Introdução
Este artigo analisa o caráter educativo do jornal O Recopilador, ou, Livraria dos Meninos: Jornal Moral, Instructivo e Miscellanico, impresso entre 1837 e 1838, inicialmente em Salvador, tendo sua produção posteriormente deslocada para o Rio de Janeiro1. Esse periódico ganha destaque entre os demais impressos desse período por declarar, já em seu título, sua intenção educativa. Além disso, anuncia ser seu público alvo os ‘meninos’, compreendendo, portanto, um público diferenciado em relação ao grande volume de periódicos de cunho político, literário e de ‘variedades’, produzidos no período, nos principais centros urbanos. As informações adicionais, apresentadas em seu escopo, junto ao título, auxiliam a compreender a especificidade pretendida pelo periódico: “Este Jornal he inteiramente alheio a materias politicas: só admitte correspondencias, que digão respeito á instrucçào da Mocidade2. Admitte annuncios tão somente relativos á compra, e venda de livros, pagando-se 40 rs. por linha” (O Recopilador, 1837a, p. 1).
O Recopilador foi impresso, em sua primeira fase, na Typ. Da Aurora da Serva e Comp. Esta teria sido uma das designações daquela que foi uma das primeiras tipografias de Salvador, instalada em 1811 pelo português Manuel Antônio da Silva Serva (1760-1819)3. Com caráter audacioso e buscando se aliar ao governo português, Silva Serva, entre outras iniciativas, fundou o primeiro periódico baiano, Idade d'Ouro do Brazil (primeira publicação em 14 de maio de 1811), conhecido como Gazeta da Bahia, que circulou no período de 1811 a 1823 (Silva, 2011). Com a ajuda do livreiro Manuel Joaquim da Silva Porto, nomeado seu agente no Rio de Janeiro, Silva Serva frequentava a corte, buscando conseguir encomendas de impressão, oferecendo alternativa aos altos preços da Impressão Régia (Hallewell, 2005). Morreu em agosto de 1819, durante uma dessas viagens ao Rio de Janeiro, dois meses depois de ter nomeado o seu genro como sócio. A tipografia, tendo o nome alterado para Typografia da Viuva Serva, e Carvalho seguiu desenvolvendo suas atividades e, por volta de 1823, perdeu o monopólio, mesmo ano em que o Gazeta da Bahia interrompia suas edições. Entretanto continuou editando obras traduzidas e mais de uma centena de títulos de diversos assuntos, tais como religião, medicina, direito, história e literatura (Hallewell, 2012).
Em meio a um contexto político de intensas disputas, iniciou-se, então, a publicação de O Recopilador, em julho de 1837. O periódico, que pode ser caracterizado como de ‘variedades’, parece ser voltado para a leitura dos pais e mães de família para a orientação da educação dos filhos. A diversidade de conteúdos, a ser devidamente explorado aqui posteriormente, aborda temas que enaltecem a virtude de personagens consagradas da história antiga, citações de caráter moral e um romance, publicado em formato de folhetim, O Novo Robinson (1779), cuja temática é também a educação.
O jornal como instância educativa
O Brasil assistiu ao início da produção impressa tardiamente, se comparado às demais ex-colônias da América4. A vinda da família real e a instalação da imprensa régia, em 1808, representaram o início oficial da produção impressa em terras brasileiras que inaugurou, em sua primeira fase, uma produção vinculada aos interesses régios - a exemplo do primeiro jornal impresso no Brasil, Gazeta do Rio de Janeiro, em 1808, um difusor de mensagens do governo. Nas décadas seguintes, um grande número de jornais começou a surgir, inicialmente nos principais centros urbanos, movidos pelos acontecimentos pré e pós-independência, veiculando os debates em torno, principalmente, de assuntos políticos. A política, no sentido estrito, seguirá sendo a principal motivação da produção periódica impressa até meados do século XIX, havendo, vez ou outra, jornais de variedades ou com destinatários outros, como as mulheres5.
No campo da educação, o processo de institucionalização da escolarização foi impulsionado no período pós-independência, e o século XIX, sobretudo a primeira metade, foi caracterizado pela organização paulatina da instrução e pelo estabelecimento da escola como locus de referência para a formação das novas gerações. A primeira lei imperial que organiza o ensino, de outubro de 1827, deu início a um conjunto de iniciativas e ordenamentos legais em nível imperial e provincial, tais como o estabelecimento de escolas em cidades e vilas mais populosas e os parâmetros para o exercício do magistério. Nesse cenário, a escola buscou se legitimar como instância formadora das futuras gerações em disputa com outras instituições que o exerciam anteriormente, em especial a Igreja, a família e o trabalho (Inácio, Faria Filho, Rosa & Sales, 2006).
Não só pelo fato de as escolas ainda não terem se estabelecido e se consolidado como referências educativas entre a população, o século XIX é marcado pela ideia iluminista de civilizar, educar. Assim, conforme Duarte (1998), outras instâncias também assumiam esse papel ‘educativo’, tais como o teatro, a literatura e a imprensa. Acreditava-se, sobretudo, no poder da imprensa periódica como formadora de opinião6. Segundo Lustosa (2003, p. 15), no início do desenvolvimento da imprensa no Brasil, “[...] o jornalista se confundia com o educador. Ele via como sua missão suprir a falta de escolas e de livros através dos seus escritos jornalísticos”. Não só no Brasil do século XIX como na Europa, os jornais traziam, como princípio, o projeto iluminista de veicular valores e ideias, visando educar o público leitor. Sobretudo após a conquista da independência, “[...] a imprensa passa a ser constantemente referida como o meio mais eficiente e poderoso de influenciar os costumes e a moral pública, discutindo questões sociais e políticas” (Pallares-Burke, 1998, p. 149). Nesse sentido, segundo Pallares-Burke, uma grande quantidade de periódicos brasileiros e latinoamericanos do período faziam menção à ‘metáfora da luz’ já em seus títulos. São eles variações dos termos ‘Luz’, ‘Lanterna’, ‘Despertador’, ‘Mentor’, ‘Farol’, ‘Aurora” etc., seguidos de prospectos que retificavam a mesma tendência.
Nessa perspectiva, em que o jornalista se considerava um educador, os jornais são aqui analisados como agentes participantes das dinâmicas sociais em que estavam inseridos e não somente como veículos ou suportes de acontecimentos e opiniões. Conforme nos aponta Baker (1987), a produção jornalística é ‘atividade política’ e, portanto, capaz de construir práticas e discursos, engendrando uma ‘cultura política’ particular a um período e a uma sociedade. Assim, os periódicos são, eles mesmos, produtos e produtores da cultura política do período.
Nesse sentido, atribuímos aos jornais e, num sentido mais amplo, à imprensa, o caráter de ‘instância educativa’7, compreendendo que se constituíram como referência importante para leitores (as) e ouvintes que buscavam informação, conhecimento e participação nos debates políticos do momento.
O Recopilador: o cenário e a materialidade
O Recopilador iniciou suas atividades em julho de 1837, em meio às disputas políticas que se estenderam por todo o território brasileiro e marcaram o período regencial (1831-1840). Em um contexto de insatisfação econômica e intensa agitação social, a unidade política do império se viu ameaçada por rebeliões que foram, via de regra, influenciadas por ideários republicanos e impulsionadas por elites locais e camadas médias insatisfeitas com a centralização do poder propalada pelas políticas regenciais. Em meio a essas disputas e instabilidade, em 1836, anunciava o regente Feijó que o ‘vulcão da anarquia’ ameaçava devorar o império, preocupado que estava com os direcionamentos das políticas dos grupos envolvidos na corte (Silva & Feldman, 2010, p. 149).
Em tal conjuntura, movimentos separatistas germinaram gradualmente até o florescimento de conflitos armados em diferentes partes do território. A Farroupilha (1835-1845), no Rio Grande do Sul, A Cabanagem (1835-1840), no Maranhão, A Balaiada (1838-1841), no Grão-Pará e a Sabinada (1837-1838), na Bahia, são alguns exemplos das diferentes rebeliões ocorridas nesse período.
Em maio de 1837, o presidente da província da Bahia, Souza Paraizo, escreveu um ofício para informar à corte sobre ‘boatos de desordem’ que corriam nas ruas de Salvador. Em agosto do mesmo ano, passado um mês da primeira publicação do O Recopilador, Paraizo encaminhou outro ofício, acompanhado de dois números do periódico Novo Diário da Bahia, impresso que evidenciava as ideias do movimento e serviu como principal canal de comunicação do governo provisório instaurado em sessão extraordinária na Câmara Municipal no dia 7 de novembro de 1837 (Souza, 2009). Nesse dia, os revolucionários forçaram a abertura da Câmara e declararam a província da Bahia como ‘Estado livre e independente’.
A Sabinada foi um movimento gestado na camada média letrada de Salvador; tendo como um dos seus líderes mais expressivos, Francisco Sabino Vieira, o movimento era formado, principalmente, por profissionais liberais, pequenos comerciantes, militares, funcionários públicos e pessoas das camadas pobres da população. Jornalista, médico e professor da Faculdade de Medicina da Bahia, Sabino também era proprietário do Novo Diário da Bahia, o que nos indica, de maneira explícita, os meandros do movimento e das lideranças envolvidas e o lugar central assumido pelos jornais nessas disputas.
No período de novembro de 1837 a março de 1838, a província da Bahia esteve sob o comando dos sabinos, que entre disputas políticas, tiroteios e muitas mortes8 resistiram até onde foi possível para impedir o avanço das forças centralistas. O dia 14 de março de 1837 marcou o início do enfraquecimento da revolta, quando as tropas legalistas invadiram Salvador de diferentes regiões da província, avançando a partir de intensa troca de tiros (Souza, 2009). Somado ao caos e à resistência dos sabinos, enfraquecida pela escassez de recursos, vários pontos da cidade foram incendiados, tanto por vencidos como pelos vencedores9.
Possivelmente as dificuldades de ordem política e prática fizeram com que, após a edição de número 13, de 2 de outubro de 1837, o próximo número de O Recopilador fosse impresso somente em 2 de janeiro de 1838, quando passou a ser produzido nos prelos da Typographia Americana, no Rio de Janeiro, de propriedade de Ignacio Pereira da Costa, reconhecido editor e responsável pela publicação do livro póstumo Lira dos vinte anos (1853), escrito pelo poeta Álvares de Azevedo (Lima, Aragão, & Farias, 2011). As articulações político-profissionais estabelecidas pelo falecido proprietário da tipografia, Manoel da Silva Serva, podem ter favorecido a transferência do jornal para o Rio de Janeiro.
Nesse cenário de tensão, o surgimento de um jornal declaradamente avesso a assuntos políticos sugere questões que merecem ser levantadas: O que motivaria um empreendimento como esse, de produzir um jornal voltado para a educação da mocidade em um período tão turbulento, em meio a boatos, desordens e conflitos políticos? Declarar-se refratário aos assuntos políticos pode ter sido uma estratégia para se destacar em relação ao conjunto da produção impressa de cunho político do período; pode ser entendido também como forma de conseguir a adesão de um público interessado em matérias de outra natureza ao que prevalecia; ao mesmo tempo, isso indica também que havia a demanda e o interesse em se produzir um jornal de cunho educativo, voltado para as famílias e a mocidade. Além desse conjunto de motivações, declarar-se ‘inteiramente alheio a matérias políticas’ provavelmente foi uma estratégia adotada para não se filiar a nenhuma das perspectivas em disputa, entretanto sua mudança para o Rio de Janeiro indica uma possível perspectiva centralizadora, seja por necessidade, seja por princípio.
O Recopilador era publicado inicialmente a cada quatro dias, mas ao longo do tempo sofreu interrupções, deixando de ter frequência precisa entre uma edição e a outra, passando a sair ora semanalmente, ora quinzenalmente. Contendo apenas uma coluna em cada uma das quatro páginas, era provavelmente impresso em in-octavo, sendo, portanto, um jornal de porte pequeno.
O conteúdo do jornal era organizado por seções e, no quadro abaixo, podem-se ver duas edições ‘típicas’ do mesmo:
NÚMERO 2 SEXTA-FEIRA 14 DE JULHO DE 1837 | ||
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Título | Síntese | Página |
O Novo Robinson - Continuação da Tarde Primeira | Trecho do livro O Novo Robinson. Descrição do jovem personagem. | 01-02 |
Alexandre, O Grande | Biografia, com destaque para suas virtudes e boa educação. | 02-04 |
Aristides, familiar de Cálias II | Biografia, com destaque para as virtudes. | 04 |
Napoleão Bonaparte | Carta de Napoleão escrita a caminho da prisão ao príncipe regente Jorge 4º. | 04 |
Carlos Bonaparte | Descrição do pai de Napoleão que enaltece a liberdade. | 04 |
Valentinianno III | Frase de Valentiniano: o Príncipe depende do lavrador. | 04 |
NÚMERO 4 TERÇA-FEIRA 22 DE JULHO DE 1837 | ||
O Novo Robinson - Continuação da Tarde Primeira | Continuação do livro. Pela influência de um amigo, Novo Robinson embarca sem avisar previamente os pais. Poucos dias depois o navio em que estava naufraga. | 01-02 |
As Sete Maravilhas do Mundo | Anuncia a apresentação das Sete Maravilhas do Mundo | 02 |
Primeira Maravilha - Muros de Babylonia | História sobre a construção dos Muros da Babilônia | 02-03 |
Segunda Maravilha - Pyramides do Egyto | História da construção das pirâmides, com destaque para as medidas matemáticas e a grandiosidade da construção | 03-04 |
Pessoas Celebres | Biografia de Maria Anna Ardoina (1672-1700), com destaque nas ciências e literatura; Biografia de Paulo de Aregio, artista que retratou a vida da Santa Virgem na Catedral de Valença. | 04 |
Fonte: Hemeroteca Digital (2018).
Como é possível observar no quadro, os números iniciam com a publicação de trechos do romance O Novo Robinson (1799), obra de autoria do alemão Joachim Heinrich Campe (1746-1818), que teve muitas traduções e larga circulação por diversos países. A transcrição dessa obra ocupa ao menos duas páginas, ou seja, a metade do conteúdo de cada edição, sendo o único conteúdo presente em todas as edições do jornal. As demais seções consistiam em pequenos textos, provavelmente extraídos de outros livros, como biografias de personagens da história antiga e de pessoas de destaque nas ciências e literatura, frases com cunho moral e uma seção voltada para a apresentação das sete maravilhas do mundo. Outro tipo de assunto, apresentado como de utilidade pública, são as descobertas ‘científicas’, relacionadas à saúde, sendo elas extraídas de outros jornais. Os anúncios eram, conforme prescrito no prospecto, relativos à venda de livros.
A autoria do jornal não é declarada, o que era comum ao período, ou por já ser de conhecimento público, ou por motivos outros que impossibilitavam a exposição pública, como era o caso das mulheres10. Em O Recopilador, as matérias de autoria própria são quase inexistentes, sendo caracterizado como um impresso composto basicamente pela transcrição de outros livros e jornais. Seria esse o seu propósito, que inclusive lhe dá o título: O Recopilador, ou Livraria dos Meninos... ou seja, aquele que abrevia e compendia “[...] num volume a matéria de muitos e grossos tomos” (Silva & Bluteau, 1824, p. 303). No caso de transcrição de matérias de livros, as fontes não são citadas. Essa era também uma prática comum ao período, tanto a de extrair trechos de outras obras e jornais, quanto a de não citar a fonte da notícia/informação. No caso dos jornais citados, O Nacional, Correio Official, O Patriota, Journ. do Com. de Paris, sabemos que o primeiro era impresso no Rio de Janeiro desde 1832 até fins do século XIX; quanto aos demais, não temos notícias, mas essa pequena lista é indicativa da prática de leitura e escrita dos/as produtores/as do jornal que utilizavam, como matéria prima, os outros jornais em circulação. Indica, igualmente, a efetiva circulação e recepção de jornais e de notícias dos lugares mais remotos, assim como o domínio da língua francesa.
Não são publicadas correspondências de leitores ou leitoras, apesar de se prever um espaço para isso, em que “[...] só admite correspondências, que digão respeito á instrucçào da Mocidade” (O Recopilador, 1837a, p. 1). Entretanto a edição de número 08 apresenta um texto intitulado Cartas de conselhos de um Páe ao seu filho, na primeira viagem que este fez. Em formato de carta, o texto relata os valores e as intenções de um pai para com seu filho, que está a caminho de uma viagem para se formar como oficial da Marinha (O Recopilador, 1837b).
O Recopilador possui as características tipográficas dos jornais das primeiras décadas do século XIX: não possui ilustrações ou cores, apenas textos que eventualmente recebem trechos em itálico ou em caixa alta, utilizados geralmente para destacar os títulos, os nomes das seções, para separar as falas de personagens das narrações, para enfatizar as ideias que se consideram centrais. Aspas e travessões são também recursos utilizados para se dar destaque a expressões e nomes, como na seguinte frase de cunho moral:
Valentinianno III dizia : ‘Quando perde o Lavrador, perde também o Principe, e a prosperidade do Principe depende da prosperidade do Lavrador’ (O Recopilador, 1837c, p. 4, grifo do autor)11.
Podemos verificar, também, que a tipografia possuía tipos de tamanhos diversos e de fontes variadas. Nas páginas de número 1, o nome do periódico é apresentado em tipos de quatro tamanhos diferentes, cada um de uma fonte distinta. Apresenta, ainda, iluminuras com traçados arredondados delicados, utilizadas para separar seções e, sobretudo, na primeira página, para acentuar a data, o número, o preço e para separar a epígrafe do conteúdo do jornal.
Não percebemos alterações no conteúdo nem no formato (tamanho e número de páginas) do jornal em função da mudança de tipografia para o Rio de Janeiro. Entretanto a apresentação tipográfica foi significativamente modificada. Além da utilização de outras fontes nas primeiras páginas, mudando a ‘capa’ do jornal, as iluminuras desapareceram. As separações entre as seções passaram a ser feitas utilizando-se traços contínuos, dando-se um aspecto mais ‘simples’ à apresentação. Por sua vez, seu preço foi alterado: quando impresso em Salvador, era vendido a 40 réis o número e esse valor passou a 60 réis na corte. Esse conjunto de elementos indica que, provavelmente, a nova tipografia não dispunha dos mesmos recursos técnicos que a anterior e também que o mesmo jornal, impresso no Rio de Janeiro, tinha um custo superior.
Outro elemento da materialidade do jornal merece destaque: na edição de número 15 e nas subsequentes, já impressas no Rio de Janeiro, aparece o seguinte anúncio:
AVISO
Nas Lojas de livros dos Senhores R. Ogier, rua do Rosario, E. Laemmert, rua da Quitanda, João Joaquim Barroso, rua d´Alfandega n. 5; e na Loja do Sr. Albio Gonsalves, Praça da Constituição n. 64, vendem-se os 14 numeros do - Recopilador ou Livraria dos Meninos. - (O Recopilador, 1838a, n. 15, p. 4).
Anúncios como esses, em outros jornais, não eram raros e indicavam a prática comum, na época, de se ‘colecionar’ os números seguidos de um jornal, em especial os de formato pequeno, para depois os encadernar e encapar, produzindo-se um objeto que se assemelhava a um livro. Era comum se anunciar a procura por determinados números de certo jornal ou de vários jornais, anúncios esses que eram pagos, indicando o apreço por esse tipo de impresso. Portanto, por mais que a quantidade de jornais em circulação no período fosse significativa, eles não eram considerados descartáveis. Podiam ser guardados para serem consultados, como os livros e compêndios. Possuíam uma importância simbólica tácita.
A educação no e pelo jornal
O breve prospecto de O Recopilador anuncia que “[...] só admite correspondências, que digão respeito á instrucçào da ‘Mocidade’” (O Recopilador, 1837a, p. 1, grifo nosso). A partir do n. 09, o jornal passa a ter uma epígrafe que diz: “O maior beneficio que pode um Páe de Família fazer aos seus filhos, a mais preciosa Herança, que deixar-lhes póde, he sem duvidas alguma uma boa educação”. Compreendemos, portanto, que o endereçamento principal do jornal é para os pais de família, para a educação de seus filhos, moços e moças.
Mocidade pode ser considerada uma designação bastante comum ao século XIX, para se referir aos sujeitos que se encontram entre o início da puberdade -12 anos para as meninas e 14 anos para os meninos - e a idade de 21-24 anos, após a qual atingem a maioridade (Pinto, 1832). Os dicionaristas apresentam como sinônimos à mocidade os termos juventude e adolescência (Pinto, 1832; Fonseca, 1860; Chernoviz, 1890).
A idade de 25 anos é considerada o marco para o final da mocidade, e nessa fase homens e mulheres são considerados formados. Como exemplo para contextualizar o uso da palavra, Antônio de Morais Silva apresenta a frase ‘Acção imprudente, verdura da mocidade’ e sugere que se trata de uma fase em que o homem é incompleto, verde, propício a ações imprudentes, necessitando, portanto, de educação. Mas, afinal, em que consiste uma boa educação? Como se caracteriza a educação propalada pelo jornal O Recopilador?
No Quadro 2 abaixo, são apresentados os temas/gêneros literários presentes no jornal. A reorganização do conteúdo a partir dessas categorias possibilita compreender o que se entendia por uma educação voltada para essa mocidade ou como os responsáveis pela produção do jornal atuavam promovendo a educação.
Biografias
A síntese da vida de pessoas consideradas ‘célebres’ é o que constitui aquilo que denominamos aqui como biografias e, apesar de não ocupar mais que uma página por número, é o gênero com maior incidência no jornal. Esse conteúdo foi aparentemente retirado de um compêndio de biografias, pois são apresentadas por ordem alfabética, independendo da nacionalidade, do período histórico ou da atividade exercida pelo biografado. São apresentadas, por exemplo, num mesmo número do jornal, as biografias de Argentire (Carlos Duplessis de), bispo de Tulhe do século XVIII; Arcy (Patrício de), escritor irlandês do século XVIII; Arcon (João Carlos Elenor Lemiceaud de), general, político e escritor francês do século XVIII; Arceo (Francisco), médico e cirurgião espanhol do século XVI, autor de tratado de cirurgia; Arce (José de), escultor espanhol do século XVII (O Recopilador, 1838b, p. 3-4). As mulheres também estão presentes nesse conjunto de biografias, como na que segue:
Ardoina (Maria Anna), filha do Principe Palizzo, e esposa do Principe de Piomobins João Baptista Lodovissi; nasceo em 1672; fez admiráveis progressos tanto na literatura como nas sciencias: escreveo um livro de poesias latinas, impresso em Napoles, 1678 em 4º , e morreo no anno de 1700, sendo ainda joven. Seu talento era quase universal, tanto para as artes como para as letras e sciencias. Sobresahia a um mesmo tempo no baile, na musica, na pintura, e na filosofia; e o que parecerá talvez mais estranho, no estudo sagrado da teologia (O Recopilador, 1837d, p. 4).
A compreensão de que a vida de alguém considerado ilustre tem caráter educativo remonta a vários séculos, sendo, portanto, utilizada como recurso formativo. A adaptabilidade das biografias para diversos momentos históricos indica a potencialidade instrumental desse gênero para a educação, em especial das novas gerações. Segundo Carino,
[...] a biografia, como arte de narrar vidas, embora trabalhe com cada vida em suas particularidades, extrai de cada uma delas certas características típicas. Essa tipologia é que servirá a uma pedagogia do exemplo. Tomadas como exemplo, imitadas, seguidas, integrando um modelo de conduta determinado pelo espírito da época, servirão à educação (Carino, 1999, p. 173).
Contos e provérbios
Dois outros gêneros bastante presentes no jornal são os contos e os provérbios ou pensamentos com caráter moralizante. No primeiro caso, uma narrativa breve constrói uma situação em que as virtudes dos personagens são enaltecidas e, por fim, recompensadas. Um desses contos, protagonizado por crianças, intitulado Os meninos compassivos, ilustra a crença nos exemplos de comportamentos desejáveis como forma de educar: passa-se em Lisboa, onde viviam numa quinta um cavalheiro e seus filhos, Sophia e Hannibal, que ‘merecião a estima e admiração de todos pelas suas boas qualidades’. Numa manhã, enquanto passeavam pelos arredores da casa, encontraram um velho que parecia muito cansado. Perguntaram se ele se sentia mal e, mesmo com a resposta negativa, Hannibal foi ajudá-lo, buscando mais lenha (atividade com a qual o velho aparentemente se ocupava) enquanto Sophia foi a casa e voltou alegremente trazendo pão, frutas e uma moeda de prata. O velho se emocionou, agradeceu e disse: “Amáveis meninos, o Céo vos fará ditosos pois vos fez tão compassivos.” E na verdade o Céo ouvio a supplica deste homem, porque Sophia e Hannibal forão felizes e viverão favorecidos dos bens da fortuna até serem muito velhos” (O Recopilador, 1837e, p. 3).
O protagonismo de meninos e meninas, moços e moças nesses contos é marcante, indicando a crença no exemplo como forma de incutir valores e comportamentos desejáveis, como a obediência aos pais e a Deus, a atuação em combates em defesa do pai ou em nome da pátria, o respeito à alteza real, a aplicação nos estudos, a moderação e a humildade.
Quanto aos pensamentos de caráter moral, muitos deles possuem a estrutura de provérbios, são frases que pretendem, igualmente, incutir valores e ensinamentos. Seguem abaixo alguns exemplos:
Alexandre Farnese dizia: que não podia haver nada mais insuportável, que um Soldado cobarde, e um Ecclesiastico ignorante.
Qualquer povo, que despreza, e tem o trabalho por cousa vergonhosa, não póde certamente deixar de ser infeliz.
Ninguém he peior para mandar; que aquelle a quem a Natureza creou para obedecer, e servir (O Recopilador, 1837f, p. 4).
Tais gêneros possuem como semelhança o fato de serem curtos e de fácil entendimento, já que os valores ou comportamentos desejáveis são explicitamente apresentados. Seriam, então, apropriados para a educação da mocidade, parcela social que seria constituída mais por leitores neófitos do que por leitores eruditos.
O uso de textos com caráter moralizante, como as fábulas, em jornais (Jinzenji, 2008b, 2010.), é apontado também como um recurso educativo, utilizado nesse período, pela exemplaridade das historietas protagonizadas por animais. Nesses estudos, são apresentados, ainda, os catecismos, ou seja, textos escritos em prosa, constituídos quase que exclusivamente por diálogos ou sequências de perguntas e respostas entre as personagens, uma das características do romance O Novo Robinson, do qual falaremos a seguir.
Romance: O Novo Robinson
Como anunciado anteriormente, O Novo Robinson é inserido ‘aos poucos’ no jornal, no início de cada edição, e ocupa em geral as duas primeiras páginas, ou seja, a metade de todo o conteúdo de uma edição. Foi escrito por Joachim Heinrich Campe (1746-1818) na Alemanha, em 1779. Editor, tradutor, linguista e pedagogo, Campe foi também autor de outras obras voltadas para a educação. O livro, que foi traduzido para muitos idiomas e teve ampla circulação, foi fortemente inspirado na obra Robinson Crusoé, de Daniel Defoe (1660-1731), publicada originalmente em 1719 no Reino Unido. Campe reinventa o cenário de naufrágio e aprendizagens do protagonista (também Robinson) de modo acessível para jovens leitores e, no prólogo à obra, Campe apresenta suas críticas ao romance de Defoe:
Assim he que se o antigo Robinson Inglez abunda em perigosas máximas que o fizeram digno de justa censura entre os bons Catholicos, o Novo Robinson Alemão he recommenndado por homens sensatos e piedosos como apto para rectificar o coração e o entendimento dos meninos (O Recopilador, 1837a, p. 2).
A necessária adaptação à moral católica fez com que o autor preservasse basicamente o argumento central da obra original e “Com o fim de acomodar a dita historia ao ensino de meninos, e jovens deo-lhe o author nova fórma e ordem diferente, reduzindo-a a diálogos, [ilegível]... tando com acertada eleição o melhor do original Inglez [...]” (O Recopilador, 1837a, p. 1). Além de transformar a narrativa ao formato de diálogos, introduziu informações relacionadas às diversas atividades desenvolvidas pelos homens e a conhecimentos úteis para os meninos: a agricultura, a pesca, a caça, a alvenaria, a tecelagem, a atividade de ferreiro, as ciências, a Geographia, a Nautica, a Historia Natural, agregando, dessa forma, qualidades educativas à obra, ao contrário de Robinson Crusoé, que se resumiria a ‘ficções arbitrárias’ (O Recopilador, 1837a).
Para a produção de O Recopilador, o romance foi fragmentado e publicado em números subsequentes, sendo interrompido em momentos cruciais para alimentar a curiosidade dos leitores e ouvintes. O Novo Robinson inicia apresentando uma família que vivia em uma casa de campo próximo a Hamburgo: os pais, dois filhos, duas filhas, dois sobrinhos, sendo eles ‘meninos de diferentes idades’, além de dois jovens, filhos de amigos da casa, que conviviam fraternalmente.
Todos viviam unidos como irmaons, e todos com igual docilidade, e sempre alegres obedeciam ao Páe, e a Mãi, aplicando-se a estudar, a ser bons, mediante a acertada educação, em que o cultivo de seos entendimentos contribuía a imprimir a virtude em seos coraçõens. Tinham horas de occupação, e horas de recreio porém mui a miúdo se ajuntavam; pois em quanto se dedicavão a algum lavor, costumava o Páe referir-lhes varias historias ou contos, que ao mesmo tempo, que os tinhão divertidos, lhes oferecia uteis exemplos de piedade, honra, e judiciosa conducta (O Recopilador, 1837a, p. 3).
Numa tarde, o pai resolveu contar a história de Robinson, um jovem de 17 anos que havia vivido, até então, uma vida displicente, sem grandes preocupações nem responsabilidades. Certo dia, encontrou-se no porto de Hamburgo com um conhecido que o convidou a viajar de navio para Londres. Aceitou o convite e embarcou sem avisar os pais, iniciando uma sequência de viagens bastante acidentadas, enfrentando maus tempos, naufrágios, restando, por fim, como único sobrevivente de um naufrágio, numa ilha. Por meio de tentativas e erros, buscou meios para sobreviver.
A narrativa é frequentemente interrompida por algum dos ouvintes que faz perguntas ou comentários, do tipo: “Que cousa é a pesca de bacalhau?” “O que vem a ser furacão?” “Donde vem os vinhos das Canárias?” “E as canas doces que dão açúcar?”. As respostas são dadas pelo pai ou às vezes este sugere que algum dos maiores responda. Segue uma situação em que a narrativa é interrompida por uma dúvida que originou uma série de comentários:
O Páe: [...] A essa Ilha [Canárias] aportou o Capitão; e ali dezembarcou Robinson em sua companhia. Como se divertio, passeando por aquellas formozissimas vinhas, e saboreando-se com as exquisitas uvas?
João: E também veria como as pizão em um lagár para fazer o vinho.
Luiza: Com os pés?
João: He verdade.
Luiza: Deixa-te disso, não beberia eu vinho por certo.
Nicoláo: Nem tão pouco he preciso; porque papai nos há dito que o vinho não he bom para a gente moça.
O Páe: Assim he. Os meninos que se acostumão a beber com frequência vinho, ou outros licores fortes, fazem-se débeis, e se entontecem.
João: Pois não o beberemos (O Recopilador, 1837g, p. 4).
Dessa forma, as desventuras de Robinson são utilizadas para indicar as boas e más escolhas e condutas, a importância da disciplina e dos estudos, a utilidade dos conhecimentos para a vida, o respeito devido aos pais e a Deus.
Conhecimentos gerais, variedades e notícias curiosas
Um tipo de matéria que se diferenciava dos demais é o que podemos denominar de variedades ou curiosidades, e a sua presença no jornal, apesar de bem menor em relação aos demais assuntos, indica a intenção de se mostrar difusor de “descobertas” e notícias de outras localidades. Assim, aparecem em destaque a acidental descoberta do uso de uma solução de ouro em água forte para o tratamento de tumor cancroso; o misterioso caso de uma jovem de 12 anos que, acometida por sarampo, se levanta do leito e canta uma ária perfeitamente e não se lembra do fato e nem mesmo conhecia a ária ou a prática do canto; a recomendação do passeio pelos campos Elíseos em Paris para apreciar as vestimentas, os cafés e carruagens.
A descrição da história e construção das sete maravilhas do mundo antigo também se enquadra nas notícias de variedades. São elas os muros da Babilônia, as pirâmides do Egito, Júpiter Olímpico, o Mausoléu, o Templo de Diana em Epheso, o colosso de Rhodes, o Farol de Alexandria.
Considerações finais
Ao analisar O Recopilador como instância educativa, verificamos que, se por um lado apresenta muitas características dos jornais de sua época, ao mesmo tempo possui elementos que lhe são peculiares. A prática de compilação resulta em um jornal voltado para os meninos e jovens, utilizando-se, para tal, de gêneros textuais de fácil compreensão e que possuem a moralidade em sua centralidade, como os contos, provérbios e pensamentos. As biografias de personalidades consideradas ilustres também propunham mobilizar os jovens leitores e ouvintes para se espelharem nos exemplos de trajetórias ‘bem sucedidas’. A apropriação do romance O Novo Robinson, inserido em partes em cada início de edição, é consistente com o projeto de educação da mocidade, já que tal obra parece unificar as qualidades idealizadas pelos produtores do jornal: enaltece a família, a obediência aos pais e a Deus, a benevolência, além de instruir com conhecimentos enciclopédicos e ao mesmo tempo “úteis” e ser protagonizado por crianças e jovens.
Ao agrupar textos de naturezas diversas, após os retirar de seus suportes originais, os produtores de O Recopilador produziram novas significações para os textos e ao conjunto deles; ou, segundo De Certeau (1990, p. 264, grifo do autor), “[...] inventam nos textos outra coisa que não aquilo que era a ‘intenção’ deles”. A mudança na forma e no suporte certamente interfere também nas práticas de leitura e nos usos que se fazem dela (Chartier, 1994).
Cabe ressaltar o forte caráter religioso que perpassa os ensinamentos morais, amparando as ações familiares na educação das novas gerações. Da mesma forma, percebemos a ausência quase completa de referências à escola como instância educativa e de formação, destacando-se, novamente, o papel dos pais, em especial, do pai na educação dos meninos e meninas. Isso reforça o fato de ser esse período ainda de ações incipientes no processo de constituição da escola como referência educativa em todo o império. Reforcemos o fato de a província da Bahia protagonizar, nesse mesmo período, tensões de natureza separatista, que possivelmente teriam deslocado as discussões acerca da escolarização para outros assuntos prementes. O jornal encontrou, nessa lacuna, espaço fértil para desenvolver seu potencial educativo, afirmando uma ‘neutralidade política’ que se traduziu na difusão de valores morais de cunho religioso, tendo como suporte uma pedagogia do exemplo.
Com a revolta da Sabinada em curso, interrompeu sua produção e, ao se deslocar para o Rio de Janeiro, manteve sua política editorial mas, após quatro edições, não há mais notícias do jornal. O Recopilador pode ter perdido o fôlego, pode não ter tido a receptividade esperada na nova cidade, ou seus exemplares seguintes podem ter se perdido.