1 Introdução
Está cada vez mais difícil ao sujeito posicionar-se de forma autônoma, consciente e responsável na sociedade contemporânea. Geralmente ele não está capacitado para fazer suas próprias escolhas (é teleguiado o tempo todo a assumir tendências homogeneizantes e massificadas), satisfazer-se com suas preferências e decisões (o mecanismo de consumo faz com que se deseje cada vez mais novidades) e assumir uma posição crítica e racional diante das informações (multiplicam-se a cada dia as chamadas fake news, que são facilmente assimiladas sem maiores considerações). As pessoas estão sendo tomadas, também, por um sentimento de culpa e impotência pela incapacidade de alcançar as metas que a sociedade as instiga a assumir como suas. Dar-se conta da situação e procurar compreender os intrincados mecanismos de subjetivação aos quais se está submetido se torna um horizonte cada vez mais distante ao sujeito, que se vê enredado em seu cotidiano numa luta solitária e ininterrupta pela mera sobrevivência e por atingir metas que crescem numa progressão geométrica, nunca alcançando um ponto de repouso e satisfação. Nesse cenário, descrito e analisado por Han (2017), as possibilidades de resistência por meio de uma ação coletiva se tornam remotas.
Assim, faz-se urgente uma parada para reflexão e análise cuidadosa da situação, permitindo a produção do discernimento necessário para se encarar uma postura mais madura e consciente. No entanto, essa tarefa parece impossível a partir da colonização do tempo3 na vida contemporânea. Todos os espaços são preenchidos por demandas urgentes, numa necessidade crescente de se otimizar ao máximo o tempo para se conseguir dar conta das metas que a vida exige. Experimenta-se hoje o tempo de trabalho total (HAN, 2017). Mesmo o lazer está submetido ao tempo do trabalho e existe em função da produção. Além disso, a conectividade e as redes sociais acabam preenchendo cada instante de ócio que ainda possa existir em meio às pausas do dia a dia.
A escola, que deveria ser um lugar a salvo dessa agitação ininterrupta da sociedade, já que predispõe o exercício do pensamento e o surgimento do diferente, se vê tomada de assalto pelas demandas externas da sociedade de mercado. Gallo (2020) afirma que o ritmo acelerado da sociedade contemporânea acaba invadindo a escola e dificultando a existência de espaços e tempo livre para atividades reflexivas e contemplativas. Para isso, além das funções que a sociedade lhe impõe, a escola deve resistir, tentando manter-se como o lugar do tempo livre, de forma a permitir o exercício de estar no mundo de um modo autônomo e responsável.
Diante deste cenário, compreende-se que a Filosofia, enquanto a disciplina capaz de promover o desenvolvimento do pensamento crítico, pode assumir um protagonismo fundamental. No entanto, questiona-se acerca do espaço que ainda poderá existir para esse exercício e a produção do discernimento na sociedade contemporânea ou, ao menos, no interior das escolas.
Diante do exposto, o presente artigo propõe-se a investigar as condições que o ensino da Filosofia tem de se (a)firmar como condição à promoção do pensamento autônomo no Ensino Básico dentro do espaço que lhe é reservado no atual contexto educacional brasileiro, marcado por reformas guiadas por tendências neoliberais4 voltadas aos interesses do mercado. Para tanto, pautou-se em procedimentos bibliográficos e documentais sobre a presença da Filosofia no Ensino Básico no Brasil recente, incluindo as reformas educacionais em fase de implementação. Baseou-se, como ponto de referência teórica, na definição de Filosofia de Deleuze e Guattari (2004) e nas implicações dessa concepção para o ensino, buscando-se definir as funções que a Filosofia assume na sala de aula.
Feito esse preâmbulo, aborda-se a definição de Filosofia como criação de conceitos para em seguida destacar as implicações dessa concepção no ensino da Filosofia. Apresenta-se a função que se compreende como primordial à disciplina: um espaço livre das demandas estabelecidas pelos programas oficiais de ensino em que os jovens possam exercitar o pensamento reflexivo, problematizador e conceitual, criando condições da construção de uma subjetividade autônoma. Por fim, trata-se das mudanças de cunho neoliberal no ensino médio em fase de implementação no país, as quais submetem a Educação aos interesses do mercado e reforçam a dualidade, impedindo a implantação de uma formação humana integral.
2 Definição de Filosofia
Como ponto de referência principal do presente artigo, toma-se a concepção de Filosofia como criação de conceitos, conforme formulada por Deleuze e Guattari (2004), na obra “O que é a filosofia?”. Os autores procuram balizá-la de forma negativa, apontando primeiramente o que a Filosofia não é: “[...] não é contemplação, nem reflexão, nem comunicação” (DELEUZE; GUATTARI, 2004, p. 14). Dessa forma, dirigem duras críticas às perspectivas tradicionais, contudo não pretendem impor uma definição única de Filosofia que venha a substituir as outras existentes, mas ampliar sua compreensão de modo a estabelecer melhor sua especificidade, abarcando as demais noções, por mais diversas e distintas que sejam (GALLO, 2020).
A contemplação subentende que a verdade seja transcendente e já esteja em algum lugar esperando para ser descoberta. Ao contrário, a Filosofia para Deleuze é uma atividade criativa e não desinteressada. Ela visa, por meio da criação de conceitos, dar conta de um problema no plano de imanência. Para Deleuze e Guattari (2004, p. 15), “[...] o conceito como criação propriamente filosófica é sempre uma singularidade” que preencherá o plano de imanência5. A reflexão, por sua vez, não é uma atividade específica da Filosofia, podendo estar presente em outras disciplinas (Matemática, Literatura, Ciências). Para os autores, a reflexão, assim como a contemplação, refere-se a Universais6, só que de uma forma que remete a um idealismo subjetivo ao invés de objetivo, o mesmo podendo-se dizer da comunicação – idealismo intersubjetivo (DELEUZE; GUATTARI, 2004) –, que visa ao consenso e não o conceito, que por vezes é muito mais dissenso.
Entretanto a criação de conceitos pelo filósofo não acontece de maneira desinteressada, gratuita ou aleatória. O conceito é criado a partir da necessidade de se resolver problemas. “Todo conceito remete a um problema, a problemas sem os quais não teria sentido” (DELEUZE; GUATTARI, 2004, p. 27). Tal como se pode criar ou utilizar ferramentas manuais para resolver problemas práticos, o filósofo cria (ou reutiliza, readaptando) conceitos que se constituem como utensílios apropriados para a solução dos problemas da existência.
Os conceitos são criados a partir de problemas, colocados sobre um plano de imanência. Esse plano é o próprio solo dos conceitos e, portanto, da filosofia, e é traçado pelo filósofo tendo como elementos o tempo e o lugar em que vive, suas leituras, suas afinidades e desavenças
(GALLO, 2020, s.p.).
Entre os conceitos da história da Filosofia analisados por Deleuze e Guattari (2004) está o cogito cartesiano. Para os autores, o conceito formulado por Descartes pode se assemelhar a outros já elaborados pela Filosofia, mas consiste em algo inteiramente singular, trazendo componentes que não estão presentes em outros conceitos semelhantes. Isso se deve ao fato de Descartes ter traçado um plano de imanência próprio, do qual brota o conceito do cogito e ao qual lhe serve de sustentação, e devido a esse conceito em particular ter sido inventado para resolver um problema específico do plano de Descartes: por qual conceito começar “[...] para determinar a verdade como certeza subjetiva absolutamente pura?” (DELEUZE; GUATTARI, 2004, p. 39).
Esse exemplo demonstra que a originalidade do conceito está muitas vezes em seu novo recorte, em sua readaptação a um plano de imanência diferente do construído por outro filósofo. Enfatiza-se que a criação de conceitos não acontece em um plano puramente abstrato ou transcendente, outrossim, ao surgir juntamente de problemas autênticos, se desenvolve em um plano de imanência. Dessa forma, ela não deve ser um mero jogo de pensamento desvinculado da realidade concreta, social e existencial, mas surgindo justamente daí acaba retornando a essa realidade, possibilitando a ação autônoma dos sujeitos sobre si mesmos e sobre ela.
O pensamento conceitual não surge e se desenvolve sem dificuldades. Deleuze e Guattari (2004, p. 260) afirmam que, para evitar e fugir do caos, os homens facilmente se agarram a opiniões prontas, que servem “[...] como uma espécie de ‘guarda-sol’ que nos protege do caos”. No entanto, a proteção que a opinião oferece é ilusória e ela própria acaba se tornando um perigo maior que o caos. A Filosofia confronta-se então à opinião, mas nessa luta não está sozinha. Em meio a essa batalha desenvolvem-se três forças do pensamento que não prometem vencer o caos, nem fugir dele, “[...] mas conviver com ele e dele tirar possibilidades criativas” (GALLO, 2017a, p. 49), sejam elas: a Arte, a Filosofia e a Ciência. A batalha dessas três instâncias do pensamento se volta, então, contra a opinião. O objetivo é elevar o pensamento humano, superando a mentalidade ingênua e repetitiva dominada pela opinião. Cada uma das três disciplinas realiza a seu modo esse propósito, retirando do caos sua matéria-prima e força criadora.
Em seu mergulho no caos, a Arte traça um plano de composição e cria perceptos e afectos. A Ciência, por sua vez, traça um plano de referência e cria funções. Já a Filosofia traça um plano de imanência e cria conceitos. Pensar por perceptos, pensar por funções, pensar por conceitos: são as três modalidades do pensamento criativo, produtivo, que não apenas repete o já pensado, que não cede aos apelos da opinião
(ASPIS; GALLO, 2009, p. 30).
Arte, Ciência e Filosofia nos convidam a pensar o diferente, experimentando novos caminhos e acontecimentos. Embora sejam completamente distintas e independentes, as três se atravessam e se transversalizam (GALLO, 2020), criando o diferente por meio de encontros recíprocos. Não caberia à Filosofia apenas refletir sobre as criações da Arte e da Ciência, mas realizar suas próprias criações, isso valendo também para as demais instâncias, cada uma operando de forma independente das outras, mas interferindo-se mutuamente. Destarte, as três procuram superar o pensamento por repetição, próprio da opinião, sem sucumbir ao não pensamento do caos. A seguir, sintetizam-se, partindo das definições apresentadas, algumas funções que a Filosofia assume no Ensino Básico.
3 Funções do ensino de Filosofia
Algumas funções que geralmente são atribuídas à Filosofia não são propriamente específicas da disciplina. São aspectos necessários, porém não suficientes, os quais ela compartilha com outras áreas do conhecimento. Deleuze e Guattari (2004) apontam alguns desses elementos, como a reflexão, a contemplação e a comunicação.
É claro que a reflexão está presente na Filosofia, porém não a define. Para Saviani (2018), a Filosofia não é qualquer tipo de reflexão. Ela tem características próprias que, em conjunto, a diferenciam do senso comum e da Ciência. Segundo Saviani (2018), para que seja considerada filosófica uma reflexão precisa ser radical, rigorosa e globalizante. Assim, o ensino de Filosofia deve proporcionar aos estudantes o exercício da reflexão, indo às raízes dos problemas de forma metódica e sistemática. O caráter globalizante, que analisa o problema relacionando-o ao contexto maior, é o que distingue a reflexão filosófica do modo de proceder especializado da ciência. É isso que torna a Filosofia a única disciplina “[...] que é interdisciplinar em sua própria essência” (GALLO, 2016, p. 338).
A Filosofia também não se resume à comunicação, aspecto que se revela na sala de aula pelas metodologias fundadas na discussão de temas e problemas, em que cada um expõe sua opinião, procurando chegar a um consenso ou veredicto. Gallo (2020) adverte para que as aulas não se tornem um momento de mera conversa sobre opiniões sem haver a passagem da doxa à episteme, a uma forma mais elaborada de pensamento e à atividade conceituadora própria da Filosofia. Para Gallo (2020), a aplicabilidade dessa atividade no ensino não significa necessariamente que os alunos devam criar seus próprios conceitos, como os filósofos clássicos. Porém, guardadas as devidas proporções, necessitam manipular conceitos, criando-os ou readaptando-os a novos contextos, não apenas assimilando aqueles já formulados pela Filosofia Clássica. É justamente o que se espera quando se idealiza um modelo de ensino como produção ou construção, em contraposição à mera recepção de conhecimentos já elaborados, sem, contudo, ignorar aquilo que já foi pensado e formulado no decorrer da história da Filosofia.
O ensino de Filosofia, portanto, não deve se abster do estudo da história do pensamento, mas também não deve se delimitar a este. Existem críticas a um modelo de ensino de Filosofia que se limite à história da Filosofia de maneira desvinculada da reflexão sobre temas e problemas da realidade atual e do cotidiano dos jovens, tornando-a um tanto enfadonha e desinteressante. Os estudantes precisam ver a Filosofia como algo vivo, em movimento contínuo, uma ferramenta que possa ser manipulada por eles próprios e readaptada a suas existências singulares.
A criação de conceitos só acontece a partir do estabelecimento de problemas, os quais se apresentam como condições para que o pensamento saia de seu imobilismo. Para Deleuze (2018), o pensamento não ocorre de maneira natural. É preciso algo que o force a entrar em movimento e o conduza ao desenvolvimento. Ele surge e se desdobra quando o ser humano se depara com uma situação problemática. “Pensamos quando nos encontramos com um problema, com algo que nos força a pensar” (GALLO, 2017b, p. 107). No entanto, os problemas têm de ser autênticos e imanentes e não artificiais e transcendentes. Dessa forma, enfatiza-se que não faz sentido o professor apresentar problemas para os estudantes resolverem. O pensamento conceitual só terá sentido se os problemas forem assumidos como seus, além de sentidos e vividos. “Experimentar os próprios problemas: eis a única condição para o exercício do pensamento próprio, de um pensamento autônomo não tutelado, não predeterminado” (GALLO, 2020, s.p.).
A tarefa primordial do ensino de Filosofia seria a produção de discernimento, que é entendido como “[...] a capacidade elementar que se aprende para poder agir com o pensamento, com as ações e as atitudes para consigo mesmo e para com o mundo” (CARVALHO, 2015, p. 89). Carvalho lista três experiências contemporâneas sobre as quais urge capacitar os estudantes a discerni-las e a discernir nelas a experiência com a sociedade capitalística e de consumo, a homogeneização das potencialidades subjetivas e a impotência da ação transformadora de si e da realidade social. Tais experiências são, ao mesmo tempo, “[...] mediadoras de suas vivências histórico-sociais e também são conectores de produção de sentidos, de valoração, de reprodução de papéis sociais, de alocação de conformismo intelectual, de reprodução de ideias preconceituosas e de paralisação de ações críticas e questionadoras” (CARVALHO, 2015, p. 91).
Dessa forma, a Filosofia, ao estimular e desenvolver o pensamento, proporciona aos estudantes condições de discernimento na sociedade contemporânea, não se resumindo a criar conceitos pelos conceitos, mas fornecendo as ferramentas necessárias à ação autônoma sobre si mesmo e sobre o mundo. No mesmo sentido, Gallo (2017a, p. 35) afirma que “[...] o conceito é imanente à realidade, brota dela e serve justamente para fazê-la compreensível”. No entanto, ele pondera que, por ser uma ferramenta, o conceito pode servir tanto para a conservação quanto para a transformação da realidade.
De fato, observa-se que na história existiram filosofias que procuraram justificar a manutenção do status quo. Também, como se assevera na próxima seção, o ensino de Filosofia no Brasil foi muitas vezes usado no sentido de apenas reproduzir o pensamento, impedindo o surgimento do novo. Mas, a Filosofia como criação de conceitos, apresentada pelos autores franceses, tem justamente o propósito de criticar as concepções tradicionais de Filosofia e ensino, baseadas na repetição, propondo uma forma de pensamento criativo que permita o surgimento da diferença (DELEUZE, 2018). Dessa forma, a Filosofia, por meio da atividade problematizadora da realidade e da criação de conceitos, proporciona um maior discernimento em relação à realidade vivida, não permitindo ao sujeito conservar-se indiferente e inerte a ela. A Filosofia em si não é ação, mas acaba conduzindo à ação.
Entende-se, assim, que a função primordial do ensino de Filosofia seja se apresentar como um espaço no qual os jovens possam exercitar o pensamento reflexivo, a problematização e a atividade conceituadora, criando condições para a construção de uma subjetividade autônoma, isto é, uma maneira não massificada e não alienada de estar no mundo, e para a produção do discernimento necessário à ação política e social. Tendo presente esse papel da Filosofia no ensino, questiona-se sobre as condições que a disciplina tem de efetivar-se no atual contexto educacional brasileiro.
4 O ensino de Filosofia e a formação humana integral
A presença da Filosofia na Educação Básica brasileira sempre ocorreu de forma descontínua e incerta. Desde o período colonial, quando a Educação jesuítica7, principalmente a destinada à elite, oferecia a disciplina de forma catequética, vinculada a uma tradição medieval aristotélico-tomista8, até às últimas reformas do Ensino Médio, ligadas a concepções neoliberais de Educação, as quais a destituem como disciplina obrigatória, a Filosofia luta para conquistar seu espaço junto ao Ensino Básico.
Sem pretender fazer um resgate histórico exaustivo do ensino da Filosofia no Brasil, salientam-se alguns momentos dessa trajetória sinuosa, frisando aspectos relacionados à concepção da disciplina que se revelam no decorrer de sua história. Em relação à fase mais recente, aponta-se que no período da ditadura militar (1964-1985) a Filosofia passou a ser banida dos currículos escolares. Com a Lei nº 5.692, de 1971, que pretendia introduzir o ensino profissionalizante, ela se fez ausente na Educação Básica. Segundo Aranha e Martins (2009), alguns autores argumentam que isso se deu pelo seu caráter crítico e estimulador do pensamento, que representaria uma ameaça ao poder ditatorial, sendo que outros afirmam que havia necessidade de abrir espaço no currículo para disciplinas técnicas. Nesse caso, como a Filosofia vinha geralmente sendo ministrada de forma tradicional, com ênfase na memorização, não se apresentava como ameaçadora, mas sem prestígio e importância, o que fez com que se optasse por bani-la (ARANHA; MARTINS, 2009).
A ausência da Filosofia e da Sociologia era justificada pela inserção de outras disciplinas que pretendiam abordar conteúdos “correspondentes” a elas, como a Educação Moral e Cívica e a Organização Social e Política Brasileira (ALVES, 2002). Ambas tinham um caráter nitidamente doutrinador e alinhado ao regime militar. Assim, talvez por considerá-la perigosa ao regime ou irrelevante ao Ensino Técnico, a Filosofia ficou ausente da Escola Básica até 1982, quando a Lei nº 7.044 passou a permiti-la como disciplina optativa. Essa mudança só ocorreu a partir de diversas mobilizações em prol da inserção da Filosofia no currículo. Um desses movimentos que conseguiu um avanço pioneiro foi a Sociedade de Estudos e Atividades Filosóficas, com sede no Rio de Janeiro, onde, já em 1980, a Filosofia foi reintroduzida no currículo das escolas do estado. Porém, a presença da disciplina se dava de forma controlada, não tendo um caráter crítico e questionador, e, além disso, podia ser ministrada por professores de outras áreas (ALVES, 2002). Isso demonstra novamente a visão do regime militar sobre a Filosofia como potencialmente subversiva e o desprestígio em relação a ela.
A condição de disciplina não obrigatória no Ensino Médio se manteve com a aprovação do texto original da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), que dispunha apenas sobre o “[...] domínio dos conhecimentos de filosofia e de sociologia necessários ao exercício da cidadania” (BRASIL, 1996). Em 2001, o projeto de lei nº 3.178/97 (BRASIL, 1997a), que tornava obrigatórias as disciplinas de Filosofia e Sociologia em todos os estados brasileiros, mesmo tendo sido aprovado na Câmara e no Senado, foi vetado pelo então Presidente da República, Fernando Henrique Cardoso (FHC). A justificativa apresentada, de maneira infundada, foi a de que não haveria o suficiente de profissionais habilitados. Contudo, de acordo com Gallo, em entrevista para a revista IHU, o projeto teria sido recusado pelo presidente, por recomendação do ministro da Educação, “[...] justamente com o argumento de não ‘disciplinarizar’ e enrijecer demais o currículo do Ensino Médio, afirmando que elas deveriam permanecer como temas transversais” (SANTOS, 2017, p. 39).
Só após muita organização e atuação de grupos que reivindicavam a inserção da Filosofia como obrigatória na Educação Básica, entre os quais se destaca o Fórum Sul de Coordenadores dos Cursos de Filosofia, finalmente em 2008 é aprovada pelo Congresso e sancionada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva a Lei nº 11.684 (BRASIL, 2008), que alterava a LDB e estabelecia a obrigatoriedade do ensino das unidades curriculares de Filosofia e Sociologia. A partir de então, com essa garantia, o ensino de Filosofia acabou enfrentando novos desafios para conquistar seu espaço e consolidar sua importância no Ensino Médio das escolas brasileiras em questões relacionadas à formação dos profissionais, à produção de materiais didáticos, ao desenvolvimento de metodologias adequadas, à superação de um modelo de ensino baseado no mero repasse e reprodução de conhecimentos, ao alcance dos objetivos propostos dentro de um reduzido espaço de tempo semanal etc. Nesse período houve um avanço em relação a discussões, pesquisas e produção de conhecimentos em torno do ensino de Filosofia no Brasil.
No entanto, em 2016, por meio de medida provisória, posteriormente transformada em lei (BRASIL, 2017), o então presidente Michel Temer modificou substancialmente a LDB, dando início à reforma do Novo Ensino Médio, marcada por tendências de cunho neoliberal. Novamente a Filosofia, juntamente com outros componentes curriculares, perde o seu caráter de obrigatoriedade. Com o estabelecimento da Base Nacional Curricular Comum (BNCC) (BRASIL, 2018), o que resta da Filosofia são algumas referências a conteúdos esparsos e a competências genéricas e imprecisas. Esses “vai e vens” da presença da Filosofia nos currículos escolares revelam algumas visões preconceituosas e reduzidas em relação à disciplina que determinam as tomadas de decisões em bani-la do currículo ou de atribuir-lhe uma função irrelevante. Por vezes ela é vista como um conjunto de saberes inúteis que simplesmente não tem relevância alguma ao Ensino Básico ou à vida dos estudantes em geral. Em outros momentos reconhece-se a importância da Filosofia para o aprimoramento intelectual, porém ela seria reservada apenas a uma parcela privilegiada da população, não tendo utilidade aos estudantes destinados à vida laboral. Há situações também em que ela é encarada como um saber potencialmente perigoso e subversivo à ordem estabelecida por estimular o pensamento crítico e questionador. Às vezes, porém, como é o caso das últimas reformas no ensino, ela é até elogiada e reconhecida por desenvolver determinados conhecimentos e habilidades de pensamento, mas que poderiam ser desenvolvidos por outras disciplinas e de forma transversal, sem necessidade de se manter uma disciplina específica e professores formados na área.
Compreende-se que essas visões se apresentam como as principais justificativas, geralmente mescladas em diferentes graus, nos diversos momentos da história do ensino brasileiro, para a retirada da disciplina de Filosofia do currículo escolar. Todavia os ataques ou o desprezo pela disciplina fazem parte de um contexto maior que caracteriza os embates no campo educacional brasileiro, geralmente entre duas concepções opostas: uma hegemônica, que, mantendo uma dualidade estrutural na Educação, reserva à classe trabalhadora um modelo de Educação que prioriza uma formação restrita à laboralidade; e outra que defende a formação humana integral. Para o esclarecimento dessas diferentes maneiras de se conceber a formação dos jovens far-se-á uma breve análise desse embate que se faz presente mais nitidamente nas elaborações das legislações que regem a Educação Profissional (EP) brasileira.
O Brasil sempre foi marcado pelo desenvolvimento econômico e pela dualidade estrutural entre dois padrões de Educação, um de caráter propedêutico, direcionado à formação das elites, e outro de caráter instrumental, dirigido à classe trabalhadora. Essa submissão da Educação ao desenvolvimento econômico irá determinar as políticas educacionais. Nesse sentido, por exemplo, na década de 1990, com a implantação das políticas neoliberais, essa dualidade se mostra bastante visível. Após vários embates políticos entre os que defendiam um modelo de Educação que promovesse a formação humana integral a todos(as) e os que assumiam uma Educação voltada aos interesses do capital, o Decreto nº 2.208 (BRASIL, 1997b), que estabeleceu a separação entre a EP e o Ensino Médio, é aprovado. Como consequência, “[...] as escolas técnicas deixaram de oferecer ensino médio profissionalizante para oferecer cursos técnicos concomitantes ou sequenciais a esses” (RAMOS, 2014, p. 47). Somente com a revogação do referido decreto, em 2004, restabelece-se a possibilidade de uma EP integrada à Educação Básica, com o intento de superação das contradições da dualidade histórica e o ideal de uma formação humana integral, que abrangesse todas as dimensões da vida dos indivíduos. Mais do que preparar o sujeito para exercer um determinado ofício na sociedade, a proposta foi idealizada, sobretudo, a partir do aporte teórico de Marx, Engels e Gramsci, que visavam “[...] formar o ser humano na sua integralidade física, mental, cultural, política, científico-tecnológica” (CIAVATTA, 2005, p. 86).
Porém, com as recentes reformas no ensino, ocorre novamente um movimento no sentido oposto ao de promover na Educação brasileira uma formação humana integral que seja oferecida a todos(as). O que se observa nessas reformas é “[...] a atualização de um desejo de controle da população e alinhamento às perspectivas neoliberais” (SANTOS, 2017, p. 37), prevalecendo-se um modelo de ensino que, excluindo o direito dos filhos dos trabalhadores à uma formação, senão integral, ao menos mais abrangente, acaba mantendo a dicotomia que historicamente desfigura a Educação brasileira. Isso trouxe efeitos negativos também à disciplina de Filosofia, que novamente perde o status de componente curricular, voltando a valer o que originalmente estabelecia a LDB, garantindo-se apenas a presença de “estudos e práticas” de Filosofia (BRASIL, 2017). Logo, esses conhecimentos ficam diluídos dentro da área de Ciências Humanas e Sociais Aplicadas, em meio às outras disciplinas. Além disso, a carga horária da própria área fica reduzida ainda mais diante da preferência à qual os alunos ficarão sujeitos pelos itinerários formativos (BRASIL, 2018), que submetem o ensino à escolha profissional provável do estudante, comprometendo a sua formação humana integral. Portanto, o pouco que resta da disciplina no currículo do Ensino Médio não fica garantido de ser ministrado por profissionais especializados.
Considerações finais
A Filosofia não é um saber desinteressado, transcendente, desvinculado da realidade concreta e dos outros saberes, mas um saber imanente e em diálogo constante com as outras áreas. Consiste em desenvolver o pensamento autônomo por meio da atividade reflexiva, problematizadora e conceituadora, possibilitando o surgimento do novo, do diferente, em contraposição ao pensamento baseado na opinião, que opera por repetição. O embate da Filosofia, aliada à Arte e à Ciência, contra a opinião pode ser muito bem ilustrado pelo contexto atual, em que o pensamento se vê diante de forças paralisantes, baseadas nos preconceitos e no obscurantismo, disseminados pelas fake news nas redes sociais e alimentando formas de negacionismo que se acreditava já estarem superadas. Parece que nunca foi tão urgente desenvolver o pensamento crítico e problematizador como ferramenta de defesa contra as formas contemporâneas de alienação e massificação, de modo a formar os jovens na sua integralidade, incluindo-se o exercício de estar no mundo de um modo adulto, autônomo e responsável.
A busca pela formação humana integral deve ser uma finalidade a ser perseguida por todos os componentes curriculares e o ensino de modo geral. Contudo, a Filosofia tem papel fundamental no desenvolvimento de aspectos essenciais a essa formação, sobretudo por estimular o pensamento autônomo, questionador e interdisciplinar. Ambas, Filosofia e formação humana integral, são níveis de formação diferentes que não se confundem ou se excluem, mas mantêm uma relação de complementaridade. A Filosofia é entendida como uma disciplina ou uma instância do pensamento. A formação humana integral é o objetivo geral de uma Educação que pretende desenvolver todas as dimensões da vida, sendo uma delas o pensamento filosófico. Assim, a Filosofia apresenta-se como um instrumento à serviço da formação humana integral, mas não se reduz a isso. Por seu turno, a formação humana integral não se restringe à dimensão filosófica, pois existem outras instâncias do pensamento que a Filosofia não abrange, como a Arte e a Ciência.
No entanto, as recentes mudanças limitam bastante a presença efetiva da Filosofia no Ensino Básico. Não se tem, ainda, como saber o âmbito em que a Filosofia poderá efetivamente exercer sua atividade nas escolas e a proporção dos impactos que terão as reformas que estão sendo implementadas. Devido a isso, o presente artigo se limitou a analisar, de forma prognóstica, tendências e possibilidades em relação ao futuro. Em relação ao passado recente também não se teve condições de avaliar o impacto que a Filosofia pode ter tido no Ensino Básico durante o pouco tempo que se manteve como obrigatória. Apesar de essa condição ter se dado a partir de 2008, com a Lei nº 11.684 (BRASIL, 2008), os estados tiveram prazo até 2012 para se adequarem à legislação, portanto a Filosofia esteve presente nos currículos do Ensino Médio de forma efetiva por apenas cinco anos.
Assim, diante de todos os desafios que a disciplina vinha enfrentando ao tentar consolidar seu espaço como formadora do pensamento crítico e produtora de discernimento, enfatiza-se que talvez a experiência tenha sido muito incipiente para verificar quaisquer possíveis impactos no ensino. Entretanto, tem-se a impressão, de uma forma empírica, de que avanços ocorreram de maneira significativa diante dos desafios propostos: os cursos de Filosofia passaram a voltar maior atenção para a formação dos profissionais da Educação; foram produzidas muitas pesquisas e publicações sobre o ensino de Filosofia nas escolas; e materiais didáticos de alta qualidade foram publicizados tendo em vista o contexto e a diversidade da realidade brasileira. Esses possíveis avanços abrem um leque de possibilidades para uma futura investigação mais específica e rigorosa sobre os prováveis impactos que as reformas terão sobre o ensino.
O que se afirma em relação ao presente é que se está diante de um cenário mais obtuso para a possibilidade de se desenvolver a Filosofia como exercício do pensamento conceitual. Contudo, entende-se que ela precisa resistir às demandas neoliberais que procuram neutralizar sua função de produtora de discernimento, conservando-se como um espaço de promoção do pensamento autônomo, mesmo em espaços reduzidos. A história da Filosofia no Brasil é de resistência e a alternativa que agora se apresenta é continuar tentando criar formas de resistir dentro e fora da escola.