A obra de Joshua Ramey - Deleuze hermético: filosofía y prueba espiritual - publicada em 2016 pela editora Las Cuarenta traz uma relevante contribuição aos estudos de filosofia da educação no Brasil. O livro é para professores e pesquisadores interessados em se aprofundar tanto nos estudos espirituais como na obra de Deleuze, toda vez que as referências espirituais do “filósofo da diferença” foram tratadas como algo acidental no conjunto de suas obras. Em relação ao autor, Joshua Ramey é Doutor em Filosofia pela Villanova University, e suas pesquisas se centram na Filosofia contemporânea, incluindo tópicos como: teoria social crítica, economia política e teologia política. Além do livro que aqui apresentamos, recentemente, publicou Politics of divination: neoliberal endgame and the religion of contingency (2016), além de vários artigos sobre filósofos contemporâneos.
Sem dúvida, Ramey consegue estruturar uma leitura séria e rigorosa da obra deleuziana. Trata-se de uma abordagem heterodoxa em relação aos estudos e usos da obra de Deleuze, especialmente no Brasil, tal como se evidencia em recente coleção sobre o autor intitulada Deleuze, desconstrução e alteridade (CORREIA; HADDOCK-LOBO; SILVA, 2017) ou em obras de destacado valor para estudos deleuzianos no País vinculados à educação (GALLO, 2011), nos quais termos como espiritualidade, hermetismo e Ramey não são mencionados. Igualmente, essa leitura subversiva de Deleuze não está presente no campo dos estudos espirituais, conforme trabalhos importantes nessa temática foram revisitados em Röhr (2013). Isso posto, a leitura hermética do corpus deleuziano possibilita uma convincente interconexão entre aspectos como natureza, política, ontologia e ética.
Essa particular leitura é marcada por um ensaio juvenil pouco conhecido de Deleuze, mas posteriormente excluída de sua produção bibliográfica, em que o filósofo “flerta” com a espiritualidade. Adicionalmente, Ramey se utiliza de outros conhecimentos para contextualizar a obra de Deleuze em um continuum do pensamento hermético que vai desde Hermes Trismegistus até Giordano Bruno, passando por pensadores clássicos como: Plotino, John Scotus Eriugena e Nicolau de Cusa até Pico della Mirandola, de tal forma que, ao contextualizar no hermetismo a obra deleuziana, Ramey acredita que Deleuze recria o interesse metafísico e epistemológico desses e outros filósofos pelos “fenómenos que han sido marginados como siniestros, paranormales, ‘ocultos’, [pelo qual] Deleuze contrabandea, dentro del lenguaje de la filosofía moderna, un lenguaje extranjero de aprehensiones intensivas, intuitivas y espirituales, las cuales han sido, en su gran mayoría, situadas en el afuera de la razón” (p. 45).
Quanto à composição, Deleuze hermético: filosofía y prueba espiritual inicia com uma nutrida apresentação que explora a imanência como princípio espiritual do empirismo transcendental deleuziano. Seguidamente, a obra se compõe de uma introdução, sete capítulos e, por último, um epílogo intitulado Fé experimental. Na introdução, o filósofo de Villanova explora os segredos da imanência, que tem, em Deleuze, vários sentidos; um deles a concebe como um “axioma metafilosófico” a partir do qual o ser é imanente ao pensamento (p. 34). No Capítulo 1: “Modernidad filosófica e imperativo experimental”, o autor assume o desafio de apresentar outra leitura de Deleuze sobre a história da Filosofia moderna. A chave de leitura se centra em esclarecer uma peculiar visão do francês que o leva a ver, nesse período da reflexão filosófica um uso da mente de forma experimental. Com efeito, fazendo uso de obras como Imagem-tempo, Ramsey extrai ideias sobre o pensamento experimental no qual Deleuze aposta não em decifrar os enganos das crenças, mas em saber se aquelas que são utilizadas operam no sentido de provocar efeitos aniquiladores nos dispositivos de controle.
O Capítulo 2, intitulado “Precursores sombríos: la tradición hermética”, Ramsey localiza como o pensamento experimental de Deleuze ecoa dentro de uma tradição espiritual pré-moderna conhecida como neoplatonismo e que iria desde Plotino até o Renascimento, o qual permite identificar a origem hermética da ideia de imanência na Filosofia. Fazendo uso do proeminente texto “Que é a filosofia”, o professor de Villanova não só nos leva a descobrir como pensadores pré-modernos (do tipo, Nicolau de Cusa, Pico della Mirandola e Giordano Bruno) inspiraram a imanência deleuziana, mas, ainda de forma mais radical, foram protagonistas de uma insurgência da imanência no interior da Teologia, configurando as primeiras tentativas de uma dobra dentro do neoplatonismo. Pelo menos três consequências podemos destacar dessa recuperação hermética em Deleuze: a primeira é o surgimento de um humanismo apocalíptico em que se criam laços de cooperação entre a humanidade e o cosmos, a mente e o corpo, que nos levaria novamente a uma crença no mundo; a segunda permite a retomada da arte como veículo dessa renovação do mundo que carrega a transformação da vida mesma a ponto de superar qualquer divisão entre cultura e natureza, corpo e sentidos, ser e significado, isto é, um novo sentido da estética onde a experimentação tem seu papel destacado; finalmente, outra das contribuições que o capítulo apresenta se fundamenta na leitura de Mil plâtos, cujo devir animal se apresenta como uma possibilidade para superar, aqui e agora, o fim dos tempos sem invocar forças transcendentais. Dito isso, surge de forma instigante o tema da bruxaria, o xamanismo e os feitiços como formas transformadoras da existência, visto que, se existe um apocalipse, este só pode ser ético-político.
“La fuerza de los símbolos: Deleuze y el signo esotérico” é o Capítulo 3 no qual se aborda um tema central do pensador da diferença: a arte e os símbolos. Nutrido da leitura de pensadores como Nicolau de Cusa e Giordano Bruno, o autor destaca como Deleuze empreende um trabalho de recuperar a força transformadora dos símbolos. Daí, que, ao retomar o papel do símbolo, Deleuze o vincula a linhas de força que podem levar a transformações imprevisíveis, para produzir o próprio apocalipse em nível micro e molecular que retorna a eficácia ao símbolo como instituinte de reexistências por vir. Trata-se assim, de colocar em questão o funcionamento de um colonialismo do simbólico que tem dominado o pensamento crítico e criado a catástrofe da neutralização do signo como força transgressora. Nesse aspecto, o capítulo constitui uma riqueza imprescindível aos atuais debates político-ecológicos e em torno da construção do comum, “para una política de la solidariedad, de la complicidad y de la federación”. (p. 208).
No Capítulo 4 relacionado à “Inversión del platonismo”, é mostrado como Deleuze opera num duplo sentido em relação à elaboração platônica do pensamento. De um lado, exalta-se a contribuição de Platão em destacar o pensamento como uma prova espiritual, e isso se faz presente nos diálogos do ateniense ao relacionar o bom ao verdadeiro, atestando, desse modo, uma imagem do pensamento subversivo paradoxalmente atrelada ao Estado, à manutenção do controle do Estado, o qual o leva a um conservacionismo que defende os valores estabelecidos. Sendo assim, as perguntas que o pensamento precisa fazer são aquelas que incomodam o poder dominante. Perguntas como: O que nos leva a aceitar a necessidade da ordem? Quem exige a continuidade dessa ordem? e, principalmente, Sob quais condições se deve preferir a verdade à ilusão? (p. 222). Responder a essas perguntas nos levará ao “platonismo invertido” como uma experiência do pensamento, na qual a transformação espiritual e a criação conceitual se tornam mais que ferramentas, modos de vida. Fazendo uso de obras como Diferença e repetição e Proust e os signos, Ramey destaca a noção de intensidade como sendo central na teoria deleuziana, de tal forma que é preciso desenvolver um olhar sensível sobre aqueles fenômenos que podem afetar a controlada existência humana.
Aprofundando esse diálogo com Proust, Deleuze caminha na reinvenção da arte. Dessa forma, o símbolo se transforma, assim mesmo, como um vetor que impulsiona a desterritorializações levando a uma relação entre Proust e uma estética de Deleuze que ecoam nas linhas de fuga de uma Filosofia e arte herméticas. Esse experimentar do pensamento deleuziano permite criar a figura do artesão cósmico como aquele artista cuja sensibilidade extrema o leva não a representar o mundo, nem a expressar sua alma, mas a expressar, comunicar, uma existência constituída como uma continuação dos acontecimentos cósmicos. O Capítulo 5 - denominado “Devenir cósmico” - apresenta uma discussão direcionada a pensar uma ontológica política da diferença. Aqui se projeta uma renovada visão da arte hermética que atravessa a materialidade, os desejos e o afeto a ponto de constituir uma ética que segue as ressonâncias cósmicas, ideia que interessa a Deleuze em seu período em conjunto com Guattari para pensar um corpo sem órgãos.
“La política de la brujeria” corresponde ao Capítulo 6 na composição do livro. Trata-se de uma valiosa distinção e exclusão entre o hermetismo deleuziano, o pensamento religioso e o acontecimento da nova era. Como bem destaca Ramey, se trata de uma linha perigosa que pode levar os leitores da obra do filósofo francês a pensar numa função de pontos transcendentais. Contudo, é uma articulação entre o pensamento ético-político e o ethos alquímico (p. 320) que está além de todo pensamento que promove o retorno ao paraíso perdido, a um estado divinizado entre o homem e a natureza ou, como afirma Ramey “Deleuze jamás afirma el ‘reencantamiento de la naturaleza’ como una meta del arte o del pensamiento, ni acepta que algún pensador explícitamente ‘religioso’ pueda ser capaz de um pensamiento realmente inmanente”. (p. 320). Sem dúvida é uma afirmação instigante cujas consequências ainda devem ser procuradas sobre o lineamento de uma existência contornada por um amor fati que leva a separar a magia do bruxo da magia do fascista.
A composição do livro pré-finaliza com “El futuro de la creencia”, o Capítulo 7, que apresenta as evidências de uma forte conexão entre o esoterismo ocidental e o plano deleuziano. Tal esoterismo é recuperado por Ramey a partir da obra de Antoine Faivre Access to western esotericism (1994) que defende que a tarefa de dito esoterismo é reverter a dominação da racionalidade sobre a natureza, para voltar a uma remitologização do cosmos, para tal fim, por um lado, a gnoses deve se arriscar a reencantar o cosmos e, por outro, a luta das tradições esotéricas contra a separação mente/matéria, realidade/mito que sustentam a ilustração. A superfície de contato com o projeto de Deleuze (aqui aprimorado pelo encontro com Guattari) deve ser entendido a partir da insistência por parte dos filósofos da imanência de uma não instância que separe o humano do animal, o orgânico do inorgânico, traçando, assim, uma “ecologia do virtual”, que levaria a pensar em sistemas não só como ecologia, mas também como um tecnoecossistema inerente à humanidade-devir-natureza que se expressaria por meio de experimentos artísticos, científicos e filosóficos (p. 372), como viabilizado, por exemplo, nos trabalhos de Santos (2013).
Ao concluir o livro com “Coda: fe experimental”, Ramey relaciona uma instigante amostra de virtualidades imanentes que o corpus deleuziano e as práticas espirituais podem oferecer.