Introdução
Zahavi, em um artigo publicado em 2015 e intitulado “Intencionalidade e fenomenalidade: um olhar fenomenológico sobre o ‘problema difícil’”, reexamina a distinção feita por Chalmers (1995) ao pensar a consciência e, por extensão, a relação entre o sujeito e sua experiência. O problema difícil da consciência pode ser resumido da seguinte forma: embora seja relativamente simples apreender o conteúdo da experiência, os efeitos experimentados em contato com esta experiência são, por outro lado, “transparentes” para o sujeito. A experiência é vivida em um modo “apresentável”. Ela é vivida antes de ser captada pelo pensamento, apreendida pela reflexão, caracterizada em seus componentes. Situada em uma reflexão sobre as condições necessárias para a construção de uma epistemologia da narrativa, esta diferenciação entre “conteúdo da experiência” e “efeitos experimentados no curso da experiência” constitui uma “lacuna explicativa” (ZAHAVI, 2015, p. 80). Assim, a diferenciação produzida por Dilthey (1910/1988) entre “explicar” e “compreender” é questionada de forma singular: “Por um lado, estamos lidando com funções cognitivas, que aparentemente podem ser explicadas de forma redutora, enquanto, por outro lado, estamos lidando com um conjunto de qualidades experienciais que parecem resistir a esta explicação redutora” (ZAHAVI, 2015, p. 80). Levar em conta a lacuna explicativa no campo da narração da experiência nos leva a questionar os regimes e processos narrativos que permitem explorar os conteúdos da experiência (ações, pensamento, reflexão) mas também os efeitos experimentados no contato com estes conteúdos (impressão, sensação, percepção), assim como as repercussões destes efeitos no curso da vida do sujeito (propagação dos efeitos ao longo do tempo, em escala biográfica).
O “problema fácil” da experiência ao longo da narração
Narrar a experiência já vivida a partir dos seus conteúdos solicita a “memória refletida” do sujeito. Esta dinâmica de rememoração permite expressar em palavras áreas de experiência relacionadas com a vida intencional do sujeito (neste caso, o narrador). De fato, a experiência sedimentada na memória, que pode ser apreendida e capturada diretamente, está associada à vida intencional. De acordo com esta perspectiva, os conteúdos da experiência constituem “um conjunto de dados da experiência retidos pelo sujeito no presente vivo e que podem ser capturados pelo pensamento no pensamento posterior”. Estas memórias sedimentadas estão assim disponíveis para um trabalho de reflexão, exame ou análise sem a necessidade de evocar ou despertar a memória. O acesso a estes conteúdos da experiência durante a atividade narrativa não apresenta nenhuma dificuldade significativa pelas seguintes razões: os elementos retidos e mantidos na memória estão associados à esfera da vida intencional. Assim, o que é retido pode ser associado a uma trama explicativa que mantém relações causais já constituídas. Este regime explicativo da narração está, de alguma forma, disponível para o discurso. Assim, o narrador seleciona, durante a narrativa, os elementos que compõem a experiência vivida encaixam-se em um esquema causal, ajudando a situar a narrativa entre descritivo e o explicativo. Assim, para este tipo de narração, os conteúdos da experiência capturados para compor a narrativa são elementos que foram percebidos e retidos no presente vivo, especialmente porque interferiram nos objetivos e na intencionalidade do sujeito: elementos que são facilitadores ou que dificultam, dados associados aos horizontes da expectativa...
O questionamento desta esfera da vida intencional durante a atividade narrativa orienta a expressão em palavras para um regime particular: da narração da dimensão refletida da experiência, em detrimento das dimensões pré-refletidas (PETITMENGIN, 2010) ou não percebidas da experiência vivida (FONTAINE, 2010). De acordo com esta perspectiva, as dinâmicas estruturantes da atividade narrativa são regidas por esquemas explicativos que procedem a expressão em palavras das relações causais tidas como verdadeiras. Este tipo de narração é o resultado de um trabalho de configuração destinado a manter atrelados diferentes elementos percebidos no decorrer da experiência pelo fato deles terem participado ou, ao contrário, restringido a dinâmica intencional do sujeito. Esta centralização da percepção na esfera da intencionalidade é o resultado da tendência descrita por Bégout através da noção de habituação: “Quando o hábito começa a se instaurar, a potência diretiva desta instauração original delineia a estrutura na qual as experiências repetidas adquirem um caráter típico e conhecido” (BEGOUT, 2005, p. 356). Assim, a vida intencional tem o efeito de disciplinar o mundo a fim de “cotidianizá-lo”: “O mistério da ‘cotidianização’ reside, assim, inteiramente neste mecanismo obscuro do hábito, que mina o desconhecido e aumenta o que já foi visto” (BEGOUT, 2005, p. 353). Este trabalho incessante de domesticação tem o efeito de configurar modos de percepção, definir um centro e horizontes que caracterizam os contornos, prefigurar a narrativa e configurar as suas estruturas (DELORY-MOMBERGER, 2010).
Do ponto de vista narrativo, o “problema fácil” da experiência é assim caracterizado por processos de redução através dos quais a captura da experiência para colocá-la em palavras e narrá-la permanece contida dentro das dimensões esperadas, percebidas e assim percebidas da experiência vivida. De um ponto de vista narrativo, estes processos de redução podem parecer necessários. Tendo em vista a complexidade dos fenômenos vivenciados pelo sujeito no decorrer do presente vivo, a narração deve proceder por meio de formas de “redução” (VERMERSCH, 2003). A narração da experiência vivida a partir da esfera da intencionalidade deriva então de uma dessas formas de redução. Ela incorpora, no entanto, o que Bachelard chama de “abordagem substancialista”:
O obstáculo substancialista, como todos os obstáculos epistemológicos, é polimórfico. Ele é composto pela reunião das intuições mais dispersas e até mesmo as mais opostas. Por uma tendência quase natural, a mente pré-científica bloqueia sobre um objeto todos os conhecimentos acerca do seu papel, sem lidar com a hierarquia de papéis empíricos. Ela une diretamente à substância as várias qualidades, tanto uma qualidade superficial como uma qualidade profunda, tanto uma qualidade manifesta, quanto uma qualidade oculta. (BACHELARD, 1938/2004, p. 97)
O “problema fácil da experiência” pode, portanto, ser questionado em dois ângulos: o dos processos de redução que resultam de formas tácitas de seleção quanto ao conteúdo da experiência; e o da cegueira relativa quanto aos fenômenos que se afastam dos horizontes da vida intencional. Essas dimensões problemáticas da experiência têm por natureza questionar as teorias e os dispositivos que procuram apreender e/ou compreender a expressão narrativa da experiência pelo sujeito, sejam eles de orientação biográfica, sejam eles de explicação da experiência (VERMERSCH, 2000) ou de análise das práticas. Abre-se assim um espaço interessante para o diálogo e a pesquisa para pensar as formas de investigação que solicitam experiência nos campos da educação de adultos (LAINE, 2004), da análise do trabalho (THIEVENAZ, 2019), da análise da atividade (BARBIER, 2017; BARBIER e DURANT, 2017), da didática profissional e das teorias sobre processos de conceituação em ação (PASTRE, 1999). De fato, superar a “lacuna explicativa” implica olhar para as dimensões da ação intencional que se dão segundo uma modalidade perceptiva difusa na escala da vida sensível. A questão que se coloca, considerando o “problema difícil” da experiência, diz respeito ao perímetro das dimensões levadas em conta para a expressão e narração da atividade, uma tensão dialética que pode ser estabelecida entre o tipo de dados apreendidos pela atividade narrativa e as formas de conhecimento que podem resultar dela, seja este conhecimento em primeira, segunda ou terceira pessoa.
O « hard problem » da experiência: trazer à linguagem as esferas sensíveis do vivido
O problema difícil da experiência começa, no âmbito da narrativa, quando o narrador procura ir além da descrição dos “conteúdos da experiência” associados à vida intencional para integrar nesta narração as dimensões relativas da vida sensível que são dadas a viver de forma não voluntária (RICŒUR, 1950/2009). Estas dimensões são de certa forma colaterais à vida intencional do momento presente, e primordiais pelo fato de constituírem o terreno a partir do qual o sujeito habita o mundo e vive as situações. Concretamente, referimo-nos aos atmosfera vivida nos espaços, dentro dos coletivos, no seio das relações e nas trocas interpessoais... São consideradas também as formas pelas quais as experiências se dão e que impregnam o vivido de maneira difusa, tais como percepções de confiança, os sentimentos de familiaridade (ou de estranheza), que não são nem decididos, nem escolhidos. Estas dimensões são recebidas e experimentadas, às vezes submetidas, às vezes percebidas, tal como um dado “meteorológico”. Assim como se percebe pela manhã que o clima está ameno ou não, se está frio, seco ou úmido, assim os dados sensíveis são percebidos da mesma forma: a atmosfera é favorável ou estressante, a situação é complexa ou fácil, estou confiante ou inseguro...
O fato, por exemplo, de eu me sentir confortável e entusiasmado quando entro em uma sala de aula no Brasil diante de cinquenta alunos, em um prédio, no décimo segundo andar, considerando que eu mal conheço as pessoas, não é o resultado de uma escolha, uma intenção particular, uma vontade construída. Com relação a este exemplo, não seria correto dizer, contudo, que decidi adotar uma postura entusiasta e confiante para dar o meu curso. Uma maneira mais precisa de descrever este fenômeno experimentado é a seguinte: “Sou levado a agir em função da situação que se apresenta para mim, que é preenchida de entusiasmo, o que me faz sentir confiante”. A diferença a priori infinitesimal entre estas duas formulações a seguir - “Eu ajo com confiança” (1) e “Eu sou levado a agir pela situação, a qual me faz experimentar percepções de confiança” (2) - é, no entanto, “continental”. De fato, há uma mudança maciça entre expressar a experiência vivida com base na intencionalidade e na vontade de agir do sujeito e estar interessado na junção sujeito-situação e, com isso, procurar descrever e narrar os processos de ação (VARELA, 1976-2001/2017), suas qualidades e interfaces (GIBSON, 1979). É precisamente este deslocamento que nos leva ao “problema difícil” da experiência. É teoricamente difícil para o sujeito descrever e narrar fenômenos dos quais ele é o agente passivo e que se mostram a ele através de formas que podem ser intensas ou difusas, repentinas ou silenciosas. Expressar em palavras estes fenômenos experienciados requer um ou mais dos métodos discutidos na próxima seção.
Fenomenologia experiencial e os modos pelos quais a experiência vivida se dá
Se a apreensão da experiência a partir dos seus conteúdos constitui o que tem sido chamado de “problema fácil”, é por comparação com a dificuldade em acessar as dimensões da experiência que são, inicialmente, recebidas e percebidas sem serem notadas. Como é possível, de fato, trazer à linguagem as dimensões de experiência que são vividas sem serem notadas e que se referem a “vida passiva” ao invés da “vida intencional”? Os desafios relacionados a esta questão são substanciais. De fato, o trabalho de diferenciação entre as dimensões passiva e intencional da existência mostra-se necessário para a clareza do nosso argumento. Estas duas dimensões na realidade estão entrelaçadas. A tese defendida por Bégout sobre a “genealogia da lógica” nos leva antes a considerar que a vida passiva e as dimensões sensíveis que a constituem são o terreno a partir do qual a vida intencional e seus processos de raciocínio lógico são construídos. Assim, deste ponto de vista, o acesso ao sensível e sua apreensão através da linguagem com vistas a um trabalho de descrição fenomenológica e/ou narração biográfica parece ser um meio de ampliar os campos de investigação da experiência vivida. Entretanto, estes objetivos de conhecimento e compreensão da experiência em suas dimensões fenomenais e experienciais encontram rapidamente obstáculos de ordem metodológica e prática.
Uma delas é a seguinte: a atividade narrativa parece incapaz de integrar a um texto ou a um discurso a esfera da experiência vivida não governada pela intencionalidade, pois a mesma não se constitui em “conteúdo de experiência” do ponto de vista do sujeito. A fim de examinar a experiência vivida em nível experiencial, torna-se necessário adquirir um “aparato metodológico” que permita sua descrição e depois sua narração, em primeira ou segunda pessoa. É aqui que o trabalho da fenomenologia de Husserl, e mais precisamente um dos ramos atuais da chamada fenomenologia “prática” ou experiencial (DEPRAZ, 2012) abre perspectivas de exploração que são de interesse para nosso estudo. O que está em jogo?
O desafio em estruturar abordagens que permitam a análise das dimensões experienciais da atividade perceptiva que permanecem não tematizadas pelo sujeito, tendo em vista a centralidade “natural” deste último nos objetos percebidos em relação aos horizontes de expectativa e às estruturas de antecipação que governam a vida intencional. Pode-se, então, ver um campo singular de pesquisa tomando forma: o da possibilidade de captar através da linguagem as formas pelas quais a experiência se dá e os efeitos experimentados, de acordo com diferentes aspectos: ao que “eu” sou sensível (processo afetivo), ao que “eu” estou atento (dinâmica atencional); o que digo a mim mesmo quando percebo, delibero, decido (processos cognitivos e linguísticos); o que espero e antecipo (dinâmica temporal)... E através da fenomenologia descritiva (DEPRAZ, 2014), as perspectivas de pesquisa abrem-se para uma “ciência da experiência vivida” (PETITMENGIN et al. , 2015). Este trabalho de descrição pode então focalizar os processos de ação, a atividade de percepção, os modos pelos quais a situação se apresenta, as impressões e sentimentos vividos... Ele assume formas de “conversão do olhar” que permitem o acesso às esferas de experiência relevantes para a vida sensível: “Os movimentos da consciência podem ser analisados de acordo com várias dimensões: objetivo e mudança de direção; grau de foco/dispersão; modo de tomar/prender/liberar” (VERMERSCH, 2012, p. 223). Estes processos característicos da descrição microfenomenológica envolvem a “varredura” da experiência através da captura de experiências singulares de curta duração, a fim de permitir a redação detalhada1 destes aspectos.
Impacto dos efeitos vividos, memória passiva e narração biográfica
O “problema difícil” da experiência diz respeito, segundo a nossa proposta, ao conjunto das dimensões da experiência que se apresentam para serem vividas sob a forma de uma oferta experiencial que constitui a “memória passiva” (HUSSERL, 1926/1998). A consideração destas dimensões experienciais e fenomenais é de uma natureza susceptível de transformar a atividade narrativa, permitindo a reflexão e a expressão em palavras de dimensões de experiência pré-refletidas e não-tematizadas pelo narrador. Este ponto é susceptível de esclarecer o significado e o lugar dado ao termo “experiencial” no campo da narrativa e das ciências da educação e da formação. Vários trabalhos desenvolveram uma abordagem crítica a esta noção e seu uso é considerado extensivo (LOCHARD, 2007). A noção é, na verdade, utilizada para caracterizar diferentes aspectos ou processos: os “aprendizados experienciais” (BALLEUX, 2000), “saberes e aquisições experienciais” (JOUET et al., 2010; BRETON, 2017), “formação experiencial” (PINEAU, 1991).
Integrar o “experiencial” no curso da narrativa com o objetivo de empreender uma formação de si, de compartilhar experiências dentro de grupos de formação de adultos, em equipes e coletivos de trabalho pode ser baseada em uma descrição dos aspectos do que é vivenciado durante momentos específicos. Este é inclusive um dos objetos da fenomenologia experiencial: acompanhar a narração da experiência a partir das dimensões sensíveis, experiências do corpo, processos inferenciais, ativação da atenção... A descrição de esferas da experiência permite, com isso, compreender em escala granular e micro processual os processos que contribuem para as sínteses que produzem os efeitos do ambiente, os sentimentos de familiaridade ou de pertença, as dimensões graduais do sentimento de confiança... Estes elementos também podem ser historializados, colocando em perspectiva sua durabilidade e suas repercussões sobre a duração da história de vida. Assim, a passagem da análise detalhada da experiência de momentos específicos - que caracteriza o regime de descrição fenomenológica - para o da apreensão dos fenômenos ao longo do tempo - que caracteriza o regime de narração biográfica - torna possível a análise e a compreensão das repercussões dos efeitos relativos às transformações dos modos de estar nos lugares, do sentimento de integração em equipe, de confiança mútua com os colegas ou dentro da unidade conjugal e familiar.
Assim, a apreensão dos processos de formação através da experiência ou, mais precisamente, da formação experiencial pressupõe um interesse tanto pelo que se vive no presente vivo (ou seja, na agentividade do sujeito e nos efeitos experimentados no imediatismo), quanto pelas repercussões desses efeitos experimentados a longo prazo. Esta dinâmica do desdobramento dos efeitos vividos é sublinhada já em 1991 por Pineau quando ele define a formação experiencial como um processo durante o qual a experiência vivida produz efeitos de transformação de modos de existência que começam com uma evolução dos modos de ver e que se realiza através da narração: “uma formação através do contato direto, mas reflexivo” (PINEAU, 1991, p. 29). De acordo com esta proposta, a formação experiencial começa em momentos significativos e salientes da trajetória, os efeitos experimentados durante esses momentos permanecem ativos ao longo do tempo e produzem efeitos nos modos de ser, modos de agir, modos de pensar ou narrar a jornada de cada um. Para compreender a influência das experiências marcantes no curso da vida, faz-se necessário colocar em palavras a dinâmica das repercussões desses momentos nos modos de ser, de dizer e de fazer (DE CERTEAU, 1990). É exatamente através da narração que o desenvolvimento de um efeito pode ser apreendido em seus ritmos, a partir de processos de repetição, de saturação ou de acumulação.
É o propósito das abordagens narrativas que exigem a expressão da experiência ao longo do tempo, na escala dos períodos da vida (PINEAU; LEGRAND, 2019), ou mesmo da extensão da existência, para tentar compreender estes processos de ressonância da experiência vivida durante momentos específicos, mas também a partir das dimensões processuais que evoluem com o tempo, silenciosamente, até que o acúmulo de efeitos produza as transformações e metamorfoses transformadoras do curso da vida (ALHADEFF-JONES, 2020). Estas pesquisas podem ser realizadas em primeira pessoa, no âmbito de dispositivos de formação (LAINE, 2004) envolvendo adultos formação e autoformação (PINEAU e MARIE-MICHELE, 1984). Podem também ter como objetivo caracterizar os processos narrativos em ação durante o trabalho biográfico (BAUDOUIN, 2010) ou os processos de biografização do ponto de vista científico e social (DELORY-MOMBERGER, 2005). Estas diferentes correntes têm em comum o trabalho de narração biográfica a partir de uma passagem: da experiência à linguagem. Isto pressupõe apreender a experiência levando em conta tanto a agentividade do sujeito, quanto a esfera de passividade que caracteriza as dimensões receptivas da experiência vivida, apreendendo estes fenômenos ao longo do tempo (DEMAZIERE, 2007) de forma dinâmica, pensando nas interações entre as esferas da vida adulta (KOHLI, 1989).
Em síntese
Ao diferenciar a dimensão reflexiva da experiência que associamos ao domínio da vida atencional (e que denominamos “o problema fácil” da experiência), e depois ao caracterizar as dimensões receptivas e passivas da experiência que associamos à vida passiva (e que denominamos “o difícil problema da experiência”), procuramos questionar o “terreno experiencial” que subjaz à narração e assim tirando o paradigma narrativo da “lacuna explicativa”. De fato, se for possível considerar como Ricœur que a experiência humana tem uma dimensão pré-linguística - “A experiência pode ser dita, ela pede para ser dita. Trazê-la à linguagem não é transformá-la em outra coisa, mas, ao articulá-la e desenvolvê-la, ela torna-se ela mesma” (RICŒUR, 1986, p. 62) - sua passagem à linguagem pressupõe orientar os atos de apreensão da experiência vivida, diferenciando ou agregando as dimensões intencionais e receptivas da experiência vivida no curso da narrativa.
Estes trabalhos sobre a “epistemologia narrativa” (BRETON, 2020) devem permitir enfrentar com lucidez as questões e interrogações sobre este paradigma de “narração da experiência vivida nas ciências humanas e sociais”, a partir do qual Bachelard resume uma das críticas mais duras quando denuncia “uma filosofia fácil que se baseia em um sensualismo mais ou menos franco, mais ou menos romantizado, e que afirma receber suas lições de um dado claro, definido, seguro, constante, sempre aberto” (BACHELARD, 1938/2004, p. 23). A proposta feita para este artigo foi a de desfocar o olhar sobre o “conteúdo da experiência” (sem perdê-lo de vista, entretanto) a fim de investigar os modos pelos quais a experiência se dá e que são regidos pelas estruturas de percepção (1) e as estruturas narrativas (2) que prefiguram os modos de dizer, de contar a si mesmo, que organizam os elos causais e evidenciam a plausibilidade da narrativa de si. Se viver implica narração (BRUNER, 1986) e se as narrativas são tanto o meio como os traços desta evolução (FRUTEAU DE LACLOS, 2016), a pesquisa narrativa e seus regimes - oscilando entre a descrição fenomenológica e a narração biográfica - contribuem para a compreensão das dinâmicas da formação e de edificação do conhecimento, seja em primeira, segunda ou terceira pessoa.