Palavras Iniciais
A leitura é parte fundamental da constituição do ser, Gilda Carvalho, Eliana Yunes e Daniela B. Versiane, em coletânea organizada poe Eliana Yunes (2002), pontuam que a capacidade da leitura está diretamente ligada à construção do sujeito, àquela competência básica que ele tem de refletir sobre o que conhece e, munido de seu conhecimento e de seu imaginário, repensar e recriar a sua realidade. As autoras ainda acrescentam que ensinar a ler não é apenas habilitar o estudante a lidar com o código verbal escrito, fazendo-o decodificador das letras, mas, sobretudo, é ensinar a ser, é estimular a capacidade de interpretação, reflexão e reprodução, valorizando assim a história de cada sujeito: no processo de tornar-se alguém, um cidadão, porque todos são capazes de ler e todos têm, no seu histórico individual, referências e experiências que sempre influenciarão suas leituras, seu modo de ler e interpretar o mundo, os movimentos e as palavras, sejam elas ditas, grafadas ou escritas.3
Se uma leitura pode fornecer tantas experiências distintas, é de se esperar que se estude com afinco sobre a conceituação do ato de ler, da literariedade dos textos e seu impacto no leitor. Contudo, vale salientar que a leitura literária é algo apreendido por meio da experimentação e que, se o indivíduo não tem acesso a essa experiência, logo, não adquirirá a prática da leitura. Para compreender um leitor, é preciso analisar então: seu perfil, sua condição de vida, de escolarização e acesso à informação.
O aluno do 1° ano do Ensino Médio (entre 15 e 19 anos), que já é um decodificador, se ainda não for leitor, pode sê-lo se estimulado. Isso porque, de acordo com Eliane Yunes (2003, p. 96), o ato de ler é semelhante ao de se pensar; contudo, exige-se mais por ser uma atividade complexa que ocorre de forma gradual conforme o objeto da mesma, cuja prática não se resume ao reconhecimento de uma linguagem de códigos como o escrito, desenhado, esculpido, imagem ou movimento. Para a autora, não basta uma análise formal do código em que foi cifrado para torná-lo legível.
Tania Dauster (2003) afirma que o ato de decodificar não é o mesmo que ler, que isso que o aluno faz é fruto de ter adquirido a habilidade de identificar os signos, como os motoristas fazem ao decifrar os sinais de trânsito. É saber que determinada junção de letras forma palavras, mas isso ainda não é ler. Ler é quando palavras produzem sentido, é compreender as entrelinhas, é tomar essa informação, processá-la e convertê-la em benefício próprio. A autora ainda afirma que, quanto mais experiências, leituras anteriores, mais significação terá o texto e melhor será o leitor.4
Muitas pessoas podem fazer essa ponte entre a leitura e o possível leitor, são os chamados mediadores, que podem ser os pais, os amigos, os padrinhos, dentre outros. Nesse processo de mediação, cabe à escola o papel institucional fundamental de proporcionar o encontro dos estudantes com a leitura. A terminologia “mediador cultural”5 tem ganhado espaço nas discussões acadêmicas em busca de seu local como ponto essencial na formação ideológica de cada localidade. De acordo com Edmir Perrotti:
O conceito de mediação cultural emerge na contemporaneidade como formulação teórica e metodológica inscrita, portanto, num quadro que reconhece os conflitos, ao mesmo tempo que a necessidade de estabelecimento de elos que viabilizem diálogos necessários à geração de ordens culturais mais democráticas e plurais. Na diversidade que caracteriza o espaço público, sem silenciar conflitos nem vozes discordantes, sem isolar ou impedir a emergência da pluralidade, das tensões que lhe são próprias, a mediação cultural apresenta-se, pois, como um território discursivo, de embates e possibilidades, ao mesmo tempo que de afirmação da esfera pública como instância superior organizadora e legitimadora do campo simbólico.
(PERROTTI, 2016, p. 13).
Segundo o Referencial Curricular da Rede Estadual de Ensino de Mato Grosso do Sul (2012), é função, de modo especial, do professor de Língua Portuguesa proporcionar ao educando a prática, a discussão, a leitura de textos das diferentes esferas sociais (jornalística, literária, publicitária, digital e assim por diante). Essa afirmativa, por sua vez, converge diretamente com o que é defendido por Michèle Petit (2009, p. 148) em relação ao papel do mediador: “quando um jovem vem de um meio em que predomina o medo do livro, um mediador pode autorizar, legitimar um desejo inseguro de ler ou aprender, ou até mesmo revelar esse desejo”. O que implica pontuar que é função do docente ajudar o discente na construção do domínio da leitura, reconhecendo que a literatura é imprescindível na formação de leitores, uma vez que ela pode se configurar como porta de entrada para novas leituras, conforme defendeu Neil Gaiman (2013). Ele afirma que o enredo da literatura desperta no leitor uma ânsia de saber o que vem a seguir, ou seja, um desejo de continuar, porque o leitor precisa saber como tudo irá acabar. Para o escritor, esse é um desejo muito real, pois o leitor sente o texto mais do que simplesmente o decodifica, em outras palavras, ele atribui sentido6 àquelas letras alinhadas. Para o autor, depois de descobrir que a leitura por si só é prazerosa, uma vez que você aprende isso, você está no caminho para ler de tudo. A leitura é a chave.
Cosson (2014) alerta que o ensino de literatura no Ensino Médio se perde por frequentemente ter o pretexto pedagógico, a tradicional estratégia de efetuar (obrigar) a leitura para que se realize alguma atividade. Consequentemente, a leitura fica pela leitura. Essa denúncia de Cosson já começa a surtir certo efeito, como atestam ações e estudos que procuram dar espaço para novas práticas leitoras que confrontem a “pedagogização” do texto literário. Muitas escolas estaduais e municipais de Dourados têm procurado seus próprios caminhos para incentivar a leitura e, em especial, a literária. Por exemplo, “Projetos de Leitura Ensino Fundamental 1ª a 5º ano” e o “Arte da Leitura”, que foram analisados por Carvalho e Pinheiro (2013) e o “Arte e Leitura” (projeto de leitura em biblioteca escolar), analisado por Cordeiro e Fernandes em artigo acadêmico (2015). Pode-se afirmar que começa a se formar um movimento social de validação da importância da leitura, pois diferentes ações são empreendidas continuamente, como os cursos de mediação de literatura oferecidos pelo PROLER Dourados7.
Michèle Petit (2009) destaca que um professor só pode ser mediador de leitura se ele tiver uma relação de amor com a literatura, pois é dessa forma que ele pode explorar atividades distintas de mediação com a intenção de alavancar o interesse pela leitura nos alunos, sendo exemplo vivo de leitor e amante de livros. De acordo com a autora:
E é preciso dizer também que em todas as épocas, a despeito das dificuldades, das modas e das mudanças nos programas, muitos professores souberam transmitir aos seus alunos a paixão de ler. É preciso acrescentar ainda que dos professores é exigido algo impossível, um verdadeiro quebra-cabeça chinês. Espera-se deles que ensinem as crianças a “dominar a língua”, como se diz no jargão oficial. Que as convidem a partilhar desse “suposto patrimônio comum”. Que as ensinem a decifrar textos, a analisar e a ler com certo distanciamento. E, ao mesmo tempo, que as iniciem no “prazer de ler.
(PETIT, 2009, p. 158).
Este artigo analisa o prazer de ler a partir do contexto do estado do Mato Grosso do Sul, onde a literatura perdeu seu espaço como disciplina no currículo escolar, tornando-se, a partir da resolução nº 3.196-2017, da Secretaria Estadual de Educação, parte das áreas de concentração da disciplina de língua portuguesa, ao lado da gramática da norma padrão e de gêneros em produção textual. Considerando esse cenário, em que os professores de língua portuguesa necessitam se adaptar para o novo currículo escolar, partimos para duas escolas da cidade de Dourados, sendo uma pública e outra particular, de modo a efetuarmos oficinas de leitura literária com os estudantes do Ensino Médio, no intuito de perceber como o público das distintas realidades tem interpretado textos, tomando como base os Modos de Leitura defendidos pelo teórico Rildo Cosson.
As oficinas se valeram da Leitura Direcionada, que consiste em um grupo de leitura que acompanha (por meio de suas cópias) a leitura em voz alta do mediador para posterior discussão do texto lido. As atividades foram gravadas, depois, houve a transcrição de forma literal. Alves e Silva (1992) prescrevem que é de extrema importância que se sigam três passos para a realização de trabalhos desta competência, dentre os quais, a necessidade de se obter dados dentro de um contexto, para que a pesquisa não se perca entre teorias e temáticas distintas. Dessa forma, antes da análise, o pesquisador precisa encontrar uma maneira de manter a transcrição e o registro dos dados da forma mais fiel possível, para que sua pesquisa não seja lesada por influências de outrem.
Os textos escolhidos para a oficina intitulada “Redimensionando Chapeuzinho Vermelho” foram Chapeuzinho Vermelho (2018), de Charles Perrault, e o texto homônimo dos irmãos Grimm (2015), além de Fita verde no cabelo: nova velha história (2013), de Guimarães Rosa. Importante destacar que, para a escolha dos textos, partimos do viés crítico que envolve a relação de gênero, temática recorrente e importante para o público do 1º ano do Ensino Médio: o papel da mulher, sua transformação e reflexões acerca do aspecto “O que é ser mulher?”. Ademais, escolhemos textos clássicos e contemporâneos para que os estudantes tivessem a oportunidade de vislumbrar as diferenças entre as narrativas. Outro critério para a seleção dos textos foi o de contemplar ao menos um autor que escrevesse em língua portuguesa e fosse brasileiro.
Quando atrelada a temáticas caras a este público, a exemplo da constituição da identidade de mulheres, além de perceber o uso dos modos de leitura (ainda que inconscientemente) pelos estudantes, a mediação do texto literário pode ser bem-sucedida no Ensino Médio, conforme esclarece a análise a seguir.
Os modos de ler Chapeuzinho Vermelho: base de interpretação da oficina
Segundo Rildo Cosson (2014), existem quatro elementos na leitura literária: o leitor, o autor, o texto e o contexto e, a partir desses elementos, três são os objetos que constituem o diálogo da leitura: o texto, o contexto e o intertexto. Dessa relação, totalizam-se doze modos de ler literatura:
leitura contexto-autor é aquela em que se busca uma relação entre o texto e seu autor no objetivo de potencializar a leitura da obra segundo a biografia do autor;
leitura contexto-leitor é a leitura que estabelece uma relação entre leitor e obra, em busca de se traçarem paralelos entre a obra e a vida do leitor, na tentativa de que o leitor identifique aspectos da obra em sua história;
leitura contexto-texto é aquela que reforça o contexto já sabido, contudo não superficialmente. Essa leitura pode preceder uma reflexão mais profunda sobre a obra, tomando como partida o fato de que além do contexto-texto há mais para se descobrir;
leitura contexto-intertexto é a mais comum nas escolas. É a leitura utilizada para aproveitamento no processo educativo, isto é, para se conhecer ou discutir questões da sociedade ou algum saber específico que ela encena;
leitura texto-autor é aquela leitura voltada para as características do texto, assimilando e percebendo as nuances do autor e sua forma de escrita. Também é usada para comparar a evolução de um autor de uma obra a outra ou um momento a outro ao longo do tempo;
leitura texto-leitor é aquela em que o leitor busca resposta, a leitura em que o texto ganha uma significação pessoal, voltada ao enredo, imagens sensoriais etc;
leitura texto-contexto é a leitura comparativa entre edições, textos referenciais, analogias e outros elementos que compõem a obra;
leitura texto-intertexto é a leitura que se apega à língua literária da obra na construção de seu sentido, focada na elaboração das sentenças, no trabalho minucioso com as palavras e suas particularidades;
leitura intertexto-autor é a leitura que o leitor faz sobre a obra considerando o histórico do autor, sua trajetória, influências e formação cultural. É aquela leitura em que se percebe a relação do texto-base com outros textos do autor ou com aqueles em que ele possa ter se inspirado;
leitura intertexto-texto é a leitura que identifica outros textos que compõem a tessitura da obra, mas não com o objetivo de fazer relações entre os textos, e sim conexões que podem construir novos sentidos e ressignificações;
leitura intertexto-leitor é aquela que aproxima a obra que está sendo lida de outros textos que o leitor já tenha lido. Não é apenas uma relação, mas essas releituras e referências devem fazer sentido e ter coerência;
leitura intertexto-contexto, também utilizada na escola, é a leitura que irá identificar o gênero e estilos literários, tempo e corrente a que pertence a obra. O objetivo é verificar os sentidos construídos e se esses estabelecem diálogos com o gênero e o estilo em que pode estar inserido (Cf. COSSON, 2014, p. 73-76).
O autor ainda postula que, em determinadas práticas de leitura literária, pode ocorrer mais de um dos modos, isso porque é difícil estabelecer um limite para a leitura. Quando ela é silenciosa, o leitor está concentrado no texto, mas a todo momento o material lido está construindo sentido a partir de suas outras leituras e de sua experiência de vida. E se a proposta da leitura silenciosa partiu de um histórico em que o professor já apresentava aspectos da vida do autor ou contexto de elaboração da obra, então é possível que o leitor já faça suas leituras pautado em outros conceitos.
Mesmo nas leituras compartilhadas, enquanto se ouve a voz do leitor/orador/professor, o aluno que acompanha o texto ou que só o escuta também está fazendo sua leitura particular concomitantemente às outras. A partir disso, podemos sustentar que esses modos de leitura ocorrem frequentemente e de maneira simultânea, uns mais do que os outros, mas todos são passíveis de ocorrer dentro de sala de aula, conforme o viés abordado aqui. O autor elucida que:
Um professor de literatura não deixará de registrar que uma parte desses modos de ler pode ser ligada às teorias e correntes críticas do saber literário e outra parte às práticas cotidianas do ensino de literatura na escola básica [...] também nada impede que uma obra seja lida sucessivamente enquanto texto, contexto e intertexto [...] uma leitura do texto-contexto combinada com o intertexto-leitor e que tem como centro a questão do amor; uma leitura do texto-intertexto, cujo ponto central da análise é o engodo; uma leitura do texto-leitor que trata da diferença; uma leitura do texto-intertexto combinada com o intertexto-contexto centrada sobre a ficção.
(COSSON, 2014, p. 81).
É possível inferir, dessa passagem, que as possibilidades de leitura sobre o mesmo texto são diversas, dado que as combinações dos modos de leitura são numerosas. Além disso, que a leitura literária é libertadora e afetiva, pois seu leitor não é um mero espectador, mas parte atuante do enredo e de sua significação, uma vez que usa de sua bagagem cultural e literária para conferir sentido ao que está lendo. Este aspeto pôde ser comprovado ao longo das oficinas, em especial na analisada neste artigo. A personagem Chapeuzinho Vermelho fazia parte do repertório de ambos os públicos. Assim, a versão de Charles Perrault, a dos irmãos Grimm e a releitura de Guimarães Rosa dialogaram com um leitor que foi capaz de acionar conhecimentos prévios para o processo de mediação-interpretação.
Para essa oficina, oferecemos aos alunos três textos que discutiriam essa metamorfose. “Chapeuzinho Vermelho”, de Charles Perrault, contida no livro Contos da mamãe Gansa, teve sua primeira tiragem em 1697 (PERRAULT, 2018). Perrault ouviu da ama de leite de seus filhos os oito contos que compõem essa obra, efetuando assim um registro escrito, talvez o primeiro, dos contos famosos da época. Essa obra vinha carregada de moralismo (incluindo Moral da História ao fim dos contos) e serviam mais como disciplinadora dos jovens e crianças do que para entretê-las, como suas posteriores edições.
A segunda “Chapeuzinho Vermelho” que compunha a oficina foi assinada pelos irmãos Grimm. Diferentemente do que dizem, os irmãos coletaram seus contos não somente de maneira oral, mas também em registros históricos, já que ambos trabalhavam na biblioteca da cidade de Kassel, Alemanha. Os irmãos dividiam-se nas tarefas de coletar dados e registrá-los; enquanto um se incumbia de fazer o estudo histórico por trás dos contos, comparando e contrapondo versões entre eles, o outro tratava de adaptá-los para o público infantil, criando assim as suas próprias versões dos contos de fadas, com data de seu primeiro lançamento no ano de 1812. Diferentemente da versão anterior trabalhada nas oficinas, essa é a primeira vez que Chapeuzinho tem a oportunidade de amadurecer e aprender com seus erros; e é nessa versão também que a figura do caçador/lenhador surge para salvar o dia da vovó e da netinha das garras do lobo.
A terceira personagem-protagonista da oficina é a mais atual e, também, é brasileira. Fita verde no cabelo: nova velha história, lançada primeiramente em 1992, foi a última Chapeuzinho trabalhada com os estudantes. Essa, por sua vez, implica mais cuidado com o texto devido à sua profundidade e complexidade sintática. É essencial destacar a não presença do lobo como figura antagonista, já que, nessa ocasião, “os lobos foram exterminados pelos lenhadores que lá lenhavam” (ROSA, 2013, p. 2). Fita Verde não precisa tomar cuidado pelo caminho que percorre até a casa da vovó, não precisa se preocupar com a ameaça do lobo, ela só precisa ser menina. Contudo, assim como as outras, ela também passa pela transformação: sua fita verde cai dos cabelos quando ela defronta a morte (o lobo da história) da avó.
Durante as Oficinas, mencionamos a existência das diversas versões de Chapeuzinho pelo mundo. Embora não tenha dado tempo de trabalhar o livro de Chico Buarque, Chapeuzinho Amarelo, pudemos relatar aos estudantes, de forma rápida, a força que esse texto traz, tanto em sua primeira versão, de 1970, em que ela (Chapeuzinho Amarelo) é obviamente uma expressão de luta contra o medo da ditadura militar passada no Brasil de 1964 a 1985, como também de sua segunda edição, ilustrada pelo Ziraldo em 1979, quando o livro já não tinha pretensão de combater nenhum regime. Além disso, explanamos sobre outras versões da Chapeuzinho, a Chapeuzinhos Coloridos de 2010 e outras adaptações para o cinema e a TV.
Essa oficina tinha a intenção de realçar aos alunos como o retrato da mulher mudou ao longo dos anos. Para que os estudantes pudessem alcançar o nível de leitura esperado para essa atividade, eventualmente, antes, durante e após as leituras dos textos, lançamos perguntas e pontos para que eles pudessem refletir, como por exemplo: Que figura feminina é essa que, no seu início, era uma menina tola e inocente e, em um segundo momento, aprende com seus próprios erros e por último aprende com o andar da vida? Quem é essa garota que se torna mulher através das atrocidades do mundo? Por que Chapeuzinho Vermelho tem essa importância na formação da identidade das meninas? Como essas visões podem ajudar ou afetar a formação das leitoras?
Redimensionando Chapeuzinho Vermelho: a mediação literária com estudantes do Ensino Médio
Neste momento, apresentamos a análise dos resultados das oficinas mediadas na escola pública e privada. Não desejamos conduzir a análise para uma comparação quantitativa ou qualitativa entre ambas, mas é preciso sinalizar que a escola particular não excluiu a Literatura de sua grade curricular e, assim, ela tem garantido este espaço, com duas aulas semanais para o primeiro ano do Ensino Médio. Outros fatores, como um bom acervo na biblioteca escolar e a possibilidade de o público adquirir seu próprio livro literário, também tornam o espaço da escola privada mais profícuo para a mediação do texto literário.
A escola pública onde esta pesquisa foi efetuada tem, desde 2018, um programa diferenciado das demais, pois ela é uma instituição de ensino integral. Talvez, devido a essa condição, os estudantes sejam mais interessados em atividades extraclasse, ou seja, oficinas, cursos e disciplinas que despertem seu próprio interesse, como o teatro, a dança e a música. É preciso evidenciar que a escola não tem uma disciplina específica para literatura (embora, devido à sua qualidade de período integral, possibilitasse essa abertura), portanto, os (as) professores (as) dividem sua carga horária de língua portuguesa, num total de quatro aulas por semana, entre literatura e língua. O grupo docente determinou que uma dessas seja especificamente de literatura, com ressalvas para o caso comum de se atrelar o ensino de gramática a partir de textos literários.
A atividade da primeira oficina partiu de um questionamento simples e rápido sobre os contos de fadas já conhecidos pelos alunos, quais seus conhecimentos e seu interesse nessas obras, sendo essa pequena investigação um termômetro para estabelecer quais pontos destacar nos textos que seriam lidos. Não foi surpresa alguma que os adolescentes, ao primeiro momento, conversassem entre si, indicando que o tema da atividade não era interessante. Contudo, ao se desenvolver a mediação, conseguimos prender a atenção deles pelos fatos históricos que passamos acerca dos contos de fada, evidenciando a origem oral de onde Perrault retirou os contos para compor Contos da mamãe Gansa (1697 – Ed. 2018) e o sentido moral que servia como forma de educar ou alertar as crianças sobre os perigos reais do cotidiano. Essa apreciação inicial serviu para ajudar os estudantes a alcançarem a leitura contexto-autor, defendida por Cosson. Por meio da história do autor e de sua obra, os participantes puderam compreender a profundidade da intenção do texto no momento de sua tessitura. Subsequente a essas indagações, partimos para a leitura do primeiro conto “Chapeuzinho Vermelho”. Esta versão tem um desfecho que não era conhecido pelos estudantes: a personagem e a vovó são comidas pelo lobo, contudo, como estratégia da mediação, efetuamos uma a pausa antes de lermos a Moral da História contida ao final do conto, de modo a ouvir apenas com a leitura do conto a compreensão dos estudantes sobre o desfecho dessa edição de Chapeuzinho Vermelho.
Os comentários dos alunos giraram em torno do término da história, distinta para eles, inclusive, inesperada para muitos dos estudantes. Essa leitura efetuada por eles se enquadra na denominação de Cosson (2014) para a leitura intertexto-leitor. Eles identificaram que já conheciam a história de outros textos semelhantes, mas não exatamente essa edição, uma forma de convergir uma leitura e outra para melhor assimilação dessa nova.
Em seguida, dirigimos a leitura do texto para seu fim com a Moral da História, momento em que o autor deixa clara sua intenção com a obra:
Moral:
Vimos que os jovens,
Principalmente as moças,
Lindas, elegantes e educadas,
Fazem muito mal em escutar
Qualquer tipo de gente,
Assim, não será de estranhar
Que, por isso, o lobo as devore.
Eu digo o lobo porque todos os lobos
Não são do mesmo tipo.
Existe um que é manhoso
Macio, sem fel nem furor.
Fazendo-se de íntimo, gentil e adulador,
Persegue as jovens moças
Até em suas casas e aposentos.
Atenção, porém!
As que não sabem
Que esses lobos melosos
De todos eles são os mais perigosos.
(PERRAULT, 2018, p. 29)
Quando chegamos nessa parte da obra, os estudantes logo entraram na Leitura intertexto-contexto, que, segundo Cosson, consiste em identificar gêneros e estabelecer essa relação com outros já lidos. Nesse caso, os alunos da escola pública relembraram que as fábulas (gênero por eles explorado em aula no bimestre anterior) contêm sempre uma moral da história. Além disso, eles efetuaram associações com o fato de que o antagonista da história era de um animal (o lobo), e que nas fábulas é comum a presença de animais humanizados. Após a leitura, questionamos a natureza desse lobo, que figura ele representa, ao passo que as respostas giraram entre abusador, estuprador e molestador. Alguns alunos argumentaram nunca ter pensado nessa leitura da figura masculina que ataca a pobre menininha na floresta, contudo, consideraram fortemente a relação entre o lobo e ela. Uma das estudantes, inclusive, levantou a seguinte questão: “Se a gente pensar nos dias de hoje, ainda existem esses lobos, mas agora a gente já sabe que eles estão mais dentro da casa das meninas do que na rua”. A aluna conseguiu dissociar uma questão de 1697 para os dias atuais, e não porque seja uma grande descoberta, mas o quanto essa questão paira como ameaça sobre a vida das estudantes.
Muitas das meninas discutiram sobre a questão do machismo presente na sociedade e como os pais não alertam seus filhos sobre o perigo que pode estar dentro da própria casa, principalmente se observarmos os dados que comprovam a indagação dessas. Segundo uma pesquisa do Ministério dos Direitos Humanos (2019), que foi efetuada com os dados oriundos do Disque 1008 no ano de 2018, 90% dos casos de abuso sexual contra crianças acontecem em ambiente familiar. Assim, é importante destacar como um simples conto de literatura infantil pode trazer essa discussão para dentro da sala de aula. Baseado em Cosson, podemos supor que essas alunas se valeram da leitura contexto-texto para conduzir a discussão para esse tema.
O segundo momento dessa atividade envolvia outro conto da Chapeuzinho Vermelho, agora na versão dos irmãos Grimm. Igualmente ao primeiro conto, iniciamos a discussão a partir da leitura contexto-autor, ou seja, através de um breve relato sobre a origem dos contos, evidenciamos a tessitura desses textos e como surgiu sua organização, além do processo de pesquisa para reformulação deles. Seguimos para a leitura e, assim que a história chegou em seu clímax, quando o lenhador (caçador para algumas traduções) aparece, alguns estudantes já se manifestaram sobre essa figura masculina protetora, característica dos contos dos irmãos Grimm. Novamente, houve a presença da leitura intertexto-leitor, que foi claramente uma meta preestabelecida por nós no momento de elaborar a atividade de leitura.
É preciso ressaltar que essa versão do conto também vem dividida em dois momentos. Mas, diferentemente da primeira, onde existe uma Moral da História, a Chapeuzinho dos Grimm é seguida de uma segunda mínima história, na qual Chapeuzinho, por ter aprendido a lição, não acredita no lobo que a bajula, seguindo então direto para a casa da vovó, onde as duas elaboram um plano para se livrar do animal. Efetuadas as duas leituras, discutimos com os participantes da atividade quais seriam as diferenças entre a primeira e a segunda. Eles responderam, quase que unanimemente: “A Chapeuzinho do primeiro conto é criança e inocente, por isso, não existiu a possibilidade dela poder aprender com o erro de não falar com estranhos, já essa segunda não só foi salva pelo caçador, como também pôde aprender uma lição e em seguida resolveu com a ajuda da vovó o problema do segundo lobo”. Pareceu aos alunos que uma Chapeuzinho Vermelho era mais inteligente que a outra, à medida que nós, os mediadores, pudemos elencar esse amadurecimento no pensamento de liberdade e reconhecimento da inteligência da figura feminina no segundo texto, porque, embora ela tenha sido salva pela figura masculina, essa história é um reconhecimento das capacidades femininas; as mulheres podem se proteger, o que algumas alunas denominaram “girl power”.9
A última leitura foi o conto Fita Verde no cabelo: nova velha história, de Guimarães Rosa. Diferentemente dos contos anteriores, não iniciamos com contexto ou história do autor, decidimos partir para uma compreensão da complexidade do texto e de sua sintaxe, tão individual do autor. Após a leitura, que aconteceu de forma mais rápida do que as anteriores, dada sua extensão, surgiram alguns questionamentos por parte dos alunos: “Por que o nome da personagem é Fita Verde?”. Ao invés de entregar uma resposta direta, permitimos que a discussão partisse deles mesmos, de modo que um deles contestou:
O verde é como uma fruta, não é? Ela é verde e depois da morte da avó fica madura, assim como a Chapeuzinho era vermelho porque amadurecia de menina para mulher... não sei, eu ouvi alguma vez que o vermelho era a menstruação dela e a menstruação é o momento que uma menina vira mulher, não sei, tô errada?
(ALUNA DA ESCOLA PÚBLICA, 2019)
Todos concordaram com essa leitura. Em seguida, explicamos que a leitura das cores poderia ser um dos caminhos para a interpretação da história. Questionamos o porquê desse título: nova velha história, ao que, de imediato, disseram que era não somente uma história reinventada, como também uma versão atualizada dessa. Por último, solicitamos dos alunos uma interpretação acerca do lobo, já que “lobo não mais havia, pois todos os lobos haviam sido exterminados pelos lenhadores que lá lenhavam” (ROSA, 2013, p. 2). E, surpreendentemente, os participantes souberam argumentar: “O lobo dessa história é a morte, esse é o medo que a Fita Verde tem, mesmo sem saber”. Nos impressionou como eles conseguiram alcançar esse nível de leitura, sozinhos, talvez estivéssemos subestimando a capacidade deles de interpretar. Foi possível perceber que eles se valeram de alguns tipos de leitura, como a leitura texto-autor e a leitura texto-intertexto quando eles pararam para analisar os neologismos10 de Rosa, além de algumas construções complexas, como a destacada por uma das alunas: “Por que a fita verde é inventada na cabeça dela?”. Além desses dois modos de leitura, eles se utilizaram da leitura texto-contexto, intertexto-leitor e intertexto-texto, quando encontraram semelhanças com a nova história e leituras anteriores, inclusive as da própria atividade.
Essa atividade de leitura direcionada com os estudantes da escola pública comprova como funcionam os modos de leitura em uma mediação, quais saberes os estudantes se valem para interpretar textos mesmo quando esses não são leitores assíduos, como é o caso de alguns dos participantes.
Em contrapartida, o processo de desenvolvimento da oficina na escola particular demonstrou algumas particularidades. Importante destacar que se trata de uma instituição tradicional na cidade de Dourados, mantida e gerida por freiras. Ademais, costuma acompanhar seus estudantes do Primário até o Ensino Médio (o que torna a relação aluno-professor menos dura e mais familiar).
Por essas informações, podemos dizer que em nossas visitas técnicas para solicitar a permissão de pesquisa tivemos de ter uma postura um pouco mais formal diante da coordenação e dos professores. Diferentemente da escola pública, onde pudemos conversar abertamente, trocar ideias, adaptar horários e manter um diálogo diretamente com a professora que nos acompanharia nas atividades, na escola privada, esses trâmites até o momento da execução das oficinas e entrevistas foram muito formais, com documentos sempre em mãos.
Em nosso primeiro contato, levamos o projeto de pesquisa e apresentamos a proposta tanto das oficinas quanto das entrevistas posteriores a essas. A professora que nos acompanhou durante as oficinas salientou diversas vezes que ela não era professora de literatura, mas de língua portuguesa e redação. Contudo, ao realizar as atividades de leitura, ela sempre se mostrou muito receptiva e aberta às mediações, elogiando nosso trabalho sobre o texto literário e as obras escolhidas.
Como já enfatizamos, diferentemente da escola pública, a escola privada não só possuía em sua grade curricular a disciplina de língua portuguesa (gramática normativa), como também produção de textos (redação e preparatórios para o vestibular) e literatura. Sendo duas aulas de cinquenta minutos para cada área de concentração. Entretanto, a instituição não nos possibilitou acompanhar a disciplina a qual pesquisamos, de forma que desenvolvemos as oficinas nas aulas de língua portuguesa. De acordo com a professora que nos acompanhou, ela possuía mais períodos com os estudantes, por isso, poderia ceder algumas aulas para os encontros sem que a pesquisa atrasasse ou atrapalhasse o andamento do bimestre.
A oficina “A evolução da Chapeuzinho Vermelho”, a mesma efetuada com a escola pública, também trouxe os textos de Perrault, Grimm e Rosa. A mediação também foi a mesma, com a parada da leitura antes da Moral da História no primeiro conto, os questionamentos sobre diferenças e semelhanças entre uma e outra Chapeuzinho no caso dos irmãos Grimm e a solicitação de atenção para o modo roseano de compor Fita Verde no cabelo.
Quando nos utilizamos da leitura contexto-autor para instigar os alunos a pensarem sobre a composição dos Contos da mamãe Gansa, questionamos sobre a característica que mais diferenciava essa personagem da que eles (os alunos que não conheciam a versão de Perrault), conheciam. A característica mais destacada foi a ingenuidade da menina-personagem. Ao mencionar a existência da Moral da História, não foi preciso perguntar aos participantes a qual gênero essa parte do conto nos remetia, pois, de imediato, duas das alunas destacaram que se assemelhava muito às Fábulas, citando inclusive Esopo. Essas informações dos estudantes de que já tinham familiaridade com o texto e com o gênero fábula evidenciam os modos de leitura defendidos por Cosson.
Pela reação dos alunos diante desse texto, decidimos ir direto ao segundo (Chapeuzinho Vermelho dos irmãos Grimm), para ter mais material de discussão.
Novamente utilizamos a leitura contexto-autor para fornecer a eles informações sobre a concepção desses textos e partimos para a leitura. Quando terminamos a primeira parte, toda a turma afirmou conhecer melhor essa versão, alguns alegavam que nas versões que conheciam não se tratava de um lenhador, mas sim, de um caçador. Citaram também as diferenças sobre cortar a barriga do lobo e colocar as pedras para que ele viesse a morrer. Nesse momento, perguntamos aos membros da atividade que figura esse lobo poderia estar representando, ao passo que grande parte deles já imaginava ser uma representação do abusador, estuprador ou qualquer desconhecido. E foi nesse instante que uma das alunas lembrou que na aula de literatura o professor indicou um livro para melhor compreensão dos contos de fadas, a obra A psicanálise dos contos de fada (1980); ela disse que havia iniciado a leitura e que o achara incrivelmente difícil, mas que a atividade agora havia tornado sua compreensão mais clara. Os outros estudantes disseram não ter comprado ou lido o livro, mas que se recordavam da recomendação.
É importante notar como esse público do primeiro ano do Ensino Médio parecia estar mais preparado para a atividade; além disso, pelo fato de pertencerem a uma classe social mais alta, receberam a recomendação para comprarem um livro técnico de literatura, quando na escola pública, em determinados contextos, dificilmente isso seria proposto. Ao terminarmos a segunda parte do conto, no momento em que Chapeuzinho Vermelho encontra-se com outro lobo e corre para a casa da vovó sem dar ouvidos ao desconhecido, os alunos não conseguiram compreender o aprendizado da personagem, pois se focaram na figura da vovó como a pessoa que planejou a vingança contra o lobo, de modo que tivemos de evidenciar a tomada de decisão da Chapeuzinho.
Na última leitura da oficina, Fita verde no cabelo, antes de iniciarmos o processo da leitura propriamente dita, questionamos aos alunos o significado da palavra adaptação e se eles eram a favor dessa para outras obras literárias, como no caso dos quadrinhos ou ainda em outras plataformas, como no cinema ou em séries de TV. Uma das alunas respondeu que sim, era favorável às adaptações porque essas seriam novas formas de se “ler” uma mesma história, como é o caso das séries de TV, como ela mesma exemplificou. Entretanto outro estudante disse que, às vezes, a adaptação estraga a primeira experiência, e também se utilizou de um exemplo literário que foi transposto para o cinema, as obras cinematográficas dos livros da série Harry Potter, de J.K. Rowling.
Solicitamos também atenção à complexidade do texto, o estilo do autor, seus neologismos e a construção dada pelo autor ao texto, como em: “sua mãe mandara-a, com um cesto e um pote, à avó, que a amava, a uma outra e quase igualzinha aldeia. Fita-Verde partiu, sobre logo, ela a linda, tudo era uma vez” (ROSA, p. 3), ao que os alunos observaram a necessidade de conhecer bem o texto para poder oralizá-lo da forma correta. É estimulante pensar em como eles têm essa noção de que determinados textos são difíceis de ler, não pela sua significação, mas pela complexidade de sua tessitura. Especialmente nesse caso, um dos participantes da atividade argumentou: “É como uma poesia, a gente nem sempre sabe ler, mas sente o que tá escrito”. Essa fala do aluno evidencia o modo de leitura de que ele se utilizou: a leitura texto-intertexto. Em nossas atividades de leitura, nunca perguntamos o que os alunos acharam do texto ou compreenderam de significação, sempre questionamos o que eles sentiram, o que o texto causou e que impacto ou questões determinado texto pode trazer.
Terminada a leitura do conto, assim como na outra mediação feita na escola pública, perguntamos aos participantes onde estava o lobo dessa história ou quem era ele, e no primeiro momento eles não conseguiram perceber que se tratava da própria morte. Uma das alunas disse: “Não há lobos, o lobo é o medo que ela tem... um medo que ela nem sabe que tem, mas que encontra no final da história, quando a avó morre”. Isso fez com que, em seguida, os outros conseguissem chegar à conclusão, e uma das alunas respondeu: “Então a morte é o lobo da história, porque não tem mais o perigo de alguém fazer mal pra ela... ela nem tem medo, ela mesma conta pra onde vai porque esse perigo não existe”. Inquirimos dos alunos por que será que o autor tinha retirado esse perigo da história. Sem hesitação um dos meninos participantes da atividade disse: “Eu acho que é porque ela mora no interior e no interior não tem esses perigos de cidade”. Todos esses alunos se valeram dos modos de leitura propostos por Cosson: contexto-autor, contexto-leitor, texto-contexto e contexto-intertexto.
Uma das alunas, como ocorreu na outra mediação, atentou também às cores, afinal, as primeiras chapeuzinhos usavam vermelho, a do conto de Buarque levava amarelo, e Fita era verde. Para ela, “tem que ter um significado as cores, o vermelho pode ser por causa do perigo, o amarelo era medo e a fita verde, de certo, era porque ela ainda iria madurar”, ao que uma das colegas completou:
Mas ela amadureceu, todas elas amadureceram. A Fita Verde amadureceu na morte da avó. A Chapeuzinho Amarelo perdeu o medo do lobo, e o lobo pode ser qualquer medo que nós tenhamos, agora que o professor falou, eu entendi. E também tem as outras duas, uma não pode amadurecer porque ela morreu, mas a outra aprendeu uma lição.
(ALUNA DA ESCOLA PARTICULAR, 2019)
Nesse momento, pudemos explicar que realmente algumas teorias, especialmente a semiótica, trabalham com a linguagem visual, onde as cores podem significar além do texto. Também exemplificamos a psicologia por trás das cores no cinema e nas produções de TV.
É visível como os estudantes da escola particular tinham mais conhecimentos técnicos de literatura, tanto em seus comentários, como em suas interpretações sobre os textos trabalhados, o que reforça o posicionamento de Cosson (2014) acerca do “ensino de literatura” correr o risco de perder-se em teoria e pretexto pedagógico, já que a escola tem sua propaganda e seu foco de ensino em aprovações do vestibular e notas altas no ENEM, deixando a fruição do texto para um segundo plano.
Palavras finais
As oficinas de leitura com os estudantes se provaram muito eficientes para evidenciar como eles recorrem a mecanismos para suas interpretações, mesmo que alguns desses sejam mais pessoais e outros mais técnicos. Ademais, não cabe ao artigo medir os conhecimentos de um e outro público (embora possa ocorrer para promover a análise), a questão central foi revelar como os estudantes de uma e de outra realidade, dentro de suas capacidades pedagógicas, têm interpretado textos literários. Para isso, recorremos aos modos de leitura defendidos por Rildo Cosson (2014).
A nosso ver, os estudantes da escola pública recorrem mais às suas próprias vidas e bagagem literária para interpretar textos, é como se suas interpretações fossem tentativas de compreender a partir do seu histórico de vida. Enquanto na escola particular os estudantes acabam por se tornar mais duros em suas interpretações, recordando regras gramaticais, teorias e contextos literários. Sendo assim, cabe aqui destacar o texto de Michèle Petit que, ao resgatar as vozes de jovens de comunidade rural, marginalizada em contextos urbanos, ou ainda estrangeiros na França, consegue exprimir um pouco do impacto que a leitura tem sobre determinados leitores e suas histórias. Ela argumenta que em casos de localidades rurais ou de extrema pobreza, uma biblioteca pode ser uma fuga da realidade, bem como a porta de entrada para diversas possiblidades. Nos relatos que coletou, Petit expressa a satisfação de determinados jovens que, através da leitura, alcançaram posições sociais antes inimagináveis a eles, evidenciando o poder que o domínio da língua e a leitura podem exercer sobre indivíduos desprivilegiados. Acreditamos que esse tipo de interpretação é o mesmo que acontece com alguns de nossos estudantes. Eles conseguiram vislumbrar um pouco de sua realidade aqui, compreenderam também a forma como determinadas máximas podem se modificar com o tempo. Através de suas palavras, interpretamos que a leitura tem esse poder transformador na vida dos estudantes, que ela pode levar questões próximas de quem eles são ou ainda temas aos quais eles não dediquem o tempo necessário para pensar. Leituras essas necessárias, engrandecedoras.
Ao final, pensamos que, apesar do cenário em que a literatura perde espaço no currículo das escolas públicas, a leitura literária pode fazer parte da vida dos estudantes por meio de atividades de mediação de leitura, pois tais alunos têm seus próprios modos de ler e interpretar textos e essa pode ser uma forma de despertar neles o interesse por essa prática.