Introdução
Os mitos apresentam narrativas que concentram significados das mais distintas ordens socioculturais com sentidos bastante flexíveis, desse modo, sua apropriação pode fornecer embasamento para posições sociais, por vezes, contraditórias1.
Propomos estudá-los, em sua manifestação coletiva e histórica, a partir das formações discursivas disponíveis nos mais diferentes suportes. Interessa-nos tratar os mitos como elementos fundamentais para a História da Educação Greco-romana, já que transmitem valores sociais e culturais, explicam fenômenos e ritos, legitimam normas e estabelecem fronteiras para a vida prática e sustentam concepções políticas diversas.
Ultimamente, o termo mito2 vem sendo utilizado para se referir a determinados atores políticos controversos3, novidade semântica que nos estimula a analisar o conceito e a refletir sobre a plasticidade dele4. Lembramos que os mitos não narram apenas eventos gloriosos, por vezes, representam também o que há de mais grotesco e repugnante nas culturas.
Para nós, mito é a narrativa compartilhada socialmente (Ginzburg, 2001), transmitida de geração a geração por meio da memória cultural (Assmann, 2010). Suas referências impregnam a sociedade e os valores, suas indicações permitem construir elos e propagar informações, valores e sentimentos. Concordamos com Walter Burkert ao afirmar que o:
Mito é narrativa aplicada, narrativa como verbalização dos dados complexos, supra individuais, colectivamente importantes. [...] O mito neste sentido nunca existe ‘puro’ em si, mas tem por alvo a realidade; o mito é simultaneamente uma metáfora em nível da narração. A seriedade e dignidade do mito procedem dessa ‘aplicação’: um complexo de narrativas tradicionais proporciona o meio primário de concatenar experiências e projecto da realidade de o exprimir em palavras, de o comunicar e dominar, de ligar o presente ao passado e simultaneamente de canalizar as expectativas do futuro (Burkert, 1991, p. 18).
Esse diálogo entre o presente, passado e futuro das narrativas míticas é o fator que estabelece os elementos para nossa exposição, uma vez que cada época, cada lugar ou mesmo grupo sociopolítico irá se apropriar do mito a fim de legitimar determinada postura, apropriar-se dele para identificar uma origem ou construir um projeto comum, podemos observar como a análise das recorrências dos mitos é intrigante.
Textualizar mitos não é uma tarefa simples. Tal trabalho depende de elementos meta-narrativos que organizam a seleção e a transmissão dos enunciados. Trata-se do processo de releitura dos mitos, já que, como bem nos explica Luís Costa Lima, a narrativa não é anterior ao ato da escrita, mas concomitante a ela (Lima, 1989, 2006). O ato de escrita não é ingênuo. Escreve-se para se inscrever no mundo, narra-se também com o intuito de marcar-se na vida e para transpor a barreira entre a mortalidade da vida, para adentrar a utopia (vista como real possível) da imortalidade. Por exemplo, os aspectos políticos que são apropriados por agentes políticos para legitimar determinadas posturas hegemônicas. Filóstrato de Lemnos fornece um exemplo interessante de como o mito pode ser o veículo, ou melhor, a estratégia para posicionar-se diante do poder. Filóstrato cita um grafite da cidade de Roma que apresentaria a seguinte frase Nero, Orestes, Alcméon, matricidas5 (Filóstrato, Vida dos sofistas, I, 481).
Essa frase, presente também em Suetônio e Dion Cássio6, coloca com precisão a ambiguidade presente nos enunciados míticos. Tal grafite pode expressar valores que revelariam o apoio ao Imperador Nero, uma vez que, tanto Orestes como Alcméon, assassinam suas progenitoras em contextos tradicionalmente justificados. Ou ainda, poderíamos acusar o princeps de cometer um crime de sangue. São essas sutilezas que motivam nossa análise. Desse modo, evocarei como estratégia analítica a descrição densa proposta por Clinfford Geertz (1978). Nesse sentido, acreditamos que cada apropriação dos mitos carrega uma estratificação de significados que pode ser compreendida de forma distinta na interação social, já que a partilha dos sentidos é apropriada e reproduzida de maneira específica a partir da ação de cada agente social que se insere nessa teia. Como afirma Geertz, ao se referir ao trabalho do etnólogo, o qual ampliamos para todo o pesquisador da cultura que encontra “[...] uma multiplicidade de estruturas conceptuais complexas, muitas delas sobrepostas ou amarradas uma as outras, que são simultaneamente estranhas, irregulares e inexplícitas, e que ele tem que, de alguma forma, primeiro aprender e depois apresentar” (Geertz, 1978, p. 20).
Para entender o contexto de produção desses discursos, partimos de algumas premissas. Inicialmente, tomamos os mitos como narrativas construídas socialmente, que expressam significados referentes a um suposto passado comum. A expressão cultural vincula essa narrativa a um pretérito, ela é sentida socialmente como parte de um passado. Nessa acepção específica, os discursos míticos são também relatos de memória, já que são aceitos como expressão de outra temporalidade (Era uma vez...) (Eliade, 1981).
Ao ser escrito, o mito fixa uma das interpretações possíveis que paulatinamente, - é levada ao status de cânone. Tais textos permitiram a ação de uma prolífica crítica do discurso mitológico, especialmente, aquele exposto por meio dos poemas tradicionais. Uma das formas desse processo se materializar foi a utilização da alegoria que pretendia ver um valor moral subscrito na narrativa. Essa atitude é impulsionada especialmente pelos filósofos estoicos7.
A narrativa mítica é um elemento muito importante na educação antiga, o que fora notado por Werner Wilhelm Jaeger, em seu clássico Paideia: a formação do homem grego, publicado originalmente em 1936, enfatiza o valor normativo do mito , sendo importante na educação por meio da comparação (Jaeger, 2010). Entretanto, observamos que a ampla divulgação dos mitos e a possibilidade de reconhecimento imediato da narrativa contada é o elemento didático que permite os usos diferentes, de acordo com a necessidade da mensagem que se deseja transmitir. Por isso, os mitos são potentes transmissores de valores, imagens e sentidos, sejam por meio de narrativas reelaboradas ou por alusões independentes que buscam a benevolência do ouvinte.
No horizonte de uma História da Educação, temos de observar que a interpretação que os textos estoicos testemunham sobre o uso da alegoria são muito fragmentários. Richard Goulet, enfatiza três aspectos importantes sobre o estoicismo e o método alegórico: 1) há evidências bem atestadas da análise dos textos de Hesíodo, por esse meio; 2) em um contexto mais amplo, os estoicos usaram a etimologia dos nomes dos deuses; 3). Em termos gerais, a intenção desses escritores não era encontrar a grandeza de Homero, mas sim a de recuperar seu testemunho para confirmar as doutrinas estoicas, especialmente, físicas e, talvez, éticas (Goulet, 2005). Esses elementos são muito importantes para a compreensão da prática educativa dos filósofos estoicos, tendo em vista que a formação, tanto ética quanto moral do cidadão, passava por compreender profundamente aspectos da física desenvolvidos por essa escola filosófica.
Ken Dowden e Niall Livingstone destacam a importância dos mitos na consolidação das identidades e seu papel como uma memória coletiva ou cultural, os autores afirmam que:
[...] a mitologia grega define o que deve ser grego e gregos, por acordo comum com lembre-se que esses mitos forjam uma ferramenta poderosa de identidade social que tem sido explorado por Halbwachs (‘Memória Coletiva’) e, mais recentemente, por Jan Assmann (‘Memória Cultural’). Os mitos não são, no entanto, lembrados isoladamente: são interativos entre si e em inúmeras ocasiões com cada aspecto da vida e pensamento grego. Eles são um ponto de referência contínuo, ou sistema de referências, e constituem o que desde o final dos anos 1980 foi reconhecido na literatura sob o termo ‘intertexto’. Qualquer coisa que pode ser pensada, pode ser pensada melhor com o mito, ou contra seu pano de fundo, ou contra ele completamente (Dowden & Livingstone, 2014, p. 4).
Seguindo por essa trilha, os mitos fornecem suportes para a manutenção de identidades, assim como são a expressão de expectativas para o futuro. Podemos observar, em suas distintas releituras, apropriações de um passado compartilhado e a representação de uma imagem de futuro, desejada naquele momento histórico. Nesse artigo, analisaremos como Lucius Annaeus Cornutus, um estoico, apropriou-se das tradições míticas gregas, adaptando-as a seu modo ao estoicismo romano.
Acreditamos que os círculos literários romanos estavam familiarizados com esse debate, visto que Cícero, o apresenta no Livro II de seu diálogo filosófico De Natura Deorum (Sobre a natureza dos deuses), por meio do filósofo estoico Balbo. Entretanto, cabe-nos ressaltar que, além das diferenças do final do período republicano e do Império Romano, especialmente, do governo de Nero, Cícero era um cidadão engajado com a vida religiosa e cívica da cidade, e não queria parecer um filósofo profissional, o que iria contra a dignitas8 romana, ponto diferenciador importante para compreender o Epítome de Cornuto, documento que pretendo analisar nessa apresentação.
Cornuto e a educação de um jovem romano: Hermes e o logos
Lucio Aneo Cornuto teria nascido em Lepsi Magna na Líbia, ao Norte da África, entretanto, passou a maior parte da vida na cidade de Roma, durante o Governo de Claúdio, no século I d.C., Dion Cássio fornece informações sobre a proximidade de Cornuto com o Imperador Nero, que o teria mandado ao exílio, também com o intuito de arrefecer seus vínculos com outros escritores relevantes do período. Existem poucos dados biográficos na História de Roma dioniana. Todavia, esse relato, por mais significativo e verossímil que seja, é mais relevante por marcar a presença do escritor nos círculos letrados do período neroniano que pelo conteúdo apresentado, posto que a perseguição aos intelectuais pelo tirânico governo de Nero pode ser entendida como parte de um topos literário, explorado pela historiografia senatorial para marcar as características de um mau Imperador.
Seu prenome e seu nome (praenomen et nomen) referem-se, muito provavelmente, à relação próxima com a família de Sêneca, possivelmente, tendo adotado o nome da gens anneus com sua manumissão. G. W. Most. Em um artigo intitulado Cornutus and Stoic Allegoresis: a Preliminary Report (Most, 1989), salienta não haver vestígios da proximidade de Cornuto com o filósofo estoico. O autor ainda argumenta que esse distanciamento seria sustentado pela temática do manual de Cornuto, uma vez que seriam bem atestadas as objeções senequianas ao uso das alegorias9.
Está bem documentada a relação de Cornuto e o poeta satírico Pérsio, especialmente, nas fontes tardias, que lhe dedicaram a Sátira V. Cornuto foi seu preceptor a partir dos dezesseis anos, assumindo sua educação e ensinando-lhe a filosofia estoica, por meio da qual Pérsio conheceu Lucano, sobrinho do filósofo Séneca. Ao morrer, Persio deixou de herança a Cornuto cem mil sestércios e toda a sua biblioteca. Como prova de retidão moral, Cornuto recusa o dinheiro, mas aceita os livros. Essas informações estão contidas em um pequeno opúsculo atribuído a Suetônio, a Vita Persii (Bellandi, 2003), onde informa ainda que o mitógrafo estoico teria sido editor da obra do poeta Pérsio após o falecimento deste.
Esses exemplos são suficientes para atestar seus vínculos com círculos literários influentes. Escreveu em grego e em latim. Em relação ao latim, há pequenos fragmentos de seus textos, presentes em autores tardios. A tradição conhece bastante esse escritor por seu trabalho como gramático e comentador dos poemas virgilianos, o que temos por meio de escólios (Cugusi, 2003).
O mais importante escrito de Cornuto é o Epítome das tradições teológicas dos gregos10, um tratado sobre mitologia grega, influenciado pelo estoicismo. O texto não é um resumo das narrativas míticas, como encontramos na Biblioteca de Apolodoro, mas uma interpretação alegórica ao estilo estoico.
Os estoicos, de maneira geral, se preocupavam com o princípio governador do cosmo que, de alguma forma, poderia ser chamado de ‘deus’ (Algra, 2006). Como afirma o autor polonês Michal Wojciechowski (2017), é importante ter em mente que a cosmologia apresentada por Cornuto tem questões muito mais relacionadas à física, que com a filosofia, “[...] interpretando as divindades gregas como fenômenos e noções físicas [...]” (Wojciechowski, 2017, p. 120). Na visão desse autor, Cornuto apresenta os Deuses em uma linguagem para a ciência, sendo que os nomes mitológicos são o ponto de partida para a compreensão do mundo11 (Wojciechowski, 2017). Vários estoicos farão uso de elementos interpretativos que buscam encontrar nos mitos, especialmente, nos poemas épicos de Homero e nos de Hesíodo. Essas interpretações buscaram sentidos ocultos nos nomes ou nas palavras. As leituras alegóricas buscam nas entrelinhas do mito, sub-repticiamente por trás das narrativas, um significado ausente, escondido. Os discursos míticos apresentariam significados obscuros que solicitavam um intérprete. Interessa-nos essa segunda atitude colocada em prática por Cornuto.
No tomo V da História da literatura grega, Maurice Cruzet ressalta ser Cornuto um gramático que escreveu um longo comentário sobre a obra de Virgílio, como um escrito sobre a pronúncia e a ortografia. Sobre o Epítome, o autor afirma que: “É um resumo sem valor literário, mas bastante curioso, com interpretações etimológicas e simbólicas colocadas pela escola estoica à mitologia poética e popular” (Croiset, 1938, p. 418). A divisão entre mitologia poética e popular, proposta pelo eminente erudito, é muito frágil, já que a transmissão dos relatos mitológicos no mundo antigo sempre foi marcada pela oralidade e pela recorrência aos textos antigos.
Trata-se de um documento muito mais complexo, uma vez que o autor parte de uma análise etimológica, prática comum entre os estoicos e já exposta em Roma por Cícero no De Natura Deorum, dos mitos gregos, na tentativa de explicar sua dimensão teológica. Não se busca nesse texto fazer apenas uma adequação temática, mas também um esforço de interpretação filosófica, cuja estratégia de conhecimento é a análise das palavras e de seu campo semântico.
O título da obra em grego apresenta informações instigantes para a análise documental: Ἐπιδρομὴ τῶν κατὰ τὴν Ἐλληνιχὴν θεολογíαν παραδεδομéνων (Epítome das tradições teológicas dos gregos). Epítome ou compêndio refere-se ao caráter escolar do texto. Como destaca Glenn Most, esse texto é um exemplo interessante de manual voltado ao ensino de filosofia (Most, 1989). O que é ampliado por José Bernardino Torres Guerra que “[...] propõe que o ᾿Επιδρομή não seja considerado simplesmente como exemplo de manual didático senão, concretamente, como exemplo de manual ad hominem” (Torres Guerra, 2010, p. 101).
Diferente do que faz Cícero, envolvido com as práticas religiosas da cidade de Roma, por isso mesmo escreve um texto para a aristocracia, Cornuto, nesse texto, dirige-se especificamente a um jovem aluno, trata-se então de um texto de estudos, objetivando ensinar ideias já estabelecidas, que já fazem parte dos ensinamentos do grupo social no qual ambos estariam inseridos. O próprio escritor se dirige a um aluno na primeira linha do texto: ‘ó jovem’ (ō̃ paídion, Cornuto, Epítome, I, 1). Comuns no Império Romano, os epítomes tinham como função fornecer informações precisas a jovens membros da aristocracia senatorial e equestre. O autor não tem o desejo de propor reflexões inéditas, mas de que seu texto seja um manual, cujas opiniões condensariam premissas estabelecidas entre os estoicos romanos. Guerra Torres ressalta que o uso do vocativo é estrutural, pois denota a ideia de despertar a atenção do discípulo e, possivelmente, estabelecer um canal de comunicação (Torres Guerra, 2010).
A teologia estoica, desde Zenon de Cício, se preocupou com o princípio governador do cosmo, possivelmente, esse ponto de partida foi muitas vezes confundido com a ideia de um Deus (Algra, 2006).
Nesse contexto, Cornuto parte da premissa de que o cosmo é animado e racional, por esse motivo, existe uma divindade. Os deuses, no plural, seriam as alegorias referentes à racionalidade do mundo sensível. A mitologia, expressa nas obras dos poetas, principalmente, na Teogonia de Hesíodo, seria a expressão simbólica deste mundo12.
Cornuto dialoga com Hesíodo na tentativa de corrigir as falhas do poeta da Beócia. Sua postura identifica nos mitos o testemunho de que os antigos compreendiam de várias formas as relações dos mitos com a natureza. O autor rejeita a concepção corrente de que os deuses tradicionais tinham formas e sentimentos humanos. Entretanto, o mitógrafo deve manter o que Jan Assmann chama de coerência textual, sua interpretação deve mostrar como a tradição já apresentava os signos para sua compreensão. O discurso mítico pode, em sua nova rememoração, conter novos significados. Interpretar a tradição, assim como a repetição, é uma forma de garantir a produção da coerência cultural (Assmann, 2010).
Todo o documento tem o fito de caracterizar o cosmo, a partir da mitologia, vinculando etimologicamente os deuses a um princípio racional que estaria por trás de tudo. Por exemplo:
O céu (ouranós), ó jovem, envolve no círculo a terra, o mar e todas as coisas sobre a terra e o mar, por isso adquire essa denominação, sendo o limite (oûros) superior de tudo e também a fronteira (horízōn) da natureza. Outros dizem que se chama assim por cuidar (ōreîn) ou tomar cuidado (ōreúein) das coisas que existem, isto é, por protegê-las13. (Cornuto, Epítome, I, 1).
Essa pequena passagem explicita os procedimentos explicativos mobilizados pelo mitógrafo. Não podemos esquecer que Cornuto era um gramático conceituado na cidade de Roma. O conhecimento que o escritor tem sobre a língua grega serve de suporte para sua investigação dos mitos. Observe como sua apreciação prioriza os sons da palavra, a maneira como ela é ouvida. Cornuto não poderia agir de maneira diferente, as sociedades antigas eram sociedades orais, o que sugere um cuidado com o universo performático que cada palavra apresentava na cultura greco-romana.
Nesse trecho devemos destacar dois procedimentos que se complementam, mas que não podem ser confundidos, a alegoria de uma ordem interior ao cosmo e como ela se organiza e a análise das etimologias das palavras. Não podemos confundir alegoria com etimologia, metáfora ou personificação, pois dizem respeito a ações explicativas distintas, porém que podem caminhar juntas, como ocorre nesse caso. A alegoria é a exegese de uma narrativa, apreendida na análise de seu enredo, observando os personagens e as ações. Cornuto estuda a etimologia dos nomes divinos, seus epítetos para desprender a significação física desses, como se espera de um filósofo estoico (Pià-Comella, 2012).
São esses os elementos que compõem o regime de memória no qual se inscrevem o texto de Cornuto. Trata-se de um documento voltado à instrução, ao ensino. Cornuto conclui seu tratado com o vocativo ὦ παῖ, (XXXV, 78) que pode ser traduzido por filho, como uma marca de afeto. Entretanto, o texto é, principalmente, direcionado à formação de jovens e não à divulgação de ideias entre os cidadãos. O mitógrafo segue explicando que os antigos poetas entendiam a natureza do cosmo, por isso, filosofavam sobre ela por meio de símbolos e de enigmas que escondiam a verdade com palavras em elaborados enredos. O objetivo de Cornuto, naquele momento, era apenas reinterpretar essas narrativas em um formato útil. As relações com os deuses eram assunto importante para a formação de um jovem, por isso o escritor aconselha o aluno da seguinte maneira:
Em relação aos deuses e seus cultos e a tudo o que surgiu para sua honra, acolha as tradições pátrias e a narrativa imaculada sobre eles, para que se direcione apenas à piedade, e não à superstição; que os jovens instruam-se e aprendam a sacrificar e suplicar, reverenciar e fazer juramentos de maneira certa, segundo o senso de medida tomado para si, na ocasião apropriada14 (Cornuto, Epítome, XXXV, 76).
A transmissão de conhecimentos filosóficos sobre os deuses não pode confrontar a ordem estabelecida. O jovem que estiver recebendo essa instrução deve saber que honrar os deuses é um ato cívico que o vincula à comunidade. Nesse sentido, o mitógrafo apresenta um corpo de saberes familiarizado socialmente nos círculos cultivados da cidade de Roma. O modelo de validação enunciativa em todo o documento baseia-se em uma análise etimológica e semântica das palavras, em um modo de pensar os termos em sua grafia e em sua sonoridade.
Em seu tratado, temos sempre a referência aos antigos, lê-se Hesíodo e Homero, o que é um topos literário comum. Como bem ressalta a filósofa alemã Hanna Arendt, o homem antigo tem a consciência de que o passado é melhor (Arendt, 1992). Claro que a forma homem antigo é muito vaga, o que queremos ressaltar é que predominava nas culturas mediterrânicas esse regime de historicidade, para usar uma expressão consagrada por François Hartog (2003). Nesse sentido, os estoicos eram muito cuidadosos ao ressaltarem que as lendas contadas pelos antigos tinham elementos de sua verdade. O comentário não pode romper a ordem, mas pode promover a coerência.
Cornuto escreve em Roma, cuja cultura expressava outra premissa importante, o mos maiorum (costumes dos antigos). Como afirma Maria Helena da Rocha Pereira: “Os romanos tinham como suporte fundamental e modelo de seu viver comum a tradição, no sentido de observância dos costumes dos antepassados” (Pereira, 2009, p. 357)15.
Dessa forma, Cornuto precisa dialogar com as autoridades antigas. Em vários momentos, o autor se refere aos cânones. Provavelmente, está se referindo aos muitos textos mitográficos disponíveis até então. A própria validação enunciativa é construída por meio de imagens do cosmos, nas quais os deuses são relacionados. A investigação etimológica a que referimos anteriormente também tem a intenção de construir a veracidade do texto. São dois os processos utilizados pelo autor, a descrição das imagens e a referência aos antigos.
Entretanto, Cornuto estabelece um diálogo mais acentuado com Hesíodo, ressaltando a importância desse escritor para a transmissão dos mitos, mas criticando o fato dele ter iniciado a degeneração dos mitos. Veja como ele se refere à genealogia presente na Teogonia de Hesíodo:
No entanto, poderia haver para você uma exegese mais completa [da genealogia] de Hesíodo, que recebeu algumas coisas, creio eu, daqueles mais antigos do que ele e acrescentou para si assuntos ainda mais míticos, de modo que a maioria da teologia antiga foi corrompida. Agora, devemos examinar o que ressoa entre a maioria16 (Cornuto, Epítome, XVII, 31).
Cornuto não pode romper completamente com a Teogonia hesiódica, visto que ela precisa ser o ponto de partida para sua análise, mesmo vendo nela o início da degradação da teologia antiga. Para o mitógrafo, os mitos são apenas um ponto de partida para a compreensão da teologia, ponto mais elevado da compreensão da relação do homem com o mundo, o último estágio para a formação nos conhecimentos filosóficos.
O mitógrafo constrói analogias que inserem no cosmo um princípio regulador, orientador. Cornuto afirma que: “Como nós somos regidos por uma alma, o cosmo também tem uma alma que o mantém unido. Esta se chama Zeus (Zeús)” (Cornuto, Epítome, 2, 6-7)17. Zeus seria a causa pela qual vivem e preservam todas as coisas. O autor o relaciona ao fogo primordial (éter), um tema clássico para a física estoica. Hera, por sua vez, será relacionada com o ar (Cornuto, Epítome, III, 4); Poseidon é o elemento líquido (Cornuto, Epítome, IV, 4); Hades “É o ar composto por partículas mais densas é o mais próximo da terra” (Cornuto, Epítome, V, 5). O escritor vai deslindando os mitos, de maneira ordenada, seguindo a física estoica.
Ao apresentar a mitologia por meio de sua física, Cornuto responde a uma demanda política de seu tempo, a saber, contribuir para a formação de cidadão romanos cultivados no conhecimento helênico e consciente de sua responsabilidade pública. Ele se coloca como um educador estrangeiro da elite romana.
O autor do compêndio analisa Hermes como o deus olímpico vinculado ao lógos, o que nos remete aos epítetos disponíveis, por exemplo, no Hino Homérico a Hermes. Ao analisar esta deidade, Jean-Pierre Vernant afirma que: “Não há nele nada fixo, estável, permanente, circunscrito, nem fechado. Ele representa no espaço e no mundo humano, o movimento, a passagem, a mudança de estado, as transições, o contato com elementos estranhos” (Vernant, 1990, p. 192). Seus epítetos ligam-no aos assaltos, por atravessarem muros e portas fechadas; ele reside nas estradas e encruzilhadas, conduz as almas dos mortos; mensageiro dos deuses; presente nas trocas comerciais e nos debates da ágora, nas competições; testemunha dos acordos, tréguas e juramentos; mediador entre os homens e os deuses. Quando um diálogo cai no silêncio, era costume dos gregos dizerem: Hermes passa (Vernant, 1990).
São esses os atributos nos quais Cornuto constrói sua análise. A necessidade de dar coerência cultural, a partir da visão de mundo estoica, faz com que ele se aproxime ou se distancie dessa interpretação. Entretanto, temos claro que, tanto Vernant como o gramático estoico, pensam a figura de Hermes tendo em vista o Hino Homérico dedicado a esta divindade, principal fonte textual sobre essa deidade, uma vez que os atributos presentes no Hino se repetem no mitógrafo, logo há um vínculo com essa fonte, mesmo que indiretamente (Guerra Torres, 2016) entretanto, uma diversidade de tradições míticas provavelmente existiam e não nos chegaram.
Hermes é o deus que concede favores (charízesthai) de forma razoável (eulogístōs) aos que merecem. “Hermes é a razão (lógos)” (Cornuto, Epítome, XVI, 20). A identificação do filho de Maia com o lógos já está presente na tradição estoica, mas não somente nela18. Os deuses o enviaram para junto dos homens, únicos seres racionais (logikón) sobre a terra.
Ele que ensina o homem a questionar e a falar racionalmente (légein) em sua defesa. Hermes é um deus das palavras, do bem dizer, divindade das trocas simbólicas e materiais. Onde houver encontros humanos ele estará. Cornuto analisa seus epítetos, verbos e enunciados relacionados as suas funções, mostrando a proximidade entre significado e sonoridade das palavras. Ele é o diáktoros (mensageiro), ele é diátoros (penetrante, agudo). Nesse caminho, diáktoros se aproxima de diágéin (faz passar, cruzar de um lado a outro). Ele é o mensageiro justamente pelo fato de sua voz se fazer presente nos ouvidos por meio do lógos. Nesse ponto, o autor liga a análise etimológica com a interpretação alegórica como expressamos anteriormente, uma vez que ele seria o arauto dos deuses, pois só conhecemos a vontade deles por causa das noções (énnoiai) que concordam com o lógos, que ele desperta nos homens (Cornuto, Epítome, XVI, 21-22). Observe que o conceito de énnoiai é fundamental para a tradição estoica, pode ser traduzido por noções ou por concepções, as quais expressam justamente os conhecimentos adquiridos pela observação e instrução cautelosa, atenta (Hankinson, 2006).
Hermes é chamado de akákēta (aquele que não faz mal, o benfeitor), uma vez que o lógos não existe para executar o mal, causar danos. Sua existência volta-se para o bem, para salvar as pessoas e as casas (sōtḕr tôn oíkōn). Ele é conhecido como argifonte, matador de Argos. Foi ele que assassinou o gigante de cem olhos que vigiava Ío. Entretanto, Cornuto constrói outra explicação para esse epíteto: “É Argifonte (argeiphóntēs) por Argefante (argephantēs), porque mostra (phaínein) tudo de forma luminosa e lhe esclarece ̶̶ é que os antigos chamavam o que era luminoso de brilho (árgon) ̶ ou pela rapidez da voz ̶ é que também chama argón o que é o que é rápido” (Cornuto, Epítome, XVI, 21)19. Aproximação entre luz e logos, ou seja, somente com o lógos os homens poderão clarear seu caminho.
Sobre sua origem, o estoico afirma que:
Disseram que Hermes foi engendrado por Zeus em Maia (Maías), dando assim a entender novamente que o lógos é produto da reflexão e da indagação: aquelas que ajudam no parto (maioúmenai) das mulheres são chamadas de parteiras (maîai) que, como na indagação, trazem algo à luz, os fetos20 (Cornuto, Epítome, XVI, 23).
Retoma-se aqui a famosa acepção socrática do sábio como um parteiro do conhecimento, já que, nessa concepção epistemológica, o conhecimento não é produzido, mas lembrado. Ele já existe dentro de cada ser humano e precisa apenas de um sábio que o ajude a ‘parir’ o lógos. Nesse passo, ecoa implicitamente a noção de que o bem é inato ao homem, já que o mesmo é o resultado das ações refletidas, pensadas.
Cornuto propõe uma análise alegórica para as imagens do deus, o qual é representado sem mãos e sem pés, em uma figura quadrangular. As estátuas são quadradas para mostrar a firmeza de caráter, posto que este, mesmo caído, continua firme. E se lhe faltam mãos e pés é porque não precisa deles. Esse deus ainda seria representado de duas maneiras: jovem e velho. A representação jovem tem a barba rala no queixo e o pênis flácido, já a representação velha teria barbas e o falo ereto. O autor associa a virilidade dos velhos com o uso maduro da razão que é ‘fecunda e perfeita’ (Cornuto, Epítome, XVI, 23).
Para o gramático, Hermes é o deus que preside as assembleias (Agoraîos) e vela por todos que falam em público (agoreuóntōn). Por meio do logos, ele estaria presente na atividade comercial, assim como em todos os momentos em que o encontro se coloca.
O escritor refuta a ideia de que esse deus se vincularia aos ladrões. Ele afirma que:
Quiseram mostrar seu poder inclusive por meio de incongruências e transmitiram a tradição de que ele era um ladrão (kléptēn) e alguns levantaram um altar para ‘Hermes Trapaceiro’. Acontece que, furtivamente, ele subtrai as crenças sustentadas pelos homens e, às vezes, rouba (kléptōn) a verdade com a persuasão, por isso dizem que ele usa palavras arteiras (epiklópois): de fato, o uso de sofismas é próprio de quem conhece o logos21 (Cornuto, Epítome, XVI, 25).
Como podemos ver, Hermes é também o deus da retórica, o que legitimaria seus vínculos com as trapaças, já que estão ligadas ao uso da palavra. Caracteristicamente, ecoa nesse passo as objeções platônicas aos sofistas. Essa divindade não se vincula ao roubo material, mas à capacidade de persuadir, de convencer. “Ele usa sandálias aladas e se desloca no ar como as palavras aladas (épēpteróenta)”. (Cornuto, Epítome, XVI, 22)22.
O autor conclui o capítulo que analisa essa deidade, com uma surpreendente aproximação, ao recordar que o filho da ninfa Maia é cultuado nas palestras juntamente com Héracles, para marcar o uso da força acompanhado do logos. Deve-se reprovar a todos que só exercitam o corpo e se esquecem do logos. Conclui citando a Andrómaca homérica, quando ela se dirige a Heitor e diz: “Homem maravilhoso, é a tua coragem que o matará!” (Homero, Ilíada, VI, 407). Cornuto descontextualiza a citação, já que os vínculos entre a princesa troiana e seu amado são mais complexos, mas neste regime de memória, o hexâmetro homérico vale em si mesmo, o estoico diz apenas que ter um corpo semelhante aos heróis, desacompanhado do lógos levara os homens a ruína.
Considerações finais
A plasticidade do mito permite a exegese conciliatória de Cornuto onde harmoniza narrativas antigas com preceitos filosóficos. Acreditamos que essa fonte permite investigar não somente esse diálogo, mas deslindar mecanismos subliminares da apropriação romana do estoicismo. Hipoteticamente, podemos notar o interesse ampliado por essa doutrina, vista, não somente em seus aspectos morais, mas em sua lógica e física, uma vez que o autor do Epítome mobiliza todo seu conhecimento do estoicismo para produzir a harmonia entre visão de mundo estoica e textos antigos. Como afirma Jordi Pià Comella, Cornuto compreende que o conhecimento dos mitos pode:
[...] ser decisivo na educação religiosa dos jovens: pois é ele que garante a piedade e erradica a superstição. É porque vamos perceber deuses como poderes físicos benevolentes e não como seres dotados de paixões que não os temeremos. Todavia Cornutus não restringe duas noções no campo espiritual: estende sua aplicação ao espaço religioso cívico. Na religião romana, a piedade consiste em realizar os ritos, seguindo estritamente as regras prescritas pela lei religiosa e tradição comum ou pela obediência a uma ordem emanando da autoridade religiosa (Pià Comella, 2012, p. 18).
De maneira geral, a análise do Epítome de Cornuto nos permite contextualizar uma proposta pedagógica para a elite romana, na qual a educação religiosa era um elemento fundamental e deveria garantir que os jovens cumprissem seus deveres religiosos com a cidade, sendo piedosos, observando a importância dos ritos para a ordem. O que deveria garantir a formação de um cidadão cioso de suas obrigações com as divindades, especialmente, com as da pátria e com a família.