Introdução
A tematização da cultura e da qualidade na educação/educação física venezuelana integra um projeto investigativo, desenvolvido pelos autores deste texto junto a pesquisadores integrantes de instituições de ensino superior na América Latina. Esse projeto prevê o desdobramento da pesquisa por meio de incursões pela literatura disponível e, notadamente, pela colaboração de professores-pesquisadores participantes da investigação, os quais passam a ser sujeitos e parceiros da pesquisa. O recorte para a educação física no contexto venezuelano dá-se, neste escrito, a partir do interesse em se entender como a temática da cultura é abordada junto à área, naquela realidade, e em que medida é possível pensar em qualidade na educação/educação física no país investigado.
A Venezuela possui representação política no cenário da América Latina e vem, ao longo de alguns anos, vivendo mudanças significativas nos campos político, social e econômico. Na última década, esse país passou de regime neoliberal ao bolivariano1 (Zuck, & Nogueira, 2012; Santos, & Socorro, 2016), o que ocasionou sua reestruturação em diversas instâncias sociais e na forma como o país tem se organizado, a exemplo da Ley Orgánica de Cultura (2014), da Ley Orgánica de Educación (2009) e da Ley Orgánica de Deporte, Actividad Física y Educación Física (2011). Apesar disso, a “[...] desestabilização da economia, com o desabastecimento de alimentos, remédios e insumos em geral [...]” (Zuck, Nogueira, & Alves, 2014b, p. 133) afeta diversas instâncias, inclusive a educacional, sobretudo se se considerar a impossibilidade de se pensar, de maneira desconexa, a densa e complexa relação entre educação, sociedade e Estado.
A organização da educação física e do setor esportivo, nesse país, não se constitui, de forma isolada, das condições que afetam a educação, encontrando-se ligada às ações políticas governamentais que incidem em sua estruturação e perspectivas de ação e desenvolvimento junto à sociedade, influenciando modos de percepção da área, de desenvolvimento e de gestão. Altuve (2012) observa que a educação física venezuelana, embora regulamentada, encontra-se quase sempre subordinada ao esporte para exercer o direito assegurado pela Constituição da República Bolivariana da Venezuela de 1999. Todavia, é justamente essa subordinação, afirma o pesquisador, que fragiliza o direito constitucional da prática esportiva e recreativa da população, uma vez que os professores de educação física escolar são encarregados de ministrar treinos e acompanhar os alunos em eventos esportivos, o que causa o abandono do componente curricular e/ou relega-o a segundo plano, o que atende apenas a uma pequena parcela dos alunos. Há que se destacar, no entanto, que, mesmo com objetivos e proposições no campo do esporte e do rendimento, a educação física venezuelana constitui-se como componente curricular na escola desse país, trazendo as marcas de sua especificidade histórica e suas determinações próprias.
Segundo Torrealba (2013), o trato histórico da educação física na Venezuela dá-se de forma escassa, por vezes, sustentado a partir de episódios populares ou como resultado do entrelace entre a história e o desenvolvimento do esporte junto à disciplina. O autor lança mão de outras informações para discorrer acerca da falta de conteúdo referente ao histórico da educação física, qual seja, a carência de informações da área, advindas das instituições de ensino venezuelanas que, no país, eram as únicas instituições responsáveis pela formação de professores de educação física. Apesar disso, o pesquisador, fundamentado em documentos históricos e bibliográficos, assim como em entrevistas com personalidades da educação física venezuelana, busca desvelar o desenvolvimento da educação física e seu impacto na sociedade.
A figura de Simón Bolívar ‒ líder político e revolucionário que auxiliou na independência de vários países da América Latina no século XIX, entre os quais, a Venezuela ‒ é lembrada por Torrealba (2013) como um dos responsáveis pela defesa da educação física. Ao discorrer sobre o assunto, o pesquisador destaca a preocupação de Bolívar para com a educação física, pensada a partir do esporte, do jogo e da recreação, como uma das necessidades humanas, sendo vinculada à formação dos cidadãos e encarregada do desenvolvimento moral do país. Daí decorre o reconhecimento da educação física naquele período, considerado por Bolívar atividade de grande interesse à formação educativa das crianças, desde o nascimento destas até o alcance de 12 anos completos, bem como um meio para a formação corporal e conhecimento do corpo (Torrealba, 2013)2.
Na Venezuela, há apoios legais, tal como a Ley Orgánica de Educación - LOE (2009), que se propõe a ofertar, aos cidadãos, uma educação qualificada, independentemente das condições ou circunstâncias deles, além de equidade, igualdade e inclusão étnica e cultural. Ademais, na Constituição da República Bolivariana da Venezuela (1999), há destaques para a promessa de uma educação igualitária a partir da educação infantil até o ensino médio diversificado, embora nem sempre o ideal previsto em lei seja necessariamente concretizado no campo da ação prática. Tais perspectivas de uma educação qualificada incluem, logicamente, a educação física como parte da formação do ser humano. Mas o problema está no que se entende por educação física qualificada. Estaria ela perpassada pelas discussões culturais que fomentam a valorização da diversidade de práticas corporais como experiência formativa? Haveria uma educação física potencializada para além de seu viés esportivo, valorizando-se a dinâmica histórica de distintas práticas corporais?
A problematização da educação física na Venezuela, a partir da cultura e da qualidade na educação, passa pela consciência acerca de experiências locais, via educação física, que podem auxiliar no entendimento global da área pelo olhar daqueles que a desenvolvem e a analisam, bem como por percepções dos contextos histórico, político e social que a afetam diretamente. Em síntese, o tema leva a entender como a educação física na Venezuela é pensada em termos de cultura e de qualidade, por meio de documentos oficiais e, notadamente, neste artigo, a partir da leitura e interpretação de professores-pesquisadores desse país que colaboraram com essa pesquisa. Tais apontamentos possibilitam a construção de um panorama inicial que possa dialogar com a realidade brasileira, quiçá em outras fases da investigação, aprimorando a percepção acerca das facetas da educação/educação física.
Das questões metodológicas da pesquisa
Ao se discorrer acerca da relação entre cultura e educação física no contexto venezuelano, não se pretende fazer alusão a avanços ou retrocessos da área nesse país em comparação a outros, mas entender sua própria organização. O reconhecimento dessa discussão, por meio de interlocuções realizadas com pesquisadores da Venezuela, busca compreender as formas de se conceber a educação física e seus dilemas, bem como de enfrentá-los. Assim, conhecer como um contexto diferente do nosso vislumbra o seu objeto de estudo na educação física pode auxiliar no entendimento do nosso próprio objeto investigativo. Nas palavras de Laplantine (1988, p. 21), “De fato, presos a uma única cultura, somos não apenas cegos à dos outros, mas míopes quando se trata da nossa”.
Para além da organização da educação física na Venezuela, está o modo como determinados conhecimentos são tematizados e apropriados como campos específicos do saber. Interessava, em particular, a este estudo, compreender como a cultura era tratada na educação física venezuelana. Assim, partiu-se do entendimento de que cultura não é apenas aquilo que acompanha o ser humano, mas que faz com que ele próprio compreenda a si mesmo como ‘humano’, em sua capacidade de produzir signos e significações. Sendo a cultura um contexto, a comparação entre homens, ou entre culturas, é insustentável, já que os símbolos dos diversos contextos são constituídos de maneiras distintas entre si, no intuito de dar respostas às necessidades de determinado grupo social. Na percepção de Hall (1997, 2009), cada grupo, instituição ou prática humana possuem seus universos de sentidos e significados, ou seja, têm sua própria cultura, sendo nela que as práticas sociais se entrelaçam. A ação dos sujeitos no mundo, que é constituída por meio de um processo histórico, é social, culturalmente determinada e regula o ser humano.
Nessa direção, busca-se, com esta pesquisa, conhecer como a relação entre cultura e educação física pode ser percebida em uma realidade diferente da nossa - no caso, a venezuelana -, acrescido do entendimento da qualidade na educação/educação física, de modo a sanar parte de nossa cegueira e/ou miopia em relação ao outro. Assume-se, com Demo (1994), a ideia de que a qualidade pressupõe considerar o processo histórico e sua perspectiva de humanização da realidade, pensada como intervenção, com valores historicamente criados e eticamente sustentados, possibilitando que o ser humano seja profundo, sensível e criativo, ou seja, ‘intenso’. Ao se vislumbrar essa perspectiva, caminha-se junto ao autor para o entendimento de dois principais desafios a serem superados: o primeiro remete à questão do ser e à sua formação, ou seja, a sua capacidade de firmar-se como sujeito histórico, com capacidade de desenvolver sua autonomia e criatividade, tendo o conhecimento como meio para fazer e inovar a história; o segundo se volta à participação no sentido de nortear a inovação para o bem comum, rumo à democracia, à equidade, à riqueza e à paz.
O entendimento de qualidade na educação/educação física que aqui se assume não se constitui dissociado do entendimento das mudanças ocorridas ao final do século XX e início do século XXI, em governos latino-americanos, para corrigir problemas econômicos, políticos e sociais, advindos das políticas neoliberais (Bianchetti, 2008), tampouco desconsidera o uso instrumental do conceito orientado pelo rendimento e por programas de avaliação da aprendizagem, organizados na forma de testes (Dourado, Oliveira, & Santos, 2007). Em que pese essa constatação, entende-se a qualidade na educação não na perspectiva instrumental, com base em Nardi (2017), Menegat, Seniw e Lindemann (2016) e Demo (1994), mas em um processo de formação humanística que possa ser refinado em suas contradições e que resista à fragmentação do sujeito.
A abordagem de tais problemáticas conta com a colaboração de dois professores/pesquisadores vinculados a universidades públicas na Venezuela, valorizados em suas contribuições discursivas e na leitura que fazem da relação entre cultura e qualidade na educação/educação física venezuelana, algo que vem se somar às questões investigativas, assumidas por este estudo de natureza qualitativa. Um dos colaboradores tem formação em sociologia e licenciatura em educação e atua na Universidad del Zulia, em Maracaibo. A outra pesquisadora tem formação em educação física e atua na Universidad Pedagógica Experimental Libertador, em Maracay. Ambos têm relações com a educação física, seja por ministrarem aulas na graduação ou por publicarem em temáticas relacionadas ao esporte, ao lazer, à recreação, entre outros, sendo tratados, respectivamente, por P1VE (2014) e P2VE (2015), como forma de se preservar o anonimato. São acrescidas a esses dados as informações obtidas por meio de incursões teóricas pela literatura e por documentos oficiais da educação no país.
A seleção desses professores respeitou os seguintes critérios: a) pertencer ao corpo docente em uma universidade pública do respectivo país, sobretudo pelo reconhecimento do papel dessas instituições para com a produção de conhecimento, a formação e a sociedade; b) lecionar em um curso de Educação Física em universidade pública ou correspondente no país; c) ter afinidades teórico-investigativas com problemáticas afetas ao campo sociocultural da educação física3, evidenciadas na forma de publicações científicas. Assim, após atenderem ao convite de participação por meio de comunicação eletrônica, os professores colaboradores procederam aos trâmites do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido e de preenchimento e envio do questionário, cujas complementações puderam ser feitas por comunicação eletrônica e também pessoalmente4.
As questões orientadoras da interlocução com os professores participantes da pesquisa estruturaram-se a partir do seguinte roteiro: a) cultura na produção de conhecimento da educação física; b) cultura e suas formas de expressão (cultura física, cultura corporal, cultura de movimento, entre outros); c) trato da cultura nas aulas de educação física escolar; d) marcos teóricos que tratam da cultura na produção de conhecimento; e) existência de qualidade na educação/educação física venezuelana. Tais reflexões guiam o objetivo deste estudo de entender dimensões da relação entre educação física e cultura na Venezuela, bem como da qualidade da educação/educação física a partir de como os interlocutores as percebem.
Da educação/ educação física venezuelana
Antes de o governo chavista assumir o poder, em 1999, observam Zuck, Nogueira e Alves (2014a), vigorou na Venezuela a política neoliberal, que trouxe consequências à educação do país, a exemplo da redução dos recursos financeiros para suprir necessidades básicas de escolares. Em consequência, afirmam os autores, a população da Venezuela, principalmente as mais negligenciadas, como os índios, os moradores rurais e aqueles que moravam perto da fronteira do país, sofriam com a falta de escolarização. Após 1999, o presidente Chávez, na tentativa de restaurar o poder público da educação, criou, em seu país, no ano de 2003, o Sistema Educativo Bolivariano (SEB) que ficou em teste por três anos seguintes. Tal sistema prevê, aos cidadãos, equidade e igualdade no direito de educação, atendendo à população estudantil nos níveis de educação infantil, primeira e segunda etapas da educação primária, bem como no centro de formação de adultos.
Segundo o Sistema Educativo Bolivariano (Currículo Nacional Bolivariano: diseño Curricular del Sistema Educativo Bolivariano, 2007a), os referenciais teóricos, utilizados na fundamentação daquele pautam-se nos seguintes representantes: Simón Rodríguez (1769-1854), Simón Bolívar (1783-1830), Ezequiel Zamora (1817-1860), Luis Beltrán Prieto Figueroa (1912-1993) e Belén Sanjuán Colina (1916-2004). No referido documento, consta que Simóm Bolívar (1783-1830), além de fundamentar o referencial teórico do país, também respalda o referencial filosófico que rege o SEB acerca de uma educação de qualidade, um novo modelo de sociedade e uma república democrática, participativa, protagônica, multiétnica e pluricultural.
De acordo com Sulbarán e Aníbal (2010), a educação física aparece, na estrutura curricular da educação básica (do primeiro ao terceiro graus) associada ao esporte e à recreação, como meios para desenvolver a saúde, as habilidades básicas e a destreza do pensamento, tal como figura no quarto e sexto graus, relacionada ao esporte e à recreação para aprimorar a percepção, o físico e a destreza do pensamento, a fim de desenvolver a personalidade individual. Acrescenta-se o destaque dado pela educação física à recreação, à atividade física e ao esporte, os quais aparecem interligados nos objetivos de cada etapa escolar dos currículos da Venezuela, uma vez que a relação e a diferenciação dos três conteúdos devem ser parte considerável na investigação acerca do entendimento da realidade da educação física bolivariana. O Ministério de Educación y Deportes (Educación Inicial: Bases Curriculares, 2005) entende que a responsabilidade educacional, no início da formação de jovens, é dividida em todas as esferas sociais de convívio da criança, ou seja, a função de ‘formar’ um indivíduo vai da família até a comunidade local.
Para a educação média diversificada, os objetivos pedagógicos de formação aparecem amadurecidos em relação aos níveis de ensino anteriores, pois, em concordância com o Subsistema de Educación Secundaria Bolivariana: currículo y orientaciones metodológicas (2007b), essa etapa de aprendizagem visa, principalmente, formar adolescentes e jovens com identidade venezuelana e pensamento crítico, articular adolescentes e jovens com o sistema de produção de bens e serviços, garantir a permanência do jovem no sistema educativo como um direito humano e impulsionar a participação de jovens e adolescentes para contribuírem na resolução de problemas sociais. Em relação à educação física, Sulbarán e Aníbal (2010) afirmam que existem quatro componentes de aprendizagem que se desenvolvem: a atividade física como componente sistemático, a fim de otimizar a saúde integral do ser humano; a recreação, como meio de educação formal e não formal; o esporte, com o propósito de desenvolver habilidades e destrezas; e, por fim, a atividade física, para conscientizar acerca da melhor qualidade de vida.
Para Torrealba, Torrealba e Guzman (2009), a educação constitui-se em elo entre uma geração e outra, propiciando, à geração mais nova, a compreensão histórica do momento atual. Em um processo cíclico, as concepções anteriormente legadas devem se adaptar e responder às exigências e condições novas, as quais mudam constantemente. Dentro desse processo, a educação física, que possui instrumentos de formação, como os jogos, a recreação e o esporte, complementa a ideia de que a educação deve contribuir para acabar com os antigos vestígios de alienação que ainda perduram no tempo presente, que seria o não reconhecimento das necessidades sociais, tanto no âmbito coletivo quanto individual, como afirmam os autores.
Ao trazerem a educação física vista sob a perspectiva da pedagogia5, entendendo-a como transmissora de cultura e propulsora de mudanças culturais, os autores advogam uma atividade físico-corporal e esportiva que forme o ser para ocupar o tempo livre deste de forma sã e para haver o bem-estar psicofísico da população em geral. O fundamento da educação física seria a pedagogia, no entanto a especificidade da área é dada pelo domínio e pelo desenvolvimento das ações motrizes do indivíduo, as quais precisam se ensinadas com caráter educativo e formativo que visa, segundo Torrealba et al. (2009), canalizar, construir e desenvolver habilidades, valores, técnicas e conhecimentos no conjunto de indivíduos.
Com base nesses dados, observam-se perspectivas de uma educação física orientada pelos jogos, esporte, atividade física e recreação, por meio do refinamento das experiências motoras dos alunos, de suas habilidades e do reconhecimento de necessidades que levam à melhoria de suas condições de vida, mas não demarcadas por problemáticas afetas à cultura. Como observam Bermúdez e Sánchez (2009), ao estudarem as políticas culturais na Venezuela, esse tema é pouco explorado, desde espaços acadêmicos universitários até as próprias instituições culturais, cujo envolvimento em pesquisas culturais é praticamente nulo. Tal fato aponta para lacunas na abordagem da cultura, as quais parecem atingir também a educação física. Mas como os professores convidados para essa pesquisa exploram o tema? Seria possível falar em mudanças no campo da educação física que levem à qualidade no processo de formação humana? As reflexões, potencializadas pelos interlocutores, contribuem para percepções acerca dessa realidade.
A relação entre cultura e educação física a partir de interlocutores venezuelanos
A primeira questão posta aos pesquisadores, a partir do instrumento de coleta, procurou saber se o tema da cultura integra a produção de conhecimento em educação física no país. Ao respondê-la, P1VE (2014, tradução nossa6) assim expressa: “Na realidade não. A cultura aparece na produção de conhecimento da EF como um agregado, um traço, um elemento muito secundário. Aparece mais em termos operativos e de acessório”. Em sua fala, o professor afirma que o tema da cultura é pouco explorado na produção de conhecimento da educação física, sendo importante em relação a outros temas que compõem a área, acompanhando, de maneira complementar e de forma singela, outras temáticas.
Ao se questionar P2VE (2015) acerca da tematização da cultura na produção de conhecimento em educação física, a pesquisadora explica que, nas universidades, o tema cultura é desenvolvido apenas pelos cursos de folclore, ritmo e movimento. Ela acrescenta, ainda, que um dos motivos pelos quais os conteúdos de cultura não são temas recorrentes em outros cursos da universidade, a exemplo do curso de Educação Física, que trabalha diretamente com o ser humano, é a forte produção de conhecimento direcionada ao esporte, nos últimos 30 anos.
Em nível universitário, nos Departamentos ou Programas de Educação Física, onde se forma o professor, não se trabalha muito com a palavra cultura ou com o conceito. Somente o enfatizam os que trabalham com cursos de folclore, ritmo e movimento. Nossa cultura da educação física é um aspecto que está sendo redimensionado nesses momentos, pois a visão, nos últimos trinta anos, foi somente voltada à prática do esporte. Disso não se escreve muito, mas há muitas teses ou trabalhos de graduação (P2VE, 2015, tradução nossa7).
A segunda questão, posta aos pesquisadores, refere-se aos termos cultura corporal, cultura física e cultura de movimento8, buscando compreender se esses conceitos integram as produções de conhecimento em educação física na Venezuela ou se eles aparecem delineando a construção histórica do seu objeto de estudo. Em relação a esse assunto, P1VE (2014) afirma existir um ou outro trabalho, haja vista que a produção de conhecimento é orientada por outros temas, sobretudo aqueles relacionados à aprendizagem, às destrezas, às habilidades, ao esporte, entre outros, o que é corroborado por Sulbarán e Aníbal (2010), de modo que temas como cultura física, cultura de movimento e cultura corporal parecem não compor necessariamente objetivo investigativo na área. Em complemento, P2VE (2015, tradução nossa9) afirma que esses conceitos não têm sido utilizados: “Agora é que está ocorrendo uma discussão em torno do tema, mas em nível da educação secundária [...]. Mas, nas universidades não. Definitivamente não. Em países como Cuba, sim, utiliza-se o conceito cultura física, mas na Venezuela não”.
Ao se analisar as informações fornecidas pelos pesquisadores convidados, percebem-se algumas aproximações, a exemplo das informações concedidas acerca do papel ocupado pela cultura na produção de conhecimento em educação física. Ambos concordam que, pela ênfase dada ao esporte, às habilidades motoras, à recreação e às destrezas, o tema da cultura acaba não sendo desenvolvido a contento no contexto da educação física venezuelana. A discussão da cultura na educação física (seja de forma direta ou indireta) abre portas para se pensar a área de forma menos fragmentária, valorizada em seus processos relacionais, como alguns pesquisadores vêm materializando em suas produções teóricas em diferentes países (Gallo, 2016; Daolio, 2004; Cachorro, 2003), questionando processos de ‘naturalização do sujeito’ por meio de reflexões acerca do corpo e das práticas corporais. Como bem observa Hall (1997), tão importante quanto a cultura é o próprio ser que a regula, haja vista que a pluralidade da cultura constrói-se em seu modo multifacetário, conforme as interpretações dos sujeitos que nela se inserem, de acordo com as relações históricas de cada contexto.
Em relação ao desenvolvimento do tema cultura na educação física escolar, P1VE (2014) reforça essa ausência. O pesquisador entende que o tema da cultura “[...] reduz-se à participação do professor de EF com alguns alunos em determinadas atividades (ginástica de apresentação, exibições etc.) enquadradas nos denominados atos culturais gerais da escola” (P1VE, 2014, tradução nossa10). Por sua vez, P2VE (2015) explica que a educação física é obrigatória e que o professor de educação física, na escola, ocupa-se de outras atividades. Nelas, talvez, como aqui se entende, a cultura poderia estar, de alguma forma, presente. Isso pode ser pensado ainda em relação às leis que regem a educação na Venezuela, que preveem, no Art. 4º, da Ley Orgánica de Educación (2009), a transmissão e a reprodução dos valores culturais dentro da escola, de modo que o aluno seja capaz de modificar a realidade a partir do conhecimento adquirido.
A cultura é entendida, pela referida pesquisadora, a partir de raízes históricas e hábitos populacionais, ou seja, a partir da tradição, associando-a a comportamento, gastronomia, músicas, danças e folclore. Em acréscimo, explica que o termo cultura é utilizado na educação secundária e remete aos costumes da população e ao seu comportamento:
Na transformação curricular que está ocorrendo na educação secundária (liceu), o termo cultura é utilizado para que se compreenda tudo o que fazemos - nossas raízes e costumes. Implica a forma com que nos movemos, as danças, as comidas (P2VE, 2015, tradução nossa11).
De acordo com a resposta advinda dos questionários, durante as aulas de educação física escolar, o tema cultura é trabalhado apenas em apresentações culturais da escola, dias comemorativos ou desenvolvida, de forma independente, pelo aluno. Disso decorre o entendimento de cultura voltado à produção, destituído de percepções acerca das relações construídas entre os próprios sujeitos em suas interações sociais. Daí que as aulas de educação física não se ocupariam do tema cultura, pois o professor estaria focado no trato de outros conhecimentos e atividades, sobretudo os esportivos, recreacionais e de atividade física.
A fim de trazer dados acerca de teorias que pensam a educação física a partir da discussão cultural na Venezuela, pergunta-se aos pesquisadores entrevistados acerca dos marcos teóricos que têm influenciado a área.
É um marco teórico que concebe a EF como parte essencial da cultura do país, sem aprofundar a respeito. Na Venezuela chama a atenção que, desde o Estado, formula-se a política pública em EF, que praticamente não tem questionamento substancial nas universidades. Isso significa que a visão estatal sobre a EF é a visão dominante, inclusive nas universidades (P1VE, 2014, tradução nossa12).
Em complemento, o pesquisador entrevistado reitera a questão:
[...] a EF sempre aparece associada a outros termos (esporte, atividade física e recreação) em todas as definições. Não é explicada em si mesma; não existe uma definição própria, específica, autônoma e independente para a EF. Ela se une a outros conceitos (sobretudo ao esporte) e sua definição os envolve e os contém. Não há conceitos precisos, nem independentes sobre EF; os existentes estão cobertos de conteúdo esportivo e servem para completar e complementar o conceito base: o esporte. Dilui-se qualquer intenção de definição precisa sobre a EF e, em definitivo, não se realiza nenhuma conceituação de certa profundidade (P1VE, 2014, tradução nossa13).
Com base na resposta do professor, é possível atentar-se para o enfoque dado à associação do esporte, da atividade física e da recreação com a área da educação física, algo visualizado também em documentos oficiais da educação na Venezuela, como a Ley Orgánica de Deporte, Actividad Física y Educación Física (2011) e a Ley Orgánica de Educación (2009). De acordo com P2VE (2015, tradução nossa14), a educação física na Venezuela tem se voltado a “[...] referenciais teóricos da psicomotricidade e sociomotricidade, mas não a partir do termo cultura”. Dessa forma, a educação física, na Venezuela, sob a ótica dos docentes colaboradores da pesquisa, não tem assumido o conceito de cultura como central na estruturação identitária da área, sendo comum sua associação com eventos típicos, tradicionais e históricos do país.
Embora se entenda que as leituras realizadas pelos pesquisadores acerca da cultura na educação física não constituem a totalidade do campo (algo que seria impossível coletar), também se avalia que tais respostas têm seu peso epistemológico para a compreensão de dimensões da cultura na educação física venezuelana a partir de professores que vivem a realidade local.
Da qualidade na educação/educação física venezuelana sob a ótica de pesquisadores
O processo de escolarização influencia a formação dos seres humanos e possui posição geralmente regulamentada por leis e decretos em diversos países, os quais asseguram e delimitam a existência da escola na sociedade. Contudo, não basta assegurar esse processo de escolarização, mas qualificar a formação humana, ocorrida a partir dele, haja vista que uma das formas de se ter percepção geral do que é educação no respectivo país estudado é buscar compreender o entendimento que os pesquisados possuem em torno do que seria qualidade na educação/educação física. A escola deve “[...] perguntar-se que tipo de influência ela está exercendo sobre seus alunos, ou pelo menos, dito de forma mais branda, qual a postura ética que o processo escolar está, expressa ou veladamente, sugerindo aos seus alunos” (Goergen, 2010, p. 172). Assim, a estruturação do conhecimento sistematizado, de que as pessoas se apropriam ao longo da escolarização, expressa saberes que determinado povo zela para si para produzir e reproduzir sua cultura.
A Ley Orgánica de Educación (2009) busca aperfeiçoar o sistema educativo e apoiar o seu desenvolvimento, revelando aspectos a serem melhorados pelo governo em conjunto com a sociedade. Tal lei prevê, aos cidadãos venezuelanos, qualidade na educação, independentemente de suas condições ou circunstâncias, além de equidade, igualdade e inclusão étnica e cultural. Da mesma maneira, a República Bolivariana, no Art. 3º de sua Constituição, assegura o acesso à educação para toda a população, desde o maternal até o nível médio diversificado e, posteriormente, o ensino universitário. Igualmente, prevê o acesso gratuito dos cidadãos às instituições de ensino, pois consta, no Art. 2º da Constituição da República Bolivariana da Venezuela (1999), que a educação é um direito humano e um dever social fundamental. Como argumentam Zuck e Nogueira (2012), a Constituição venezuelana de 1999 trouxe uma nova acepção de Estado com
[...] desdobramentos políticos, econômicos, culturais e educacionais, na medida em que seria preciso dar respostas efetivas, como a problemática educativa de exclusão da população pobre e marginalizada, que se arrastava historicamente e se aprofunda na década de 1990 com as políticas neoliberais (Zuck, & Nogueira, 2012, p. 40).
A construção da qualidade na educação, para alguns estudiosos venezuelanos, a exemplo de Esclarín (2007), depende da transformação social, alcançada por meio dos indivíduos que desempenham os papéis de cidadãos e cidadãs de qualidade. Para o referido autor, “[…] a educação é de qualidade se forma pessoas e cidadãos de qualidade [...] homens e mulheres novos responsáveis por sua própria transformação pessoal e de sua comunidade, aprofundando a consciência de sua dignidade humana [...]” (Esclarín, 2007, p. 205, tradução nossa15). Entende, ainda, que a educação é de qualidade se “[...] contribui para o desenvolvimento de sujeitos livres, ativos e conscientes, com capacidades (saberes, conhecimentos, habilidades, atitudes e valores) para incidir na melhora de sua qualidade de vida e na transformação de seu entorno social” (Esclarín, 2007, p. 205, tradução nossa16).
Ao se assumir a motivação para conhecer algumas leituras da relação entre cultura e qualidade na educação/educação física venezuelana, preocupou-se em partir de um entendimento de qualidade, sem, no entanto, fechar-se para novas percepções que poderiam advir da realidade pesquisada. Daí lembrar o conceito qualidade a partir da contribuição de Demo (1994, p. 11), o qual “[…] tem a ver com profundidade, perfeição, principalmente com participação e criação”. O autor enfatiza que a noção de qualidade é algo exclusivo do ser humano por este ter consciência, cultura e produzir arte. “Assim, somente o que é histórico pode ser qualitativo, no sentido dialético do saber-fazer história, dentro da unidade dos contrários; ser sujeito histórico, não massa de manobra, objeto de influência externa, sequela natural” (Demo, 1994, p. 12).
O conjunto de indagações alusivas ao tema da cultura na educação física venezuelana foi exposto aos professores colaboradores desta pesquisa no intuito do alcance de abertura a um diálogo inicial acerca da temática propriamente dita. Dessa maneira, as questões a eles postas permitiram tangenciar o que poderia ser entendido como qualidade na educação/educação física no país investigado. O encaminhamento das perguntas deu-se no sentido de levar os pesquisadores a exporem livremente suas ideias a partir do contexto em que se inserem.
Em relação ao entendimento dos pesquisadores acerca da qualidade da educação na Venezuela, P1VE (2014) afirma que a escola deve se voltar para a criação de condições que façam com que os sujeitos exerçam sua posição social, como é possível verificar no excerto a seguir:
[...] o principal de uma ação educativa organizada é a criação de todas as condições para a intensificação da atividade social dos distintos participantes em um ambiente que expresse - nas melhores condições de liberdade - os saberes, destrezas, habilidades, conhecimentos, necessidades, expectativas, história e ecologia da comunidade onde existem a escola, o liceu ou a universidade (P1VE, 2014, tradução nossa17).
Para P2VE (2015), a qualidade na educação engloba a relação entre professor e aluno, tendo o conhecimento como mediador desse processo. Ela compreende “[...] a possibilidade de que todo menino e menina tenham acesso à escola e que tenham um professor que possa compartilhar com eles os espaços de conhecimento. Que esse professor tenha uma formação - profissional de sua área de conhecimento” (P2VE, 2015, tradução nossa18).
A perspectiva percebida em P1VE (2014) é de que a formação do sujeito na escola deve voltar-se para a atuação social, de forma a expressar propriedades intelectivas ou corpóreas. Já em P2VE (2015), a qualidade na educação é pensada por meio de uma escola que chegue a todas as crianças, tendo professores com devida qualificação em suas respectivas áreas de magistratura para melhor os ensinar. Assim, P1VE (2014) zela pelo caráter participativo da escola como locus da promoção do conhecimento no ser, e P2VE (2015), pela participação efetiva e condição técnica para que esse processo ocorra. Assim, em ambos os casos, a ideia que os pesquisados têm em torno do que é qualidade na educação permite a aproximação com as reflexões postas por Demo (1994), quando este afirma que a sociedade tem como matriz primordial de desenvolvimento a educação e o conhecimento. Para o autor, a educação forma a qualidade política, o humanismo, a cidadania e a cultura comum; o conhecimento leva à capacidade técnica para melhor realizar os fins da ética do sujeito histórico em favor da humanidade.
Ao se questionar os docentes acerca do que pensam em termos de uma educação física de qualidade, P1VE (2014) cita a estrutura governamental que assegura a educação e afirma que a educação física faz aquilo que se dispõe a fazer, ou seja, formar ‘atletas’. Trata-se de uma crítica feita pelo pesquisador aos parâmetros orientadores da educação física em seu país, a partir de intervenções do Estado e do ideal esportivo deste. Como esse entrevistado informa, “A EF tem contribuído para converter os estudantes em expectadores do esporte porque, quando as escolas participam dos jogos escolares, os professores têm que se dedicar a preparar as equipes, treinar e participar nas competências” (P1VE, 2014, tradução nossa19). Com isso, a maioria dos alunos que não integra a preparação para os jogos fica sem aulas de educação física. Como observam Zuck e Nogueira (2012, p. 37), a educação escolar, em vários momentos históricos e em muitos países (não somente na Venezuela), constitui-se como “[...] expressão do poder do Estado - com as finalidades do Estado, tal como a legitimação do regime”. Isso se dá porque “[...] o Estado não é neutro e sim uma relação social, de natureza contraditória, uma relação que expressa a disputa e o poder entre as classes (e frações de classe)” (Zuck, & Nogueira, 2012, p. 37).
Ao falar de uma educação física almejada, P1VE (2014, tradução nossa20) a visualiza em sua contribuição para a “[...] estruturação de uma entidade corporal realmente livre, integral, consciente de ser uma totalidade corpo-razão indissolúvel e indivisível, que seja um fim em si mesmo [...]”, o que levaria a potencializar o “[...] crescimento pessoal e a realização do ser humano em sua dimensão social” (P1VE, 2014, tradução nossa21). Em acréscimo, o pesquisador adverte que esse é um processo que se dá com a valorização do movimento corporal historicamente construído por seu povo, assumido por ele como algo importante que faz com que as pessoas se sintam orgulhosas. Pensando por esses caminhos, afirma o pesquisador, não há qualidade na educação porque “[...] não se está contribuindo para formar integralmente o cidadão e a cidadã” (P1VE, 2014, tradução nossa22).
Em P2VE (2015), notam-se reflexões semelhantes às encontradas em P1VE (2014). Para a pesquisadora, não é possível falar em qualidade na educação, dado ser necessária a revisão da formação do docente e da própria educação física, haja vista que os currículos, nas universidades, não enfatizam a educação física, mas o esporte. Tal dado remete a uma forma de desenvolvimento esportiva limitada, com enfoque no rendimento e na competição.
Os pesquisados apontam que o fato de a educação física ser pensada de maneira a complementar as carências dos esportes institucionais faz com que ela não atinja patamares de qualidades almejados. P1VE (2014) leva à percepção de que a educação física não alcança um fim maior - universal -, que é formar para a cidadania, mas para o consumo do esporte como mercadoria. Nesse sentido, pode-se concluir que, para P1VE (2014), ao invés de se valorizar o consumo do esporte, deve-se potencializar a conscientização do movimento corporal historicamente criado para gerar sentimento de identificação do sujeito com as manifestações do seu coletivo. P2VE (2015) justifica o problema da qualidade na educação física como um equívoco em sua estruturação no nível superior, o que remete à hipótese de que a problemática possa ser dissolvida no âmbito epistemológico da área, isto é, com base na produção do conhecimento da própria área, no país, de modo a levar a educação física a outros campos perceptivos.
P2VE (2015) acrescenta que a educação está em discussão, promovida pelo Ministério da Educação, mas que a educação física está praticamente ausente desse debate. Segundo ela, intentou-se, em 2007, modificar o currículo nacional, mas, por pressões políticas, essa ação não pôde ser concretizada, algo que ela espera que possa acontecer. Ela ainda afirma que algumas mudanças estão por vir, o que aumentará a carga horária da disciplina educação física nos próximos anos, mas não deixa claro se entende que esse processo levará esta a ganhar qualidade. Em complemento, dada a existência da Ley Orgánica de Deporte, Actividad Física y Educación Física (2011), torna-se difícil prever os rumos que serão tomados pela área e se a lei favorecerá uma educação física com mais qualidade. P1VE (2014), por sua vez, afirma que a principal limitação está na interiorização e na naturalização de uma visão de educação física que se faz dominante entre os investigadores. Contudo, vê como potencial o surgimento, embora ainda lento, de visões ampliadas da educação física, as quais começam a ressoar no campo e podem contribuir para qualificar a área.
P2VE (2015) entende que a produção de conhecimento tem como fator limitante a falta de costume de pesquisadores em debruçar-se nas pesquisas. Segundo ela, “[...] o potencial é variado, mas o problema é que há pouca cultura de produção”, ou seja, falta a prática sistemática da investigação e da disseminação do conhecimento produzido. Destaca que essa situação está mudando ante a possibilidade de apoio para publicações, o que gera a expectativa de ocorrerem reformulações na área, nos próximos anos. Assim, embora haja ‘movimento’ no que se refere a pensar em qualidade na educação/educação física venezuelana, orientada a partir de documentos legais, aportes teóricos, políticas educacionais estatais, entre outros, tal movimento ainda é bastante incipiente ante as necessidades de qualificação do processo educacional e da formação numa perspectiva humanística.
Considerações finais
As questões atinentes à cultura em sua relação com a educação física venezuelana, que se apresentaram neste texto, revelam a necessidade de um debate epistemológico que possa contribuir para se repensar a própria organização dessa área de conhecimento, no sentido de sua qualificação. Tal observação decorre da constatação, a partir dos dados da pesquisa, de que a educação física, no contexto venezuelano, tem se preocupado mais com a função prática e instrumental, exercida naquela realidade, do que com seu desenvolvimento teórico e prático, voltado para a formação humanística do sujeito consciente de si e das suas possibilidades de vivência de diferentes práticas corporais historicamente construídas, com capacidade analítica e interventora na realidade social, ou seja, a educação física venezuelana parece não ser focalizada em seu campo epistemológico, mas estruturada, notadamente, a partir da experiência prática.
Ao se contar com a colaboração de professores/pesquisadores venezuelanos e nesta pesquisa, acrescida do diálogo com a literatura, percebe-se que o trato da cultura, no campo da educação física, é feito de forma secundária ou de maneira não prioritária. Uma das causas salientadas nessa pesquisa está na forte diligência dada ao esporte e à recreação, os quais se configuram como temas hegemônicos no trato dos conteúdos da educação física do país, e, também, em virtude de carências, em termos de questionamentos às intervenções estatais na área. Assim, e de acordo com os pesquisadores participantes da pesquisa, o governo exerce forte influência na promoção do esporte de rendimento por intermédio da educação física escolar, uma vez que, nas aulas de educação física, conteúdos relacionados ao rendimento físico, à recreação e ao esporte ocupam posição de destaque pela proximidade da área com o Estado. A cultura aparece de forma secundária na abordagem da educação física, representada em manifestações populares, apresentações em datas festivas ou eventos especiais, como informado pelos interlocutores, o que destitui desse tema a possibilidade de ser pensado no cotidiano da formação do sujeito e no reconhecimento de suas peculiaridades, comportamentos e interesses. Não são comuns associações da educação física a termos como cultura física, cultura corporal e cultura de movimento, sobretudo pelo marco teórico existente revestir-se de conteúdo esportivo, com influências da psicomotricidade e sociomotricidade. Isso se dá em função de um dos problemas enfrentados pela educação física, estar em seu olhar naturalizado, arraigado ao passado e a uma perspectiva esportiva e subordinada a instituições e entidades, o que afeta diretamente a sua qualidade, em termos formativos.
Tendo-se em vista que essa pesquisa constitui-se como parte de um projeto maior que tem como objetivo investigar a realidade da educação física na América Latina, entende-se que o recorte proposto por esse texto é apenas uma etapa, embora importante, e que ela não se esgota neste momento, pois tende a ser ampliada com outras publicações colaborativas, a partir das vozes dos próprios pesquisadores participantes do estudo23. As informações apresentadas pelos pesquisadores demarcam um campo educacional que não se atenta à cultura para além de seu aspecto material, focado nas produções artísticas de determinado povo, incluindo o campo da educação física.
A baixa produção científica na área, de acordo com os pesquisadores, acaba por corroborar o pouco conhecimento a respeito desse campo e de sua configuração na Venezuela. Isso incide na preocupação com o desenvolvimento de pesquisas que visem explorar novas possibilidades investigativas em relação à educação física naquele país, com o intuito de traçar reflexões apropriadas que possam contribuir para qualificar a área. Por ora, busca-se, com este artigo, trazer dimensões acerca da relação entre educação física e cultura na Venezuela, a partir de um olhar local, em diálogo com documentos oficiais e artigos científicos, compreendendo-se, ainda, seu processo de qualificação formativa. Assim, entende-se que tais análises necessitam ser cautelosas, já que qualquer abordagem, em termos de características, similaridades ou distanciamentos no trato com a cultura na educação física venezuelana, assim como a qualidade na educação/educação física, deve estar pautada em construções históricas e em ações de respeito às singularidades e especificidades dessa realidade.