles se sentem mais autônomos e críticos quando compreendem os cálculos em situações corriqueiras, como trabalho, compras, contas, etc. [Prof.ª Helena]/ O conteúdo é desenvolvido nessas situações-problema. O estudante fica interessado na aula, ele percebe a matemática com significado na vida [Prof. Cláudio]”. Porém, o mecanismo que estabelece o fator “realidade” atua na lógica da aplicabilidade e reitera o discurso da matemática acadêmica e da escolar como superior, uma instância quase inatingível para muitos estudantes jovens e adultos e, portanto, sendo necessário contextualizar.

Knijnik et al. (2012) analisaram publicações do Encontro Nacional de Educação Matemática (ENEM) e do Congresso Brasileiro de Etnomatemática (CBE) em busca de discursos sobre “a importância de trazer a realidade do aluno para as aulas de Matemática” (p.63). Segundo as autoras, o discurso reiterado está inscrito sob duas lógicas: “a primeira refere-se à legitimação de diferentes Matemáticas; a segunda lógica vincula-se à construção de significados para a Matemática Escolar” (KNIJNIK et al., 2012, p. 65)

Por sua vez, na análise do nosso material empírico com relação ao enunciado de que é preciso trabalhar com a “realidade” do estudante, encontramos duas lógicas atuando na apropriação: uma que anuncia ser importante trabalhar com a “realidade” do estudante para libertá-lo das artimanhas do poder; e outra que afirma ser necessário trabalhar com a “realidade” de estudantes para tornar o conteúdo matemático significativo e despertar o interesse pelo estudo. A seguir, discutiremos sobre esses dois entrelaçamentos.

4.1 É importante trabalhar com a “realidade” de estudantes para libertá-los

Numa perspectiva crítica, as enunciações referentes à necessidade de trazer a “realidade” de estudantes para as aulas de matemática baseiam-se no discurso de que é importante captar a “realidade” enquanto um processo, na estratégia de conhecer suas leis internas de funcionamento e criar possibilidades para transformar o que está posto (KNIJNIK et al., 2012). Com efeito, essas enunciações conferem ao estudante problematizar a “realidade” para protagonizar a mudança social. Essa é a lógica que encontramos nos depoimentos dos sujeitos da EJA colocados abaixo:

Problemas do meio social possibilita aos estudantes compreenderem o contexto em que vivem e serem capazes de mudanças [...]. E se a caixa d’água é redonda? E como faço para medir o volume se ela for quadrada? A gente ensina como aplicar as fórmulas, mas, também, digo que podem fazer do jeito que sabem, só digo que quero por escrito. (Milton, professor de matemática há 14 anos na EJA).

Panfletos de supermercado, boletos de água e energia, panfletos de empréstimos, reportagens de revistas e jornais, entre outros, são materiais ricos para trabalhar vários conteúdos matemáticos. Aí ensinamos os cálculos de forma sistematizada. Esse trabalho pode promover aprendizagens significativas nos estudantes e transformar seu meio. (Iza, professora de matemática há 02 anos na EJA).

Vendi 50 reais e vou tirar 30 por cento, eu fazia na cabeça de 10 em 10. Eu sei dividir e multiplicar. Eu dividia 50 por 10, que dá 5 reais. Depois, multiplico por 3 porque é 30. Mas nem sabia que podia multiplicar logo o 50 por 30 e dividir por 100. Aprendi e vou fazer assim! O professor falou que eu fazia certo, mas achei melhor a forma da escola, a gente não erra. (Andréia, 28 anos, estudante).

Aprendi as porcentagens na calculadora e vai melhorar lá na barraca pra dar desconto aos clientes. A gente se sente mais livre e capaz! Assim, eu fazia contando nos dedos. Se a feira deu 28 reais e vou dar 10 por cento no desconto, eu pensava assim: qual o número menor do que 28 que usa um dois e depois um oito? É 2 e oitenta, né! Daí a conta de menos eu sei fazer no lápis. (Márcia, 54 anos, estudante).

Se comprar à vista tem desconto de dez por cento! Aí tem R$ 100,00 de desconto. Sem a matemática a gente é enganado! Tenho que lembrar como faz pra armar essa conta pra ser mais esperto e saber a melhor forma de pagamento! (Antônio, 41 anos, estudante).

Ah..., sem esses cálculos da escola a gente ia perder dinheiro! Isso é exercer cidadania mesmo, porque podemos decidir comprar ou não um produto. Não se engana tão fácil! (Mário, 21 anos, estudante).

As interações discursivas parecem convergir para as teorizações críticas sobre o currículo. Em interações do tipo “Problemas do meio social possibilita aos estudantes compreenderem o contexto em que vivem e serem capazes de mudanças [Prof. Milton]/ Esse trabalho pode promover aprendizagens significativas nos estudantes e transformar seu meio [Prof.ª Iza]”, há o discurso de que problematizar a “realidade” por meio de conteúdos matemáticos despertaria no estudante a consciência crítica, tornando-o capaz de sair de sua condição de passividade e aceitação para ser agente transformador daquele contexto.

O sujeito escolar seria, então, protagonista de sua história e capaz de transformar sua “realidade” uma vez consciente das estruturas de opressão as quais é subserviente, como afirma Fischer (2001, p. 11), “tudo se passaria como se, percebendo a dominação, a força do outro, o sujeito pudesse lutar e chegar, talvez um dia, à condição paradisíaca (e originária) de sujeito uno, pleno de poder”, como nas interações: “Sem a matemática a gente é enganado! Tenho que lembrar como faz pra armar essa conta [Antônio]/ Ah..., sem esses cálculos da escola a gente ia perder dinheiro! Isso é exercer cidadania mesmo [Mário] ”. Como vimos, os estudantes refirmam o discurso de que a matemática escolar é capaz de despertar o senso crítico.

Considerando o Ensino de Matemática, tal emancipação seria possível pela posse do saber que o discurso da matemática acadêmica e da matemática escolar movimentam acerca do saber matemático, que adquire relevância e o caráter de imprescindibilidade para um posicionamento crítico dos cidadãos frente às mazelas sociais, bem como para a ação efetiva de melhoria das estruturas da sociedade (BOCASANTA; WANDERER; KNIJNIK, 2016).

A compreensão acerca das mazelas do mundo social facultaria a reflexão orientada para a efetiva ação de transformação (KNIJNIK; DUARTE, 2010). Conforme aponta Bampi (1999), o exercício de poder no Ensino de Matemática se dá formando saber, produzindo discurso e instituindo verdades. A tecnologia intrínseca do discurso do Ensino de Matemática, as estratégias que o fazem funcionar, os efeitos de poder e de verdade que o mantém é o que viabilizam os ditos do discurso sobre esse ensino e a desvalorização e esquecimento de outros modos de fazer matemática que não o praticado na escola, a valorização de um único tipo de prática de numeramento que determina suas características e o constitui (SOUZA, 2012; KNIJNIK et al., 2012; SOUZA, FONSECA, 2013).

Nesses discursos, assim como em Souza e Fonseca (2013), encontramos a valorização por um certo modo de fazer matemática que difere daquele prescrito nos currículos escolares, como em eventos de numeramento do tipo: “Mas nem sabia que podia multiplicar logo o 50 por 30 e dividir por 100. Aprendi e vou fazer assim! [Andréia]/ Aprendi as porcentagens na calculadora e vai melhorar lá na barraca pra dar desconto aos clientes. A gente se sente mais livre e capaz! Assim, eu fazia contando nos dedos [Márcia] ”. Esses modos de fazer matemática conformam práticas de numeramento “que mobilizam, para cada situação, uma estratégia específica, e que, por isso, diferem das práticas de numeramento escolares/escritas que valorizam a generalidade, a padronização e o controle” (SOUZA, 2012, p. 95).

Assujeitados, pois, pelo discurso de matriz cartesiana da matemática acadêmica e da escolar, estudantes e professores/as são discursivamente regulados/as a produzirem um modo e uma resposta padronizada que conformam uma única forma padrão de fazer matemática. Nesse modo hegemônico há uma “supremacia da matemática escrita” (SOUZA, 2012, p.95), típico numa sociedade grafocêntrica, que dita como superiores os registros escritos e que encontra lugar fértil nas práticas de numeramento escolares, como vemos nessas enunciações: “A gente ensina como aplicar as fórmulas, mas, também, digo que podem fazer do jeito que sabem, só digo que quero por escrito [Prof. Milton]/ [...] são materiais ricos para trabalhar vários conteúdos matemáticos. Aí ensinamos os cálculos de forma sistematizada [Prof.ª Iza] ”.

Pelas concepções críticas de currículo, há a promessa da emancipação da razão e a libertação da humanidade da opressão a que estamos submetidos (SILVA, 2002). Há, portanto, nessa promessa a consideração da escola como instituição capaz de nos elevar à condição de libertos. As teorizações pós-críticas concordam que o currículo é uma construção social e que se encontra envolvido em relações de poder, no entanto, consideram o poder como descentralizado, e desconfiam de “qualquer postulado que tenha como pressuposto uma situação finalmente livre de poder” (SILVA, 2002, p. 149).

A consideração da escola como espaço livre das amarras do poder é colocada em suspensão por Gallo (2012, p. 211), que ao citar Althusser, lembra que a escola é um aparelho ideológico e “a principal máquina de transformação de indivíduos em sujeitos”. Segundo Gallo (2012), para além do conceito de aparelho ideológico, Guattari compreende a escola como um equipamento coletivo, operando nos agenciamentos coletivos de enunciação, e o currículo uma máquina de subjetivação. O currículo, portanto, não é despretensioso, na escola aprende-se mais do que apenas sobre o que fazer e o que conhecer, aprende-se disposições, consciência e sensibilidades referentes ao mundo que está sendo descrito (POPKEWITZ, 2008).

Conforme problematizam Knijnik et al. (2012), os dispositivos que a escola usa para se ver livre das amarras da opressão perpassam via verdades disseminadas pela ciência. Ora, como sabemos de Silva (1996), nas análises críticas suposições realistas sobre a natureza do conhecimento permanecem inquestionáveis, com o poder distorcendo a distribuição do conhecimento. No entanto, o currículo “é um saber especializado sobre os nexos entre o próprio saber e a subjetividade” (SILVA, 1996, p. 163), de modo que o currículo produz sujeitos particulares, trazendo, implícitas, narrativas muito particulares, sobre o que considerar como conhecimento legítimo, como ciência válida e formas legítimas de raciocínio e razão.

4.2 É importante trabalhar a realidade do estudante para significar os conteúdos matemáticos e despertar seu interesse

Este entrelaçamento sugere que o interesse de estudantes jovens e adultos por estudar matemática será maior se puderem vislumbrar a presença de objetos matemáticos em atividades de sua vida cotidiana. Dessa forma, trazer a aplicabilidade de conceitos matemáticos pela contextualização seria o desafio para a proposta do componente curricular matemática.

A aula com problema do dia a dia ajuda a aprender melhor e fica mais interessante. Somente fazer contas e fórmulas a gente nem sabe para que serve! (Ana, 30 anos, estudante).

A professora falou dos juros, mas eu comprei a televisão em prestações, vou pagar muitos juros, mas não tinha outro jeito! Queria uma televisão!... Aquele dia da aula fiquei tão interessada em aprender, porque a gente vê o sentido da matemática, das contas em nossa vida! (Cecília, 37 anos, estudante).

Matemática de fórmulas e cálculos, baterias de exercícios de repetição. Os estudantes, aqui, não aguentam isso, querem resolver problemas ligados a situações de suas vidas! (Cláudio, professor de matemática, há 08 anos na EJA).

Nos excertos discursivos em destaque, encontramos enunciações da falta de significados de conteúdos matemáticos quando não são vinculados às situações “reais” de vida de estudantes jovens e adultos. Relacionada a essa condição de serem apresentados contextualizados, estaria condicionado o interesse de estudantes pela aprendizagem. Essa enunciação denuncia que práticas da matemática escolar estariam sem sentido, e que práticas sociais são encharcadas de significados, aguardando para serem colhidas, levadas e transferidas para a forma da matemática escolar (KNIJNIK, et al., 2012).

Essas enunciações trazem a ideologia da certeza como princípio básico disposto no currículo. O currículo de matemática lida com problemas com uma solução única e verdadeira, reforçando a ideia da perfeição matemática livre da influência humana (BORBA, SKOVSMOSE, 2011). Ao contextualizar um problema matemático e transmutá-lo para que sirva numa situação real é possível criar um mundo artificial, idealizado para que aquela situação faça sentido. No entanto, a matemática escolar molda nossa experiência diferentemente do que outros contextos o fazem, encobrindo hipóteses a serem feitas. Lidamos, pois, com “pseudoproblemas, com um mundo onde o paradigma verdadeiro-falso domina” (BORBA; SKOVSMOSE, 2011, p. 130), instaurando a ideologia da certeza no currículo matemático.

Os referencias pós-críticos veem com desconfiança práticas que instauram e/ou reforçam a ideologia da certeza no currículo, e denunciam os discursos que não desconfiam e nem desafiam essa ideologia. Essa produção de cenários e de indivíduos que se assentam nesse território é denominada por Gallo (2012) de territorialização de indivíduos, cuja socialização torna possível a produção de subjetividades. A hegemonia matemática é uma construção histórica, assentada na produção de subjetividades, na produção de cenários e de sujeitos (KNIJNIK et al., 2012; SOUZA; FONSECA, 2013).

No estudo de Knijnik et al. (2012), referente ao discurso de trazer a realidade do estudante para aulas de matemática, as autoras encontraram enunciações “que se referiam à falta de significado dos conteúdos matemáticos trabalhados em sala de aula” (p.69). Em nosso material empírico flagramos interações discursivas de estudantes e professores/as que reiteram a problematização proposta por Knijnik et al. (2012), como: “A aula com problema do dia a dia ajuda a aprender melhor e fica mais interessante [Ana]/ Aquele dia da aula fiquei tão interessada em aprender, porque a gente vê o sentido da matemática, das contas em nossa vida [Cecília]/ Os estudantes, aqui, não aguentam isso, querem resolver problemas ligados a situações de suas vidas! [Prof. Cláudio].

A aula de Matemática é um contexto ideal para discursos que criam e/ou reforçam a ideologia da certeza. O mecanismo da aplicabilidade tem efeitos nas metodologias e cria contextos adequados utilizando situações-problema recortadas de modo apropriado e proposital (QUARTIERI; KNIJNIK, 2012), criando e reforçando discursos sobre a importância da contextualização no ensino, conformando práticas de numeramento, definindo conhecimentos válidos, moldando situações, transformando e desenhando corpos (FISCHER, 2001).

Nesse movimento do mecanismo da aplicabilidade, no entanto, vemos se estabelecer, discursivamente, um silenciamento de práticas de numeramento mobilizadas no dia a dia dos estudantes, como práticas de contagem usando os dedos, fazer contas na mente, fazer contas de dez em dez, ou utilizando outros tantos recursos. Para Souza (2012, p. 91), os discursos que conformam esse silenciamento são fonte de uma “racionalidade de matriz cartesiana, à qual o discurso pedagógico sobre a matemática escolar se associa, instituindo, na sala de aula, o culto à abstração, ao seguimento de etapas sucessivas, aos encadeamentos algorítmicos, aos tipos de registro escrito padronizados”.

No entanto, dentro desse campo enunciativo, coexistem, também, diversas posições e formas de subjetividade. Como vemos em Fischer (2001, p. 207), na análise de um discurso, “não estamos diante da manifestação de um sujeito, mas sim nos defrontamos com um lugar de sua dispersão e de sua descontinuidade”. Há, portanto nas enunciações discursivas, a ideia do conflito e da pluralidade de vozes, considerando que sujeitos sociais são efeitos do discurso (FOUCAULT, 2004). Nisso, vimos nas enunciações colocadas abaixo, a heterogeneidade discursiva relacionada a dispersão do sujeito que sempre fala e é falado de algum lugar, o qual não permanece idêntico (FISCHER, 2001).

Lá vem o professor!... Não vê que esse negócio de ficar trazendo esses panfletos para aula só gasta tempo? Quero é ter matemática de verdade! Aquela dos cálculos. (Paula, 19 anos, estudante).

Problemas como medir a horta e tirar a medida do banheiro para botar azulejo. Sei que essa matemática é para facilitar nossa aprendizagem. Mas, ela é bem diferente das contas do livro. Por isso que apelidei de matemática fingida. Mas faço do meu jeito, conto nos dedos. (João, 51 anos, estudante).

Essas enunciações são referentes a descontinuidades do discurso pedagógico sobre trabalhar a “realidade” e a aplicabilidade da matemática. Ainda que haja tais descontinuidades, estudantes jovens e adultos seguem a lógica do discurso pedagógico, “definido como um regulador simbólico das posições e oposições de sujeitos pedagógicos” (DÍAZ, 1998, p. 22). Conforme nos esclarece Díaz (1998), todo sujeito pedagógico está vinculado ao discurso pedagógico, sendo constituído, formado e regulado no interior desse discurso.

Reguladas pelo discurso pedagógico, as interações discursivas dos sujeitos jovens e adultos, ao resistirem a contextualização matemática, como: “Não vê que esse negócio de ficar trazendo esses panfletos para aula só gasta tempo? [Paula]”, ou mesmo ao acomodar tal discurso como uma prática facilitadora: “Sei que essa matemática é para facilitar nossa aprendizagem [João]”, reforçam o discurso da matemática acadêmica e da escolar enquanto uma lógica superior. Percebemos, assim, que “vivemos imersos em práticas discursivas que dão sentido a nossas relações sociais, à estrutura de nossa cotidianidade, e que tais práticas discursivas, entram, por sua vez, no jogo das relações de poder” (DÍAZ, 1998, p. 17).

Mas, conforme nos informa Cherryholmes (1993, p. 143), “é sempre possível questionar os propósitos, crenças, valores, pressupostos, metáforas e orientações que fixam sua direção e significado”. Isso porque, numa perspectiva pós-crítica, há a instabilidade e provisoriedade das múltiplas posições em que os sujeitos são colocados pelos tantos discursos, de modo que não há um sujeito centrado e unificado (REIS; PARAÍSO, 2014).

As enunciações também se referem a estratégias de resistência: “A gente ensina como aplicar as fórmulas, mas, também, digo que podem fazer do jeito que sabem [Prof. Milton]/ Por isso que apelidei de matemática fingida. Mas faço do meu jeito, conto nos dedos [João]”. Modos de fazer que teimam em conformar práticas de numeramento que, mesmo embebidas dessas estratégias de poder que tentam controlar os currículos e realçar a hegemonia da matemática acadêmica e escolar, desnudam a possibilidade de se formar resistências, de surgir a insubordinação (fazer diferente do prescrito no currículo, contar nos dedos). Como alerta Paraíso (2016), há sempre possibilidade de resistência em todos os momentos, “há sempre, em todas as relações de poder, a possibilidade de dizer não e, em seguida, movimentar, acionar outras relações, mobilizar forças e produzir o novo” (p. 407, grifos da autora).

5 Considerações (in)conclusivas

Neste artigo, assumimos as práticas de numeramento como discursivas e conformando o discurso sobre o Ensino de Matemática na EJA. Assim, essas práticas são/estão engendradas por relações de poder-saber que estabelecem, compreendem e produzem práticas matemáticas consideradas válidas, além de discursos, como o da matemática de matriz cartesiana, que nos diz como é, ou deve ser, o Ensino de Matemática para jovens e adultos. Assim, produzindo sujeitos de determinado tipo, disputam espaços para afirmarem-se como verdades.

Enunciações discursivas, como o da importância de trazer a “realidade” de estudantes para a aula de matemática, como vimos, parecem estar de tal forma naturalizadas no contexto pedagógico que se encontram ali posicionadas como inquestionáveis. Com efeito, as relações educativas, inclusive, e, talvez, principalmente, as que se forjam no contexto escolar, encontram-se permeadas por uma produção discursiva compreendida na perspectiva foucaultiana como fabricando aquilo sobre o que se fala (FOUCAULT, 1972), que posicionam os sujeitos curriculares da EJA dentro de certos regimes de verdade, legitimando certas práticas e não outras, tanto no meio escolar quanto fora dele.

Ao discutirmos as tensões que se estabelecem entre a matemática formal (acadêmica e escolar) e aquela contextualizada e os discursos que ecoam à respeito dessa última, junto às práticas de numeramento dos sujeitos curriculares da EJA, nosso interesse está em denunciar a hegemonia da matemática formal sobre as práticas ditas contextualizadas, e suspender alguns discursos sobre a contextualização matemática engendrada no mecanismo da aplicabilidade, de modo a problematizar e denunciar condições, resultados e consequências da mobilização de tais discursos pelos/as professores/as e estudantes, discursos que se tornam “verdades” e que acabam por constituir as ações para esse campo educacional.

Assim, ao compreendermos esses discursos como atravessados por relações de poder, como constituindo um ambiente marcado pela disputa e imposição de significados, vislumbramos, também, pensar diferente, buscar “as mais diferentes inspirações e articulações para modificar o dito e o feito” (PARAÍSO, 2014, p. 27) sobre o currículo de matemática na EJA. As discussões que realizamos instigam-nos, sobremaneira, a interrogar e problematizar práticas de numeramento que denunciam que a matemática acadêmica, a matemática escolar e os discursos oriundos delas, como àqueles realimentados pelo mecanismo da aplicabilidade, têm servido para produzir e direcionar o que conta como verdade a ser transmitida pelo currículo, e, com isso, estabelecer quem terá, ou não, condições de ir à frente nos estudos, de obter sucesso na vida profissional, de galgar posições sociais, de ser considerado(a) inteligente.

Contudo, tudo isso ao invés de nos desanimar nos faz lembrar que “a resistência abre espaços, abre caminhos, cria possibilidades. A resistência cria um re-existir, ou seja, um existir de um outro modo” (PARAÍSO, 2016, p. 389, grifos da autora). Em nossas análises e conclusões, sempre provisórias, acreditamos que a desconstrução e a problematização do discurso da matemática escolar e da matemática acadêmica pode nos impulsionar a promover resistências em nossa atividade docente, práticas insubordinadas que produzam rachaduras no corpo curricular hegemônico, que nos instigue a pensar diferente, “para suspender verdades, mostrar como funcionam e investigar o que faz aparecer determinados discursos curriculares, determinadas práticas e certos saberes” (PARAÍSO, 2014, p. 37), e, assim, descortinar a possibilidade de outros caminhos para o Ensino de Matemática.

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SOBRE OS AUTORES:

1 Uma análise foucaultiana opera com os discursos “como práticas que formam sistematicamente os objetos de que falam” (FOUCAULT, 1972, p. 64). Assim, a realidade é construída dentro de tramas discursivas (PARAÍSO, 2014).

2As teorizações pós-críticas compreendem o currículo como uma linguagem, como uma prática social que define modos de ser sujeito. Portanto, os sujeitos são, assim, efeitos das linguagens, um sujeito curricular (SILVA, 2002; CORAZZA, 2004; PARAÍSO, 2014).

3Segundo Meyer e Paraíso (2012), as abordagens teóricas conhecidas como pós-críticas, ou abordagens contemporâneas para outros, tais como pós-estruturalismo, pós-modernismo, pós-colonialismo, pós-gênero, pós-feminismo, estudos culturais, estudos de gênero, estudos étnicos e raciais, estudos queer, multiculturalismo e pensamento da diferença, tencionam o campo das teorizações educacionais se utilizando da problematização de conceitos como: sujeito, linguagem, verdade e poder, dentre outros.

4Fonseca (2017) explica que a expressão sociedade grafocêntrica vem se tornando recorrente no discurso educacional “para destacar a centralidade e a valorização das práticas e dos registros escritos nos nossos modos de conhecer o mundo e lidar com as pessoas e as situações” (p. 107).

5O enunciado refere-se às condições de existência que atravessam a linguagem e possibilitam que as frases sejam ditas e que as proposições tenham ou não sentido lógico (FOUCAULT, 1972). Uma análise foucaultiana na perspectiva arqueológica preocupa-se com o que possibilita que certos enunciados existam e outros não.

6Pesquisa aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos da Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC) - Bahia, Brasil, conforme processo sob nº 307.131, de 12 de junho de 2013.

7Para Foucault (1972, p. 154), a formação discursiva é um “conjunto de regras anônimas, históricas, sempre determinadas no tempo e no espaço, que definiram em uma época dada, e para uma área social, econômica, geográfica ou linguística dada, as condições de exercício da função enunciativa”. Desse modo, são as formações discursivas que estabelecem as regras que permitem que certos enunciados funcionem como verdadeiros.

8Para Paraíso (2014, p. 31), modos de subjetivação referem-se as “formas pelas quais as práticas vividas constituem e medeiam certas relações da pessoa consigo mesma”.

Recebido: 05 de Maio de 2020; Aceito: 31 de Julho de 2020

Neomar Lacerda da Silva Doutorando em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal da Bahia (UFBA) - Brasil; Professor da Rede Pública Estadual da Bahia - Brasil; Membro do Grupo de Pesquisa Ensino de Ciências e Matemática (ENCIMA) - UFBA.

Andréia Maria Pereira de Oliveira Doutora em Ensino, Filosofia e História das Ciências pela Universidade Federal da Bahia (UFBA) e Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS) - Brasil; Professora adjunta da Faculdade de Educação da Universidade Federal da Bahia e professora permanente do Programa de Pós-Graduação em Ensino, Filosofia e História das Ciências da UFBA/UEFS e no Programa de Pós-Graduação em Educação da UFBA; Membro do Grupo de Pesquisa Ensino de Ciências e Matemática (ENCIMA) - UFBA.

Marlécio Maknamara Pós-doutorado na School of Education da La Trobe University - Austrália, com Bolsa Estágio de Professor Visitante no Exterior (CAPES/PVEx); Doutor em Educação pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) - Brasil; Professor do Centro de Educação da Universidade Federal de Alagoas (UFAL) - Brasil e dos Programas de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) - Brasil; Líder do Grupo de Estudos e Pesquisas com Narrativas em Educação/CNPq (ESCRE(VI)VER)

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