Durante os anos de 1922 e 1923, aproximadamente 2.300 pessoas emigraram da Letônia e fundaram uma colônia em meio à floresta nativa do interior de São Paulo. Uma viagem que durava de 30 a 40 dias, em navios que saíram principalmente do porto de Hamburgo, na Alemanha (TUPES, 1988). O grupo foi estimulado por um movimento religioso entre os protestantes batistas letões, que se denominava “Despertamento”1.
A Letônia, país da Europa Setentrional, tem uma história de dominação por povos estrangeiros, com seus cidadãos colocados sob regime de servidão e escravidão, até o final do século XX2. A busca por liberdade religiosa e novas possibilidades de vida esteve entre os principais motivos para a migração ao Brasil, com o apoio de letões de outras colônias presentes no país sul-americano (TUPES, 1988; RONIS, 1974).
As terras adquiridas pelos imigrantes letões para fundarem a colônia foram denominadas de Varpa e eram agregadas ao município de Campos Novos (SP). Além de serem inabitadas, eram distantes aproximadamente 30 quilômetros da estação de trem de Sapezal, outro distrito do mesmo município, onde iniciava o acesso à colônia, por uma trilha que cortava a mata.
O primeiro grupo desembarcou no porto de Santos em 26 de outubro de 1922 e seguiu no trem que era especificamente destinado aos que imigravam e os levava diretamente à estação ferroviária anexa à Hospedaria de Imigrantes, no bairro do Brás, na cidade de São Paulo. O trajeto era feito em algumas horas e as bagagens seguiam separadamente. Após avaliação médica e orientações, dentro de alguns dias, os imigrantes eram despachados também por trem para alcançarem os locais de destino no interior do estado3 (CHRYSOSTOMO e VIDAL, 2014).
O grupo de imigrantes letões seguiu por trem da Estrada de Ferro Sorocabana para a estação em Sapezal, a mais próxima do local comprado4 para a formação da colônia. Ao chegarem à Sapezal, após uma noite de descanso, seguiam viagem por dentro da floresta, até as margens do Rio do Peixe, onde se situava a Fazenda Pitangueiras, que havia sido comprada e se tornou a colônia de Varpa. Apesar da denominação “fazenda”, a única estrutura construída até então era um barracão para caçadores em meio a uma grande área de mata nativa (TUPES, 1988; RONIS, 1974).
O primeiro grupo de imigrantes chegou ao local da colônia em 1 de novembro de 1922, sendo composto por 437 letões5, com homens e mulheres das mais diversas faixas etárias. Ao longo de 1922 e 1923, chegaram a Varpa diversos grupos, que totalizaram mais de dois mil imigrantes6. Havia poucos recursos e condições de vida e subsistência, porque além de não terem materiais básicos, não havia alimentos suficientes disponíveis, por estarem afastados de locais de comércio, além de que ainda precisavam desmatar para plantar as lavouras e caçar, se quisessem obter proteína animal para suprir as necessidades de um grande grupo de pessoas (TUPES, 1988; RONIS, 1974).
Os primeiros anos da colônia foram árduos para os novos imigrantes, pois entre eles havia bebês, crianças, jovens, adultos e idosos de ambos os sexos. A adaptação ao clima, as dificuldades para garantir a alimentação, o preparo da terra e a falta de recursos foram alguns dos desafios enfrentados. As precárias condições precipitaram as mortes na nova terra, principalmente nos extremos de idade.
Segundo Tupes (1988), o primeiro óbito se deu em 19 de novembro de 1922, dezessete dias após a chegada do primeiro grupo. Conforme a autora, tratava-se de uma criança que, por causa de uma alimentação escassa e árduos trabalhos de sua mãe, que não conseguiu mais amamentá-la, passou a lhe oferecer caldo de feijão, pois não havia leite ou outros alimentos adequados à idade. O próprio pai construiu uma pequena urna, para então sepultar seu filho.
O primeiro cemitério de Varpa, denominado "Cemitério dos Pioneiros", está pouco preservado, mas nele foi erigido um monumento com placas, apresentando os nomes e as datas de nascimento e falecimento dos que ali se encontram sepultados. Com base nestes registros, o primeiro óbito ocorreu em 14 de novembro de 1922: um pequeno menino, que faleceu com um ano e sete meses de idade. O segundo ocorreu em 19 de novembro de 1922: um bebê de 10 meses. Tais pistas corroboram as informações de Tupes (1988).
Até a data de 29 de dezembro de 1922, haviam falecido 17 imigrantes, sendo um homem com 77 anos e os demais com idades entre 5 meses e 6 anos. Durante o ano de 1923, morreram 137 imigrantes, seguidos por mais 19 em 1924 e por outros 14, em 1925. Houve um óbito sem definição de data. Assim, foram 188 falecimentos entre novembro de 1922 e 20 de novembro 1925, data do último identificado por meio da listagem extraída das placas do memorial do cemitério dos pioneiros.
Ao serem classificados por faixa etária, ocorreram 27 (14,4%) óbitos de crianças de até 12 meses de idade, 59 (31,4%) da idade de 1 a 5 anos, 22 (11,7%) entre 6 e 14 anos e 2 (1,1%) dos 14 aos 18 anos. O total de mortos até 18 anos chegou a 110 pessoas (58,6%). Acima de 18 anos, ocorreram 74 óbitos. Dois registros não apresentavam ano de nascimento, não sendo possível estabelecer a idade.
Foram registrados outros dois indivíduos, cujos nomes não correspondiam aos de letões, aparentando serem de brasileiros, ambos com óbito ocorrido em 1925. Os números corroboram o estudo de Wenczenovicz (2007), que pesquisou sobre o luto nas colônias polonesas, durante a primeira metade do século XX, no Rio Grande do Sul. A mortalidade infantil também foi elevada entre esses imigrantes, desencadeada por precárias condições socioeconômicas, isolamento e doenças que assolavam a localidade, situação análoga à experimentada pela colônia dos letões.
Na cidade de São Paulo, identificou-se que a porcentagem de óbito de menores de um ano alcançou 31,3%, em 1901 (BUCHALLA, 2003). Na região do Brás, onde ocorria uma aglomeração de imigrantes, a taxa de mortalidade de menores de 5 anos correspondia a 74% dos óbitos em 1904. Esses números evidenciam a fragilidade das crianças imigrantes, que sofriam com as precárias condições de vida, o que desencadeava doenças gastrointestinais, como enterite e enterocolite, ou respiratórias, como as bronquites, broncopneumonia e pneumonia (BASSANEZI, 2018).
O livro oficial de registro de sepultamentos de Varpa iniciou em 2 de janeiro de 1939 e, das páginas 95 a 97, são apresentadas as informações dos óbitos anteriores à sua abertura. Elas registram 89 nomes, mas somente 25 com indicação da data, sendo um de 1926, dois de 1927 e um de 1929. Os demais são de anos posteriores. A maior parte contém o nome e o número de ordem, sem as demais informações.
Devido aos escassos registros, os números de mortes nos primeiros anos da colônia de Varpa podem ser somente aproximados. Os dados existentes levam a deduzir que doenças associadas às condições deficientes de subsistência provavelmente levaram à ocorrência de falecimento desses imigrantes.
Bassanezi (2018) apontou que os imigrantes chegavam ao Brasil em condições precárias de saúde, afetadas pela viagem extenuante e precária. Após passarem pela Hospedaria de Imigrantes, aqueles que ficaram em São Paulo, na região do Brás, encontraram trabalhos e casas em condições insalubres e uma alimentação insatisfatória. Esse conjunto de fatores levou diversos imigrantes, principalmente crianças, a serem vitimados pelas afecções gastrointestinais e pulmonares.
Entre o final do século XIX e o início do XX, o estado de São Paulo experimentou um período de modernização, financiada pelo dinheiro proveniente do café. Houve desenvolvimento dos serviços sanitários, influenciado pelas políticas de imigração e receio de doenças que poderiam evoluir para epidemias, advindas com os estrangeiros. Porém a capital concentrou a oferta desses serviços, como a Hospedaria de Imigrantes, o Departamento de Trabalho do Estado e o Desinfectório Central do Serviço Sanitário de São Paulo (MARQUES, AFONSO e SILVEIRA, 2014).
Também, em 1912, foi fundada a Faculdade de Medicina e Cirurgia de São Paulo, a primeira instituição de ensino médico do estado, conhecida hoje como Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (MORAIS, 2012). Na década de 1920, a saúde surgiu como questão social no Brasil e pelo Decreto nº 15.003, de 15 de setembro de 1921, conhecido como Reforma Carlos Chagas, procurou reorganizar e criar uma compreensão sanitária na sociedade, imputando regras que deveriam ser seguidas pela população, para alcançarem um estado idealizado de saúde.
Também foi ampliada a relação do Governo Federal com os estados, com a criação do Departamento Nacional de Saúde Pública, composto por profissionais que atuavam como inspetores e fiscalizadores do cumprimento do regulamento sanitário (GIOVANINI, 2005; LIMA e PINTO, 2003).
Assim, os imigrantes que se mantiveram na cidade de São Paulo tinham maior possibilidade de acesso a cuidados e tratamentos de saúde. Mas aquele que se dirigia ao interior, encontrava uma realidade diferente. Os núcleos coloniais eram independentes, mas eram muito mais considerados apenas braços para o trabalho na lavoura cafeeira, do que para o intuito de povoamento
Para Ferlini e Filipini (1992), estabelecer os imigrantes em núcleos foi uma estratégia dos fazendeiros de café para não terem que sustentar as famílias, pois eles eram úteis somente no período da colheita. Quando Carlos Botelho ficou à frente da Secretaria de Agricultura do Estado de São Paulo, os núcleos tiveram novas estruturas e foram localizados em terras férteis próximas às linhas férreas.
Entretanto, seu objetivo era o povoamento de terras distantes, nos moldes da colonização americana. Ainda assim, eles eram trabalhadores das fazendas de café e, no oeste paulista, a pequena propriedade particular passou a ser uma forma de atrair imigrantes ou como reservatório de mão-de-obra (FERLINI e FILLIPINI, 1992).
Com o Decreto nº 2.400, de 9 de julho de 1913, sobre imigração, colonização e patronato agrícola em São Paulo, os núcleos coloniais eram formados e os lotes concedidos pelo governo do estado. Neles, haveria um diretor, que encaminhava relatórios à Secretaria de Estado quanto aos pagamentos dos lotes e o núcleo contaria com um médico e com um ajudante administrativo, sendo todos mantidos pelo governo.
O médico seria acionado conforme a necessidade de atendimento, mas deveria fazer visitas periódicas, encaminhar à Secretaria de Agricultura um relatório quanto ao "estado sanitário" e propor medidas que poderiam auxiliar nas condições de saúde do núcleo (SÃO PAULO, Decreto nº 2.400, 9 de julho de 1913, Artigo 183). Assim, houve uma preocupação de controlar a saúde, possivelmente com o intuito de minimizar riscos de doenças que poderiam se alastrar.
Não foi identificado algum tipo de apoio à saúde dos imigrantes para aquelas colônias que não se encontravam sob controle do estado, como estava a de Varpa, uma terra adquirida de forma privada pelo próprio grupo, em compra direta do seu proprietário. Portanto, a administração interna seria determinada pelo que o grupo alcançasse com seu próprio esforço ou decidisse de forma coletiva.
Neste sentido, organizar um conjunto de pessoas que pudesse prestar assistência aos imigrantes doentes era essencial na situação de isolamento geográfico em que se encontravam. Aqueles que tinham alguma experiência ou formação poderiam suprir algumas dificuldades do grupo, como no caso dos imigrantes Gustavo Narkevics e Aleksandrs Áboliņs.
Narkevics, segundo Ronis (1974), atuou como enfermeiro e farmacêutico durante a Primeira Grande Guerra, adquirindo uma "experiência razoável" durante esse período (RONIS, 1974, p. 237). Áboliņs tinha formação em Medicina Veterinária, em “Voroñeža”7, subentendendo que atuava a serviço do exército russo, uma vez que cuidou de um grupamento de cavalaria russa e depois foi chefe dos veterinários no distrito de Riga (K, 1937).
Pouco foi relatado sobre a atuação deles, somente que, de alguma forma, lideraram a atenção à saúde. Mas são encontrados em menor quantidade registros das mulheres que participavam e eram denominadas de “enfermeiras”. Muito provavelmente, elas se mantiveram no cuidado direto aos doentes e ficaram próximas das dores e dificuldades de cada indivíduo.
Os imigrantes pouco conheciam sobre as enfermidades que ocorriam no Brasil, pois as notícias veiculadas pelas mídias e pelo governo brasileiro tinham direcionamentos em tom promissor, sem maiores menções às doenças e outras dificuldades. O desflorestamento em todo o país, resultante das políticas de expansão, colonização de áreas consideradas “despovoadas”8, a construção de ferrovias e o grande crescimento econômico com a ocupação do espaço agrário promoveram a disseminação de doenças transmitidas por vetores, como a Malária, Leishmaniose, Febre Amarela, Peste e Doença de Chagas (JOVIANO, 2011; BARATA, 2000).
As condições precárias de vida no início da colônia podem ter favorecido o desenvolvimento de doenças como as gastroenterites, que desencadeiam diarreia e desidratação, uma das grandes causas de mortalidade infantil ainda ao final do século XX (BOSCHI-PINTO, VELEBIT e SHIBUYA, 2008).9 Ou seja, por um século ela permaneceu uma das causas mais prevalentes de mortalidade infantil. Considerada uma doença infecciosa, durante a década de 1930, essa patologia chegou a ser a causadora de 50% dos óbitos no Brasil, estando entre as principais razões do falecimento de menores de 5 anos na zona rural do país (BARRETO et al., 2011).
Associada às doenças, havia ainda a dificuldade de acesso aos cuidados de saúde. No início da colônia, foi organizada uma enfermaria, conduzida por Narkevics e Áboliņs, porém, pela dificuldade de recursos ou mesmo de conhecimento, pouco podiam oferecer aos imigrantes acometidos pelas doenças tropicais (RONIS, 1974).
Com as inúmeras perdas, o processos de morte passaram a fazer parte do cotidiano da colônia, cercando as expectativas de cada imigrante e suas famílias. Ao considerar este quadro mais geral, buscamos identificar textos sobre a finitude da vida na revista Rihta Rasa (Orvalho Matinal10). Este impresso foi publicado entre 1925 e 1939, na tipografia situada na Fazenda Palma11, fundada por um grupo desses imigrantes letões de Varpa. Suas edições estão preservadas no acervo da fazenda, que desde 2018 voltou a ser administrada por uma corporação formada por descendentes de imigrantes e apoiadores de sua preservação (DIÁRIO TUPÃ, 2020)12.
Seu conteúdo era direcionado ao público infantil e sua publicação era mensal, em tamanho 12,2x16,7 cm, contendo oito páginas cada edição. Foi impressa em papel jornal, de espessura mais fina em seu miolo, além da capa com o mesmo tipo de papel, mas com gramatura maior. Era distribuída de forma gratuita como suplemento da revista Meera Wehsts (Mensageiro da Paz), que tinha um conteúdo predominantemente de caráter religioso e educativo.
A revista ainda não foi localizada em outros acervos13, mas foram doados alguns exemplares por descendentes de letões que contribuíram com a campanha para a formação da biblioteca da Tipografia da Fazenda Palma. Há possibilidade de ser uma publicação que poucos tenham guardado, por ser direcionada ao público infantil e devido ao formato e papel utilizados, que a deixavam mais vulnerável às intempéries do tempo.
Foi realizada uma busca nas publicações dos anos correntes de 1925 e 1926, com o intuito de identificar e analisar nos textos as representações referentes às doenças, à morte e ao morrer14, neste caso endereçadas às crianças da colônia. Como procedimento, identificamos as matérias que se referiam aos processos de adoecimento, saúde, morte ou dificuldades de sobrevivência. Com isso, optamos por agrupar os temas por similaridade, de modo a evitar uma ação impressionista e/ou tratamento aleatório das fontes (BARROS, 2020).
Os anos aqui elencados não representam o conjunto da coleção da revista, já que ainda não foram recuperados os números do período de 1927 a 193015. No acervo da Fazenda Palma, há exemplares dos anos de 1925, 1926 e a partir de 1931. Apesar de tal incompletude, consideramos que os números iniciais possuem material indiciário que permite refletir a respeito das condições de produção desses enunciados, bem como das situações das crianças e os desafios enfrentados durante o início da colônia16, frente às doenças e ao risco de morte.
A escolha de textos literários para a análise do tema possibilita que exploremos as representações acionadas pela perspectiva do adulto, visto que os textos e a própria revista não são produzidos por crianças. Apesar de não ser o objetivo desta pesquisa, a exploração dos escritos também permite observar elementos do mundo infantil e da cultura que o envolvia, a partir da construção de universos narrativos por seus autores, com seus signos, que se constituem como representações de uma realidade (GOUVEA, FARIA FILHO e ZICA, 2007).
Porém, identificamos que o organizador do periódico, J. Rosenberg, incentivou que os pequenos escritores (Masajeem rakstnekeem) enviassem contos, poemas e reflexões para serem publicados. Essa oportunidade foi exposta ao final da edição número 8, de 1926. Assim, há possibilidade de alguns dos textos terem sido expressões das próprias crianças, leitoras da revista.
Rosenberg, que utilizava os pseudônimos de Kalnu Jekabs (Jacó do Monte) e Dzintars (Âmbar), era escritor, poeta e considerado um líder entre os jovens imigrantes (IŅĶIS sen, 1948). Assim, podemos considerar que ele foi um dos idealizadores e incentivadores da imprensa dos imigrantes letões de Varpa e, como pudemos identificar, também estimulava que as produções literárias ocorressem desde a infância.
O ORVALHO MATINAL E SUA COLABORAÇÃO À EDUCAÇÃO INFANTIL DE IMIGRANTES LETÕES
A revista Orvalho Matinal iniciou sua publicação em 1925, como suplemento do periódico Meera Wehsts (Mensagem de Paz). O editor, Arvido Eichmann, em conjunto com J. Rosenberg e J. Bukmanis, fez uso de uma máquina impressora manual seminova17, que levaram à fazenda de café em que trabalhavam, na região de Dourado (SP)18.
Enquanto Eichmann produzia a revista para o público geral, seu auxiliar Rosenberg editou o suplemento para o público infantil. O primeiro número saiu ao final de 1925 e o segundo com a data de 1926, seguindo a sequência até o 12º, neste mesmo ano.
No conjunto de fascículos encontrados, estão encadernados os 12 números publicados entre 1925 e 1926. Na capa, há o título da revista e, abaixo, a inscrição do ano de 1926, seguida de uma imagem com um casal sentado e um rapaz em pé, que aponta para algo sobre a mesa. A ilustração aparenta que o homem sentado está escrevendo e, no chão, atrás do seu banco, há algo semelhante a uma folha de papel. Próximo aos pés da mesa, há um objeto que alude a um tinteiro. O rapaz de pé usa uma boina e segura um objeto quadrado abaixo do braço direito, que poderia representar um livro ou revista (Figura 1).
O primeiro número traz, logo abaixo do nome, a identificação dos gêneros textuais presentes, Stahstiņi un dsejas behrneem (Contos e poemas para crianças), colocado entre o número da edição e o ano (Figura 2).
No acervo da Fazenda Palma, foi possível recuperar um número avulso dessa primeira edição, que continha uma anotação de que fora distribuído como lembrança de Natal, em dezembro de 1925, na Igreja Batista Leta da cidade de Nova Odessa. Tal informação sugere que, mesmo sendo uma impressão inicial, ela circulou fora da colônia de Varpa.
Inicialmente, considerando a diversidade dos gêneros textuais que abordam a problemática da finitude, exploramos os contos para, em seguida, trabalharmos com os poemas, em especial o selecionado nesta pesquisa19. O primeiro número apresenta um conto intitulado Neredsiga Ansischa bilschu grahmata (Livro de gravuras para a cega Ansi), publicado do final da página quatro, até o início da página sete.
A protagonista do conto em questão é uma menina cega chamada Ansi, que mora com a mãe, pois o pai havia falecido quando ela tinha 3 anos. Na história, ela pergunta se o menino Jesus pode devolver-lhe a visão como presente de Natal. A mãe, em lágrimas, afirma que sim, era algo que poderia ocorrer, se ela pedisse de coração. Durante a noite da véspera natalina, Ansi faz sua oração e a mãe pensa que esse poderia ser o último pedido de sua filha, que estava muito fraca e doente.
Durante o sono, a criança tem um sonho, em que anjos a levavam para conhecer lindas imagens contidas em um livro. A garota acorda muito feliz e conta para a mãe a sua experiência, a qual pressente ser um aviso. Ela deixa sua filha em casa para ir ao trabalho. Ao retornar, encontra-a dormindo tranquilamente. Ao acordar na manhã de Natal, a mãe descobre que durante a noite sua filha partiu, que os anjos a levaram para passar o Natal junto ao menino Jesus e enxergar tudo o que ela queria.
O conto foi assinado por Zeļineeks, que no letão moderno seria Ceļinieks (Viajante). Dentre os imigrantes, havia vários literatos, que escreviam poemas e contos, cabendo ressaltar que muitos assinavam seus textos com pseudônimos (VILMANE, 2019)20.
O segundo conto, intitulado Atvehrtas durwis (Portas abertas), ocupa as páginas sete e oito ainda do primeiro fascículo. Esse texto abordou as dificuldades de uma família quanto à obtenção de alimentos, o que pediam diariamente em suas orações. Ao indagar a mãe, o menino perguntou se Deus havia mandado pão por meio de corvos a uma pessoa necessitada, recebendo uma resposta positiva. Então, o garoto se dirige até a porta e a abre, assinalando que assim os pássaros poderiam entrar.
Neste momento, o prefeito da cidade, vestido de preto, mesma cor das penas do corvo, está passando e convida o menino a ir até sua residência, onde entrega pão e manteiga para levar à sua família. Ao regressar para casa, entrega os alimentos à mãe, que os reparte entre todos, então o garoto se dirige à porta e, olhando para o céu, agradece em voz alta a Deus pelo alimento. A assinatura do conto indicou que foi uma tradução feita por Alfreds, mas não cita a origem da versão.
O mesmo fascículo apresentou o conto Luhgshanas meitene (Menina da oração), nas páginas 21 e 22. A história, de autoria de Svešinieks (Estrangeiro), focalizou a menina Wijolite (Violeta), de seis anos, a qual sempre fazia orações por seu pai, que era soldado. A cada saída para a guerra, ela tinha conhecimento de que poderia não mais vê-lo. À noite, ao orar, pedia a Deus que protegesse o pai durante a batalha, para que não morresse. O pai retornou vivo e ela fica conhecida como a menina da oração.
O fascículo cinco, das páginas 36 a 38, abordou a história do garoto imigrante Misha, que veio da Rússia com sua família para o Brasil. Escrito por O. Sware e intitulado Nehraudi mahmin - labak luhds! (Não chore mamãe - melhor orar!), apresentou aos seus leitores a condição de adoecimento do garoto, situação que afetava sua visão do novo mundo ao redor. Detalhou os sintomas da doença, como a sensação de cabeça pesada, o ar quente que vinha de sua expiração e a febre que o deixava encharcado de suor.
Ao redor de sua cama, os adultos estavam sentados e sua mãe chorava. No texto, foram expressos os pensamentos dela, repletos das preocupações de estar em uma terra nova, com um povo novo, um idioma novo e ainda com uma criança doente. Um médico foi visitá-lo, tendo acenado negativamente com a cabeça, o que suscita uma compreensão de que não havia muitas possibilidades de cura da criança.
A evolução da doença foi descrita detalhadamente pelo autor, bem como o agravamento dos sintomas. Apesar de estar em estado avançado de adoecimento, em um trecho do conto, o garoto reconheceu a mãe e perguntou porque ela chorava. A resposta refletiu a angústia materna, frente à possibilidade de morte de seu filho, "Como posso não chorar, filhinho, você está tão doente. Eu sinto muito por você"21.
Diante da aflição materna, o garoto respondeu o que se tornou o título do texto, "Não chore mamãe - melhor orar!". A mãe se apoiou em sua fé em Deus e em orações pelo filho. Apesar de todo o quadro caracterizado, o garoto sobreviveu e, na conclusão do texto, o autor apontou a fé e a oração como fundamentos do cristão. Ao finalizar, o narrador reafirmou que Deus sempre ouve, entende e atende.
O último texto encontrado que abordou sobre doença e morte foi publicado ao final do fascículo sete. Intitulado Mahmin, uhdeni! (Mamãe, água!), esse pequeno conto foi composto por dois parágrafos, de quatro e de três linhas, com o autor identificado como D. O texto iniciou com a frase do título, pronunciada por uma pequena menina doente e acamada. Seu pedido foi atendido, porém ao levarem água para a criança beber, ela diz que quer água para se lavar, porque quer encontrar seu Salvador (subentende-se que estava se referindo a Jesus Cristo) como uma rosa branca como a neve e que o encontrará em ruas de ouro, onde “...o impuro não pode entrar”22.
Nestes cinco contos, as fragilidades ou necessidades da vida funcionaram como eixo condutor, acopladas a uma dimensão religiosa, a que os personagens se remetem para mitigar ou mesmo resolver os problemas enfocados. Pode-se compreender que seus autores apresentaram formas e estratégias para que seus leitores pudessem compreender e se portar em momentos de dificuldades físicas.
Vilmane (2019), ao se referir à produção de gêneros da Literatura em Varpa, apontou que possivelmente as difíceis condições de vida, as preocupações de sobrevivência e a consciência da própria insignificância terrena tenham encorajado a expressão dos sentimentos através da criação literária.
Os poemas eram muito frequentes nas publicações dos impressos produzidos na tipografia da colônia de Varpa. No Orvalho Matinal, mesmo sendo direcionado ao público infantil, alguns também foram publicados e os conteúdos apresentados exploram o universo que, atualmente, seria considerado como direcionado ao público geral, porque não são do gênero fantasia ou de conteúdo infantil e abordam maturidade, vida, fé e as condutas.
Assim, de acordo com a ordem de aparição, a página 17 do fascículo três contém a publicação do poema Rosīte un Mīlestība (A rosa e o amor), de autoria de Svešinieks (Estrangeiro) (OSIS e ALBRECHT, 2022):
Cresce bela em meu jardim uma rosa,
Que graciosa e viçosa floresce;
Sua doce fragrância se espalha,
Enquanto a tempestade fenece...
Logo a rosa perecerá
E suas pétalas cairão,
O fio da sua vida
Em natural dissipação...
Mas o amor, divinal,
Florescerá agora e eternamente,
Através do seu magnífico perfume,
A cura de todo coração dolente.
O conteúdo abordado em seus versos direciona o leitor à finitude da rosa como um processo inevitável da natureza. Representada como “natural dissipação”, o conforto advém da eternidade, assegurada pelo amor divinal, representado como cura para o coração entristecido.
Os fascículos de 7 a 12 não trouxeram contos ou poemas com ênfase em processos de doença e morte, mas textos sobre condutas cristãs consideradas apropriadas para com amigos, escola, família e igreja.
Podemos considerar que a Rihta Rasa foi um apoio na formação e educação das crianças que tiveram acesso ao seu conteúdo, lendo ativamente ou ouvindo a leitura dos contos e poemas por uma outra pessoa. É um momento em que o universo imaginário pode ser estimulado, permitindo um aprendizado, enriquecendo com um conteúdo social, cultural e moral (ROBERTO, SANTIAGO E FERREIRA, 2020). Ainda,
Oferecer o contato com os livros às crianças é abrir as portas para o conhecimento e para a formação de futuros cidadãos mais conscientes e com capacidade de interpretar textos, de falar com maior facilidade e de adequar seus discursos ou linguagem em diferentes situações de comunicação (ROBERTO, SANTIAGO e FERREIRA, 2020, p. 20).
Nessa mesma perspectiva, a revista pode ter proporcionado uma forma de conteúdo educativo a esse grupo de crianças da colônia afastado de centros urbanos, com características bastante distintas, por se manterem isolados pela dificuldade de acesso a outras comunidades. Para além disso, havia pouco apoio do governo quanto à educação formal, pois as escolas existentes foram organizadas e mantidas pelos próprios imigrantes até 1932, ano em que foram reconhecidas como escolas públicas pela Delegacia de Ensino de Marília (VILMANE, 2019)23.
A MORTE NA INFÂNCIA E SUAS REPRESENTAÇÕES EDUCATIVAS NO ORVALHO MATINAL
A morte faz parte do processo de vida, cujo desfecho é inevitável. Mas a educação da finitude de vida permeia e engloba questões pessoais, sociais e de crenças (YAMAURA, VERONEZ, 2016). Neste mesmo sentido, a construção da infância de uma criança é conformada pela sociedade em que ela se dá. Há diferenças entre infâncias europeias e infâncias tropicais, infâncias natais e infâncias imigrantes. O impacto da sociedade acarreta determinadas percepções, hábitos e crenças sobre o período considerado infantil, assim como a forma de as crianças serem vistas em seu contexto e seus papéis sociais (ARIÈS, 1986).
A produção de impressos para o público infantil deve ser compreendida como parte de um projeto de formação das crianças. Afinal, entre os imigrantes letões, a educação foi um fator primordial para o processo de organização e funcionamento da colônia de Varpa. Desde o início do acampamento, formado pelos primeiros que desembarcaram em novembro de 1922, há relatos de que havia uma sala/escola ao ar livre, na qual as crianças estudavam (VILMANE, 2019; RONIS, 1974), o que sugere fortemente o compromisso com a formação dos/as filhos/as, a preocupação dos adultos como responsáveis pelas crianças, que necessitam de proteção e de orientação ao seu desenvolvimento intelectual e emocional (FERREIRA e SARAT, 2013). De modo equivalente, também explicita direcionamentos característicos do protestantismo, de que a educação era um caminho para o esclarecimento (OSMER, 2000).
O editor de Orvalho Matinal, Jakob Rosenberg, era reconhecido entre os imigrantes como literato. Em um texto com sua biografia pós-morte, foi descrito como um homem do mundo das ideias (IŅĶIS sen, 1948). Escreveu diversos contos e poemas, publicados nos impressos da tipografia de Palma, abrangendo todos os públicos. Também publicou uma coletânea de poemas, intitulada Kad sird mekle sirdi (Quando o coração procura o coração).
Foi um dos fundadores do grupo literário Stars (Raio) que, juntamente com outros jovens da colônia de Varpa, produziram o primeiro jornal, o Domas (Pensamentos) (UPMALEETIS, 1930). Também foi responsável, junto com J. Bukmanis, pela aquisição da primeira máquina tipográfica (RONIS, 1974). Essas iniciativas demostram que ele pode ser considerado um dos protagonistas da imprensa letã, que não se limitou à sua condição de isolamento na colônia, na medida em que buscou ferramentas para uma produção efetiva e de maior alcance, por meio de equipamentos adequados à época.
Sua diligência em editar um material para o público infantil pode representar uma visão diferenciada desse estrato social, o que se torna perceptível pelas ocorrências e necessidades educativas por ele identificadas. Por meio de publicações, buscou representar à comunidade formas alternativas de sobrevivência e de compreensão dos novos desafios na terra de destino.
O entendimento sobre as infâncias está baseado em aspectos entrelaçados de categorias sociais, como etnia, religião, classe social, entre outras (GOUVÊA, 2007)24. Nessa perspectiva, a cultura, a religião e os ideais desse grupo de imigrantes procuravam imprimir determinados contornos à infância das suas crianças, bem como o cotidiano e os desafios de serem imigrantes, em uma situação crítica de subsistência.
A mentalidade do grupo que imigrou, não somente por fins econômicos, mas também em razão de um movimento religioso, tornou os impressos uma fonte de educação informal, que poderia auxiliar no processo de adaptação das crianças à nova nação, bem como na manutenção de uma educação moral e religiosa. Os indícios arrolados permitem argumentar que esses elementos contribuíram para configurar a agenda do impresso analisado.
O aprendizado no cotidiano, por meio de estratégias informais, em contraste com a escola como instituição, pode ter um alcance de outra ordem, contribuindo com o conhecimento de saberes e condutas de diversos públicos por meio do impresso, ao qual os sujeitos podem retornar indefinidas vezes para confirmar, ajustar ou mesmo rever determinadas orientações, aspectos de difícil aferição, sobre os quais implicaria explorar os jogos de apropriação e a estética da recepção, que não foram objetos deste estudo (GIBIM e BARBATO, 2016)25.
Neste sentido, envolve temas e conteúdos que não são abordados em ambientes formais de educação e, muitas vezes, representa a necessidade de determinadas agências e agentes sociais (GIBIM e BARBATO, 2016). Assim, os textos impressos sobre a morte na infância podem representar a necessidade de o tema ser abordado em contexto social, comunitário e familiar, dentro da colônia dos imigrantes, como expediente que permitiria acoplar a dimensão material da vida com o transcendental.
Adamoviz (2008), ao analisar a imprensa protestante batista pelo O Jornal Batista, apontou que essa poderia ser uma ferramenta de crescimento qualitativo de seus seguidores, proporcionando um aprimoramento não somente religioso, mas também intelectual. Sendo assim um instrumento educativo e estimulador da promoção e construção de um modelo ético-social26.
Entretanto, apesar de toda intencionalidade de um texto, elaborado por seus autores e editores, a leitura está relacionada a um contexto de sentidos atribuídos por seus leitores e, em muitos casos, não corroboram as expectativas de seus produtores. Essa liberdade que a leitura proporciona está acometida pelos hábitos, razões, limitações, cotidianos e expectativas de quem realiza o ato de leitura (CHARTIER, 1999).
Importa destacar que o Orvalho Matinal foi publicado simultaneamente com uma revista direcionada a jovens e adultos, levando-nos a considerar que as crianças eram consideradas uma faixa social que necessitava de uma atenção privilegiada. Seu editor pode ter buscado apresentar às crianças da colônia de Varpa, assim como a todos aqueles que leriam o seu conteúdo, assuntos que diziam respeito ao dia a dia da comunidade.
Nessas representações sobre a tríade saúde-doença-morte, múltiplas situações transpassam os contos e poemas. Algumas de forma a expor a morte e a doença como processos naturais, que devem ser compreendidos e aceitos, como parte incontornável do ciclo da vida, mas também como um desafio de fé, com desfecho possível de ser alterado, através da esperança de ser atendido em suas orações. No limite, o conforto oferecido pelas tópicas da vontade superior e da eternidade.
Com base em estatísticas apresentadas sobre a mortalidade infantil que ocorria à época, a convivência com a doença e a morte era frequente. Não somente de crianças recém-nascidas, mas entre aquelas com idade até 14 anos. Nos contos com as temáticas da morte, do adoecimento e da falta de alimentos, os personagens infantes dialogam com personagens adultos. Em tais diálogos, aqueles se posicionam como orientadores da postura dos mais velhos, de como eles devem se portar frente às situações experienciadas.
Somente no conto da garota Ansi, o diálogo ocorre orientado ao compartilhamento de sentimentos com a mãe, nos demais, há um fundo educativo direcionado pelas crianças aos adultos. Esse movimento contrário, de uma criança orientando um adulto, pode remeter a valores cristãos protestantes, em que, por uma interpretação teológica, segundo Maas (2000), a criança simboliza o cumprimento da plenitude espiritual.
Ou seja, uma representação da criança não como um ser em desenvolvimento ou a evoluir, mas possuidor do espírito de fraternidade. Nesta chave, as crianças são compreendidas espiritualmente em condição superior à dos adultos, com base em diversos trechos da Bíblia, na qual elas são posicionadas como detentoras de uma maior pureza-santidade.
Por essa perspectiva, o conteúdo do Orvalho Matinal podia remeter a um posicionamento diferenciado quanto às crianças e sua importância no cotidiano espiritual da colônia. Em todos os contos, os protagonistas se apresentam como detentores de uma sabedoria que leva os adultos a repensarem as situações envolvidas. As falas das crianças, as condutas, os entendimentos ou até mesmo as formas de superarem a perda deveriam levar a um alinhamento à religião, seja pela convocação a permanecer em oração diante de uma situação-limite, seja por aceitar os desígnios do divino, outra face da confirmação da fé.
Para o público infantil, os contos levavam à reflexão sobre a morte e as crenças espirituais da fé protestante. No texto em que a criança protagonista falece e aquele em que a outra quer se preparar para o encontro com seu Salvador, as transições de final de vida são repletas de palavras de conforto e tranquilizadoras.
Segundo Yamaura e Veronez (2016), na atualidade, a abordagem sobre o tema morte com crianças pode ser considerada um tabu:
A finitude é inerente à existência de todos os seres vivos e, apesar de a única certeza do homem na vida ser a morte, falar sobre ela, mesmo entre adultos, pode causar desconforto, gerar temores, angústias, medo, insegurança e resultar na esquiva a este assunto. No entanto, falar sobre a morte com crianças parece ser um pouco mais complicado. Por entender que as crianças não estão emocionalmente preparadas para abordar o tema, grande parte dos adultos não sabe como se comportar frente a esta situação, ficam ansiosos com os questionamentos da criança e sempre com medo de qual possa ser a “próxima” pergunta, acabando por desviar o assunto ou finalizar a conversa com alguma explicação sem sentido.
Porém, acreditamos que a cultura, a percepção ou mesmo o próprio tema da morte e do morrer tinham um significado diferenciado para a comunidade no período das publicações. Como Silva (2021) relatou, a percepção do protestante quanto à morte é a de um descanso das agruras da vida terrena e uma passagem para o paraíso. Nessa perspectiva, os textos publicados direcionavam o sentido da morte a esses significados, educavam a criança e os leitores na doutrina batista, bem como auxiliavam os membros da comunidade quanto à temática.
Pela apresentação do conteúdo e da forma como foi exposto nos impressos, é possível observar que o tema morte fazia parte das experiências ordinárias dos letões de Varpa. Ao analisar fotografias dos primeiros anos da colônia, é frequente encontrar aquelas tiradas durante um velório, denominadas fotografias post-mortem. Nestas, quando eram de infantes imigrantes, é bastante comum encontrar diversas crianças ao redor do corpo velado (Figura 3 e 4).
A prática dessas fotografias pode representar que a atribuição ou o sentido dado à morte pode ser diferente da atualidade. Busca-se registrar o finado para a posteridade e apontar os elementos culturais do grupo e sua afetividade, o que confere um reconhecimento social em seu núcleo familiar e comunidade (SOARES, 2007).
Fonte: Fotografia digitalizada por Eduardo Dantas, parte do acervo do Museu Janis Erdberg, da Prefeitura de Tupã/SP, s/d. Concedida e de uso autorizado aos autores.
Realizar fotografia dos mortos era bastante comum entre imigrantes italianos, alemães e poloneses, como uma forma de preservação da memória dos mortos, mas também reforçar a existência da vida para além da morte. Assim, essa prática entre os imigrantes letões pode estar associada à cultura, pela dominação da Letônia pela Alemanha, além das influências religiosas e crenças na vida após a morte (SOARES, 2007).
Assim, a participação das crianças nessas fotografias, ao redor dos mortos adultos e infantis, pode representar uma efetiva participação desse grupo em momentos diversos da comunidade, inclusive naqueles em que a dor e o pesar estavam presentes pela perda de um parente ou conhecido. Pode também ser compreendido como a participação das crianças no processo inevitável de vida, que finaliza com a morte. Não os separando do momento de luto e despedida, mas possibilitando agregar uma percepção de mortalidade e vida eterna (SIQUEIRA, 2018).
Podemos denotar que esse mesmo contexto foi apresentado nos textos do Orvalho da Manhã, ao darem protagonismo às crianças dos contos, uma forma de dimensioná-las como sujeitos da sociedade e partes importantes do entendimento sobre a vida e morte, dentro dos escritos.
No texto em que o personagem está gravemente doente, os sintomas e o estado físico são bastante detalhados, levando o leitor a compreender que praticamente não haveria possibilidade de sobrevivência. No entanto, ao final, através da oração e fé, o menino fica curado. O mesmo ocorreu no conto dos corvos, em que a fé do garoto, ao abrir a janela, foi recompensada com o suprimento de alimentos de que a família necessitava.
A vida religiosa, portanto, constitui-se um dos alicerces da colônia, de modo a manter o grupo unido e resiliente. Representar para as crianças a relação entre vida, doença e morte no contexto espiritual podia gerar um elo com o impresso Orvalho Matinal, em específico, e conforto àqueles, crianças ou adultos, que tinham perdido entes queridos na nova pátria.
Conclusão
Os impressos produzidos na tipografia de Palma eram predominantemente direcionados à comunidade de imigrantes letões. Dentre os diversos títulos, o Orvalho Matinal se destacou por ser orientado ao público infantil, sendo um dos primeiros a serem publicados, a partir de 1925.
Em suas páginas, foram encontrados cinco contos e um poema que remetiam ao processo de saúde-doença-morte. Seus conteúdos levavam a reflexões sobre a vida e sua finitude, em uma perspectiva espiritualmente pragmática, de acordo com as crenças protestantes dos imigrantes batistas letões, o que justifica as publicações estimularem os princípios que deveriam nortear a comunidade.
Entre os protestantes batistas, pode haver três representações para a morte do cristão, são elas: uma morte bem-aventurada, pela certeza da vida eterna; um sono ou repouso dos fiéis, que aguardam a segunda vinda de Cristo; e a terceira, a morte como uma passagem para a vida eterna (SILVA, 2021).
Nos textos que se referiam ao falecimento, os autores procuraram demonstrar às crianças a morte bem-aventurada ou como uma passagem para a vida eterna. Não foi encontrado em nosso recorte algum que a representasse como um repouso ou sono.
A forma direta e realista de abordagem do tema nos impressos letões infantis, mesmo se ficcionalizadas, demonstrou que não era somente uma vontade dos editores, mas também uma necessidade, possivelmente pelas condições de vida e de risco que enfrentavam. A morte era parte do cotidiano dos imigrantes, que alcançou todo o grupo. As doenças, recursos precários de subsistência, falta de alimentos e de assistência à saúde, foram fatores que colaboraram para que viessem a óbito quase 10% dos habitantes à época, em sua grande maioria crianças.
Corroborando Vilmane (2019), podemos considerar que as dificuldades enfrentadas pelos imigrantes letões de Varpa, no início da colônia, levaram-nos a expressar, por meio da literatura, suas preocupações e sentimentos. O conteúdo sobre doenças e falecimento, em contos que buscaram representar o óbito como um processo do cotidiano da vida, pode ter servido como aparato para a sensibilização das crianças e adultos ao processo de morte como algo natural, inescapável.
A convivência religiosa na colônia pareceu funcionar efetivamente como um elo interno e externo, pois a história deles estava atrelada às crenças na vida cristã, levando temas como os aqui discutidos a serem frequentemente abordados, tais como em outros grupos protestantes no Brasil, conforme estudo de Silva (2021), que analisou os discursos, práticas e representações da morte entre Anglicanos e Batistas, no Brasil dos séculos XIX e XX.
Por meio da análise das fontes, foi possível identificar a cultura e educação sobre a morte, bem como vislumbrar as representações sobre o morrer na infância, dentre os imigrantes letões de Varpa. Apesar de terem sido escritos há quase 100 anos, os textos aqui elencados são notabilizados por sua comunicação aberta e clara, expondo situações de pragmatismo quanto ao cotidiano e seus acontecimentos, proporcionando aos seus potenciais leitores reflexões sobre a frágil existência humana e sua espiritualidade - ambas incontornáveis -, o que reforça a difusão de princípios religiosos como um dos fundamentos para a organização e funcionamento da colônia na terra de destino e recurso para se manterem conectados com a terra de partida.