Introdução
Uma das marcas do século XX são os acelerados avanços tecnológicos e científicos, especialmente a partir de sua segunda metade. O historiador Eric Hobsbawn (2013) destaca que nos últimos 50 anos a humanidade passou por mais mudanças e transformações relacionadas ao desenvolvimento tecnocientífico do que em toda a sua história.
Com esse desenvolvimento tecnocientífico, ao mesmo tempo que tivemos muitos benefícios e conquistas à humanidade, como a cura e o controle de doenças, o aumento da produção de alimentos, a melhor qualidade e expectativa de vida mundial, entre tantas outras, também tivemos a exploração desenfreada dos recursos naturais, o uso da tecnologia para a morte nas guerras, a produção de armas químicas, o aumento da exclusão do mundo do trabalho, a ampliação da desigualdade social, o abuso em pesquisas científicas realizadas sem o consentimento do indivíduo, entre outros. Nas palavras de Morin, “o século XX produziu avanços gigantescos em todas as áreas do conhecimento, assim como em todos os campos da técnica. Ao mesmo tempo nova cegueira para os problemas globais [...]” (MORIN, 2011a, p. 45).
Desse modo, pode-se afirmar que a ambivalência representa uma das características do desenvolvimento tecnocientífico, ou seja, aquilo que se apresenta como uma promessa também contém a própria ameaça. E essa ambivalência tornou-se mais intensa a cada dia em nossos tempos, porque as promessas da civilização tecnológica são cada vez mais encantadoras, dificultando, desse modo, a identificação das ameaças nela contidas e, consequentemente, uma avaliação do mundo dos valores (JONAS, 2013).
Frente a essas ameaças à vida humana e à vida da biosfera promovidas pelo desenvolvimento tecnocientífico desacampado dos valores, Potter, com sua proposta de uma bioética global, e Morin, com a teoria da complexidade, propõem alternativas de enfrentamento a tais ameaças, de modo a garantir a sobrevivência humana e ambiental no futuro.
Contemporâneos do século XX, Potter e Morin viveram em ambientes culturais e científicos distintos: o cientista Potter na Universidade de Wisconsin, em Madison, nos EUA, com suas pesquisas na busca pela cura do câncer, e o sociólogo Morin a partir de Paris, como pesquisador emérito do Centre National de la Recherche Scientifique. Certamente, um pensador não conheceu a obra e o projeto do outro. Esse desconhecimento mútuo, embora também possa representar uma fragilidade dos autores, aproxima-os na identificação dos problemas centrais de seu tempo.
Da parte de Morin, a alusão à bioética pode ser considerada marginal, pois é feita apenas uma única vez, e em relação à bioética médica (LÓPES, 2012). Essa desqualificação de Morin à bioética encontra justificativas na própria argumentação de Potter em sua bioética global, quando este critica a redução da bioética à ética médica pela sua dimensão disciplinar e por sua incapacidade de construir pontes (1988a).
A falta de uma gramática e uma linguagem comum já estabelecida para conceituar o que pretendiam propor, afirma Garcia (2008), obrigou Potter e Morin a criarem termos que pudessem expressar a novidade: o primeiro propôs a bioética global e o segundo o pensamento complexo. No entanto, o mais importante não é o substantivo, mas o que o qualifica e o determina: o global e o complexo.
Em oposição às tendências reducionistas da educação, ao cientificismo tecnicista e à falta de uma compreensão em escala global dos problemas, Potter e Morin partilham da necessidade de uma mudança na forma de lidar com o conhecimento, para tanto, exige-se uma transformação profunda da educação, do ensino e do pensamento. Potter destacou a importância da educação para enfrentar o desafio da sobrevivência humana, uma bioética-política comprometida com o futuro, enquanto Morin colocou a condição humana no centro do processo educacional, uma antropoética, de modo a conceber o ser humano como um ser em relação com o seu ambiente.
Para alcançar os objetivos de Potter e de Morin, necessita-se de uma mudança educativa profunda fundamentada em um novo saber. Desse modo, esta pesquisa quer investigar como a bioética global de Potter faz interface com a teoria da complexidade de Edgar Morin, com vistas a novos saberes para a educação do futuro, de maneira a possibilitar a sobrevivência futura da vida humana e da biosfera. Trata-se de uma pesquisa bibliográfica, de caráter teórico-conceitual e interpretativa. O artigo será organizado em etapas: inicialmente com a apresentação das bases da bioética global de Potter; na sequência algumas teses centrais de Morin em relação à teoria da complexidade; e, por fim, com os novos saberes éticos para a educação do futuro com vista à sobrevivência da vida humana e da biosfera.
As bases da bioética global de Potter
O bioquímico Van Rensselaer Potter (1911-2001) foi professor e pesquisador na área da oncologia por mais de 50 anos na Universidade de Wisconsin, EUA. Sua pesquisa na cura do câncer foi bastante reconhecida pela comunidade científica de seu tempo.
Depois de algumas décadas dedicadas à pesquisa, ao avaliar as ciências e a atividade dos pesquisadores, Potter reconhece que um dos empecilhos que o impediram de encontrar a cura do câncer foi justamente o modo disciplinar de organização das ciências, que se limitam a compreender o câncer somente a partir do corpo do doente e do saber científico do médico, ignorando todas as outras causas envolvidas. O autor reconhece que, se quiser encontrar a cura do câncer, a ciência deverá integrar “as opiniões dos cientistas [com as opiniões] dos não cientistas, incluindo os pacientes e os cidadãos motivados” (POTTER, 2018b, p. 54).
Frente à excessiva produção de conhecimento em seu tempo, Potter destaca que durante muitas décadas os cientistas acreditaram que quanto maior o conhecimento científico, maior seria o progresso humano e a própria realização humana, e que os perigos do conhecimento científico deveriam ser combatidos com mais conhecimento científico (POTTER, 2018b). Essa forma de pensar promoveu, segundo Potter, “uma crise de identidade nos cientistas” (2018b, p. 45), porque estes reconheceram que muito do conhecimento produzido compromete a sobrevivência dos humanos e da biosfera no futuro.
A produção desse conhecimento perigoso, destaca Potter, fundamenta-se na tese de que os recursos da natureza são ilimitados, na capacidade de regeneração da natureza, na independência da ciência em relação ao mundo dos valores, na valorização dos interesses do bem comum em detrimento da autonomia do indivíduo, nos resultados a curto prazo, entre outros pressupostos. Essas concepções autorizam a prática da ciência e o cientista a agir de modo desenfreado, independentemente de qualquer parâmetro moral. Ao olhar para essa realidade, Potter afirma que a ação humana sobre a natureza se compara às células cancerígenas agindo sobre o corpo humano até levá-lo à destruição (POTTER, 2016).
Desse modo, a humanidade necessita de uma nova sabedoria para guiar o conhecimento, a qual consiste no “conhecimento de como usar o conhecimento” (POTTER, 2016, p. 27), com vistas à sobrevivência humana futura, porque o conhecimento está se acumulando mais rapidamente do que a sabedoria para gerenciá-lo.
A falta dessa sabedoria não demorou para apresentar resultados negativos, por isso o cientista necessita ser reeducado no mundo dos valores (POTTER, 2018b) para poder compreender que não basta apenas produzir mais conhecimento, mas o conhecimento produzido precisa assegurar as condições humanas, sociais e ambientais de “permanência de um planeta habitável” (POTTER, 2018b, p. 46), e para alcançarmos tais desafios é preciso que o cientista dedique a maior parte do tempo da sua pesquisa ao “julgamento dos valores humanos na relação do ser humano/terra” (POTTER, 2018b, p. 46).
Para fazer frente a esse cenário de produção de conhecimento independente do mundo dos valores que tem ameaçado o futuro da humanidade, Potter, em 1970, cria a bioética, intitulando-a como ciência da sobrevivência. Embora inicialmente tenha sido pensada como uma disciplina para aproximar o conhecimento científico com o mundo dos valores, essa disciplina não seria mais uma dentro de um modelo educacional convencional, mas um novo saber fundamentado em novos valores e objetivos e voltado à garantia da sobrevivência humana e da biosfera no futuro. Trata-se, portanto, de um novo saber que se fundamenta em uma nova ética com vistas à sobrevivência futura da humanidade. Em um dos seus escritos posteriores (2001), Potter afirma que, se pudesse “rever” o que teria escrito nesse primeiro momento, substituiria a palavra ciência pela palavra moralidade, ou seja, a bioética não como a “ciência da sobrevivência[, mas como] a moralidade da sobrevivência” (POTTER, 2018b, p. 261), o que destaca a importância de uma nova moralidade que integre fatos e valores para guiar a ciência.
Potter busca as bases dessa nova moralidade no que ele chama de uma nova biologia, ou seja, uma biologia que reconheça a estreita conexão entre os seres humanos e o ambiente natural, de modo a superar a visão dualista. Destacam-se, ainda, entre as principais teses que devem fundamentar a nova moralidade, o cuidado para com as gerações futuras e o ambiente natural, o reconhecimento do ser humano como parte da natureza, uma ética que proteja o ser humano, a sociedade e o planeta, a garantia da sobrevivência a longo prazo, entre outras.
Em 1971, Potter redefine a bioética utilizando-se da metáfora da ponte e intitula-a como ponte para o futuro. Com isso, o autor buscou destacar a necessidade de unir o que o conhecimento tradicional havia separado, ou seja, era preciso construir uma ponte entre as ciências da vida (bios) e a sabedoria prática (ethos), o presente e o futuro, a natureza e a cultura, a humanidade e a natureza.
Nas duas primeiras décadas a bioética de Potter não ganhou visibilidade. Entre os motivos da não propagação podem-se destacar: o uso reduzido da bioética como ética médica, o que ficou conhecido como bioética principialista, para orientar a relação médico/paciente, proposto por André Hellerges (1971) do Instituto Universitário de Bioética, em Washington; e uma rejeição político-ideológica às ideias de Potter devido às suas críticas ao modelo desenvolvimentista, que em vista de um ideal de progresso estaria comprometendo a sobrevivência humana e os recursos naturais. A tese de Potter de que eram necessárias, com urgência, novas políticas de desenvolvimento baseadas em parâmetros éticos para garantir a sobrevivência futura não poderia ser tão atraente aos olhos de uma sociedade capitalista.
Ao ver seu ideal bioético reduzido à ética médica, Potter, em 1988, retoma seu propósito e amplia a bioética para uma dimensão planetária, intitulando-a como bioética global. Com ela, o autor pretendia destacar a necessidade de fazer da “bioética médica [um] complemento da bioética ecológica” (2018a, p. 163). Ou seja, Potter reforça as ideias de que a saúde humana depende diretamente da saúde ambiental, social e cultural e o adoecimento de uma das partes provoca o adoecimento da outra parte, por isso é preciso unificar os diferentes ramos do saber para chegar-se “a uma visão consensual [...] unificada [...] e abrangente” (POTTER, 2018a, p. 101). Com a bioética global, Potter pretendia superar as visões reducionistas e materialistas de seu tempo em busca de novos saberes que pudessem harmonizar os elementos antropológicos, cósmicos e ecológicos com vistas à sobrevivência humana futura, visto que o atual modelo de desenvolvimento, preocupado com resultados econômicos imediatos, não tem considerado a qualidade da vida humana futura e do ambiente natural.
O reconhecimento da natureza como um bem em si mesma e uma portadora de valor intrínseco bem como a necessidade de encontrar um “[...] estilo de vida viável [...], saudável [...] e compatível com uma biosfera estável” (2018b, p. 202) fizeram Potter, juntamente com seu discípulo Whitehouse, acrescentar à bioética global a dimensão profunda, renomeando-a como bioética global e profunda. Inspirados na ecologia profunda de Arne Naess, com esse acréscimo buscava-se adicionar um novo saber à bioética, superando, desse modo, o utilitarismo ecológico.
Esse reconhecimento de que a natureza possui valor intrínseco e representa um bem em si mesma exige uma ampliação da dimensão ética, pois esse valor e esse bem precisam de proteção. Com esse entendimento, Potter reconhece a necessidade de ampliar a dimensão ética de modo a proteger a totalidade da vida. Além disso, identifica, apoiado em uma sabedoria da antiguidade, um equilíbrio do ecossistema e faz desse equilíbrio o parâmetro da moralidade, mesmo que, para tanto, tenha incorrido na falácia naturalista. Esse é o saber que Potter propõe e precisa ser considerado com vistas à sobrevivência da espécie humana e da natureza.
O pensamento complexo de Morin
Edgar Morin (1921-atual) pesquisa nas áreas de educação, sociologia, antropologia e filosofia. Sua produção intelectual intensificou-se a partir da metade do século XX. Nos anos 1970, na conjuntura da Guerra Fria, afirmou que o século XX foi o século das guerras, das armas nucleares e da morte ecológica (MORIN, 1973), mas em suas obras indica a necessidade de mudança de paradigma para uma sociedade com consciência da condição humana e da cidadania planetária (MORIN, 2011a; 2003; MORIN et al., 2009).
O século XX descobriu a perda do futuro com as guerras, os massacres, o fanatismo e por meio de uma racionalização que multiplica o poder da morte e da servidão técnico-industrial (MORIN, 2011a). O cenário herdado é de mazelas sociais que continuam nos dias atuais, como: as grandes desigualdades sociais, a especialização da tecnologia de guerra que produz mortes, os milhares de refugiados de guerra e ambientais, o terrorismo, a aceleração da infraestrutura das tecnologias de informação e comunicação, o consumismo, o individualismo, entre outras. Muitos problemas sociais que eram característicos dos países periféricos agora estão presentes também nos países centrais.
A humanidade produziu um mal-estar da civilização que se estende em escala planetária, canalizando suas ações nos protestos contra a mercantilização dos recursos, nas políticas que governam os países, no uso em larga escala de antidepressivos, na degradação das relações sociais e muitas outras. Mas, paralelamente a isso, a sociedade produziu formas de resistência à individualização, uma busca pela construção de novas relações sociais, de maneiras de conviver e viver em ritmo mais lento e com qualidade de vida. Há também a busca pela consciência de uma sociedade-mundo com movimentos contra-hegemônicos, como o dos Médicos sem Fronteiras, a Anistia Internacional e a formação de uma civilização planetária (MORIN, 2009).
Frente a essa sociedade planetária e globalizada, Morin apresenta o pensamento complexo como uma forma de ruptura com o paradigma da simplificação. Define complexidade (que provém de complectere) como trançar, entrelaçar. Nas suas palavras, “complexus significa o que foi tecido junto, de fato, há complexidade quando os elementos diferentes são inseparáveis constitutivos do todo [...] a complexidade é a união entre a unidade e a multiplicidade” (MORIN, 2011a, p. 38).
A teoria da complexidade traz em si um conflito entre a aspiração à totalidade e a impossibilidade da totalidade, e essa é a “via dialógica intrínseca ao espírito da complexidade” (MORIN, 2008, p. 213). A dialógica aborda os opostos que se complementam e não disputam entre si. Nesse sentido, o pensamento complexo traz dois princípios: o primeiro é o da religação, que “converteu-se em um princípio cognitivo permanente [...] uma informação adquire sentido num sistema de conhecimento, um acontecimento adquire sentido nas condições históricas em que aparece”, e o segundo é o da insuficiência da lógica clássica ante as contradições e, com isso, “a necessidade de assumir uma dialética que ligue as contradições” (MORIN, 2008, p. 209).
Opondo-se à clássica compreensão ocidental em relação ao ser humano, que visava obter todas as respostas, Morin afirma que “o estudo da condição humana não depende só do ponto de vista das ciências humanas [...] depende também das ciências naturais renovadas e reunidas, que são: a Cosmologia, as ciências da Terra e a Ecologia” (MORIN, 2003, p. 35). Nesse sentido, o ser humano é ao mesmo tempo espécie, indivíduo e sociedade. A espécie se encontra no indivíduo, o qual se encontra na sociedade assim como a sociedade se encontra no nele e ele na espécie.
Aprender a condição humana é uma necessidade para a superação do pensamento dicotômico entre o saber humanista e o saber científico e tecnológico. A fragmentação anula a noção de vida e de pessoa. Nesse sentido, deve incluir a cultura, o pensamento e a consciência da coletividade do destino “próprio de nossa era planetária, onde todos os humanos são confrontados com os mesmos problemas vitais e mortais” (MORIN, 2003, p. 46). Portanto, o ser humano é biológico e cultural ao mesmo tempo, pois mesmo os atos considerados biológicos estão permeados pela cultura e ligados a normas, proibições, valores, símbolos, mitos, ritos da sociedade em que a pessoa vive.
A educação tem espaço central no pensamento de Morin a partir da teorização do pensamento complexo e do diálogo na perspectiva interdisciplinar. Critica-se a fragmentação do saber, que separa, isola, dissocia objetos, disciplinas e problemas que conduzem a uma interpretação parcial da realidade, incapaz de articular saberes. O reconhecimento de que os problemas são cada vez mais polidisciplinares, transversais, multidimensionais e globais faz com que a atual fragmentação do saber não seja mais eficaz na compreensão da realidade (MORIN, 2003), pois exige-se uma visão do todo, da conexão, da rede, do inter-relacionamento, entre outros (CAPRA, 1996; MORIN, 2011a). Nessa perspectiva, a complexidade é um desafio ao conhecimento e não uma solução (MORIN, 2003; 2008).
A proposta de educação do futuro para Morin objetiva enfrentar as incertezas do conhecimento por meio da ecologia da ação que compreende três princípios: do risco e precaução, dos fins e meios e da ação e contexto. A ecologia da ação leva em consideração a complexidade, a iniciativa, a decisão e a consciência das transformações. Para o autor, o futuro depende da educação, dos saberes ensinados que rompam com a fragmentação do conhecimento, garantam um processo de renovação paradigmática e possam enfrentar desafios e crises sociais, políticas, econômicas e ambientais. Para tanto, a educação precisa ser dialógica, considerar a religação de saberes e a condição humana, na qual o ser humano é complexo e plural, é social-político e cultural (MORIN, 2002). Nesse sentido, a ligação dos saberes torna-se fundamental para se compreenderem os contextos e os sentidos de ser e estar no mundo
A educação precisa ser pautada no desenvolvimento da compreensão humana, na cidadania planetária e na ética do gênero humano para instrumentalizar as pessoas a enfrentar as situações que colocam em risco a preservação da vida no planeta. Portanto, é vital que os seres humanos se reconheçam como cidadãos da Terra (MORIN et al., 2009).
Nessa perspectiva, a educação para a era planetária deve agregar os diferentes domínios e dimensões da vida e promover o conhecimento capaz de apreender problemas globais e locais. Para tanto, “todo o conhecimento verdadeiramente humano significa o desenvolvimento conjunto das autonomias individuais, das participações comunitárias e do sentimento de pertencer à espécie humana” (MORIN, 2011a, p. 55). Essa proposta educacional traz à tona a perspectiva do compromisso com o futuro da humanidade, da solidariedade, da responsabilidade social e coletiva dos seres humanos e do respeito às diferenças.
A educação na era planetária objetiva o despertar para a sociedade-mundo, na qual o sujeito tem uma cidadania planetária e cosmopolita, ou seja, cidadão do mundo, “filho da Terra” (MORIN et al., 2009). Deve formar cidadãos protagonistas, conscientes, comprometidos com a construção de uma civilização planetária e que tenham como horizonte de expectativa não só o tempo presente, mas também a sobrevivência futura.
Morin investe na interação entre indivíduos, sociedade e espécie, na construção de uma ética do gênero humano. Um dos aspectos da sua perspectiva educacional é que se ensine a ética do gênero humano na busca da construção da ética humana (antropoética) e na perspectiva do sujeito individual, social e como espécie. Afirma: “compreende-se assim a esperança na completude da humanidade com consciência e cidadania planetária” (MORIN, 2011a, p. 100). Essa ética busca alcançar a humanidade em nós mesmos, respeitar, no outro, as diferenças e as identidades, desenvolver a ética da solidariedade e da compreensão bem como a convivência harmoniosa e respeitosa com o ambiente natural.
Afirma Morin que é preciso que o ser humano tome consciência de que sua ação em relação à natureza não pode ser de domador desta, nem de conquistador da Terra, mas de compreensão de que a humanidade depende “de modo vital da biosfera terrestre” (MORIN et al., 2009). Essa tomada de consciência contribui “para o abandono do sonho alucinado de conquista do Universo e dominação da natureza – formulado por Bacon, Descartes, Buffon, Marx –, que incentivou a aventura conquistadora da técnica ocidental” (MORIN, 2003, p. 39).
A mudança de paradigma é uma condição para a realização da educação no século XXI, considerando que “os indivíduos conhecem, pensam e agem segundo paradigmas inscritos culturalmente neles” (MORIN, 2011a, p. 25). A sociedade-mundo está sendo gestada e a educação deve ser uma tarefa política que ensine estratégias para a vida nessa sociedade. Opondo-se ao paradigma das certezas do modelo tradicional, o autor analisa que “a incerteza nos acompanha, e a esperança nos impulsiona” (MORIN, 2009, p. 99) em vista do desenvolvimento da hominização e da sociedade-mundo. A função da educação numa perspectiva de complexidade, portanto, não quer conhecer o ser humano isolado de seu ambiente natural, social e cultural, mas objetiva “formar cidadãos que lutem para retroceder a pobreza, as guerras e todas os processos que levam a incompreensão e ao sofrimento humano, criando compromissos com a justiça, a igualdade, o pluralismo e a diversidade” (BEHRENS, 2010, p. 354).
Novos saberes éticos para a educação do futuro com vistas à sobrevivência
Respeitadas as diferenças terminológicas e conceituais entre Potter e Morin, é possível reconhecer nas propostas dos autores a existência de um saber de um novo tipo, que rompe com o ideal clássico de racionalidade e se opõe radicalmente à concepção dicotômica da tradição que separa conhecimento da moralidade (POTTER, 2016), ciências naturais das ciências sociais, social do biológico, valores da cognição (MORIN, 2011b). Esse novo tipo de saber, como afirma Morin, não é apenas algo programático, mas “uma reforma paradigmática” (2011a, p. 35).
Assim sendo, seus ideais assumem uma perspectiva de vanguarda e originalidade nas propostas éticas contemporâneas, porque propõem mudanças com vistas a um mundo mais decente para os humanos, com a preservação da vida dos ecossistemas e da vida não humana. Essa perspectiva, marcada por uma nova sabedoria (POTTER, 2016), permite projetar que um novo mundo é possível, com respeito à natureza, ao ambiente, ao ser humano e às diferentes culturas (SGANZERLA; MORETTO, 2018).
A dimensão revolucionária das propostas de Potter e Morin é marcada pela exigência urgente de uma nova moralidade, com um novo saber ético capaz de tratar dos problemas globais. Essa nova moralidade proposta pelos autores distancia-se da moralidade tradicional voltada a regular o ser humano no tempo presente. Defendem os autores que, com vistas à sobrevivência humana e da biosfera no futuro, é preciso uma nova base moral voltada a longo prazo. Nas palavras de Potter (2018b, p. 74), “uma moralidade que situe o objetivo de longo prazo de uma sobrevivência humana aceitável ante de uma ênfase excessiva nos ganhos econômicos a curto prazo”. Essa nova moralidade parte do princípio de que o futuro não pode ser considerado como certo, por isso são necessários princípios éticos no presente para que efetivamente ele possa continuar a existir (POTTER, 2018a).
Embora inicialmente Potter tenha proposto a bioética como uma nova disciplina que pudesse aproximar as ciências das humanidades, essa nova disciplina não se fundamenta nas concepções tradicionais do conhecimento que se apoiam no dualismo, na fragmentação do ser humano e da natureza, no utilitarismo ecológico, na separação de fatos e valores, mas em novos princípios éticos apoiados na compreensão do ser humano como parte e fruto do ambiente natural. Esse novo saber proposto por Potter não substitui o modelo do antropocentrismo pelo biocentrismo, “mas uma combinação entre ambos [...] um biocentrismo humanista [...] ou um antropocentrismo esclarecido consciente da natureza” (POTTER, 1996, p. 183). É preciso, portanto, um novo modelo de pensamento, uma nova epistemologia, como afirma Morin, que venha a superar todos os ismos e suas pretensões de explicar a totalidade somente por uma perspectiva particular.
Na utilização da ponte como metáfora para definir a bioética, é possível reconhecer em Potter a busca por um saber de novo tipo que integra o ser humano à natureza, à cultura, à sociedade, ao divino. Um novo saber marcado pela interdependência, não mais pela separação. Um saber que busque o equilíbrio entre os interesses humanos com os interesses da natureza. Um saber que “combine o reducionismo biológico com o holismo e, então, proceder para um holismo ecológico e ético, se o homem quiser viver e prosperar” (POTTER, 2016, p. 35). Ou, nas palavras de Morin (2011b, p. 37), um saber que vise “alcançar a religação cósmica pela religação biológica, que nos chega pela religação antropológica, que se manifesta na solidariedade, na fraternidade, na amizade e no amor, que é a religação antropológica suprema”.
Esse novo saber proposto por Potter fica ainda mais evidente quando redefine a bioética como bioética global. Ao destacar que a saúde humana depende da saúde do ambiente, da sociedade e da cultura, Potter reforça ainda mais a ideia de que o ser humano necessitada da qualidade do ambiente para garantir a sua própria saúde e que a deterioração de uma das partes provoca, consequentemente, a deterioração da outra parte.
O posterior reconhecimento de Potter e Whitehouse acerca da presença de elementos espirituais na natureza também revela um saber de novo tipo, que exige respeito, consideração, humildade e responsabilidade pela diversidade e harmonia da natureza. A falta dessa percepção global em relação à natureza e do reconhecimento de suas inúmeras possibilidades, afirma Morin (2011b, p, 40), faz com que ocorra um “enfraquecimento da responsabilidade”.
Em ambos os autores o saber de novo tipo, que deve orientar a educação com vistas à garantia da sobrevivência futura, frente aos limites do conhecimento simplificador, disjuntor e redutor, tem no diálogo interdisciplinar entre os saberes uma das suas marcas (RENK, 2017). É nesse diálogo que se deve buscar a sabedoria da ação, que passou por novas exigências a partir da intensificação das sociedades globalizadas. Um diálogo com a participação dos cidadãos, da comunidade, das instituições e não somente de especialistas. Esse diálogo interdisciplinar fará com que se busque uma nova atitude em relação ao conhecimento, que não seja mais dogmática e sim de humildade, eclética, relativista, propositiva e de responsabilidade. Em outras palavras, Potter e Morin coincidem, embora diferentes um do outro, em reinventar a educação tendo como ponto de partida o diálogo e a abertura crítica aos saberes e às práticas humanas. Por isso, frente às necessidades que se globalizaram, é preciso um saber de novo tipo de saber, um saber dialogal, com perspectivas diferentes para nos oferecer mais elementos de compreensão de nós mesmos e do mundo em que estamos inseridos.
A compreensão contemporânea dos assuntos humanos, nesse contexto de sociedade globalizada, também exige um novo tipo de saber centrado na relação ciência-ética-política. Se historicamente esses saberes organizavam-se de modo isolado e independente, a nova moralidade e o saber ético propostos por Potter e Morin exigem serem concebidos de modo integrado, para fazer frente aos problemas globais. Potter buscou na bioética-política uma alternativa para garantir a sobrevivência futura. Essa bioética-política, inspirado em Aldo Leopold com sua Ética da terra, amplia a dimensão ética para além do indivíduo e da sociedade, pois inclui a totalidade da vida da biosfera (POTTER, 2018a). Ao tratar da amplitude da ética, Morin afirma que a responsabilidade ética tem que ir além da autoética e da socioética bem como incluir a antropoética fundada a partir da identidade humana comum na preservação do mundo vivo e da biosfera, de modo a garantir o direito de existir das futuras gerações.
Esse saber de novo tipo proposto por Potter e Morin deve servir de base para a educação, o ensino e a aprendizagem, pois com ele busca-se dar condições ao ser humano de compreender a sua própria natureza humana e o mundo que o cerca a partir de uma nova epistemologia. O que está em jogo não são somente as relações entre humanos, nem dos humanos com os outros sistemas biológicos, mas a sobrevivência planetária. A vida na sociedade contemporânea implica novas exigências do ponto de vista ético e bioético e apontam para a urgência de uma nova moldura ética, capaz de contribuir para a evolução, o equilíbrio e a sustentabilidade humana e planetária (SOTOLONGO, 2006).
A emergência planetária exige intervenção. Essa emergência, no entanto, não está no sentido da urgência, mas no sentido epistemológico em vista da humanidade futura, a qual, para tanto, necessita de um novo relacionamento dos seres com a biosfera. Trata-se de uma emergência, portanto, que se fundamenta em uma nova maneira de ser. Em outras palavras, a bioética global e a teoria da complexidade somente podem ser compreendidas a partir de uma nova sensibilidade pela vida, com saberes de um novo tipo que “realizam a rearticulação dos conhecimentos científicos e humanísticos mediante a aplicação de princípios regenerativos e estratégicos” (GALINDO, 2007, p. 158).
Enquanto Potter (2016, p. 30) propõe “um novo tipo de ética, chamada bioética”, com o objetivo de garantir a sobrevivência humana no futuro, Morin propõe uma nova ética, de volta às raízes, de uma identidade humana, de cidadãos terrestres, que é a consciência antropológica, ecológica, cívica e espiritual da condição humana (MORIN, 2011a). Acrescenta Morin (2003) que o enfraquecimento de uma percepção global conduz à falta do senso de responsabilidade e do enfraquecimento da solidariedade com o espaço e a sociedade em que vive. Nesse sentido, a identidade e a consciência terrena são importantes, pois é preciso aprender a “estar aqui”, a viver, a ser, a dividir e a pertencer como humanos no planeta. Ou, nas palavras de Potter e Whitehouse (2018b, p. 204), “é preciso mudar o papel de homo sapiens de conquistador da comunidade da terra para o simples membro e cidadão dela”. Desse modo, a educação dialógica proposta por Morin se aproxima da bioética global de Potter em vistas a um ensino que possa ir além dos aspectos cognitivos, técnicos e informativos, para “uma cultura que permita compreender nossa condição e nos ajude a viver” (MORIN, 2003, p. 11).
Considerações finais
Ao término dessa reflexão que buscou investigar como a bioética global de Potter faz interface com a teoria da complexidade de Edgar Morin, com vistas a novos saberes para a educação do futuro, que possibilitem a sobrevivência futura da vida humana e da biosfera, conclui-se que os novos saberes da educação propostos pelos autores podem garantir o futuro da humanidade e da vida do planeta. Esses novos saberes não podem ser concebidos como uma receita pronta e acabada, uma verdade que pode dar conta das incertezas do futuro. Eles nos permitem reconhecer os atuais limites do modelo de racionalidade ética e científica e possibilitam pensar a partir de uma nova perspectiva, na qual reconhecemos que somos parte de uma comunidade planetária e que não é mais possível conceber a realização humana independente do bem-estar ambiental e social. Sua novidade reside, portanto, na possibilidade de a humanidade habitar, viver e experienciar uma nova relação com a Terra. Para tanto, é preciso compreender a condição humana e sua identidade terrena a fim de viver com a natureza e não mais sob a natureza.
Para atingirmos essa sabedoria que nos garante o bem-estar e a sobrevivência futura, é preciso uma reforma profunda do pensamento, afirma Morin, com novos saberes para a educação. Saberes que possam colocar a cultura científica em diálogo com a humanística, como propôs Potter, ou saberes que possam proporcionar a compreensão da condição humana de modo a garantir a religação humana com a totalidade dos sistemas biológicos, como afirma Morin. Ou seja, uma reforma do pensamento requer a sabedoria de como usar o conhecimento com vistas à sobrevivência da espécie humana e do planeta. Esse é, afirma Garcia (2008), o desafio bioético da complexidade ou, se preferirmos, o desafio complexo da bioética, pois a reforma do pensamento é simultânea à nossa mudança na maneira de ser.
Os protagonismos de Potter e de Morin contribuíram para a necessidade de novos saberes para a educação em um mundo de transição, de revolução tecnológica, que tem como horizonte de expectativa a sobrevivência humana futura. Embora os autores tenham produzido suas reflexões em contextos sociais e políticos específicos, com propósitos definidos, reconhece-se neles o ideal de uma educação planetária que possa dar condições de o ser humano compreender a sua condição humana e sua identidade terrena para que ele possa integrar-se dentro do universo.