1 Introdução
Os valores? O valor é humano, a gente colocou o ser humano em primeiro lugar, a dignidade humana
(Fatima Lucena3, 2021).
O que se busca com este trabalho é resgatar, nas narrativas da História de Vida de uma educadora popular, a historicidade da Educação Popular impregnada na luta de mulheres e nos movimentos de resistência propositiva popular4 por elas cultivados, de modo a refletirmos sobre a continuidade dessa luta e dessa resistência que vêm fortalecendo os pressupostos da Educação Popular em sua história em tempos de pandemia.
Essas narrativas foram provocadas pelo desenvolvimento de um processo investigativo, de natureza qualitativa5, sobre a temática “Educação em contextos escolares e não escolares”. Optamos por apresentar, neste texto, parte dos resultados da referida pesquisa, privilegiando a análise das narrativas da educadora popular em questão.
Conforme Ecléa Bosi (1987, p. 55), o sujeito se apropria da vida ao narra-la, refazendo os caminhos vividos, o que é mais do que “revivê-los”, pois a história narrada “não é feita para ser arquivada ou guardada numa gaveta como coisa, mas existe para transformar a cidade onde ela floresceu” (BOSI, 2003, p. 69). Nisso reside a possibilidade de pensar outros modos de ser e estar no mundo por meio da convivência, que rememora o passado e o incorpora como vivido no presente.
Para Vincent de Gaulejac (1996, p. 15), as histórias de vida são instrumentos de historicidade que permitem à pessoa “trabalhar sua vida” ao contá-la, de modo que ela possa reconstruir o passado restaurando-o e fazendo sua vinculação com a história para reencontrar o “tempo perdido”, reabilitando o que poderia ter sido esquecido ou desconsiderado. Possibilita, ainda, de acordo com o autor, que a pessoa sustente o presente pela história incorporada e pela maneira que ela age sobre ele hoje, agora, o que desencadeia a abertura de outras interpretações e elaborações do vivido.
As experiências narradas, analisadas, compreendidas e interpretadas são de uma mulher de 67 anos, participante de movimentos de resistência às teorias e às práticas desumanizadoras desde a década de 1970. No início da prosa a educadora popular Fátima Lucena manifestou alegria e contentamento por estar participando de um momento não marcado por perguntas e respostas, mas por diálogos. O diálogo foi se estabelecendo como conteúdo e método da investigação, atravessando a narrativa refletida da educadora sobre si e sobre os/as outros/as, trazidos/as, também, como sujeitos das experiências narradas. Afinal, trazemos as “histórias porque finalmente as vidas humanas necessitam e merecem ser contadas” (RICOEUR, 1983, p. 19).
Nesse processo investigativo, de natureza qualitativa, conforme Bogdan e Biklen (1994), as opções metodológicas feitas decorreram do compromisso com o estabelecimento de relações não hierarquizadas entre as pessoas, a produção e a compreensão partilhadas de possibilidades de entendimentos sobre as experiências narradas. As narrativas foram gravadas, transcritas6, lidas e analisadas e novas tentativas de continuar a compreensão e a interpretação das experiências foram feitas orientadas por questões da pesquisa, cujos conteúdos foram transformados em eixos de análise: experiências que decorreram e ainda decorrem da participação da educadora popular junto aos movimentos sociais; possibilidade de reconhecer a interconstituição das experiências narradas e dos movimentos sociais7 por meio da narrativa dessa educadora popular; se as narrativas revelam outra Educação e outras epistemologias, ancoradas na leitura da realidade concreta; e, por último, se é possível recuperar, por meio das narrativas acerca da História de Vida dessa educadora, elementos que a vinculam à história da Educação Popular. O texto produzido a partir da leitura e da compreensão acerca dos resultados da análise dos dados produzidos por meio do diálogo foi devolvido8 para a educadora popular, que dialogicamente, com a pesquisadora e o pesquisador, em outro momento, ampliou a compreensão e a interpretação das narrativas das experiências vividas.
Assim, organizamos este texto em duas seções e apresentamos as considerações possíveis. A primeira trata de resgatar, nas narrativas da educadora Fátima Lucena, a historicidade da Educação Popular em diálogo com a luta de mulheres e os movimentos de resistência propositiva popular por elas empreendidos para, no segundo momento, refletirmos sobre a continuidade da luta e da resistência que fortalecem os pressupostos da Educação Popular em sua história, face ao quadro desencadeado pela pandemia de Covid-19, especialmente com relação às práticas de cuidado e solidariedade.
2 A luta de mulheres e os movimentos de resistência: memórias da história da Educação Popular
Narrar sobre si não é tarefa fácil. Tampouco apresentar e analisar narrativas feitas pela educadora Fátima Lucena sobre as suas experiências e os saberes da experiência. Ou seja, o que lhe atravessou, o que lhe constituiu. Larrosa (2002, p. 26) argumenta que
[...] o saber da experiência funda também uma ordem epistemológica e uma ordem ética [...] se dá na relação entre o conhecimento e a vida humana [...] Se a experiência é o que nos acontece e se o saber da experiência tem a ver com a elaboração do sentido ou do sem-sentido do que nos acontece, trata-se de um saber finito, ligado à existência de um indivíduo ou de uma comunidade humana particular; ou, de um modo ainda mais explícito, trata-se de um saber que revela ao homem concreto e singular, entendido individual ou coletivamente, o sentido ou o sem-sentido de sua própria existência, de sua própria finitude.
De pronto, nesse processo de escuta interessada optamos por registrar, inicialmente, a resposta elaborada por Fátima Lucena sobre a música que nos ajudaria a melhor compreender as experiências narradas e os saberes da experiência evidenciados na análise dessas experiências. Além disso, compreender o risco do bordado, ou seja, as razões e os fundamentos das ações que compuseram e compõem o risco da travessia da educadora popular e da interconstituição dela e dos movimentos sociais. Trata-se da letra “Cidadão”, gravada por Zé Ramalho e composta por Lúcio Barbosa na década de 1970: “Tá vendo aquele edifício, moço? Ajudei a levantar. Foi um tempo de aflição. Era quatro condução. Duas pra ir, duas pra voltar”.
Assim, com base na rememoração de diálogos sobre as experiências foi possível perceber indícios da tomada de consciência9 e identificar e analisar as implicações na construção de sujeitos e saberes da experiência, revelando outras epistemologias que não pressupõem a anulação do/a outro/a, a hierarquização dos saberes produzidos e a recusa do compromisso com a produção de saberes com os grupos oprimidos. Percebemos, ainda, diálogos com conhecimentos oriundos da teologia e das ciências políticas. É nítida a associação entre as escolhas em relação à teologia da libertação e aos paradigmas das ciências humanas não excludentes dos saberes produzidos em espaços não escolares e os valores comungados pela educadora com a comunidade religiosa, o que permite revelar indícios das histórias da Educação Popular vinculadas à teologia da libertação.
A minha formação política vem da formação política dentro da Igreja Católica através da Pastoral Operaria nos anos 70. Desde 79 comecei a participar, na verdade comecei a participar desde os meus 14 anos, 10 anos que eu ia para a igreja e já comecei a participar do grupo de jovens lá em Santa Vitória e minha mãe tinha uma formação e me levava para Igreja Católica. Levava todos os filhos e lá comecei a participar de grupo de jovens. e aí em 77 mudei pra Uberlândia e comecei na Igreja Bom Jesus, e lá conheci os padres oblatos, o padre Carlos, o padre Pedro Muriati e o padre Adriano, hoje dois deles são falecidos, o Pedro e o Adriano.
(Fátima Lucena, 2021).
A intencionalidade e os compromissos das pastorais10, como os da Pastoral Operária, com a formação de sujeitos vinculados à transformação da realidade opressora, configuraram a metodologia de trabalho e definiram temáticas que se constituíam e se desenvolviam como resistência, fomentando produção de conhecimento sobre a realidade e o autoconhecimento. Nota-se essa perspectiva, por exemplo, no fragmento da narrativa:
Uma proposta de conhecer a realidade a partir da nossa realidade, nós nos conhecer e fazer uma transformação do meio onde a gente vivia, e comecei a partir da fábrica, grupo de reflexão, grupo de formação política, tanto a formação religiosa como a formação sindical e foi através desse conhecimento que eu tive, através do estudo bíblico dentro da realidade da fé e da política, que a gente não vive só com a fé e a gente não vive só com a política, pra mim a minha formação foi essa e a partir disso nós começamos a discutir nossa realidade dentro das fábricas.
(Fátima Lucena, 2021).
Nessa formação os saberes são ancorados na fé e nas elaborações no campo das várias áreas necessárias para a formação política. Podemos afirmar que “as CEBs [...] buscaram tirar as pessoas do isolamento e da passividade em que viviam e as inseriram no processo de evangelização e educação adaptadas à fé” (ALVES, 2010, p. 40). A formação assumia os atos de conhecer e transformar o lugar em que as pessoas vivem e fomentava a compreensão da esfera pública e privada, o mundo do trabalho e da moradia, recusando a continuidade de relações opressoras e desumanizadoras, os saberes da teologia da libertação para repensar as relações de trabalho e as relações entre as pessoas.
A educadora Fátima Lucena trabalhava, entre o final dos anos 60 e o início dos anos 70, em uma fábrica que possuía 350 funcionárias/os, sendo a maioria mulheres. Não havia remuneração da hora extra trabalhada, não era garantido o lanche e o salário atrasava. Muita gente trabalhava sem o cumprimento do previsto nas leis trabalhistas. Essa realidade do trabalho nas fábricas era tema dos diálogos promovidos pela Pastoral Operária. Mas, como consta nos registros do diálogo:
Naquela época ajudar a organizar as costureiras era muito difícil, porque nós tínhamos que levar nossas marmitas e fazer as reuniões na Igreja Nossa Senhora da Aparecida no horário de almoço, tinha que sair de uma em uma pessoa escondida da chefe, escondida das meninas que não estavam no nosso projeto pra gente nos encontrar, saindo pelas portas e discretamente para não ser pega, pois nós estávamos vivendo um momento de transição política do país, ainda era o reflexo da ditadura.
(Fátima Lucena, 2021).
Essa ideia presente de forma recorrente nos discursos divulgados na mídia conservadora sobre uma suposta transição política do país – em função da ditadura cívico-militar instalada por meio do golpe militar de 1964, dos acertos para o restabelecimento da democracia e do fim das atrocidades feitas com os corpos dos/ as que reivindicavam o fim do governo fundado e estruturado nas violências –, ao ser confrontada com a história pouco registrada de mulheres que se colocavam em movimentos de resistência de denúncia e anúncio, não permite reconhecer a passagem de um estado de exceção para um estado democrático.
De acordo com Carlos Rodrigues Brandão e Raiane Assumpção (2009, p.27-28), num movimento de resistência ao cenário ditatorial,
Uma primeira experiência de educação com as classes populares (com essa concepção), a que se deu sucessivamente o nome de educação de base, educação libertadora e, mais tarde, educação popular, surgiu no Brasil no começo da década de 1960, no interior de grupos e movimentos da sociedade civil, alguns deles associados a setores de governos municipais, estaduais ou da federação. Surgiu como um movimento de educadores, que trouxeram, para o seu âmbito de atuação profissional e militante, teorias e práticas do que então se chamou cultura popular e se considerou como uma base simbólico-ideológica de processos políticos de organização e mobilização de setores das classes populares para uma luta de classes dirigida à transformação da ordem social, política, econômica e cultural vigente.
Assim, a título de ilustração, a organização das costureiras que surge no seio da Pastoral Operária demandou o desenvolvimento de táticas para garantir a realização das reuniões sem revelar quem participava do movimento e a continuidade dos contratos de trabalho. Uma análise à luz de Michel de Certeau (1994) nos permite entender que as reuniões constituíam espaços de transgressão, em que as pessoas se utilizavam de elementos das confecções estratégicas para realizar microações. Compreendendo que o espaço é o lugar (próprio) praticado, a transformação das reuniões em espaços de transgressão por meio de ações astutas foi capaz de rearticular a lógica de poder em microssituações cotidianas, o que Certeau (1994) denomina de táticas. Desse modo, as táticas constituem atos de resistência por meio da capacidade de subverter as situações que acontecem na invisibilidade cotidiana. Assim, a denominada transição a que Fátima Lucena fez referência anteriormente, conforme recorte da narrativa apresentada, foi costurada mantendo as ações de um Estado policialesco, repressor e promotor de violências, conservando o aparato utilizado pela ditadura cívico-militar.
No prosseguimento da narrativa, observa-se a continuidade da resistência e a inclusão de outras pautas que mostravam o reconhecimento da articulação na luta pelo direito à moradia e ao trabalho digno. É interessante destacarmos que nesse processo há indícios da interconstituição do sujeito e dos movimentos sociais. Osmar Fávero e Elisa Motta (2016, p. 9) nos ajudam nessa compreensão ao trazerem a história da Educação Popular, que naquele contexto se articulava aos movimentos sociais, caracterizando uma fase
[..] marcada pela definição de novas formas de trabalho, com os movimentos sociais em geral e com os movimentos sindicais e políticos, em particular com a reorganização das bases sindicais e a criação da CUT e do PT. Foi marcada também pela abertura dessas agências e centros em relação a outros movimentos e instituições da América Latina, em fértil parceria de estudos e troca de experiências e por um esforço de reflexão bastante importante.
O recorte que segue ilustra essa forma de trabalho a que Fávero e Motta (2016) fazem referência.
Começamos nos reunir e passava os filmes de formação do movimento sindical, formação política. A partir desse momento fui tomando consciência, nós fundamos o sindicato das costureiras, então meu primeiro passo, aí tinha Marina Silva, uma amiga que trabalhava comigo, tinha a Cida, minha irmã que trabalhava, ela aceitou a proposta e entrou pro projeto, tinha a Zilda, tinha várias mulheres, e alguns homens, e a gente fazia esse trabalho, e aí nós começamos, foi por aí. Aí o meu objetivo era também trabalhar nas periferias com as pessoas sem moradia, aí teve o primeiro despejo lá no Rio Uberabinha [década de 1980], nós fomos fazer um trabalho com eles e lutar por aquele momento. (Fátima Lucena, 2021).
Outro aspecto a ser destacado no resultado da análise das narrativas trata-se da formação articulada com intervenção transformadora. A título de ilustração, mencionamos o primeiro seminário da Pastoral Operária, no Oásis da Diocese do município de Uberlândia/MG, em 1979, o qual possibilitou diálogo das mulheres do sindicato das costureiras com aproximadamente cinquenta pessoas sem moradia que ficavam às margens do rio Uberabinha, no município de Uberlândia/MG. A próxima ação foi uma reunião, no dia 21 de abril, no espaço da Igreja São Judas, na qual se consagrou a Pastoral Operária, com aumento significativo de participantes. Participaram dessa reunião pessoas das favelas, principalmente aquelas cuja condição de vida era impactada pelo fato de o rio Uberabinha transbordar e carregar o mínimo que possuíam, em contextos de ausência de políticas públicas de assistência social e de moradia.
Aí nós começamos a luta lá, de lá pra cá nós não paramos, fundamos o sindicato, aí entra a história da CUT11, da Central de Movimentos Sindical e entra o PT, que é um partido que construímos desde o início. Eu não filiei na época por uma decisão do grupo político que eu vivia, mas assinei a carta para legalização do partido, então meu nome tá na carta [...]. Eu e minha irmã fazíamos trabalho de visita aos filiados do sindicato à noite, lembro que tirei férias e não descansei um dia, só de porta em porta, conversando com o pessoal filiado com o sindicato pra poder conscientizar ele pra pegar o sindicato do Pelego, né, do Seu Zé Pedro, e aí teve a oposição sindical da construção civil, teve a tentativa de fundar a chapa de oposição dos comerciários que estava o Zé Roberto, a Ivanici, e aí o Rauzinho na Construção Civil mais o Nadir, que hoje é falecido, então nós tínhamos vários sinais. Na Educação estava a fundação do SIND UTE, que era a UTI, a gente tinha como referência a Liberalina, que era da Pastoral, saudosa Liberalina, faleceu ano passado, e então tínhamos várias pessoas e categorias que formavam o grupo da pastoral, e com isso cresci muito, porque nós fomos em minha categoria, que era costureira, num ônibus praticamente nós, estávamos em quinze costureiras, tinha costureira na fundação não da CUT [Central Única dos Trabalhadores], da pré-CUT, então estávamos lá na fundação da CUT de São Bernardo nos dias 23 e 24 de Agosto de 81/82. Eu estava lá com várias costureiras representando a categoria e minha vida foi essa, dedicada ao movimento popular e sindical.
(Fátima Lucena, 2021).
A narrativa acerca das oposições sindicais no município de Uberlândia/MG pode ser compreendida retomando-se a discussão sobre a organização sindical no período pós 1964, especialmente no final da década de 1970 e na década de 1980. Aqui optamos por retomar parte da história que se vincula às narrativas de Fátima Lucena, uma educadora popular, membros de movimentos populares, oposições sindicais e direção de sindicatos. No processo de crítica ao denominado “Sindicado Pelego”, majoritário nas décadas mencionadas, vestido de uma pele que não era a dos/as trabalhadores/as, estava presente, também, a proposição de outro sindicalismo, vinculado aos interesses dos/as trabalhadores/as e com a participação destes/as na discussão e na tomada de decisão e pautas relativas às demandas para garantia de direitos sociais. Nessa perspectiva, a construção das oposições sindicais se deu em diferentes municípios brasileiros. É interessante retomarmos elaborações de Marco Aurélio Santana (1999) para reconhecer que as divergências também se referiam a outros sindicalistas que, a nosso ver, não poderiam ser inclusos no grupo de pelegos. Essa tensão esteve presente na construção das oposições sindicais no município de Uberlândia/MG, provocando, em alguns momentos, tentativas de exclusão, por exemplo, dos denominados “comunistas”. O referido autor esclarece:
A disputa no interior da esfera sindical se dava, de forma mais relevante, entre dois blocos. De um lado, o autodenominado bloco “combativo”[..] formado pelos sindicalistas ditos “autênticos” — reunidos em torno dos sindicalistas metalúrgicos do ABC, aos quais se agregavam sindicalistas de diversas categorias e partes do país — e pelas chamadas Oposições Sindicais [...] O segundo bloco, a Unidade Sindical, agrupava lideranças tradicionais no interior do movimento sindical, muitas vinculadas aos setores denominados “pelegos”, e os militantes de setores da chamada “esquerda tradicional”, que incluía o PCB, o Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR-8) e o Partido Comunista do Brasil (PC do B).
(SANTANA, 1999, p. 104).
Em relação a esses movimentos crivados de tensão, críticas e enfrentamentos, é importante destacarmos que a análise da narrativa feita pela educadora revela que participava das oposições sindicais parcela significa de pessoas oriundas de setores progressistas da igreja, cujos princípios e valores podem ser observados nas ações desenvolvidas nos movimentos populares e sindicais bem como nas campanhas com vistas a atender emergencialmente as demandas por alimentos, vestuários e remédios. É notória a ampliação do olhar dos membros desses movimentos para outras categorias que não a relativa ao sindicato ao qual pertenciam.
Entendemos que, nesse contexto, segundo Brandão e Assumpção (2009, p. 29, grifos dos autores),
O lugar estratégico que funda a educação popular é o dos movimentos e Centros de cultura popular: movimentos de cultura popular, Centros Populares de Cultura, movimentos de educação de base, ação popular. Mesmo quando realizado em serviços de extensão de universidades federais (como a de Pernambuco, onde Paulo Freire começou a descobrir-se em seu método de alfabetização), em setores do Ministério da Educação (desde onde seria desencadeada a Campanha Nacional de Alfabetização) ou em agências criadas por convênios entre a Igreja Católica e o governo federal (como o movimento de educação de base), o que tornou historicamente possível a emergência da educação popular foi a conjunção entre períodos de governos populistas, a produção acelerada de uma intelectualidade estudantil, universitária, religiosa e partidariamente militante e a conquista de espaços de novas formas de organização das classes populares.
A juventude intelectualizada, militante, religiosa e politicamente ativa pode ser observada nas narrativas de Fátima Lucena. O lócus de sistematização dos anseios transformadores face ao período ditatorial era a Pastoral Operária, que tinha o intento de uma Educação humanizada, sensível e ancorada nos seguintes princípios e valores: amorosidade, solidariedade, partilha do pouco que possui, gestão e participação democrática, acolhimento e esforço para unir os/as trabalhadores/as bem como comunicação com os/as trabalhadores/as. Mas é importante reafirmarmos que esse processo organizativo, educativo e formativo se deu em um contexto marcado pelo denominado “pacto pela democracia”, feito para as elites e com as elites, que não se materializou na vida dos/as trabalhadores/as.
Como eu podia fazer esse contato com as meninas [costureiras] no horário de serviço? [...] a gente fazia as visitas nas casas, nos bairros, nas casas das costureiras e ainda também na hora da reunião eu punha uma bala ou um pedaço de rapadura, fazia uma trouxinha e lá estava o horário da reunião [...], como se eu jogasse em cima da máquina pra pessoa não esquecer da reunião, entendeu? Forma da gente se comunicar, pois a ditadura era muito pesada e eu ainda fui perseguida pela patroa, pela empresa, me mandaram embora e ainda fizeram uma reunião, como tinha três irmãs tudo na mesma fábrica, a Maria das Graças, a Maria Aparecida, a Dora e eu, mas eu que era a referência e aí a patroa falou no meio de 200, 300 costureiras na reunião [...]: “Olha eu tô perdendo a melhor costureira que eu já tive aqui, mas por causa do movimento sindical que ela tá fazendo não posso ficar com ela”. E aí me contaram e segui a história, então fui perseguida por muito tempo.
(Fátima Lucena, 2021).
Nesse momento do diálogo a educadora informa que deseja concluir a sua fala sobre a experiência no movimento de oposição sindical e no sindicato das costureiras.
Eu só quero concluir, falar da fábrica, pois nós fizemos um apoio às oposições sindicais enquanto pastoral, mas enquanto indivíduo, eu, Fátima, e enquanto categoria nós fundamos o sindicato das costureiras, do qual fui presidente por oito anos. Passou pelo processo de associação das costureiras de Uberlândia e, como não tinha representação na sapataria, representei 1.500/2.000 funcionários em Uberlândia. Então nosso sindicato era um destaque constante, pois a violência era muito grande. Só pra você ter ideia, vou abrir um parênteses: nós tivemos casos de mulheres que foram arrastadas pelo cabelos na rua pelos patrões na época e mulheres que ficaram como escravas trabalhando três dias sem poder ir pra casa, dona de casa, e tinha revista de roupa de mulheres, a própria dona, chefe, fazia revista na fábrica enorme de roupas íntimas, meias, calças, calcinhas, roupas íntimas principalmente meia, ela fazia revista pessoalmente de levantar a roupa e fazia as mulheres descer as calças pra ver se tinha roupa íntima, elas eram acusadas de roubo e ela fazia esse trabalho. Quando entrei o momento era muito agressivo e eu tinha que ter uma postura muito forte. No nosso sindicato nós éramos 15 mulheres e todas determinadas a lutar, ou a gente lutava ou já tava perdendo os empregos. E lutar por dignidade, por respeito. Hoje não, mas na época nós fomos muito reconhecidas.
(Fátima Lucena, 2021).
Esses movimentos de resistência evidenciavam lideranças, e o modo de viver esse processo também transformou essas lideranças em referências para outros/as. Conforme Edla Eggert e Márcia Alves da Silva (2011, p. 57), “nos movimentos populares desde a década de 60 as mulheres [...] brasileiras, têm desenvolvido inúmeras tarefas em torno do bem-estar do corpo das pessoas que lhes estão próximas”.
É interessante observarmos, nesse sentido, características que colocaram, por exemplo, a educadora popular Fátima Lucena nesse lugar de resistência e referência:
Eu lembro do Tião Elias, enfermeiro lá na Medicina, mas ele foi nosso Secretário de Saúde na época que o Gilmar12 assumiu a prefeitura. Ele me apresentou para os outros funcionários da Secretaria, pra todo mundo lá, e falou – achei interessante que ele falou assim: “Eu sou o que sou por causa da Fátima, o sindicato dela não podia ser o maior porque o da alimentação era, mas que mulher que tinha coragem, ela enfrentava e chamava televisão e denunciava, ela não estava nem aí”. Era período de transição da ditadura pra fazer o que eu fazia, não sei, com a coragem que a gente tinha pra enfrentar, e enfrentava. E a gente tinha o apoio da Igreja, pois o Dom Estevão [bispo diocesano] era uma pessoa duma personalidade muito forte e muito respeitada, e ele nos apoiou muito no movimento. Então agradeço muito por ele, porque ele fez isso por nós.
(Fátima Lucena, 2021).
Outro aspecto tratado nas narrativas se refere aos valores e às táticas presentes e destacados pela educadora nos e com os movimentos sociais, pois ajudam a revelar outros modos de discutir e intervir na realidade com o/a outro/a bem como a pertinência de nomear esse movimento de resistência como resistência propositiva popular. Esse tipo de resistência, como argumentam Novais e Souza (2002, p. 47),
[...] ao identificar e analisar movimentos de resistência em contextos escolares e não escolares, são evidenciados pautas, proposições, dinâmicas e valores que podem permitir nomeá-los como movimentos de resistência propositiva popular [...] Assim, destacam-se as pautas interconectadas, ancoradas nos direitos humanos, a participação democrática como método e conteúdo das ações, a gestão em rede descentralizada, a busca por relações não hierarquizadas entre academia e movimentos sociais, a valorização de diferentes saberes, a solidariedade como eixo orientador das ações.
Nessa perspectiva, é ilustrativo, também, outro trecho sobre as experiências narradas por Fátima Lucena:
Os valores? O valor é humano. A gente colocou o ser humano em primeiro lugar, a dignidade humana para nós era a principal coisa que nós tínhamos como fruto de nosso trabalho, era dignidade humana, dignidade de moradia, dignidade de ter direitos trabalhistas, dignidade de alimentação, dignidade de ser humano, de ser gente. A hora que nós sentíamos que nós, trabalhadores, tínhamos essa consciência de que poderíamos transformar o nosso meio onde a gente vivia e onde trabalhava e na igreja através da fé, através das formas de ver o mundo, nós partia, não tinha medo não. Fui perseguida pela polícia, nós fomos, umas 10 pessoas, perseguidos enquanto grupo de Pastoral Operária pelo DOPES. Eles invadiram a minha casa, arrancaram material nosso, tava só minha mãe, e eu andava de bicicleta, ia pro serviço de bicicleta, feliz da vida, porque eu estava indo daqui do Liberdade até o bairro Brasil pra trabalhar [...]. Nós éramos 15 pessoas no máximo, mas, pra mim, me marcou muito, porque ali eram 15 pessoas que pra mim foi uma experiência ímpar, porque ali estavam as melhores pessoas ou as melhores pessoas que tinham consciência do papel nosso na sociedade de transformação, e eu não esqueço desse momento que me marcou e depois vieram os outros, e outros e outros, então eu não sei qual é o tempo nosso, mas se eu fosse contar, eu contava o resto da tarde, por que eu não tenho escrito, mas eu tenho na memória cada minuto vivido.
(Fátima Lucena, 2021).
A narrativa de Fátima Lucena, especialmente quando pontua que “tínhamos essa consciência de que poderíamos transformar o nosso meio onde a gente vivia”, suscita Freire (1987, p. 86) quando este traz que “será a partir da situação presente, existencial, concreta, refletindo o conjunto de aspirações do povo, que poderemos organizar o conteúdo programático da educação ou da ação política”. As aspirações do povo, nesse caso, são “de dignidade humana, dignidade de moradia, dignidade de ter direitos trabalhistas, dignidade de alimentação, dignidade de ser humano, de ser gente”, como narra a educadora popular. É na esteira da luta em defesa dessas aspirações que ela, enquanto mulher, se colocava na companhia de outras mulheres e homens, vivendo um processo de conscientização que se fazia na própria luta e tinha como conteúdo o mundo da vida, cujas ações – por que não? – pedagógicas eram profundamente educativas e humanizadoras.
3 E a luta e a resistência continuam: a Educação Popular no contexto da pandemia
A educadora Fátima Lucena nos avisa “eu continuo na luta” e justifica as razões para continuar vinculada aos movimentos sociais, expondo o contexto de produção desses movimentos e as diferenças entre os movimentos de décadas anteriores, os do final do século XX e os do século XXI.
Eu penso que nós estamos vivendo uma nova época, a época que eu vivi a gente se organizava através das fábricas, através do movimento sindical, hoje, na atualidade, nós temos de arrumar uma forma diferente de nos organizarmos, enquanto classe trabalhadora, enquanto sindicato, aí, por quê? Porque estamos vivendo um desemprego brutal, quase 14 milhões de desempregados, isso aí já mostra por si uma realidade brutal, desumana e desigual, porque quando você vê a pessoa que não tem um trabalho, um pai de família, uma mãe de família, amanheceu o dia não tem onde morar, não tem o que comer, mas tem família, e pra mim é desumano, é brutal o sistema político que estamos vivendo.
(Fátima Lucena, 2021).
Em seguida, mostra o agravamento das desigualdades sociais em função da pandemia do Coronavírus, Covid-19, em contexto de vigência de um sistema de exploração e desprezo dos representantes do Estado em relação à morte de parcela significativa da população brasileira. Mostra perplexidade e indignação em relação à quantidade de mortes em países ricos, supostamente uma adjetivação que poderia induzir a percepção de que haveria chance de todos e todas serem cuidados/as e acolhidos/as, revelando escolhas políticas na prioridade de utilização dos recursos públicos.
Estamos vivendo um momento crucial [...], um vírus que atingiu o mundo, o mundo não é o Brasil, é uma guerra invisível, que tem um efeito cruel, desumano, porque o que estamos vivendo com a mortalidade das pessoas, o que mais me choca e mais me aborrece, mas eu fico triste é de saber que no nosso país [...] quem está morrendo são as pessoas de idade, as pessoas que lutaram pra construir esse mundo e aí morrem precocemente por quê? [...] o número de jovens que já está entrando no recorde de morte por causa do Covid, agora vem uma segunda onda, terceira onda, que ela é 70 vezes mais grave do que essa, e aí você vê uma irresponsabilidade grande, você vê os cientistas [...]. No Brasil você vê um presidente genocida, porque o que eles fazem, o que ele faz, a equipe dele, principalmente ele, irresponsável, ontem mesmo eu estava assistindo jornal e ele pedindo pra ninguém parar de trabalhar, que tem que ir pra rua trabalhar, sobreviver, aí você vê que não tem um pingo de responsabilidade, não querer manter um auxílio emergencial para os trabalhadores, o número de pessoas que tão morando na rua, o número de pessoas morrendo.
(Fátima Lucena, 2021).
Analisando a narrativa feita pela educadora, destaca-se também a presença das mulheres nos movimentos sociais, experiências pouco registradas ou com registros com marcas da redução do papel dessas mulheres, da hierarquização das ações desenvolvidas nas lutas, da adoção de concepção sobre pautas apresentadas por mulheres de maneira a não reconhecer sua importância e manter uma separação rígida entre os supostos problemas da esfera privada e da esfera pública. Marcas do atravessamento das relações de gênero desiguais vinculadas ao patriarcado e ao sistema capitalista, conforme coloca Boaventura de Sousa Santos (2020), as quais são fundamentais para os processos de tornar invisíveis as histórias da participação das mulheres em movimentos de resistência.
Nesse sentido, é interessante destacarmos como nesses processos o ato de cuidar do/a outro/a, por exemplo, por meio da preparação de alimentos, organização do espaço físico, dentre outras ações, era considerado parte fundamental para as ações do movimento. Destacamos, ainda, que além dessas ações as mulheres participavam do chamamento e do convencimento de outras pessoas para a participação das reuniões, das discussões e dos encaminhamentos ocorridos durante reuniões e manifestações, o que remete ao cuidado, conforme Leonardo Boff (2004, p. 6) apregoa, aquele em que “cuidar do outro é zelar para que esta dialogação, esta ação de diálogo eu-tu, seja libertadora, sinergética e construtora de aliança perene de paz e de amorização”. Ou seja, realizavam um conjunto de ações que viabilizavam a realização de atividades dos movimentos. Também é possível identificar nas narrativas das experiências da educadora Fátima Lucena a associação entre cuidado e solidariedade, caracterizando o ato de providenciar, por exemplo, alimentos e máscaras para os/as outros/ as como assistência necessária à dignidade humana.
Cuidado, assistência e solidariedade, uma tríade revelada nas narrativas das experiências e que vai ao encontro de uma ética comunitária13, conforme propõe Enrique Dussel (1986). Assim, novamente, é ilustrativo outro fragmento das narrativas quando a educadora descreve as ações desenvolvidas em função dos procedimentos necessários para reduzir a contaminação do Coronavírus, frente ao reconhecimento da falta de recursos financeiros para aquisição de máscaras etc. das visitas realizadas para pessoas doentes, e do entendimento de que essa situação de agravamento das desigualdades sociais não será transformada sem movimentos de luta.
Eu fiz 750 máscaras, e ainda ajudamos nos projetos sociais. Nessa semana quatro visitas para meus amigos que apareceram com um câncer, são famílias que ajudaram nesse projeto nosso [...]. Então, o que você espera? [...] vamos esperar uma sociedade diferente, pós-pandemia? O que sobrar nós vamos ter que juntar os cacos e lutar. Não vai ser fácil [...], ontem fui levar uma cesta básica para vizinhos [...], ele era pedreiro e ela cozinheira de um restaurante. O restaurante fechou, não pagou, e ela sem salário, ele, pedreiro, teve um câncer [...], teve que fazer duas cirurgias. Levei cesta básica [...] e um saco de roupa de cama, porque enquanto ele estava por 60 dias na UTI, entubado, graças a deus que não pegou o Coronavírus, a casa dele foi inundada e mofou tudo. Eles não têm nada.
(Fátima Lucena, 2021).
Nas narrativas das experiências da educadora Fátima são revelados cuidado, assistência e solidariedade a partir do reconhecimento da condição do/a outro/a e das necessidades decorrentes dessa condição. À medida que narra as experiências, ela apresenta outras personagens que se juntam e vão constituindo esse fazer. Nisso reside o cuidado com os oprimidos, como ressalta Boff (2004, p. 6), quando Fátima Lucena elucida, com sua narrativa, a “a opção pelos pobres contra a sua pobreza e em favor de sua vida e liberdade”, o que “constituiu e ainda constitui a luta registrada dos grupos sociais que se puseram à escuta do grito dos empobrecidos”.
As experiências mostram sujeitos envolvidos com movimentos sociais e um jeito de viver e relacionar que expressa indícios de mudanças no modo de conceber a assistência e a solidariedade como elementos educativos e estruturantes de movimentos, vinculados à resistência e à proposição de outros modos de relacionar-se em oposição ao hegemônico e, cujos elementos, às vezes, podem ser identificados em episódios ocorridos no âmbito dos movimentos sociais, revelando contradições. É interessante observar que junto com as narrativas, por exemplo, sobre as ações de confecção de máscaras etc. estão as relativas à organização do 8 de Março e as avaliações sobre os desafios enfrentados pelos movimentos. Não há separação e hierarquização entre as experiências relativas às visitas e a organização dos movimentos sociais.
Nós estamos organizando o 8 de Março. A Pastoral Operária está desativada. Os movimentos, eu avalio que nós temos muitos movimentos, muitos, graças a Deus que ampliou tanto partido político, mas penso que hoje eu percebo que estamos um pouco sem rumo, sabe? Quando você percebe o jeito que está aí, não serve pra nós. Esse sistema que está aí é de morte, mas nós temos que ter esperança, mas tem movimentos que ainda não sabem pra onde vão, estão se organizando, mas isso é importante, isso é democrático, acho que é importante manter os partidos, é importante surgir os movimentos, mas muitos começam, não têm apoio e morrem, mas nós ainda estamos com a esperança da Frente Brasil Popular, da Frente Sem Medo de ser Feliz, nós temos a Marcha Mundial das Mulheres, temos cientistas sérios, temos pessoas sérias, não está tudo perdido, nós temos que continuar lutando de cabeça erguida, se amanhã eu não estiver mais aqui, tem vocês, tem nossos filhos, nossos netos, nossos tataranetos pra continuar as formas, cada um vai procurar a melhor forma de lutar.
(Fátima Lucena, 2021).
A esperança que se revela na narrativa da educadora popular é a que suscita Freire, de que “existe na medida em que eu ou nós mudamos o presente. E é mudando o presente que a gente fabrica o futuro: por isso, então a história é possibilidade e não determinação” (FREIRE, 1991, p. 90). É nessa direção que entendemos o fazer da Educação Popular em sua história, inaugurando possibilidades nas muitas gentes sérias que insistem em “continuar lutando de cabeça erguida”, como inspira Fátima Lucena.
Considerações possíveis
As narrativas que compõem a História de Vida da educadora popular Fátima Lucena revelaram experiências que decorreram e ainda decorrem de sua participação junto a outras mulheres nos e com os movimentos sociais bem como permitiram compreender e recuperar a importância histórica de se discutir a contribuição das comunidades eclesiais de base e das pastorais compromissadas com a defesa da democracia e da dignidade humana, como um dos eixos que sustentam a história, a epistemologia e a própria práxis da Educação Popular.
A luta de mulheres costureiras, engajadas politicamente, quer seja nos sindicatos de classe, quer seja nas pastorais operárias ou nos movimentos sociais, revelaram as tramas e as perseguições que não conseguiram pôr fim às táticas por elas desenvolvidas e vivenciadas. Táticas que se colocaram como movimento de resistência propositiva popular, de enfrentamento cultural à violência e à opressão das pessoas empobrecidas e proibidas de ser. Visibilizase, em demasia, a importância das mulheres para e na história da Educação Popular.
Uma outra Educação e, por conseguinte, uma outra epistemologia se constituiram historicamente, ancoradas na leitura da realidade concreta: a da resistência propositiva popular como possibilidade de romper com a necropolítica e a necrofilia que, também durante a pandemia de Covid-19, insistiram em destruir e impor a morte às pessoas oprimidas. As táticas elaboradas devolveram e ainda devolvem os sonhos possíveis de dias melhores, alimentando a esperança e o gosto pela luta e pela solidariedade que dignifica.
Assim, nas narrativas de Fátima Lucena foi possível recuperar a historicidade da Educação Popular, que se deu e ainda se dá nos meandros dos mais diferentes contextos e movimentos políticos e culturais, contando com a participação de uma diversidade de gentes. Gentes que, coletivamente, produzem as existências, marcadas pelo encontro com os/as outros/as, como expressão de resistência propositiva popular, a partir da escuta e da reflexão das experiências de luta e enfrentamento vividos.
Por último, as narrativas da educadora popular estimulam a reflexão acerca da importância indissolúvel da tríade cuidado, assistência e solidariedade, no quadro de referência valorativa de projetos transformadores da existência humana, convocando-nos ao reconhecimento da pluralidade de jeitos de ser, estar, resistir, lutar e sonhar.