Art, disobedience, and ethics: the adventure of pedagogy é o mais recente livro da série Education, Psychoanalysis, and Social Transformation, organizada pela Palgrave MacMillan. De acordo com a apresentação do livro, uma das finalidades principais da série é: “to play a vital role in rethinking the entire project of the related themes of politics, democratic struggles, and critical education within the global public sphere” (p. ii). Embora não trate diretamente das idiossincrasias do cenário brasileiro e sul-americano, o livro aborda com profundidade questões de fundamental relevância para a nossa realidade presente, em especial o caráter cada vez mais explícito com que as humanidades, as artes, e o pensamento desprendido como um todo vêm sendo atacadas pelo atual governo - por meio de argumentos que vão desde a ausência de “retorno para o contribuinte” até a “militância política”1 dessas áreas de estudo, argumentos que exemplificam com transparente precisão a relevância do ataque de Atkinson aos modelos pedagógicos instrumentais, bem como da defesa de uma educação crítica e desobediente.
O autor é professor emérito na Universidade Goldsmiths, de Londres, além de ocupar o cargo de docente visitante nas universidades do Porto, de Helsinki, Gothenburg e Barcelona. Um aspecto importante da sua biografia é a experiência que tem no ensino secundário, por ter trabalhado, na Inglaterra, de 1971 a 1988. O livro de que ora me ocupo é o sexto da bibliografia do autor, sendo os outros igualmente voltados para as questões educacionais: Art in education: identity and practice; social and critical practice in art education (coautoria de Paul Dash); Regulatory practices in education: a lacanian perspective (coautoria de Tony Brown e Janice England); Teaching through contemporary art: a report on innovative practices in the classroom (coautoria de Jeff Adams, Kelly Worwood, Paul Dash, Steve Herne e Tara Page) e Art, equality and learning: pedagogies against the state. O mais próximo, em conteúdo, do atual é justamente o último, em que o autor trata, já com profundidade, de algumas das questões centrais para o presente livro, a questão da desobediência e a da postura combativa frente aos modelos fechados da pedagogia instrumental.
Art, disobedience, and ethics: the adventure of pedagogy é dividido em dez capítulos, incluída a introdução, mais uma nota de encerramento. Como sugestão para o leitor, é importante dizer que os capítulos não apresentam uma demarcação clara de tema, sendo que os tópicos e argumentos se repetem e se entrelaçam, entre um capítulo e outro, com frequência. A temática denominada pelo autor “Building a life”, por exemplo, aparece no título de três dos capítulos: “Spinoza and the challenge of building a life” (terceiro), “The force of art and learning: building a life” (quarto), “Pedagogic work: an ethics of building a life” (décimo). Os demais capítulos, em ordem crescente, são: “The pragmatics and ethics of the suddenly possible” (introdução); “Restoring pedagogic work to the Incipience and Immanence of learning: disobedient pedagogies” (primeiro); “Whitehead’s adventure” (Quinto); “Ethics and politics in pedagogic work” (sexto); “Becoming in the middle” (sétimo); “The force of art” (oitavo); “Pedagogy and events of disobedience” (nono).
Em virtude dessa estruturação, a presente resenha, em respeito ao modelo estético-ensaísta de Atkinson, buscará não uma exposição sistemática de cada capítulo, mas uma descrição dos principais conceitos que compõem sua tese geral. Antes, de todo modo, situo o leitor com um breve resumo do argumento central do livro de Atkinson.
Em poucas palavras, o livro de Atkinson reclama a necessidade de baixarmos a guarda, abrirmos as portas, flexibilizarmos as barreiras das nossas “verdades”, dos nossos “valores”, das nossas “metas”, no âmbito pedagógico, em especial aquelas estruturadas por um modelo pedagógico instrumental, reduzido à ambição por metas extrínsecas e pautado em valores que premiam posturas conformistas, unilaterais e obedientes. O autor nos impulsiona a perceber e, principalmente, a respeitar o divergente, o novo e o inesperado, imanentes às experiências pedagógicas concretas. Sustenta que o professor precisa estar aberto a ouvir. E, para ouvir genuinamente e responder ao que ouve, precisa desfazer-se de seu arcabouço ferramental, desobedecer às fórmulas prontas e absorver o valor imanente de cada novo “encontro pedagógico”. A tentativa de compreender o novo, buscando enquadrá-lo nos rótulos velhos, diz Atkinson, mutila sua novidade. O aluno, como ser vivo dotado de qualidades, capacidades e potencialidades únicas, também tem muito a ensinar. A grande questão é: Ele será ouvido? Ou sua diferença será, dia após dia, massacrada até que desapareça?
O primeiro dos conceitos que destaco como centrais para a tese de Atkinson é o de “repentinamente possível” (Suddenly possible), que o autor toma de empréstimo de Susan Buck-Morss’s (p. 2). Na esfera da possibilidade reside justamente aquilo que de mais relevante, segundo a argumentação central do autor, o ambiente pedagógico pode oferecer. As noções de infinito (tomada pelo autor de Spinoza), bem como de virtualidade (de Delleuze e Gattari) estão na base dessa argumentação. O súbita ou repentinamente possível aponta para a infinitude e para a virtualidade sempre latentes nos eventos presentes; põe em evidência tudo aquilo que se perde quando se busca enquadrar e rotular toda experiência entre aluno e professor, em um modelo preestabelecido e uniforme, bem como quando o campo de possibilidades é reduzido ao que somos capazes de imaginar no presente; há uma esfera de sujeitos e de mundos “ainda-por-vir”, que demanda abertura e atenção. (p. 60). O caráter “repentino” ou “súbito” da esfera da possibilidade é devido justamente ao estatuto em princípio inimaginável de sua realidade, estatuto que assenta a imprevisibilidade do que está por vir. (p. 96).
Estar aberto ao “repentinamente possível” implica valorizar o que o autor define como “imanência” dos “encontros pedagógicos” (Cap. 1). A valorização da imanência se expressa pelo enfraquecimento das fórmulas abstratas em vantagem da experiência concreta, “real”, do processo que se manifesta na relação entre alunos e professores (p. 21, 206). As relações são únicas em termos não meramente retóricos, mas em concretude; só percebemos sua originalidade, no entanto, se estivermos abertos a ela e aptos a encará-la com o devido respeito. (p. 92). Cada aluno e cada local tem sua história e suas qualidades próprias (p. 29), e essas realidades heterogêneas são obscurecidas e excluídas quando a prática educativa é orientada por uma fórmula única.
A “desobediência”, conceito fundamental, aparece como virtude necessária, como forma de reivindicar o valor de todos os conceitos acima (Cap. 9). Ela não deve ser vista, portanto, como uma rebeldia malgerida; antes, representa a capacidade de dizer não para toda tentativa de rotular e reduzir a identidade própria de cada sujeito e o caráter original de cada experiência a fórmulas e modelos estáticos e limitados. A desobediência, portanto, não diz respeito apenas a alunos, mas, sobretudo, aos professores, que precisam dizer não para suas próprias visões preconcebidas, e para aquelas que os modelos de desempenho o impõem, se quiserem respeitar a realidade diversa, complexa, imprevisível de cada “encontro” pedagógico. Quando um modelo pedagógico exige do professor que viole o que há de mais fundamental na relação com seus alunos, desobedecer é, nesse sentido, um caminho necessário. E essa virtude se torna ainda mais relevante e necessária, quando se percebe que o caminho para o modelo “empresarial” de escola cresce dia a dia, de modo que a própria sobrevivência da escola passa a estar atrelada ao atingimento das “metas” que tal modelo impõe como critérios de qualidade. (p. 14).
A arte, ou, mais precisamente, “a força da arte”, é o símbolo de tal postura desobediente. Mas não essa ou aquelas concepções abstratas de arte. Trata-se, antes, de uma postura estética frente ao mundo: uma postura alheia a regras, a prescrições, a interesses e delimitações (Cap. 8). A arte desobedece na medida em que escapa das barreiras, dos rótulos e das fórmulas que governam o nosso mundo prático; desobedece sempre que inventa, transforma, alarga ou “fratura” a ordem estabelecida (p. 156-158). Na visão do autor, é esse estatuto desobediente um dos motivos pelos quais as artes, juntamente com as humanidades, estão sempre em conflito com a ordem estabelecida e vem sofrendo ataques crescentes por parte dos governos, pautados em princípios economicistas, cuja única medida de sucesso são os critérios mercadológicos. (p. 15).
A esfera da “ética” aparece como inseparável dessa postura estéticodesobediente de ensino (p. 61), na medida em que o que está em jogo aqui são formas diferentes de encarar a vida humana - e a proposta do autor não é apenas mais uma forma fechada e abstrata; ao contrário, representa justamente uma forma que abrace a multiplicidade e a imprevisibilidade; que abra caminho para novas formas de ser, sentir, pensar e agir (p. 60), para um ser humano que ainda sequer pode ser concebido, mas que certamente surgirá, dada a transitoriedade intrínseca ao nosso ser. O objetivo de tal modelo, portanto, é pautar o aprendizado na noção central de “construir uma vida” (p. 32), no sentido de formar um indivíduo emancipado, capaz de pensamento livre, e não meramente um objeto que encaixa bem dentro das regras e dos princípios a ele impostos. Uma vida capaz de abraçar o dissenso, o heterogêneo, o incerto, o desajustado, que caracterizam a realidade concreta em sua originalidade, sem buscar fugas nos ajustes e “consensos” forçados, caindo em regras e explicações estáticas e mutiladoras. (p 115-116; 121-122).
Um ponto que pode ser considerado negativo no livro de Atkinson é seu caráter excessivamente repetitivo. Podemos ver um exemplo claro disso numa das questões mais espinhosas da argumentação do autor, a que trata da pergunta sobre: Seu modelo, na medida em que pretende prescindir de regras e parâmetros prévios, não acabaria afirmando uma espécie de “vale tudo”? O autor enfrenta essa questão detalhadamente ao longo da primeira metade da página 105, e seu argumento é praticamente repetido (literalmente, tendo apenas duas ou três palavras mudadas), no final da página 127 e início da 128. São os únicos momentos em que o autor leva a sério essa objeção e, talvez, a repetição literal do mesmo argumento seja a evidência de uma importante dificuldade, por parte do autor, frente à aplicabilidade prática de sua proposta. A resposta do autor lança mão de um argumento de Deleuze, que aponta como critério para a avaliação de um evento (de modo a evitar o “vale tudo”) o grau imanente de “afirmação da potência de vida” que o evento representa (p. 105, 127). Essa resposta, no entanto, não nos ajuda muito na prática: os casos concretos (tendo em vista os muitos conflitos que deles surgem) tendem a evidenciar a necessidade de maiores detalhamentos sobre aquilo que concebemos como positivo e negativo para o florescer de uma vida; esses critérios, em grande medida, também exigem um grau significativo de abstração prévia - mas não implicam, é claro, numa rigidez paralisante, que Atkinson ataca com toda a razão.
Isso, no entanto, não subtrai o grande valor de Art, disobedience, and ethics: the adventure of pedagogy. Apesar de tratar mais detidamente do âmbito pedagógico, o livro de Atkinson é igualmente um saboroso conjunto de aportes contrários aos muros que todos nós, consciente ou inconscientemente, erguemos dia a dia contra o novo, contra o desconhecido, contra o diferente. É, acima de tudo, um livro que demanda e incentiva, além dessa coragem de encarar a tensão e a incerteza latentes em cada experiência concreta ou real, uma postura crítica frente aos dogmas e interesses escusos impregnados no fazer pedagógico.
Encerro com algumas palavras do próprio autor:
It seems important therefore to ask, for whom is the practice of learning relevant? Is it the learner, the teacher, the government? Each of these implies different agenda. This negotiation of relevance or the morphology of relevance is important in asking how something matters for a learner. Different agendas assume different ontological, epistemological, ethical and political grounds, and different kinds of knowledge. (p. 36).
Our current dispositif of education affecting schools and universities invokes participation grounded on a pre-conceived and highly regulated venture governed by economic prosperity and ambition. A dispositif of prescribed subjectivities (learner, teacher), and prescribed bodies of knowledge. Real learning in the sense of experimentation has no prescriptive force, it is restless, disobedient and awaits subjects-yet-to-arrive. Real learning is a deterritorialisation, a disobedient force opening up potentials for new or modified ways of doing, making, seeing, thinking, feeling; a potential to generate new peoples. (p. 60).