Introdução
O objetivo deste texto é realizar um diálogo entre a Psicologia Histórico-cultural de Lev Vigotski e a Pedagogia de Paulo Freire no que se refere às possibilidades da Educação Inclusiva das pessoas com deficiência, tendo em vista que as duas teorias caminham em uma direção semelhante, resguardando as suas diferenças em relação ao contexto histórico, aos espaços e ao campo do conhecimento em que foram construídas.
Lev Semionovitch Vigotski (1896-1934), pesquisador russo, deixou uma intensa produção científica que ainda hoje instiga e abre horizontes para novas pesquisas em vários campos do saber, embora tenha falecido muito cedo, aos 37 anos. Foi por meio dos estudos no campo da Psicologia que Vigotski buscou encontrar soluções para os problemas emergenciais da sociedade da época após a Revolução Russa de 1917. Seguindo esse caminho, e inspirados pelo materialismo histórico-dialético, Vigotski e seus companheiros de pesquisa (Leontiev, Luria e outros) construíram as bases da nova Psicologia Soviética, identificada por Leontiev como Psicologia Histórico-cultural.
A Psicologia Histórico-cultural de Vigotski (1997) é orientada por uma concepção ontológica e epistemológica do ser humano como ser interativo, que se constitui pelas múltiplas relações que estabelece em seu contexto cultural. Partindo desse entendimento, cada ser incorpora a herança cultural de maneira individual e singular, de acordo com as relações que estabelece na família, na escola e nos demais grupos dos quais participa.
Paulo Freire (1921-1997), educador brasileiro, marcou a história da Educação do Brasil e de grande parte do mundo. Seu comprometimento foi com uma Educação que possibilitasse a libertação dos oprimidos, anunciadores de injustiças sociais. Ele demonstrou que a Educação que se diz neutra esconde sua opção de favorecer a classe dominante ao apresentar um mundo ao qual apenas é necessário se adaptar, o que ele denominou de “Educação Bancária”5. A partir de conceitos do materialismo históricodialético6, Freire (2013) concebe o ser humano como sujeito capaz de transformar a realidade, produtor e produto da história, uma vez que, transformando o mundo, sofre os efeitos dessa transformação. A Educação Libertadora, a que chamou de Problematizadora7, é aquela que problematiza a realidade, situa o ser humano na história e mostra a dialeticidade da história humana. A sua intenção era construir um projeto educacional para as minorias excluídas da sociedade, a qual ficou conhecida no cenário educacional como “Educação Libertadora”8, sendo uma das bases da Educação Popular.
Após essa breve apresentação dos autores, passamos à discussão de algumas categorias essenciais que nos possibilitam discutir seus pensamentos sobre a Educação Inclusiva das pessoas com deficiência, tendo em vista que, no nosso ponto de vista, as duas teorias seguem caminhos semelhantes.
Antes de iniciar esse debate, ressaltamos que Educação Inclusiva faz parte de um movimento histórico, político, cultural e pedagógico, sendo considerada atualmente um paradigma educacional fundamentado nos direitos humanos. Para fins deste trabalho, compreendemo-la como uma Educação plena, sem as restrições impostas pela padronização e a normalização; sem a obsessão curativa do outro, como proferem muitos discursos do campo da Medicina e da Educação. Por conseguinte, referimo-nos à inclusão como um processo permanente de reconhecimento da diferença, que vai além do acolhimento e da tolerância que prevê a normalização.
É importante lembrar também que a inclusão escolar das pessoas com deficiência não consta da centralidade das pesquisas de Vigotski nem de Freire, visto que, em suas épocas, essa temática não era constatada como pauta nos debates sobre a Educação. Entretanto Vigotski, na década de 20 do século passado, já analisava a profunda crise em que se encontrava a Educação Especial em seu país. Ao estudar seus textos é possível constatar a profundidade do seu debate sobre a deficiência e a clara contestação da concepção de deficiência da então União Soviética, que reduzia a pessoa com deficiência à simples causa orgânica e ao seu diagnóstico (VIGOTSKI, 1997; VIGOTSKI, 2020).
Em Freire, a Educação deve ser um ato de coragem, cujos sujeitos, em uma relação dialética, transformam a realidade e a si mesmos. Em sua obra Pedagogia do Oprimido (2013), Freire sinaliza que o ser humano deve ser capaz de realizar a leitura do mundo para que, assim, possa se apropriar criticamente de sua cultura e seu lugar no mundo. Seguindo essa ótica, o ser humano deve ultrapassar as fronteiras daquilo que já lhe foi condicionado socialmente, superando a condição de oprimido e construindo sua própria história como sujeito (FREIRE, 2013).
Nesse viés, a Educação Inclusiva a que nos referimos converge nas ideias freirianas, pois as pessoas com deficiência estão entre aquelas que mais sentem os reflexos da exclusão, tendo em vista que comumente são deixadas à margem da sociedade e dos discursos pedagógicos educacionais.
Após definidos os princípios basilares dos pensamentos de Vigotski e Freire, passamos agora a apresentar algumas das acepções teóricas que justificam uma aproximação entre as ideias desses autores no que se refere à Educação Inclusiva.
Vigotski e a deficiência no contexto cultural
Para Vigotski, a deficiência é compreendida como possibilitadora da construção de novos saberes, que se tornam possíveis a partir da interação com o outro e com a realidade cultural em que vivem os sujeitos. Segundo Vigotski (1997), se por um lado a deficiência enfraquece o organismo e impede suas atividades, por outro ela age como um incentivo para aumentar o desenvolvimento de outras funções no organismo: ela ativa e desperta o organismo para redobrar atividades que compensarão o defeito e superarão a dificuldade.
Sob essa perspectiva, Vigotski (1997) sugere que alguém com deficiência não é um indivíduo menos desenvolvido, mas um indivíduo que se desenvolveu de outro modo. Outrossim, o autor também destaca que o olhar sobre a deficiência é construído e mediado socialmente. Logo, a forma como a pessoa encara as suas limitações está condicionada ao meio social, que está construído em função de um padrão de normalidade, o qual comumente cria barreiras físicas, educacionais e atitudinais para a participação social da pessoa com deficiência. Nas palavras do autor: “As consequências sociais do defeito acentuam, alimentam e consolidam o próprio defeito” (VIGOTSKI, 1997, p. 93, tradução nossa9).
Em vista disso, podemos afirmar que as pessoas com deficiência têm capacidade de aprendizagem, ainda que esta ocorra de modos e em tempos diferentes das pessoas sem deficiência, necessitando-se de recursos específicos para tal. Por isso, não basta somente que a pessoa com deficiência busque a superação dos seus limites, é necessário, sobretudo, que o meio social promova sua inclusão, buscando os instrumentos necessários que lhes permitam desenvolver as funções psicológicas superiores, tal como propõe Vigotski (2000).
As funções psicológicas superiores representam as funções mentais que caracterizam o comportamento consciente do homem, como memória, atenção e lembrança voluntária, memorização ativa, imaginação, capacidade de planejar e estabelecer relações, ação intencional, desenvolvimento da vontade, elaboração conceitual, uso da linguagem, representação simbólica das ações propositadas, raciocínio dedutivo, pensamento abstrato. “Portanto, as funções superiores diferentemente das inferiores, no seu desenvolvimento, são subordinadas às regularidades históricas” (VIGOTSKI, 2020, p. 25).
Tomando como referência as ideias de Vigotski, podemos presumir, portanto, que em Vigotski a Educação da pessoa com deficiência deve buscar o desenvolvimento de suas capacidades, possibilitando-lhe enfrentar os desafios impostos pela sociedade, de modo que possa fazer as compensações ou supercompensações das funções afetadas. A compensação, segundo Vigotski (1997), representa o processo pelo qual as pessoas com deficiência substituem as funções comprometidas por outras que lhe permitem superar as suas limitações, já a supercompensação representa a possibilidade de transformar a sua limitação em talento.
Além disso, na perspectiva vigotskiana tanto a compensação quanto a supercompensação não ocorrem de forma natural (automática), mas por meio da mediação do ambiente social no qual o indivíduo está inserido. Portanto compensação e supercompensação são mecanismos essencialmente sociais, ou seja, não se trata de uma substituição natural e automática das funções comprometidas por outras funções ou órgãos, mas de uma luta social.
Seguindo esse ponto de vista, o processo educativo assim conduzido valoriza as capacidades das pessoas com deficiência em vez de priorizar suas limitações, suas incapacidades ou seus defeitos. Ademais, conforme Vigotski (1997), o indivíduo não sente diretamente a sua deficiência até se deparar com um padrão de normalidade imposto pelo social. Em outras palavras, não é a deficiência por si só que faz com que o indivíduo se sinta inferior, mas o meio social em que ele está inserido e o seu padrão de normalidade.
Mas como é possível superar os limites conferidos pela deficiência se o meio sociocultural está construído em função de um padrão de normalidade que impõe barreiras (físicas, comunicacionais, educacionais e atitudinais) para a participação efetiva da pessoa com deficiência? Esse, sem dúvida, é um dos grandes desafios para a garantia da Educação Inclusiva das pessoas com deficiência na contemporaneidade.
Na perspectiva de Vigotski (1997), a compreensão da deficiência tendo como foco a condição orgânica leva à proposição de estratégias de ensino centradas nos limites intelectuais e sensoriais, resultando na restrição das oportunidades de aprendizagem e desenvolvimento das pessoas. Por conseguinte, quando não se acredita na capacidade de aprender das pessoas com deficiência não lhe são oportunizadas as condições para superar suas dificuldades. Por isso essas pessoas são condenadas aos limites impostos pela deficiência, sendo estes tomados como determinantes independentemente das condições educativas de que se dispõe.
Por pressuposto, são as mediações socioculturais que possibilitarão à pessoa com deficiência desenvolver as funções psicológicas superiores, superando as condições biológicas atribuídas pelo seu organismo. Portanto, tanto a Psicologia como a Pedagogia devem encarar a deficiência como um problema social, não apenas individual, como será enfatizado mais adiante.
É importante destacar que Vigotski (1997) colocava-se contra uma Educação que segregava os sujeitos com deficiência, defendendo sua integração no meio social, por isso ele reivindicava ardorosamente que os muros das escolas especiais fossem derrubados e que essas crianças participassem de atividades conjuntamente com as crianças consideradas “normais” (VEER; VALSINER, 1996).
Essas ideias de Vigotski são confirmadas por Carlo (1999, p. 37), quando faz a seguinte reflexão:
À medida que guardamos [as crianças com deficiência] em nossas instituições especiais para o resto de suas vidas, estamos impedindo que a sociedade seja desafiada pelas diversidades que muitas vezes essas crianças evidenciam. Estamos privando os dois lados da comunidade: os chamados normais mitificando a realidade como algo uniforme sem gritantes diferenças; estamos impedindo que a comunidade seja sensibilizada pela riqueza das diferenças que caracterizam o humano, impedindo de desenvolverem a habilidade de conviver com as diferenças e aprender a beleza do esforço que muitos fazem para sobreviverem. Do lado do deficiente, estamos obrigando-o a viver sempre junto aos que têm mais ou menos os mesmos limites que ele, e têm de enfrentar o desafio de conviver com comportamentos que muitas vezes não são os deles.
Essa citação de Carlo propõe uma importante reflexão sobre a proposta social da Educação Especial de Vigotski e a proposta de Educação Libertadora de Paulo Freire, traduzindo o grande desafio de aprender a viver juntos, comunicar-se com o outro e reconhecer as diferenças na sua plenitude. As diferenças não devem apenas ser aceitas ou toleradas, pois, nesse caso, colocamo-nos na posição de benfeitores, de quem aceita o sacrifício de conviver com o outro “apesar” de seus problemas, de seus defeitos. O outro continua a ser o “problemático”, o cego, o surdo, aquele que não aprende e que precisa da nossa boa vontade para ser integrado ao nosso meio.
Seguindo esse ponto de vista, “os outros”, aqueles que precisam ser “incluídos”, recebem uma Educação reduzida e adaptada, devido às suas “fragilidades”. Enquanto isso o território da normalidade permanece inabalável, conforme nos aponta Skliar (2003).
Nessa lógica, a escola é o espaço da padronização. Em razão disso, ela controla, silencia e encobre as diferenças que insistem em aparecer. Porém os desvios, ou seja, a diferença, nem sempre podem ser controlados. Negar a característica de outra pessoa é negar a liberdade de sua existência, é desacreditar nas possibilidades do outro, é não permitir que o outro seja diferente do “eu mesmo”. Dito de outro modo, é negar a sua alteridade.
Vigotski (1997), já em sua época, propôs à Educação Especial a construção de uma prática pedagógica transformadora, que auxiliasse na criação de instrumentos culturais adaptados à estrutura psicológica da criança com deficiência bem como na utilização de procedimentos específicos que auxiliassem essa mesma criança a dominar o uso dos instrumentos.
Ademais, a deficiência não impede o desenvolvimento do sujeito, pelo contrário: pode ser a força motriz que o impulsiona a desenvolver-se. Nas palavras de Vigotski, “a criança, cujo desenvolvimento foi complicado por uma deficiência, não está menos desenvolvida que seus contemporâneos normais, é uma criança, mas desenvolvida de outra maneira” (VIGOTSKI, 1997, p. 03, tradução nossa).10
Desse modo, as bases do desenvolvimento são as mesmas para as crianças sem deficiência e as com deficiência, contudo as funções psíquicas se desenvolvem de maneira diferenciada nas com deficiência intelectual. Diante disso, uma criança com deficiência intelectual, por exemplo, não está apta “a desenvolver as capacidades de compreensão, abstração, planejamento das próprias ações etc.” (CARVALHO, 1997, p. 147), devendo a escola buscar formas diferentes para desenvolver essas capacidades, respeitando a sua diferença em relação ao que é estabelecido como normal, até o ponto de não mais enxergar uma diferença, porque não mais se guia pela normalidade.
Assim, fica subentendida que a ação pedagógica deve focar nas funções psicológicas superiores, não simplesmente no treinamento das funções sensoriais e motoras, as quais correspondem às funções psicológicas elementares, de origem orgânica. Ao se limitar às intervenções orgânicas, desconsiderando os aspectos socioculturais que estão envolvidos no processo ensino-aprendizagem, a ação pedagógica está fadada ao fracasso, pois não promoverá mudanças no desenvolvimento da criança.
Dito de outro modo, a criança com deficiência, seja qual for o nível de seu comprometimento, deve ter oportunidades de se apropriar dos conhecimentos socioculturais, não somente no que se refere aos comportamentos e aos valores cotidianos, mas, sobretudo, aos conteúdos científicos. Sendo assim, cabe à escola e ao professor ofertar diferentes recursos pedagógicos para que a criança desenvolva funções psicológicas mais complexas – pensar, memorizar, abstrair –, tendo em vista que todos aprendem, desde que sejam realizadas adaptações que possam atender as suas necessidades específicas.
Posto isso, quando a ação educativa prioriza o déficit, a criança fica em segundo plano, uma vez que todas as pessoas possuem imensas possibilidades de aprendizagem e o déficit não define alguém. Portanto, é necessário educar uma criança em desenvolvimento, não apenas uma criança com deficiência. Contudo, é importante considerar que o déficit orgânico das pessoas com deficiência não pode ser ignorado, pois desafia o desenvolvimento das funções psíquicas superiores.
Dito isso, é necessário ressignificar a escola e o professor que, por razões diversas, negligenciam seu papel no ato de ensinar, em particular, as crianças que apresentam deficiência, por estas não se adaptarem aos métodos de ensino elaborados para crianças consideradas “normais”. Sobretudo, muitos professores não acreditam na capacidade de aprender dessas crianças e, por essas razões, proporcionam a elas atividades mecânicas e descontextualizadas que as levam apenas a memorizar e reproduzir.
Freire e a condição ontológica de “ser mais”
Para compreender a Pedagogia Libertadora de Paulo Freire, a Pedagogia “do” Oprimido (e não “para” ele), é necessário situá-la em sua visão ontológica de ser humano. É ali que vamos encontrar esse “outro”.
Partindo de uma concepção de ser humano como processo histórico, Freire (2013) concebe ser humano e história como inacabados, inconclusos. Unindo a essa concepção materialista histórico-dialética o entendimento fenomenológico de intencionalidade da consciência (a consciência é sempre consciência de alguma coisa que ela mesma não é, de algo externo a ela)11, o autor situa o ser humano como um ser de relações, um ser perenemente em relações com o mundo e tudo o que habita nele. Nesse sentido, o ser humano é transcendência, está no mundo em um movimento perene de transcender a si mesmo, de “ir para fora de si”. Esse movimento Freire reconhece como sendo a condição ontológica do ser humano, uma condição própria da humanidade, portanto, que todos nós temos.
Essa condição não pode ser perdida, visto ser ontológica, mas pode ser impedida, e isso ocorre a partir da natureza das relações sociais estabelecidas. O oprimido é todo aquele que tem sua condição ontológica de ser mais impedida de ser vivenciada mediante condições estruturais/sociais de opressão (FREIRE, 2013), que aqui podemos considerar: o trabalhador explorado, o trabalhador em condição de trabalho escravo, a mulher vítima de sexismo, a pessoa vítima de preconceitos sexuais, a pessoa vítima de etarismo, a criança colocada em situação de trabalho, a criança vítima de violências, a pessoa com deficiência...
Freire denunciou a opressão estrutural da sociedade brasileira de meados dos anos 50 do século XX, sendo o analfabetismo uma de suas expressões. Apontava a herança de uma sociedade colonizada, assentada em profundas desigualdades sociais, e convidava à reflexão do papel da Educação nessa sociedade (FREIRE, 1996a). Uma Educação Bancária, ao não lidar com os alunos como sujeitos e ao incitá-los à memorização de conteúdos desconectados da realidade, serve à manutenção dessa realidade opressora. À esta, Freire opunha uma Educação que reconhece alunos e professores como sujeitos históricos, por isso problematiza os conteúdos à luz da realidade concreta vivida por aqueles. Uma Educação Dialógica, pois coloca em diálogo a “ad-miração” do mundo de todos os sujeitos do processo educativo, provocando a “re-ad-miração” deste a partir da “ad-miração” de todos. Se a Educação parte da realidade, a forma como educandos e educadores a veem é requisitada no entendimento do ser humano como aquele que não só está no mundo, mas nele atua, é parte dele com os outros e assim o significa. Esse mundo é ressignificado a partir da forma como os outros o veem, em um processo dialético. Nesse sentido, não é o professor o mediador do ato educativo, mas o próprio mundo (FREIRE, 2013). Essa Educação é libertadora, porque leva à conscientização, à passagem da consciência ingênua à consciência crítica, condição para uma atitude também crítica no mundo, de transformação de suas estruturas opressoras, sempre em processo.
Assim, o sujeito oprimido recupera a possibilidade de realizar sua condição ontológica de transcendência, nunca perdida, pois é ontológica, porém impedida de se realizar devido às opressões. Essa é a libertação. Na dialeticidade das relações, o oprimido liberta a si e ao opressor, não apenas muda de polo com ele. A libertação de ambos é possibilitada pelo estabelecimento de relações não pautadas pela opressão (FREIRE, 2013).
Ao colocar as bases de uma Educação/Pedagogia Libertadora, Freire nos instiga a pensar sobre o nosso papel no mundo e o nosso modo de atuar em nossas profissões. Esse engajamento sempre colocado pelo autor nos desafia: não havendo possibilidade de neutralidade no mundo humano, a favor do que e de quem estamos em nossas intervenções no mundo? Consequentemente, contra o que ou quem estamos? Mesmo que não saibamos, estamos sempre tendo que escolher, e é nosso compromisso social fazê-lo com consciência crítica. Não nos cabe permanecer na ingenuidade (FREIRE, 2013, 2015).
Quais as consequências de compreender a pessoa com deficiência como um ser oprimido? De compreender o aluno com deficiência como oprimido nas engrenagens escolares? De que forma a escola – personificada nas pessoas que lá trabalham – reproduz a opressão, mesmo não o desejando? A esse aluno é permitido pronunciar o mundo em diálogo com ele e com os outros? Sua voz é requerida ou se fala por ele? Ele é visto em sua integridade ou apenas como um corpo e um intelecto defeituoso que é necessário aceitar e, na medida do possível, tornar o mais próximo do normal que se conseguir?
É nossa responsabilidade de educadores e demais profissionais afins pensar a inclusão escolar de pessoas com deficiência. Não nos cabe permanecer na ingenuidade da manutenção de olhares estigmatizadores que invisibilizam o “outro” diferente de mim, o “mesmo”.
Vigotski e Freire e a inclusão
A diferença é possibilitadora de novas aprendizagens, nos desafiando a buscar outros caminhos para que possamos viver em sociedade, nos comunicar e aprender juntos. Com isso, a diferença precisa ser reconhecida, pois ela faz parte de nossa condição humana. Frente a isso, é necessário discutir a Educação Inclusiva materializada nas escolas, a concepção de deficiência e a estruturação do seu currículo, para então repensar a serviço de que e para quem ela está atuando. Qual o sentido atribuído à inclusão? Quem é esse sujeito identificado como “aluno de inclusão”?
Vigotski (1997) propõe que a Educação dos sujeitos com deficiência seja organizada para além do seu defeito orgânico, sobretudo para as suas possibilidades. Dito de outro modo, ao invés da deficiência, o foco da Educação deve ser as potencialidades do desenvolvimento dos sujeitos.
É nesse sentido que em Vigotski (2001) o professor recebe um papel de destaque, visto ser ele um detentor de conhecimento que, por isso, precisa ter condições de realizar as intervenções necessárias para que o estudante se aproprie dos conteúdos científicos. O professor exerce a figura de adulto ou pessoa mais experiente, que irá mediar o estudante atuando na zona blijaichego razvitia, conceito que, conforme Prestes (2010), foi traduzido para o português como zona de desenvolvimento próximo, proximal, potencial, imediato. Contudo, em sua tese de doutoramento defendida em 2010, Quando não é quase a mesma coisa: Análise de traduções de Lev Semionovitch Vigotski no Brasil: Repercussões no campo educacional, Prestes aponta os equívocos contidos na escolha dos termos proximal, potencial e imediato para tradução do conceito, alertando que a tradução que mais se aproxima do termo russo é zona de desenvolvimento iminente, cuja característica essencial, em suas palavras, é a das possibilidades de desenvolvimento. Por isso, para Prestes (2010, p. 173), segundo as ideias de Vigotski, a zona blijaichego razvitia representa
[...] a distância entre o nível do desenvolvimento atual da criança, que é definido com a ajuda de questões que a criança resolve sozinha, e o nível do desenvolvimento possível da criança, que é definido com a ajuda de problemas que a criança resolve sob a orientação dos adultos e em colaboração com companheiros mais inteligentes.
Assim, a qualidade do ensino ofertado pela escola está atrelada à sua contribuição para o desenvolvimento dos estudantes, ou seja, a instrução escolar deve se dirigir às funções psicológicas superiores. Essa dimensão prospectiva do desenvolvimento psicológico remete ao entendimento da importância da mediação do professor em sala de aula e dos parceiros mais experientes na apropriação dos saberes, partindo das aprendizagens já consolidadas para construir o caminho das que ainda estão em vias de construção.
Esses aspectos também são considerados por Freire, embora ele estabeleça ao mundo o papel de mediador do processo ensinoaprendizagem, no entendimento de que educador e educandos dialogam mediados pelo mundo. Mas esse diálogo é coordenado pelo professor, e por isso ele precisa ter profundo conhecimento do conteúdo que ensina e do processo educativo. O cerne das reflexões de Freire é a emancipação humana, a libertação da opressão, por isso ele defende o diálogo na relação entre educador e educando, condição relacional concernente à realização da vocação ontológica de “ser mais”, sem desigualdades (hierarquias), mas mantendo as diferenças entre educador e educando (do professor se exige conhecer o que ensina). Dessa forma, pode-se chegar a um conhecimento do mundo que seja libertador da opressão.
Ademais, a Educação Libertadora preconizada por Paulo Freire vai de encontro à homogeneização dos educandos por meio de práticas educativas tradicionais impulsionadas pela “Educação Bancária”. Freire sugere que, em suas práticas pedagógicas, os professores considerem as singularidades dos educandos, oportunizando uma Educação Dialógica e Problematizadora. Nas palavras do autor:
Se discrimino o menino ou a menina pobre, a menina ou o menino negro, o menino índio, a menina rica; se discrimino a mulher, a camponesa, a operária, não posso evidentemente escutá-las e se não as escuto, não posso falar com eles, mas a eles, de cima para baixo. Sobretudo, me proíbo entendê-los. Se me sinto superior ao diferente, não importa quem seja, recuso-me escutá-lo ou escutá-la. O diferente não é o outro a merecer respeito, é um isto ou aquilo, destratável ou desprezível.
(FREIRE, 1996b, p. 29).
Tal perspectiva nos leva a repensar o papel da escola e do professor na Educação Inclusiva, pois é a diferença que nos torna humanos, somos sujeitos da diferença. É ela que nos constitui, nos faz singulares, é nossa manifestação de vida. Assim, a nossa maior semelhança está em nossas diferenças, sejam elas quais forem. Mas será que reconhecemos a nossa diferença? Ou também estamos tão formalizados que já nos conformamos com a mesmice?
Se for percebida como entrave, a diferença do outro nos paralisa. Talvez seja esse um dos problemas mais enfrentados quando discutimos a Educação escolar da pessoa com deficiência. A diferença nos assusta, não só a do outro, mas também a nossa. O que fazemos com as nossas diferenças? Em que covas as estamos escondendo? Existirá ainda um espaço que torna possível a existência da diferença? Será que lhe concedemos a palavra ou lhe damos ouvidos? Ela merece sobreviver? Em caso afirmativo, que função social tem a desempenhar? Não temos respostas para essas questões, visto que também nos fazemos elas constantemente, mas acreditamos que, para assumirmos uma postura crítica diante do cenário educacional e pedagógico que está posto, quando se discute a Educação Inclusiva, sem dúvida, essas questões precisam, no mínimo, fazer parte do nosso debate.
Paulo Freire defende uma Educação Inclusiva que acolha todos os alunos que nela ingressam, com ou sem deficiência. Isso requer que a prática educativa seja inspirada na liberdade e na autonomia de cada indivíduo integrante do processo educativo. Um ambiente escolar inclusivo é aquele que busca desenvolver a autonomia individual (autonomia como reconhecimento de si e do outro em comunidade, em nada equivalente ao entendimento de autonomia individualista das sociedades modernas liberais) sem qualquer forma de discriminação, pois a “a paz se cria, se constrói na construção incessante da justiça social” (FREIRE, 2006, p. 388).
Com base no pensamento acima, o papel do professor é estabelecer relações dialógicas entre os sujeitos do processo de ensino-aprendizagem, nas quais, ao mesmo tempo em que ensina, também aprende, porque reconhece o aluno como sujeito que diz a sua palavra. É nesse sentido que Freire aponta o diálogo como um princípio educativo, de reconhecimento do outro, por meio do respeito à sua dignidade. “Ensinar e aprender são assim momentos de um processo maior que o de conhecer, que implica re-conhecer” (FREIRE, 2002, p. 47).
Por pressuposto, para Freire (2003, p. 52) “o papel do professor e da professora é ajudar o aluno e a aluna a descobrirem que dentro das dificuldades há um momento de prazer, de alegria”. Essa relação só pode acontecer por meio do diálogo em que ambos, educador e educando, mediatizados pelo mundo, se apropriam do conhecimento historicamente elaborado pela humanidade. Por isso “o educador ou educadora como um intelectual tem que intervir. Não pode ser um mero facilitador” da aprendizagem (FREIRE, 2003, p. 177).
Essa é a grande tarefa de todos os educadores: promover a aprendizagem a todos os estudantes que ingressam na escola, mesmo aqueles que apresentam condições desfavoráveis, seja por sua condição biológica ou pelo seu jeito específico de aprender. As diferenças devem nos desafiar a trilhar novos caminhos, a nos reinventar, e não nos paralisar. Como diziam Freire e Shor (1987), a Educação é um ato de coragem, nunca de medo, e o amor é compromisso com os homens. Assim, a coragem não é ausência do medo, mas resistência a ele. Essa é a proposta libertadora de Freire que, ao encontro da Psicologia Histórico-cultural de Vigotski, nos ajuda a construir uma Educação Emancipatória para todos os sujeitos participantes do processo de ensino-aprendizagem.
Tal perspectiva leva a inferir que a escola é um espaço de construção dos sentidos, dos desejos e das emoções, um espaço privilegiado para pensar. A escola é lugar de gente,
Lugar onde se faz amigos, [...] gente que trabalha, que estuda, que se alegra, se conhece, se estima. [...] e a escola será cada vez melhor na medida em que cada um se comporte como colega, amigo, irmão. [...] nada de ser como o tijolo que forma a parede, indiferente, frio, só. [...] numa escola assim vai ser fácil estudar, trabalhar, crescer, fazer amigos, educar-se, ser feliz.
(FREIRE, 1997, p. 31).
É um lugar em que habita o humano. Mas será que é essa escola que estamos ajudando a construir? Em que medida a escola e, mais especificamente, a Educação Inclusiva se aproximam ou se distanciam do projeto de humanização proferido por Vigostski e reafirmado por Freire?
Entendemos que os legados de Vigotski e Freire podem nos ajudar a construir uma Educação mais inclusiva de fato, sobretudo pela sua aposta no ser humano como ser potente e a sua capacidade de superação, apesar das condições adversas conferidas pela deficiência no meio social.