Introdução
O objetivo do trabalho é verificar, com uma ampla amostra de crianças brasileiras, a evolução psicogenética da escrita, descrita anteriormente em espanhol. Analisar, ao mesmo tempo, as particularidades próprias do português brasileiro (PB), a exemplo da nasalidade.
No Brasil, o impacto dos dados psicogenéticos (FERREIRO & TEBEROSKY, 1979) foi muito grande, alcançando decisões do sistema público, a começar por São Paulo. Os trabalhos liderados por Telma Weisz (1999) merecem menção especial. As urgências da prática (números de reprovação no início do ensino fundamental, nos anos 1980-90) não deram lugar ao tempo necessário para realizar o estudo comparativo necessário. Por sua vez, a mesma prática parecia ser um suficiente reconhecimento.
Os exemplos dos diferentes níveis não se fizeram esperar e as professoras que ousaram liberar a escrita infantil, puderam interpretar produções que, antes, apareciam apenas como evidências de falta de discriminação perceptiva. De fato, basta abrir espaços para que as crianças escrevam sem copiar e nos atrevermos a solicitar uma leitura dessas produções, para que surjam novidades dignas de atenção.
A primeira confirmação em português dos níveis evolutivos foi obtida com crianças de Lisboa (MARTINS, 1994). Em um conjunto de 119 crianças, 37 apresentaram escritas silábicas. Entretanto, seguiam faltando dados do Brasil, obtidos em uma grande amostra, com procedimentos semelhantes aos originais, que são particularmente exigentes.
Nosso maior interesse está nos períodos silábicos e em momentos evolutivos que antecedem e seguem este período (silábico inicial e silábico-alfabético), pois são nesses momentos de evolução que certas discussões no Brasil têm se concentrado.
Crianças interrogadas
Foram entrevistadas 111 crianças matriculadas em escolas públicas, ao longo do ano de 2019, pouco antes da pandemia: 33 de 4 anos e 38 de 5 anos (pré-escolar) e 40 de 6 anos (1º ano do ensino fundamental). As crianças foram entrevistadas em duas ocasiões: no início do ano letivo, em abril, e no final do ano, em outubro. Temos, então, 222 entrevistas.
Por razões metodológicas, conservamos a identificação etária de cada criança ao grupo de idade da primeira entrevista, embora seja evidente que parte do grupo de 4 anos já tinha 5 anos no momento da segunda entrevista, e assim sucessivamente. Em cada exemplo faremos referência ao grupo de idade e ao momento da entrevista.
O estudo foi realizado em escolas públicas do Município de São Francisco do conde, localizado na Região Metropolitana de Salvador, no Estado da Bahia. A secretaria de educação promove encontros regulares de formação para os professores nos quais são discutidos aspectos relacionados à didática. Como não observamos essas professoras durante suas atividades docentes propriamente ditas, não faremos menção às práticas além de dizer que havia material escrito nas salas de aula, que as professoras liam em voz alta com certa frequência e, na pré-escola, as crianças eram incentivadas a escrever sem copiar.
Palavras sugeridas
A situação proposta nas entrevistas consistia em um ditado de nove palavras do mesmo campo semântico. Neste artigo, apresentaremos a análise das cinco primeiras (dois trissílabos e três dissílabos) que são suficientes para o argumento que vamos sustentar. As palavras foram apresentadas como uma lista de bichos, termo utilizado com as crianças. A série das cinco palavras iniciais é a seguinte: tucano, jabuti, peru, mico, pombo. Estas foram seguidas por outras quatro, das quais três são monossílabas.
Técnica de entrevista
As entrevistas foram individuais e além da criança, participaram dois adultos (entrevistador e observador). As entrevistas foram gravadas em áudio e a transcrição de cada uma das entrevistas foi realizada pelo observador e revisada pelo entrevistador. As professoras que colaboraram receberam uma breve orientação sobre a técnica de entrevista e, principalmente, sobre o cuidado com a transcrição das leituras realizadas pelas crianças quando se pede: «mostre-me com seu dedo onde diz isso».
As intervenções da pessoa que entrevista são muito pautadas e exigem um longo treinamento. Existem restrições explícitas, como:
Evitar que a tarefa seja considerada um "jogo". Trata-se de propor que a criança faça seu melhor esforço cognitivo para resolver o que lhe é apresentado.
Apenas utilizar termos pouco frequentes que tenham sido usados anteriormente pela criança. Antes de utilizá-lo, indagar a criança sobre o seu significado.
Caso sejam detectados sinais verbais ou gestuais de insatisfação, sugerir revisão da escrita ou reescrita.
Quando a criança lê o escrito e sobrarem letras, perguntar o que pode ser feito com as letras que sobraram.
Quando a criança apenas nomeia as letras quando é solicitado a ler, reiterar o pedido da leitura.
Estas são apenas algumas das restrições que devem ser consideradas durante as entrevistas.
Análise e discussão de dados
A análise dos dados permite concluir que os níveis de evolução psicogenética, previamente identificados em espanhol (FERREIRO, 2001), reaparecem neste estudo. Para observá-los, não basta pedir às crianças que escrevam palavras. É preciso estar atento ao processo de produção, bem como à interpretação posterior da mesma criança (leitura).
Nesta publicação utilizamos a denominação Fonetizante e refere-se à consideração dos aspectos sonoros da emissão oral. Esses aspectos sonoros são unidades analíticas como sílabas e fonemas, bem como aspectos que afetam a compreensão das mensagens como o tom interrogativo, as sílabas tônicas, a ênfase etc. As sílabas são unidades de análise muito precoces, acessíveis à atenção de falantes de 4 ou 5 anos. Ao contrário, os fonemas são unidades teóricas de análise da linguística contemporânea.
A denominação Fonetizante já foi utilizada por Ferreiro (1988) e é pertinente a condição de pensar em Fonetizante como atenção aos aspectos sonoros em geral e não especificamente fonéticos. Os níveis evolutivos básicos são três: Pré-fonetizante (denominação mais correta que Pré-silábico), Silábico e Alfabético. O Silábico Inicial e Silábico-Alfabético são níveis intermediários porque não se caracterizam pelo esforço de reorganização cognitiva que define o Silábico e o Alfabético. O nível Pré-fonetizante, por sua vez, corresponde a um longo período no qual as propriedades da escrita são consideradas, no entanto, desvinculadas das variações sonoras na emissão oral propriamente ditas1.
No procedimento de análise é necessário levar em conta os eixos quantitativos e qualitativos aos quais consideram as crianças. A evolução começa com a falta de controle quantitativo e avança lentamente até um controle da quantidade mínima de letras necessárias para que algo seja interpretável (FERREIRO, 1997). Esta quantidade mínima é geralmente de três letras, também nos dados de crianças brasileiras. Em alguns casos, a preocupação em manter esse controle leva a colocar o mesmo número de letras para cada palavra.
Desde o início, e ao longo de toda a evolução, há duas importantes manifestações do eixo qualitativo: não se repete a mesma letra em posição contígua e há alguma variação entre uma palavra escrita e outra. Por exemplo, quem mantém fixa a quantidade e tem um repertório reduzido de letras, podem recorrer a mudanças em sua posição (veremos um exemplo mais adiante).
A exigência de quantidade mínima é a expressão de uma importante consideração cognitiva: a distinção entre os elementos e a totalidade. De fato, apenas o todo é interpretável, inicialmente, e a interpretação das partes é alcançada progressivamente.
As únicas partes destacáveis do enunciado, por terem autonomia fônica, são as sílabas. Os cortes silábicos não precisam ser ensinados. Surgem durante a evolução, como resposta a diferentes situações comunicativas.
Justificar o que está escrito com uma leitura silábica é uma grande conquista. Durante a leitura da própria escrita pode acontecer que a criança descubra que faltam letras e as adicione, ou vice-versa. Essas letras podem ou não ser pertinentes. Estamos falando de letras pertinentes e não de letras corretas, como será visto mais adiante no caso das vogais.
A passagem de uma letra por sílaba para duas letras por sílaba marca o início das considerações alfabéticas. No período silábico-alfabético essas duas considerações coexistem, de modo que algumas letras recebem uma interpretação silábica e outras são apenas parte de uma sílaba. A proporção entre umas e outras é variável.
Duas letras por sílaba são adequadas para as sílabas CV (consoante seguida de vogal), mas as demais sílabas (CCV, CVC) não se resolvem facilmente (FERREIRO & ZAMUDIO, 2013). Portanto, o período alfabético também tem sua própria evolução interna, como todos os anteriores. Neste trabalho só aparecem sílabas CV, exceto em um dissílabo e dois monossílabos que não são analisados aqui.
Distribuição quantitativa
Na primeira entrevista, temos a seguinte situação:
No grupo de 4 anos, há apenas 3 crianças com escritas do nível Silábico; todos as outras são Pré-fonetizantes.
No grupo de 5 anos, todos os níveis estão representados, exceto o nível Alfabético.
No grupo de 6 anos, todos os níveis também estão representados, incluindo nove casos do nível Alfabético.
Portanto, embora não tenhamos controlado os níveis iniciais, a distribuição observada corresponde ao esperado nessas faixas etárias.
Na segunda entrevista, seis meses depois, a distribuição muda da seguinte forma:
No grupo de 4 anos, todos os níveis estão representados, exceto o Alfabético.
No grupo de 5 anos, todos os níveis estão representados, com forte presença do nível silábico.
No grupo de 6 anos, não há respostas pré-fonetizantes ou silábicas iniciais.
O detalhe dessa distribuição se observa no quadro a seguir (Tabela 1):
N=222 | 4a e1 | 4a e2 | 5a e1 | 5a e2 | 6a e1 | 6a e2 | TOTAL |
PRÉ-FONETIZANTES | 30 | 25 | 19 | 6 | 8 | 0 | 88 |
Silábicas Iniciais | 0 | 1 | 8 | 4 | 6 | 0 | 19 |
SILÁBICAS | 3 | 6 | 8 | 15 | 2 | 3 | 37 |
Silábicas-Alfabéticas | 0 | 1 | 3 | 9 | 15 | 9 | 37 |
ALFABÉTICAS | 0 | 0 | 0 | 4 | 9 | 28 | 41 |
TOTAL | 33 | 33 | 38 | 38 | 40 | 40 | 222 |
Fonte: Elaboração própria
Todas as crianças avançam entre a primeira e a segunda entrevista ou permanecem no nível da primeira entrevista. Esse avanço é feito na direção esperada, segundo pesquisas anteriores em espanhol. Há uma única exceção de retrocesso aparente. Uma menina de 5 anos apresenta uma escrita no nível Silábico na primeira entrevista (e1) e no nível Silábico Inicial na segunda entrevista (e2). Analisando o caso, verifica-se que na e1 há escritas silábicas estritas (uma letra por sílaba) sem letras pertinentes, enquanto na e2 a menina perde o controle quantitativo porque está buscando, com dificuldade, letras aparentemente pertinentes. Todas as outras crianças avançam ou permanecem no mesmo nível, exceto neste caso. No entanto, permanecer no mesmo nível não indica necessariamente ausência de progressão. Todos os níveis têm sua própria evolução interna.
A Tabela 1 mostra que na segunda entrevista ainda há 31 respostas no nível Pré-Fonetizante. Em relação às crianças interrogadas, temos um importante grupo de 25 que apresentam respostas ao nível Pré-Fonetizante nas duas entrevistas. Isso não é surpreendente. Mais surpreendente é a variedade de respostas aos 5 anos, onde se concentra a maior parte das respostas do nível Silábico.
Em nenhuma publicação anterior foram feitas hipóteses sobre o tempo ideal para permanecer em um determinado nível. Ao contrário, tem sido enfatizada a arbitrariedade do tempo entre as entrevistas e é surpreendente observar o desenvolvimento das crianças, apesar da arbitrariedade dos intervalos de tempo (FERREIRO; GÓMEZ-PALACIO, 1982).
Vogais e consoantes
Em espanhol, é comum observar escritas silábicas que fazem uso frequente e pertinente de núcleos silábicos (do tipo AIOA para ma-ri-po-sa). Também nesta investigação observamos alguns casos deste tipo:
Ray, 5 anos, e1: AUI (lê ja-bu-ti), UEA (tu-ca-no), BU (pe-ru), IU (mi-co), EUA (pombo). Na primeira palavra que escreve todas as vogais são pertinentes. No segundo dissílabo (mico), também são. Nas demais, é variável. Passa de três letras para duas, mas volta ao mínimo de três na última palavra. Mas, ao contrário do espanhol, são casos raros. O mais frequente é que usem letras consonantais, e isso em todos os níveis. Vejamos outros casos.
Raymar, 5 anos, e2: ITN (tu-ca-no), PBR (ja-bu-ti), BP (pe-ru), IL (mi-co), BR (pom-bo). Raymar consegue um correto controle quantitativo ao passar de três para duas letras. Utiliza a maioria das letras consonantais, quase todas sem pertinência do ponto de vista qualitativo.
Amelia, 5 anos, e1: ARA (ja-bu-ti), ARL (tu-ca-no), AR (pe-ru), AL (mi-co), MR (pom-bo). O controle quantitativo é adequado, mas o repertório de letras é tão pequeno que a criança se encontra em sérias dificuldades para manter a inicial A inicial e ao mesmo tempo diferenciar uma palavra escrita da outra. Não chega a ser uma combinatória, em sentido estrito, mas se aproxima dela.
As escritas silábicas com uso de letras não pertinentes podem ser confundidas com algumas escritas de quantidade fixa que são Pré-fonetizantes. Por exemplo, Josué, 4 anos, e2, escreve as cinco palavras iniciais com três letras: FRZ / IZO / PAE / IHE / AIH. Chama a atenção o uso de letras pouco frequentes como Z e H. Esta última letra aparece nas três últimas escritas, mas em diferentes posições na série.
O processo de escrita e a leitura posterior são elementos-chave para afirmar que a atenção de Josué não está centrada em descobrir segmentos das palavras, mas apenas em diferenciar uma escrita da outra, o que consegue perfeitamente.
Os desajustes entre as considerações que orientam a escrita e o que ocorre na leitura posterior são frequentes no nível intermediário Silábico-Alfabético. Devemos prestar atenção à escrita e à leitura para compreender os conflitos que as crianças enfrentam. Vejamos dois exemplos.
Luis, 6 anos, e1, escreve YABI para jabuti. Lê a primeira sílaba apontando para as duas primeiras letras e depois lê o resto silabicamente. Em tucano temos três letras para um trissílabo (TQA), mas a segunda sílaba está escrita com duas letras e a terceira não aparece escrita. Esse problema se evidencia na leitura, onde Luis conserva a correspondência quantitativa, mas perde as relações qualitativas: lê tu-ca-no. Algo semelhante acontece na palavra peru. As duas primeiras sílabas correspondem às duas primeiras letras, mas agrega uma terceira, talvez por causa da exigência de quantidade mínima. O resultado é PUI e a leitura é pe-ru, indicando a primeira sílaba sobre as duas primeiras letras e a segunda sílaba sobre a terceira letra. A próxima palavra, mico, é resolvida com quatro letras pertinentes, duas por sílaba (MIQU). Em pombo coloca três letras pertinentes, sendo que as duas últimas correspondem à mesma vogal: POU. Lê a primeira sílaba sobre as duas primeiras letras e a segunda sílaba sobre a última. Como veremos, Luis não é o único a escrever POU. No total, das cinco palavras escritas por Luis, há uma leve predominância de leituras silábicas sobre uma única letra.
Esses desajustes entre a produção escrita e leitura são frequentes neste período intermediário e são particularmente visíveis quando há letras pertinentes.
Rute, 5 anos, e2, escreve tucano com duas letras por sílaba (TUKARU) e lê assim tu-ca-no. Em jabuti, escreva as duas primeiras consoantes com as letras corretas (JB), que correspondem às duas primeiras sílabas. A terceira sílaba é resolvida também com duas letras corretas (TI). Porém, antes de realizar a leitura, a menina diz que faltam letras e repete um T. O resultado é JBTIT. Essas cinco letras complicam sua leitura porque lê a primeira sílaba sobre a primeira letra; a segunda e terceira sílabas sobre duas letras. Algo semelhante acontece no peru (PRUR). A primeira sílaba corresponde ao nome da letra, a segunda sílaba é completa e acrescenta um R no final que permite ler duas letras por sílaba pe-ru. A palavra mico é resolvida com duas letras por sílaba (MIKU) e uma leitura de acordo com o que está escrito mi-co. Na última palavra ela consegue colocar três letras pertinentes (PBU), a primeira das quais corresponde à primeira sílaba: pom-bo.
Uso frequente de letras consonantais
Os exemplos acima indicam que as crianças com escritas silábicas utilizam com frequência letras consonantais. A que podemos atribuir o uso frequente de letras consonantais, com ou sem pertinência? Para tentar entender isso, parece conveniente analisar o que acontece com as vogais.
Segundo referências autorizadas (CÂMARA JUNIOR, 1970; SILVA, 1999) existem 12 vogais no PB. As cinco vogais básicas (a, e, i, o, u) têm, cada uma, uma nasal correspondente. Além disso, E e O têm duas variantes fonológicas.
Analisando as escritas produzidas pelas crianças observamos o seguinte: as vogais O e U se substituem mutuamente. Isso significa dizer que em lugares onde o O é ortográfico, aparece U, principalmente nas sílabas átonas finais. Há também casos em que o U substitui o O, mas com menos frequência. A vogal E pode alternar com I em alguns casos. A única vogal que não se alterna com nenhuma outra é A. Podemos afirmar isso apesar de ter apresentado apenas um A nas cinco palavras iniciais, porque ocorre que a sexta palavra - não analisada aqui - apresenta quatro vezes A (ratazana) e a as crianças utilizam duas e três vezes o A.
Em espanhol, ao contrário, existem 5 vogais orais para 5 letras. Essa estabilidade das vogais em espanhol é uma forte diferença do PB. Pode ser que as crianças, de alguma forma, antecipam essa insuficiência? O que fazer então? Inventar letras está excluído. As crianças não dedicam seus esforços para inventar formas. Tratam de entender os usos dos adultos. Outras letras estão disponíveis. São formas gráficas disponíveis, antes de ter uma correspondência com sons consonantais. Pode ser o que acontece no exemplo já citado de Raymar.
Nas palavras apresentadas a frequência de cada uma das vogais não é a mesma. Em particular, o O final aparece em três palavras, as mesmas onde frequentemente aparece o U. Se trata de sílabas átonas2. Além disso, temos alguns casos em que algumas crianças colocam, no mesmo lugar da série gráfica, UO ou OU. Por exemplo, para mico:
- Sofia, 5 anos e2, escreve MUO
- Fernanda, 6a e1, escreve MOU
O restante das produções dessas meninas é silábica, assim como sua leitura, só que têm dificuldade para ler a segunda sílaba. Nossa interpretação é a seguinte: diante da impossibilidade de decidir entre O e U, as meninas colocam as duas letras alternativas no mesmo lugar gráfico.
Se nossa hipótese estiver correta, essa busca por outras formas-letras (busca que respalde as consoantes utilizadas) poderia ter outras consequências no desenvolvimento que não foram evidenciadas no presente estudo.
O caso especial das vogais nasais e nasalizadas
No PB há uma distinção entre nasalidade e nasalização. As vogais nasais são aquelas registradas com til (~) e as que são seguidas de consonantes nasais na mesma sílaba. As vogais nasalizadas são aquelas que assimilam a nasalidade da consoante presente no início da sílaba seguinte. No conjunto das cinco primeiras palavras do ditado, utilizadas para identificar o nível de escrita de cada criança, há uma palavra com vogal nasal (pombo) e uma palavra com vogal nasalizada (tucano).
Algumas soluções encontradas pelas crianças merecem destaque. Daniel (6a; e2) escreveu TUCANNO e quando questionado pela entrevistadora sobre a repetição da letra N, respondeu que um N é do A e o outro N é do O. Ana (4a; e2) escreveu UAAO para tucano e leu (tu-ca-no) apontando para AA enquanto pronunciava ‘ca’. A entrevistadora então questionou a repetição da letra A e Ana respondeu: precisa de dois ‘a’ para fazer ‘am’. Outro caso interessante é o de Sofia (5a; e2) que escreveu silabicamente TÃU para tucano. Quando questionada sobre o til no A de tucano, ela respondeu que era o mesmo A de ‘são’, referindo-se ao nome do município - São Francisco do Conde. Além disso, Sofía escreveu RTÃN para ratazana e ÃR para rã, palavras não analisadas aqui.
Na escrita da palavra pombo identificamos que algumas crianças demonstraram a necessidade de diferenciar as duas vogais. Pedro (6a; e2) escreveu POBU, se mostrou insatisfeito e reescreveu POUBU. A entrevistadora questionou por que ele acrescentou a letra U e Pedro respondeu que para fazer ‘om’ precisa do ‘o’ e do ‘u’. Erica (6a; e2) escreveu POBO e disse: não é a mesma coisa, apontando para a letra O que se repete. A entrevistadora perguntou se era possível fazer alguma coisa para ficar diferente e ela então reescreveu PUBO.
Assim como Pedro e Erica, outras crianças utilizaram a letra U em na primeira sílaba: POUBO, PUBU. Merece destaque que nenhuma criança utilizou o til para escrever pombo, ao contrário do que aconteceu uma vez em tucano, como já vimos. É preciso considerar que o til foi o único diacrítico utilizado e por uma quantidade mínima de crianças (menos de 10).
Esta ocorrência na escrita da palavra pombo nos leva novamente a refletir sobre a instabilidade das vogais e sua influência no processo de construção da escrita. O fato de termos uma variedade de fonemas vocálicos parece oferecer às crianças alternativas plausíveis diante de desafios como a nasalidade de pombo. As crianças identificam que as vogais das sílabas dessa palavra são diferentes e sabem que é preciso diferenciá-las.
A ortografia oferece duas soluções para vogais nasais: a letra M ou N e uso do til (~). As soluções gráficas encontradas pelas crianças que entrevistamos são diferentes, como a repetição da mesma vogal. Estas são apenas algumas observações sobre as vogais nasais e nasalizadas, bem como sua representação escrita. Este tema precisa de um desenho de investigação específico.
Conhecimento dos nomes das consoantes
Na presente investigação usamos apenas uma palavra que começa com uma consoante cujo nome coincide com a sílaba inicial da palavra (peru). Muitas crianças do período Silábico ou Silábico-alfabético usam o nome da letra em sentido silábico: colocam P e leem pe. Estas são escrituras onde as letras pertinentes são usadas: PRU / PLU / PUO. A vogal E está ausente em todos esses casos. Não faz falta porque o nome da letra se encarrega de representá-la.
Casos semelhantes podem, sem dúvida, ser obtidos com os nomes de outras consoantes. Isso ocorre em espanhol com o nome da letra L que coincide com as duas primeiras sílabas de e-le-fan-te. Mas uma coisa é reconhecer que é um recurso a ser utilizado e outra é supor que o nome das letras tem um papel constitutivo na evolução. O desenho desta pesquisa não colocou foco no nome das consoantes, razão pela qual não é apropriado elaborar mais sobre este tema.
O período silábico
Através dos exemplos apresentados, escolhemos propositalmente exemplos silábicos, o qual facilita a apresentação desta seção. Um artigo de uma conhecida pesquisadora norteamericana, assinado com duas colegas de Minas Gerais (TREIMAN, POLLO, CARDOSO-MARTINS; KESSLER, 2013) leva o título « Do young children spell words syllabically? Evidence from learners of Brazilian Portuguese ».
Para apoiá-lo, eles ditam às crianças uma longa lista de palavras. Os resultados são analisados apenas do ponto de vista quantitativo: 3 letras para um trissílabo, 1 para um monossílabo e assim por diante. É curioso que não levem em conta nenhum dos critérios qualitativos em que Ferreiro insiste em todas as suas publicações (FERREIRO, 2018; 2019). Por exemplo, iniciar o ditado com a palavra barata não é apenas de mau gosto, mas é particularmente difícil para crianças que não podem repetir a mesa letra para o mesmo núcleo vocálico (princípio da variedade interna). Também é questionável que as palavras não mantenham o campo semântico, ao menos próximo (bicicleta junto com chá). Manter o campo semântico ajuda a criança a pensar em palavras de sua própria oralidade.
Evidentemente também não consideram a leitura pelas crianças por razões de "objetividade metodológica". As diferenças entre esses desenhos experimentais e as entrevistas geralmente utilizadas na perspectiva construtivista não são um detalhe, mas de natureza propriamente epistemológica. Mas este não é o lugar para discutir as diferenças entre empirismo e construtivismo, que precisa de outra bibliografia e de uma elaboração detalhada.
Conclusões gerais
Por questões de espaço, fizemos apenas uma rápida referência à repetição dos núcleos silábicos. Também não apresentamos exemplos das consoantes pertinentes nem muitos outros detalhes que correspondem a uma apresentação completa dos resultados.
Com essas ressalvas, os dados quantitativos indicam que a maioria das escritas qualificadas como nível silábico, em qualquer uma das duas entrevistas, corresponde às crianças de cinco anos. Não é surpreendente que assim seja, pois trata-se de crianças que frequentam a escola desde os quatro anos e que, como já dissemos, escrevem e observam atos de produção e interpretação do escrito pela professora e outros colegas.
Uma diferença observável em relação ao espanhol diz respeito ao uso precoce de letras consonantais, com ou sem pertinência sonora. Tentamos interpretar este fato referindo-nos à situação das vogais no PB: 12 vogais para 5 letras vocálicas cria uma situação de assimetria que o espanhol desconhece.
Pode-se questionar que os resultados relatados correspondem a um único estado do Brasil e, dentro dele, a um único município. Mas esses estudos são quase impossíveis de fazer fora do ambiente acadêmico, contando com recursos limitados. A seu favor, pode-se assinalar a distância da Bahia dos estados do Sul que fazem fronteira com países onde se fala espanhol. Não negamos as diferenças dialetais que existem, mas na análise não nos referimos a elas. É difícil imaginar um estudo dessas características que ofereça uma amostra equilibrada entre as diferentes áreas de um país tão grande. De qualquer forma, lembremos que os dados originais da Argentina resultaram semelhantes aos do México, apesar de todas as diferenças culturais e fonéticas que existem entre os dois países.
Esperamos que novos estudos qualitativos permitam uma melhor compreensão dessa evolução.