Introdução
Ao trazer à baila a questão do protagonismo de intelectuais negras em estudos divulgados no período de 2010 a 2019, é fundamental anunciar que esse estudo parte do princípio de que tal problematização não pode prescindir dos elementos histórico-sociais e políticos que fazem desse tema urgente e necessário. Mesmo a partir dos movimentos abolicionistas estadunidenses do século XIX, que passaram a reconhecer as mulheres negras como seres humanos (e não mais como seres anômalos desprovidos de gênero) (Davis, 2016), e da segunda onda do feminismo - por meio da qual essas reivindicaram um espaço de disputa política, sobremaneira no Sul dos Estados Unidos, fica clara a dificuldade de inserção, permanência e reconhecimento de mulheres negras no campo acadêmico e na produção intelectual no cenário contemporâneo (Reznik, Massarani, Ramalho, & Amorim, 2014).
Ao analisar as relações sociais no capitalismo é necessário atentar para as intersecções entre raça, classe e gênero, “[...] de forma a perceber que entre essas categorias existem relações que são mútuas e outras que são cruzadas. Ninguém pode assumir a primazia de uma categoria sobre as outras” (Davis, 2011). Elas não podem ser analisadas separadamente dentro do contexto dos estudos que se propõem ao lado da luta feminista antirracista.
Segundo Hooks (2013), nos primeiros movimentos da década de 1960, por ocasião da primeira onda do feminismo (sufragista), embora as mulheres brancas tenham conquistado algum espaço dentro do mercado de trabalho, inclusive nos centros acadêmicos (e consequentemente nos estudos sobre a mulher), “[...] não havia um zelo coletivo pela criação de um corpo de estudos feministas que tratasse das realidades específicas das mulheres negras” (Hooks, 2013, p. 164). Além disso, enquanto muitas acadêmicas brancas ativas no movimento feminista criaram redes de colaboração científica, as negras, em geral, estavam excluídas desse círculo.
O panorama nacional brasileiro, demonstra a atualidade da narrativa descrita por Hooks (2013) ao se referir ao contesto do Sul dos Estados Unidos, no período da década de 1960. Dentre esses movimentos desumanizantes, evidenciam-se os esforços de apagamento do potencial intelectual das mulheres e sobretudo, das mulheres negras. O que se percebe é que, ao longo da história, “[...] a segregação social e política a que as mulheres foram historicamente conduzidas tivera como consequência a sua ampla invisibilidade como sujeito, inclusive como sujeito da Ciência” (Louro, 2003, p. 20). No caso específico das mulheres negras, essa realidade é ainda mais profunda e perversa.
Segundo Almeida (2019, p. 191), a “[...] classificação dos seres humanos serviria, mais do que para o conhecimento filosófico, como uma das tecnologias do colonialismo europeu para submissão e destruição de populações das Américas, da África, da Ásia e da Oceania”. Desse modo,
[...] é nesse contexto que a raça emerge como um conceito central para que a aparente contradição entre a universalização da razão e o ciclo de morte e destruição do colonialismo e da escravidão possa operar simultaneamente como fundamentos irremovíveis da sociedade contemporânea (Almeida, 2019, p. 193).
Dentre os elementos que alicerçam essa sociedade e que contribuem para o estranhamento do gênero humano por meio da hierarquização dos sujeitos, destaca-se o racismo. Segundo Almeida (2018, p. 15-16), o racismo é sempre estrutural, ou seja, “[...] ele é um elemento que integra a organização econômica e política da sociedade. [...] O racismo é uma manifestação normal de uma sociedade e não um fenômeno patológico ou que expressa algum tipo de anormalidade”. A partir dessa tese, é possível reconhecer que, o campo da produção intelectual, como produto humano assentado na sociedade de classes, está também alicerçado no racismo estrutural. O conhecimento acadêmico-científico foi e é, historicamente, masculino e branco (Chassot, 2004).
Uma vez que se evidencia a realidade do racismo estrutural (Almeida, 2019), e nos defrontamos com o epistemicídio (Benite, Bastos, Vargas, Fernandes, & Faustino, 2018) do pensamento de mulheres negras é patente levantar a hipótese de que esse mesmo fenômeno se reflete nas produções científicas em geral, assim como nas demais formas de expressão da sociedade. Uma vez que essa pesquisa enfoca especificamente os estudos emergentes do campo da Educação, toma-se a listagem dos periódicos avaliados pelo comitê responsável por essa área do conhecimento junto à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes).
Nesse sentido, emergiu o seguinte problema de pesquisa: O que se tem discutido no período de 2010-2019 acerca do protagonismo de intelectuais negras nos estudos divulgados em periódicos do campo da Educação, avaliados pelo Qualis Capes com estrato A1?
A opção pelo período de 2010-2019 se justifica por essa ser a década mais recente em relação ao período no qual essa investigação foi envidada. Já a opção pelas revistas de estrato A1, avaliadas pela área da Educação na Capes, se justifica por esse ser referencial de mais alto nível e que é adotado para avaliação dos Programas de Pós-graduação Stricto Sensu no Brasil, principais responsáveis pela produção do conhecimento nesse país.
A partir dessa indagação, tomou-se por objetivo central, investigar o panorama dos estudos que enfocam o protagonismo de intelectuais negras nas produções científicas do campo da Educação, avaliadas como as de maior impacto mundial por uma das principais instituições de fomento e acompanhamento da produção científica brasileira.
De modo específico, esse estudo teve como objetivos: compreender o alcance do tema nos principais veículos de divulgação científica; analisar a abordagem dessa questão nos estudos divulgados nesses espaços de socialização do conhecimento; e avaliar possíveis tendências e lacunas teóricas nesse campo de pesquisa para os cenários prospectivos.
Assim, ao longo das próximas seções, dispõe-se o aporte teórico, a descrição das concepções e dos percursos metodológicos, os resultados da pesquisa e algumas considerações a respeito do tema.
Revisão da literatura
Observa-se no cenário contemporâneo o levante de uma onda conservadora que tem se expressado, mais fortemente, a partir da segunda década do século XXI. Nela tem se construído um aglomerado, mais ou menos coeso, daquilo que vem sendo chamado de ‘nova direita’. Suas ideologias flertam “[...] com ideias do nazifascismo e [...] contribuem para normalizá-las” (Carapanã, 2018, p. 39). A nova direita apresenta um discurso reacionário, de contrarevolução preventiva, que parte do pressuposto de que está tudo um caos, uma desordem, que as coisas estão fora do seu devido lugar e que é urgente que se proceda, por quaisquer meios, o reestabelecimento da ordem.
A ideologia central da nova direita, o libertarianismo, é uma variante do neoliberalismo clássico e descende da escola econômica austríaca1. Esse ideário “[...] prega o menor Estado possível e afirma que qualquer situação que nasça de mecanismos de mercado é justa por definição, por mais desigual que possa parecer” (Miguel, 2018, p. 19). As narrativas e ações emergentes de concepções libertarianas assumem “[...] caráter protofacista, sob o signo de ciência, buscando uma aparência de crítica social” (Casimiro, 2018, p. 44).
Segundo Silva, Maciel e França (2020b, p. 260), “[...] o conservadorismo clássico é fundado em ideias irracionalistas. Todavia, na atualidade esse ganha novas características”. Nesse sentido, as pautas dos movimentos feministas e movimentos negros progressistas, têm sido duramente atacadas e têm-se observado profundos retrocessos no campo dos direitos humanos. Dá-se o aprofundamento do encarceramento do povo negro, da violência contra a mulher, e consequentemente a abertura à discursos machistas e racistas de toda ordem (Silva, 2018).
Ao tomarmos como exemplo o caso brasileiro, é possível perceber que, segundo o Atlas da Violência 2018, “[...] em 2016, foram registrados nas polícias brasileiras 49.497 casos de estupro, [...]. Nesse mesmo ano, no Sistema Único de Saúde foram registrados 22.918 incidentes dessa natureza” (Cerqueira et al., 2018, p. 56). Esse estudo indica ainda que “[...] em 2016, 4.645 mulheres foram assassinadas no país, o que representa uma taxa de 4,5 homicídios para cada 100 mil brasileiras” (Cerqueira et al., 2018, p. 44). Quando observamos os microdados por Unidades da Federação (UF), percebe-se que, no período de 2006 a 2016, no Rio Grande do Norte e do Maranhão o aumento dos casos de homicídio contra mulheres cresceu em 138,1 e 137,3%, respectivamente. Das 27 UF, apenas sete apresentaram taxas negativas. No entanto, quando se observa esses dados a partir da questão interseccional de gênero e raça, o que se constata é que “[...] em relação aos dez anos da série, a taxa de homicídios para cada 100 mil mulheres negras aumentou 15,4%, enquanto que entre as não negras houve queda de 8%” (Cerqueira et al., 2018, p. 51).
Quando se volta o olhar para o que acontece no Brasil com o povo negro, o que se evidencia, é que “[...] um jovem negro tem 147% mais chances de sofrer homicídio do que um branco” (Teles, 2018, p. 66). Esse estudo aponta ainda que, em 2016, a taxa de homicídios de negros
[...] foi duas vezes e meia superior à de não negros (16,0% contra 40,2%). Em um período de uma década, entre 2006 e 2016, a taxa de homicídios de negros cresceu 23,1%. No mesmo período, a taxa entre os não negros teve uma redução de 6,8% (Cerqueira et al., 2018, p. 40).
Mesmo em face desses números, o que se pode constatar é que, ao invés de se arregimentar forças que convirjam para um levante contra o aumento desses índices, o que se percebe é o aprofundamento e o uso do “[...] conservadorismo enquanto instrumento ideológico” (Silva et al., 2020b, p. 257), como tecnologia de controle social com vistas à implementação de políticas neoliberais e a instauração da barbárie.
Trata-se de “[...] um instrumento utilizado para disseminar o ódio e o preconceito pelas classes subalternas, com plena finalidade de manutenção da ordem vigente e da propriedade” (Silva et al., 2020b, p. 260). Segundo Bersani (2017, p. 381), o racismo estrutural pode ser compreendido como um “[...] sistema de opressão cuja ação transcende a mera formatação das instituições, eis que perpassa desde a apreensão estética até todo e qualquer espaço nos âmbitos público e privado, haja vista ser estruturante das relações sociais”. Ou seja, o racismo é, ele mesmo, a norma que regula as relações nesse modelo de sociedade e que opera no sentido de manter/aprofundar o status quo atual das coisas. Não existe um tipo de racismo que não seja estrutural e estruturante nessa sociedade.
Com resultado desse processo de apagamento daqueles e daquelas que desviam da norma, sabe-se que “[...] o espaço acadêmico fica restrito a uma parcela da sociedade em detrimento de outras” (Bersani, 2017, p. 384). No Brasil, as universidades “[...] sempre foram espaços dominados pela elite econômica, não obstante a natureza pública que nos leva à premissa básica de um investimento promovido por toda a sociedade e que deveria lhe servir de forma geral, sem exclusão de quaisquer grupos” (Bersani, 2017, p. 386). Nesse sentido,
[...] se o espaço é historicamente elitista, como a história também demonstra que os africanos escravizados e seus descendentes não tiveram qualquer espaço no seio social além da opressão durante o escravismo e da exclusão social após terem sido descartados por esse sistema, não é preciso grande esforço para que se conclua o fato de as universidades públicas brasileiras serem reservadas às elites brancas, por mais paradoxal que possa parecer essa expressão, pois a desigualdade aqui consolidada abriu espaço para a formação de uma única elite -e ela é branca (Bersani, 2017, p. 386).
A desigualdade no acesso e da permanência de mulheres negras na universidade e, consequentemente na produção do conhecimento científico, são analisadas, portanto, como faces do racismo e do machismo que são estruturais da nossa sociedade.
Segundo Longaray e Ribeiro (2015, p. 317), o conhecimento científico “[...] é um dos mecanismos desse controle, em que os saberes produzidos nesse âmbito são entendidos como os verdadeiros. Os saberes da Ciência ditam as regras”. Nesse sentido, a escola, a universidade e as produções científicas podem contribuir para reforçar os sistemas de dominação existentes. A educação e a produção científica, enquanto categorias sociais, são substancialmente responsáveis pela reprodução do racismo e das demais desigualdades na sociedade (Davis, 2016).
Com efeito, a necessidade de produções científicas que lançam luzes acerca do protagonismo das intelectuais negras na produção do conhecimento ao longo da história é, antes de qualquer coisa, um ato de resistência. Trata-se de uma força que, em potência, se soma a uma contracorrente de luta de classe, raça e gênero, que vislumbra uma sociedade igualitária. Isso porque, fazer da igualdade racial, de gênero e de classe uma realidade é desafiar a ordem social vigente. Uma vez que a norma está centrada no pensamento eurocêntrico, branco e masculino, ser branco é nunca ter que pensar em raça. Essa é também uma questão localizada no tempo e no espaço. Um branco brasileiro, quando vai aos Estados Unidos, por exemplo, é racializado e pode descobrir que lá, ele já não é mais branco: é latino (Almeida, 2019).
No contexto da produção do conhecimento no Brasil, o estudo de Reznik et al. (2014, p. 53), afirma que “[...] metade dos cientistas cadastrados no Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) são do sexo feminino, sendo líderes de pesquisa em 45% dos grupos”. Em face da guinada à direita das jornadas de junho de 2013 (que tiveram como mote a reinvindicação por mais direitos, sobremaneira o direito à mobilidade urbana) para as jornadas de 2015 (que reivindicaram, dentre as pautas conservadoras, a extinção das cotas para negros/negras nas universidades e a supressão do debate sobre gênero nas escolas) (Silva, 2018), é possível perceber o levante de um movimento que, no limite, reivindica o apagamento da mulher negra, sobremaneira da mulher negra nos espaços de produção do conhecimento.
Desse modo, é preocupante o cenário prospectivo de formação de cientistas negras no Brasil. Para se ter noção do quadro que se apresentava antes das jornadas de junho de 2015, é possível observar o panorama estatístico das mulheres negras que ocupavam assento nos Programas de Pós-graduação Stricto-Sensu no Brasil em 2015. O que se constata desse dado é que, mesmo antes do levante da onda conservadora que reclama pelo apagamento dos debates das/sobre as mulheres negras nos espaços de produção do conhecimento, o número de cientistas que se declararam pretas ou pardas e que compunham os corpos docentes dos Programas de Pós-graduação (PPG) no Brasil, era de 219 naquele período, ou seja, essas mulheres não representavam nem sequer “[...] 3% do total de docentes” (Ferreira, 2018). Além disso, segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD), realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2015), no final de 2015 a população de pretos e pardos já era superior a 55% do povo brasileiro. Observa-se ainda que, especificamente em relação a quantidade de homens e mulheres (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística [IBGE], 2018), as mulheres representam a maioria do povo brasileiro (51,7%).
Diante desses dados, essa contradição sinaliza para a capilaridade e profundidade do racismo estrutural expresso inclusive dentro dos espaços de formação de intelectuais e de desenvolvimento de pesquisa (Almeida, 2019). Ora, se a maioria do povo brasileiro é negro e se a maioria também é composta por mulheres, proporcionalmente, numa sociedade igualitária, não faria sentido que menos de 3% das mulheres negras ocupassem assento nas cadeiras dos PPG no Brasil. Essa situação é ainda mais preocupante quando tomamos o quadro de cientistas com bolsa de produtividade em pesquisa com projetos vigentes no período de 2005 a 2014, divulgados em 2019 pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq, 2019). Esses dados revelam que, quanto maior é o nível da bolsa de produtividade, menor é a participação das mulheres. No caso específico das bolsas de maior prestígio (1A e Sênior), enquanto os homens detêm cerca de 80% delas, as mulheres compõem cerca de 20%. Além disso, do total de bolsas de produtividade em pesquisa ocupadas por mulheres, apenas cerca de 7% dessas são ocupadas por mulheres negras. A Tabela 1 lança luzes sobre essa questão.
Cor-raça | Iniciação científica (%) | Mestrado (%) | Doutorado (%) | Produtividade em Pesquisa (PQ) (%) | ||||
2014 | 2015 | 2014 | 2015 | 2014 | 2015 | 2014 | 2015 | |
Branca | 55,7 | 59,0 | 53,9 | 59,1 | 56,5 | 61,0 | 74,6 | 75,5 |
Parda | 23,1 | 25,8 | 18,0 | 20,1 | 15 | 16,9 | 6,3 | 6,2 |
Preta | 5,4 | 5,8 | 4,4 | 5,2 | 3 | 3,8 | 0,8 | 0,8 |
Negras | 28,5 | 31,6 | 22,4 | 25,3 | 18,1 | 20,8 | 7,1 | 7,0 |
Fonte: Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq, 2015).
A partir da Tabela 1, observa-se que, não obstante o volume total de bolsas de produtividade em pesquisa do CNPq reflita o grau de desigualdade entre homens e mulheres, o volume de bolsas destinadas às mulheres brancas em relação às mulheres negras, ao longo de toda a trajetória acadêmica, intensifica essa desigualdade. Do total de bolsas ocupadas por mulheres ao nível da Iniciação Científica, cerca de 30% são ocupadas por mulheres negras.
Com efeito, deve-se destacar que no percentual de mulheres negras que ascendem e se destacam no campo da produção do conhecimento, embora elas estejam presentes em todos os campos do saber, esta participação varia abruptamente “[...] de acordo com a área do conhecimento: mulheres são a maioria em áreas ligadas ao cuidado e minoria nas áreas tecnológicas e exatas” (Benite et al., 2018, p. 4). As áreas onde as mulheres e sobretudo, as mulheres negras, conseguem maior inserção são, não por coincidência, aquelas de menor prestígio social, uma vez que, segundo o estudo de Benite et al. (2018, p. 7) “[...] as carreiras são marcadas pelo gênero e as profissões ditas femininas são mais desvalorizadas no mercado de trabalho”.
Nesse sentido, se faz necessário compreender o que se tem discutido na última década (2010-2019) acerca do protagonismo de intelectuais negras nos estudos divulgados em periódicos do campo da Educação, avaliados pelo Qualis Capes com estrato A1. Para isso, foi realizada uma revisão sistematizada da literatura. As concepções e procedimentos metodológicos estão descritos na seção seguinte.
Metodologia
Para dar conta dos objetivos apontados, tomou-se como referencial teórico-metodológico a Revisão Sistemática da Literatura. Esse tipo de estudo exige a formulação da questão, a localização dos estudos, a avaliação e seleção dos estudos (ou teste de relevância), análise e síntese (Segura Muñoz, Takayanagui, Santos, & Sanchez-Sweatman, 2002; Ramos, Faria, & Faria, 2014; Nunes, Silva, & Mercado, 2016; Dias, Silva, & Rios, 2020; Silva, Dias, & Rios, 2020a).
Segundo Segura Muñoz et al. (2002, p. 1), a revisão sistemática da literatura apresenta “[...] mudanças no perfil da revisão bibliográfica tradicional, constituindo-se em importante instrumento metodológico de pesquisa nas áreas da medicina, enfermagem e saúde pública baseadas na evidência”. Com efeito, estudos como os desenvolvidos por Ramos et al. (2014), apresentam possibilidades de apropriação desse método para o campo dos estudos em Educação, uma vez que se propõe a reunir as melhores pesquisas disponíveis e sintetizar seus resultados. Nesse sentido, seu maior contributo é “[...] integrar a informação existente sobre uma temática específica, através do agrupamento e análise dos resultados procedentes de estudos primários realizados em locais e momentos diferentes por grupos de pesquisa independentes, permitindo a geração de evidência científica” (Segura Muñoz et al., 2002, p. 1).
Nesse sentido, a questão norteadora dessa revisão sistemática foi delineada da seguinte forma: O que dizem os estudos que tomam como foco de suas investigações o protagonismo da mulher negra e que foram divulgados em periódicos do campo da Educação, avaliados no mais alto estrato?
Em face dessa questão norteadora, passou-se à definição dos meios para a localização dos estudos. Para isso, tomou-se por base os estudos de Nunes et al. (2016) que tomaram por base de dados o quadro de periódicos avaliados nos estratos do Qualis Capes2. Nesse estudo, os autores consideraram todos periódicos avaliados na área de Ensino, no quadriênio de 2013-2016, e foram consideradas apenas as revistas e artigos divulgados em língua portuguesa.
Para essa investigação, em face da questão norteadora, definimos como base de dados todos os periódicos avaliados na área da Educação, com estrato A1, na avaliação quadrienal de (2013-2016). A opção por esse recorte se justifica pelo fato da Capes ser a instituição responsável pela avaliação dos Programas de Pós-graduação no Brasil e esse ser o principal lócus de produção do conhecimento nesse país. Além disso, a avaliação quadrienal de 2013-2016 era a mais recente até o momento de desenvolvimento desse estudo.
Uma vez definida a base de dados, passamos à definição do período para o levantamento dos estudos. Nesse sentido, optamos por reunir as pesquisas que haviam sido publicadas na década anterior à realização dessa revisão sistematizada. Essa opção acompanha a tradição das Revisões Sistematizadas que comumente tomam o período de dez anos para a síntese e apresentação de evidências científicas acerca de um determinado tema (Silva & Mercado, 2015; Nunes et al., 2016; Dias et al., 2020; Silva et al., 2020a).
Foram definidas as bases de dados e o período que seria utilizado para a definição da localização dos estudos, bem como dos critérios de avaliação e seleção dos estudos (ou teste de relevância), passou-se à definição dos procedimentos de análise e síntese. Acerca dessa dimensão, Segura Muñoz et al. (2002, p. 1), consideram que:
A revisão é denominada Revisão Sistemática qualitativa, ou simplesmente RS, quando a informação obtida a partir dos estudos incluídos na revisão não é susceptível à análise estatística. Quando os trabalhos incluídos na revisão sistemática permitem realizar uma síntese estatística da evidência gerada, trata-se de RS quantitativa ou Metanálise, sendo o termo metanálise, o método estatístico utilizado para a análise numérica da RS.
Nesse sentido, não se pode classificar essa investigação como uma Metanálise uma vez que o método para geração dos resultados não foi estatístico, e sim qualitativo.
Na investigação aqui desenvolvida, a opção foi pelo recorte nas revistas mais bem classificadas na última avaliação quadrienal da Capes (2013-2016), ou seja, aquelas avaliadas com estrato A1. Não foi adotada a restrição de idioma para os periódicos ou para os artigos.
Desse modo, ao consultar a base de dados do Qualis Capes, foi selecionado como ‘Evento de classificação’a avaliação quadrienal de 2013-2016, a área de avaliação foi a de ‘Educação’, não foram assinalados os campos ‘ISSN’ nem ‘Título’. Além disso, a busca foi delimitada para os periódicos avaliados com estrato A1. A partir dessas opções, recuperou-se uma lista de 121 registros de periódicos. Contudo, o Qualis considera como itens distintos um mesmo periódico que tenha mais de um ISSN. Ou seja, se o periódico é divulgado nos formatos impresso e digital, esse recebe dois registros de ISSN3. Desse modo, ao refinar a busca, foram identificados 69 periódicos distintos.
Para o levantamento dos artigos com foco no protagonismo de intelectuais negras na produção do conhecimento, tomou-se como referências os estudos de Silva e Mercado (2015) e Nunes et al. (2016) que, ao invés de usar descritores para a busca e recuperação dos estudos, consultaram cada um dos números das revistas que foram divulgados no período investigado. Desse modo, foram observados todos os artigos divulgados nesses 69 periódicos no período de 2010 - 2019, um a um, verificados seus títulos e, quando necessário, seus resumos.
A partir do material levantado, passou-se à etapa da análise dos estudos que tinham como foco o protagonismo das mulheres negras na produção do conhecimento. Para essa análise, tomou-se como referência as estratégias propostas pelos estudos de Dias et al. (2020) e Silva et al. (2020a). Esses autores procederam a leitura do material levantado, unitarizaram os focos de investigação, categorizaram e sistematizaram os resultados apontados pelos interlocutores. A partir dessas opções metodológicas, a seção seguinte apresenta os resultados e análises emergentes desses movimentos de pesquisa.
Resultados e análises
Ao proceder inicialmente com a identificação dos periódicos avaliados com estrato A1 na avaliação quadrienal de 2013-2016 promovida pela área da Educação junto à Capes e na sequência, o levantamento dos estudos que tinham como foco o protagonismo das mulheres negras, foi possível identificar 69 revistas científicas e nessas, 18 estudos que eram de interesse dessa investigação. A Tabela 2 favorece a visualização do panorama geral dessa primeira etapa da pesquisa.
Título | Instituição Editora | ISSN(s) | Endereço eletrônico | EL |
Avaliação: Revista da Avaliação da Educação Superior | Rede de Avaliação Institucional da Educação Superior (RAIES), da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) e da Universidade de Sorocaba (UNISO) | 1414-4077 1982-5765 | http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_serial&pid=1414-4077&lng=pt&nrm=iso | 1 |
British Journal of Sociology of Education | Taylor & Francis | 0142-5692 1465-3346 | https://www.tandfonline.com/loi/cbse20 | 2 |
Cadernos de Pesquisa | Fundação Carlos Chagas (FCC) | 0100-1574 1980-5314 | http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_serial&pid=0100-1574&lng=pt&nrm=iso | 1 |
Educação em Revista | Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) | 0102-4698 1982-6621 | http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_serial&pid=0102-4698&lng=pt&nrm=iso | 2 |
Educar em Revista | Setor de Educação da Universidade Federal do Paraná (UFPR) | 0104-4060 1984-0411 | http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_serial&pid=0104-4060&lng=pt&nrm=iso | 1 |
Estudos Feministas | Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) | 1806-9584 | https://periodicos.ufsc.br/index.php/ref/index | 2 |
Gender and Education | Taylor & Francis | 0954-0253 1360-0516 | https://www.tandfonline.com/action/journalInformation?journalCode=cgee20 | 4 |
História, Ciências, Saúde -Manguinhos | Fundação Oswaldo Cruz | 0104-5970 1678-4758 | http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_serial&pid=0104-5970&lng=pt&nrm=iso | 3 |
History of Education | Taylor & Francis | 0046-760X 1464-5139 | https://www.tandfonline.com/toc/thed20/39/2?nav=tocList | 1 |
International Journal of Science Education | Taylor & Francis | 0950-0693 1464-5289 | https://www.tandfonline.com/toc/tsed20/38/18?nav=tocList | 1 |
Total | 18 |
Fonte: Os autores.
Observou-se uma predominância de estudos sobre mulheres acerca de temas como violência, cuidado, corpo, sexualidade, aborto e parto. Identifica-se estudos sobre o protagonismo das mulheres no exercício de atividades laborais nos mais diversos campos da atividade humana, no direito, na enfermagem, na gestão pública e de empresas privadas, na educação formal (educação básica e superior), no movimento sindical, em partidos políticos, bem como estudos sobre o protagonismo da mulher no campo do trabalho intelectual. No entanto, raríssimos foram os estudos que enfocavam o protagonismo das mulheres negras na produção do conhecimento.
A Tabela 3 permite a visualização da distribuição temporal dos artigos levantados.
2010 | 2011 | 2012 | 2013 | 2014 | 2015 | 2016 | 2017 | 2018 | 2019 | Total | |
British Journal of Sociology Education | 0 | 0 | 0 | 0 | 0 | 0 | 0 | 0 | 1 | 1 | 2 |
Cadernos de Pesquisa | 0 | 0 | 0 | 0 | 0 | 0 | 0 | 1 | 0 | 0 | 1 |
Educação em Revista | 0 | 0 | 0 | 0 | 0 | 0 | 0 | 0 | 2 | 0 | 2 |
Educar em Revista | 0 | 0 | 0 | 0 | 0 | 0 | 0 | 0 | 1 | 0 | 1 |
Estudos Feministas | 0 | 0 | 1 | 0 | 1 | 0 | 0 | 0 | 0 | 0 | 2 |
Gender and Education | 0 | 0 | 2 | 0 | 0 | 0 | 0 | 0 | 0 | 2 | 4 |
História, Ciência e Saúde | 0 | 0 | 1 | 1 | 0 | 0 | 0 | 0 | 0 | 1 | 3 |
History of Education | 0 | 0 | 1 | 0 | 0 | 0 | 0 | 0 | 0 | 0 | 1 |
International Journal of Science Education | 0 | 0 | 1 | 0 | 0 | 0 | 0 | 0 | 0 | 0 | 1 |
Revista da Avaliação da Educação Superior | 1 | 0 | 0 | 0 | 0 | 0 | 0 | 0 | 0 | 0 | 1 |
Total | 1 | 0 | 6 | 1 | 1 | 0 | 0 | 1 | 4 | 4 | 18 |
A partir da distribuição temporal dos estudos publicados no período de 2010 a 2019, observada na Tabela 3, não se pode afirmar que há uma tendência de crescimento ou de decaimento na divulgação científica de pesquisas com foco no protagonismo de intelectuais negras. Contudo, o que se pode ratificar em face do volume de número de revistas analisados em cada um dos 69 periódicos e do volume de estudos levantados, é que o cenário da produção do conhecimento socializado nos veículos de divulgação científica de maior destaque no campo da Educação, enquanto produtos humanos, ratificam a tese do racismo estrutural de Almeida (2019).
Com efeito, ao analisar as 18 publicações recuperadas, observou-se que esses foram escritos por 265 autoras e 36 autores. Esse dado indica que as mulheres estão mais engajadas com estudos que se interessam pela investigação do protagonismo de intelectuais negras no campo da Educação. Contudo, dentre aquelas e aqueles que compuseram esses 18 trabalhos, apenas um nome figurou em mais de um deles. O professor Paulo Fernando de Souza Campos escreveu em coautoria dois desses estudos. Esse quadro, sinaliza que há uma participação, ainda que tímida, dos homens em lançar luzes acerca desse campo de estudos; homens que reconhecem a necessidade de se engajar na construção de uma sociedade igualitária. Esse também é um cenário que precisa ser ampliado. Esse é um compromisso de todas e de todos e depende de um movimento para o qual todas as forças devem concorrer.
Além disso, foi possível observar que esses 18 estudos, do ponto de vista da metodologia utilizada, podem ser categorizados em pelo menos três tipos: a) Intervenções investigativas; b) Estudos documentais; e c) Estudos baseados em entrevistas. A primeira categoria só foi possível porque dentre os 18 trabalhos levantados, um deles, o estudo de Benite et al. (2018), referia-se à uma análise aprofundada de uma intervenção pedagógica desenvolvida no componente curricular de Química com foco no ‘Ensino de Ciências e Identidade Negra: estudos sobre a Química dos cabelos’. Esse estudo se baseou numa pesquisa participante entre os/as pesquisadoras/es e nove estudantes negras/os, sendo 14 meninas e cinco meninos do ensino médio (quatro da 1ª série, quatro da 2ª série e 11 da 3ª série) de uma escola estadual da região oeste de Goiânia.
Outros seis trabalhos levantados consistem em estudos documentais que se concentraram em recuperar as contribuições de uma determinada intelectual negra que se destacou no seu campo de atuação num determinado momento histórico, em análises narrativas baseadas em cartas, ou em investigações acerca de objetos de estudo contemporâneos a partir de documentos de organizações internacionais, legislações ou propostas curriculares. Bonelli (2017) se dedicou a dar visibilidade a processos globalmente difundidos que descentram o perfil docente, ao mesmo tempo em que engendram a estratificação interseccional de gênero e raça com titulação, localização regional, tipos institucionais e regime de trabalho7. O estudo de Cruz (2018) apresentou uma cartografia das pesquisas que trataram sobre a condição das mulheres e crianças negras no interior dos estudos que compuseram o programa de pesquisa da Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (Unesco) aplicado no Brasil, conhecido por ‘Projeto Unesco’, sobre relações raciais, em parceria com a Revista Anhembi de São Paulo entre 1950 e 1953. O trabalho de Leach (2012), foi motivado em face da pouca atenção dada à escolarização de meninas e missionárias anglicanas. Esse estudo analisou 71 cartas escritas entre 1804 e 1826 por mulheres e meninas associadas a uma sociedade missionária britânica na Serra Leoa. Já os trabalhos de Campos (2013), Cardoso (2014) e Campos e Carrijo (2019), se utilizaram da análise documental para dar visibilidade à biografia e a contribuição de intelectuais negras para os campos da Enfermagem (Maria de Lourdes Almeida), o campo do feminismo afro-latino-americano (Lélia Gonzalez); o legado de Virgínia Leone Bicudo para o campo da sociologia da infância no Brasil (Santos, 2018); e novamente o campo da Enfermagem (Lydia das Dôres Matta), respectivamente.
Pode-se afirmar que dos 18 estudos levantados, 11 emergiram de pesquisas qualitativas com foco em entrevistas, questionários e grupos focais. Observa-se que essa é uma tendência dos estudos do campo do gênero, sobremaneira dos estudos interseccionais.
O estudo de Silva e Euclides (2018), discorreu sobre o racismo institucional e a atuação de professoras doutoras negras em três universidades públicas localizadas no estado do Ceará e duas universidades públicas localizadas no estado do Rio de Janeiro. Utilizou-se de entrevistas semiestruturadas junto a nove docentes dessas cinco instituições. Lange, Mitchell e Bhana (2012) analisaram, a partir de um grupo focal, as vozes de professoras que ensinam em escolas da zona rural em KwaZulu-Natal, África do Sul, em torno de suas visões de gênero e violência. Hirshfield e Joseph (2012) investigaram como as mulheres (em geral) e as de cor (especificamente) percebem que seu gênero e grupo racial influenciaram suas experiências na academia. Para isso, foram realizadas entrevistas com 32 professoras que atuam em universidades públicas do Centro-Oeste brasileiro. Butler (2019), examinou a narrativa das histórias e experiências de mulheres afro-americanas como uma forma radical de captar suas formas de conceber uma pedagogia fundamentada na ética do cuidado. West (2019) realizou entrevistas semiestruturadas para analisar experiências de administradoras de assuntos sobre estudantes americanas que participaram de forma consistente da ‘Cúpula da Mulher Afro-Americana’ (AAWS) entre 2006 e 2004. Massarani e Lima (2012), enfocaram nos desafios para a ciência em Moçambique. A pesquisa deu-se a partir das considerações de uma entrevista com Lídia Brito, diretora da Divisão de Política e Capacitação em Ciência da Unesco e ex-ministra do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação de Moçambique. Chetcuti e Kioko (2012) investigaram, a partir de questionários, entrevistas e grupos focais, a extensão e profundidade das atitudes de alunas negras em relação às suas aproximações com as ciências. Crisostomo e Reigota (2010), investiram em compreender a condição de mulheres negras, docentes no ensino superior em universidades privadas da cidade de Sorocaba, estado de São Paulo, no período de 2000 a 2007. Para isso, realizaram entrevistas com três professoras (duas na ativa e uma aposentada). Stockfelt (2018), se debruçou sobre a questão da marginalização adicional das mulheres negras acadêmicas no Reino Unido. Esse estudo se baseou em narrativas de oito estudantes negras de instituições do alto escalão. Eriksen (2019), abordou a resistência escolar de meninas em minorias étnicas, sob o enfoque de análises psicossociais em extenso trabalho de campo e entrevistas com estudantes de uma escola secundária norueguesa. Por fim, enquadra-se nessa categoria metodológica o estudo de Alvarez (2012) que realizou uma entrevista com a Ministra da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, Luiza Barros, com foco na avaliação dos pontos de (des)encontro entre a luta antirracista e feminista no Brasil.
Do ponto de vista dos resultados que esses 18 estudos apontaram, é possível destacar que tais estudos sinalizam para o desenvolvimento de novos contra-espaços (e o aprimoramento dos contra-espaços existentes) para mulheres negras, no contexto do Ensino Superior e além (West, 2019). O estudo de Cruz (2018), demonstra que, no que tange às pesquisas históricas sobre as vivências da população negra com sua educação no Brasil, foi identificado que os movimentos que foram analisados nessas pesquisas potencializam experiências educacionais dedicadas às crianças negras e à condição das mulheres negras. Isso significa que se faz cada vez mais necessário investir na recuperação de propostas e sugestões dos sujeitos negros que pautaram as pesquisas sobre a constituição das questões raciais no Brasil, sobremaneira a participação efetiva das mulheres que atualmente habitam o ostracismo, seja nas pesquisas sociológicas ou nas pesquisas em educação.
A investigação desenvolvida por Lange et al. (2012) concluiu que as vozes das professoras, tanto em relação à sociedade, bem como no contexto escolar, falam sobre uma forte consciência do que é geralmente considerado o ‘fundamento’ da violência baseada em gênero, ou seja, a desigualdade que se manifesta em sua comunidade reflete dentro das escolas da zona rural em KwaZulu-Natal, África do Sul. Tal cenário reforça que o debate sobre racismo institucional jamais pode prescindir do debate e da luta contra o racismo estrutural, portanto da luta em favor da construção de uma outra sociedade.
O trabalho de Silva e Euclides (2018), demonstrou, a partir da análise das entrevistas, com professoras doutoras negras que elas significam sua presença no campo acadêmico como um ato de resistência. Contudo, trata-se de uma presença não apenas do ponto de vista quantitativo (do corpo presente) mais principalmente do ponto de vista qualitativo (do corpo de uma mulher negra presente e em ação, a favor de outras mulheres negras e da diversidade).
O estudo de Bonelli (2017), evidenciou que o panorama geral dos cursos de Direito em países como Alemanha, Estados Unidos, Reino Unido e Brasil, revela que esse é um nicho elitista, majoritariamente masculino e branco. A maioria esmagadora das poucas mulheres que conseguem se inserir nesse nicho, são brancas e de classe social alta. Ainda assim, essas, geralmente são vinculadas às disciplinas tidas como as de menor prestígio curricular e geralmente ligadas à questão do cuidado. Especificamente no caso das mulheres negras docentes da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), dos/das 170 professores/as que a compunham, à época da pesquisa, 29 eram mulheres e dessas apenas uma é negra. A realidade não é distinta no curso de Enfermagem, por exemplo. A investigação de Campos (2013) evidenciou os movimentos de luta para inserção de mulheres negras afrodescendentes que foram impedidas, real ou simbolicamente, de ingressar no espaço acadêmico da enfermagem brasileira.
Os resultados da pesquisa participante desenvolvida por Benite et al. (2018), demonstraram que a intervenção pedagógica planejada e desenvolvida possibilitou questionar discursos que reforçam as discriminações e os estereótipos. Também apresentou alternativas didáticas para professoras e professores de Química trabalharem temas relacionados às questões Étnico-raciais a partir dos saberes mobilizados nesse componente curricular. Trata-se de uma proposta de ensino de Química antirracista, e nesse sentido, de uma proposta curricular antirracista.
Hirshfield e Joseph (2012), a partir da análise da tributação de identidade de gênero e de raça expressas nas falas das participantes da pesquisa, concluíram que esse é um problema comum para as professoras em suas experiências acadêmicas. Isso lhes inflige opressões físicas e emocionais. Dentro do espaço acadêmico, a tributação dessas identidades afeta na contratação, na permanência, na saúde e na produtividade dos membros que são tomados. O reflexo disso é a construção de uma universidade elitista, masculina e branca, que se esforça para exclusão social baseada nos pilares gênero, raça e classe.
Butler (2019), demonstrou que a colcha de retalho, para as mulheres afro-americanas, é uma construção de sua identidade a partir das representações grupais, além de proporcionar as discussões no cenário político e social, se configura como espaço-tempo de debate sobre questões de violência de gênero e racial que envolvem as mulheres negras. Essa colcha de retalhos, produzida por estas mulheres, representa ainda sua fraternidade e a forma como seus saberes podem se materializar numa pedagogia da resistência.
Massarani e Lima (2012), alertam que a ciência não é para todos, porque não é produzida por/para todos. Nesse mesmo sentido, Campos e Carrijo (2019), acrescentam que tais inquietações exigem novas incursões sobre o protagonismo das mulheres negras nas ciências. Suas vidas e trabalhos traduzem os esforços contra a opressão permanente na sociedade brasileira, que vilipendia e restringe o reconhecimento das atuações dessas mulheres negras na sociedade e, portanto, dentro da academia. Essas constatações ecoam nos resultados apontados por Chetcuti e Kioko (2012) que demonstraram que a maioria das meninas quenianas que participaram do estudo têm uma atitude favorável em relação à ciência. Verificou-se que as meninas das escolas SS tinham uma atitude mais favorável do que as das escolas de ensino médio, enquanto as meninas das escolas da área rural consideraram a ciência mais relevante do que as das escolas urbanas. Emergiu deste estudo que as atitudes das meninas quenianas são influenciadas por suas percepções de relevância da ciência, o prazer de estudar ciência, a percepção da adequação da ciência para uma carreira e suas percepções da dificuldade do sujeito. Portanto, trata-se de uma questão que, no plano dos fenômenos, se apresenta com maior ou menor intensidade, mas que, na prática, é universal. As mulheres negras são alijadas da produção do conhecimento científico não porque não se interessam, mas porque o racismo e o machismo, que estruturam esse modelo de sociedade, as impedem.
Do mesmo modo, Crisostomo e Reigota (2010), sustentam que a condição da mulher negra como professora universitária é de exclusão. Nesse estudo, a autora e o coautor, defendem que, no momento em que a mulher negra se fizer mais presente, como docente na universidade e em posições sociais e profissões em que antes não lhes era permitido, promover-se-á a construção de identidades diversificadas, com novos modos de existência e representações que poderão contribuir para a consolidação de uma sociedade plural. Ou seja, uma outra sociedade. Essa máxima é corroborada no estudo de Stockfelt (2018) cujas narrativas fornecem implicações para políticas e pesquisas futuras acerca do protagonismo de mulheres negras nas ciências.
O estudo de Eriksen (2019) apresenta, por meio da oposição escolar, que as meninas estão constituindo uma feminilidade transgressora que não compromete sua pertença étnica ou sua feminilidade na escola. Nessa mesma direção, os resultados do estudo de Alvarez (2012), evidenciam o poder da mulher negra nos contextos políticos e nas lutas de militância. Como exemplo disso é possível citar os projetos de leis protagonizados e difundidos no Brasil por essas mulheres. Ainda nesse sentido, os resultados do estudo de Cardoso (2014), concluem que quando uma mulher negra ocupa o centro do palco na produção do conhecimento de uma determinada área, essa protagoniza um ato de resistência e, apoiada em suas irmãs, abre espaços para que outras possam ascender. Nesse sentido, os resultados dos estudos de Leach (2012) sustentam que, desafiar as normas de gênero e de raça, é desafiar toda a estrutura social.
Considerações finais
Evidencia-se, a partir das narrativas acerca dos primeiros estudos feministas e do volume de estudos recuperados na primeira etapa dessa investigação, a condição estrutural do racismo na sociedade capitalista. Não é possível desse modo, vislumbrar um panorama social genuinamente igualitário sem que se considere o caráter interseccional de raça, classe e gênero.
A urgência desse debate não repercute no volume de estudos com foco no protagonismo de intelectuais negras no campo da Educação. O que se constata é que esse é um campo de pesquisa latente e carente de investigações. Além disso, a maioria dos estudos encontrados se baseia em um reduzido campo de abordagens metodológicas. Esse quadro aponta a necessidade de que outros olhares e novos percursos de pesquisa sejam enveredados de modo a lançar luzes acerca dessa questão e com isso, apontar possibilidades para a construção de uma sociedade igualitária.
Outra lacuna que se pode apontar é a que se revela a partir da constatação de que, dentre os 69 periódicos que são listados como A1 pela metodologia do Qualis Capes, na área de Educação, apenas 11 deles divulgaram algum estudo com foco no protagonismo de intelectuais negras. Desses 11 periódicos, 6 são editados por instituições públicas brasileiras e os outros 5 são editados pela instituição inglesa Taylor & Francis. Ou seja, em face do volume de números de revistas analisados, do volume de estudos levantados e da baixa diversidade de comitês editoriais que divulgam esse tipo de estudo, ratifica-se a tese do racismo estrutural cuja faceta observada recai sobre a produção do conhecimento no campo da Educação.
Observa-se ainda que, dentre os estudos levantados a quase totalidade deles foi produzida por mulheres. Para a construção de uma sociedade igualitária, esse é um cenário que também precisa ser alterado. O destaque da presença das intelectuais negras, no cenário da produção do conhecimento, é um compromisso de todas, mas também de todos, que estão engajadas e engajados em exercer uma contracorrente em favor da implosão dos alicerces dessa sociedade desigual e com vistas à uma sociedade cada vez mais humana.
A partir da análise dos dados que foi tecida até esse momento, é possível sustentar que, essa verdade é generalizada para todos os campos da produção do conhecimento. Desse modo, é imprescindível que nos levantemos atentas e atentos para a construção de uma outra sociedade na qual sejamos livres das desigualdades que subjugam os seres humanos. Para isso não se pode jamais prescindir da análise interseccional das categorias raça, gênero e classe.