Introdução
No verão de 1989, dez anos depois da publicação de La condition postmoderne, de Jean-François Lyotard (1987), Francis Fukuyama (1992) retomava o tema escatológico e niilista do 'fim da história'. Ironicamente, fê-lo mais como discípulo de Comte, Marx e Kojève do que de Hegel, com o êxito que se sabe, mercê da conjuntura e da contestação às filosofias da história (Catroga, 2003; Gray, 2008). Meses depois, caía o muro de Berlim e, com ele, iniciava-se a desagregação do 'monismo' comunista e concomitante ascensão de um 'capitalismo de casino' e do utopismo da direita neoconservadora norte-americana (Gray, 2008). Pela primeira vez, passámos a viver num mundo que possui um único modelo social dominante para as sociedades desenvolvidas, reconhecia, em 1993, Peter Singer (2006, p. 38-39). Todavia, “[...] no momento preciso em que este modelo assumiu um poder tão forte nos espíritos daqueles que se consideram politicamente realistas - acrescentava, então, o filósofo australiano -, tomamos gradualmente consciência de que nos estamos aproximando do fim de uma época”. Já em 1986, antes mesmo da 'Queda do Muro', Ilya Prigogine e Isabelle Stengers (apud Spire, 2000, p. 55) afirmavam: “Sentimos que estamos num período de bifurcação [...]”.
O pressentimento do fim de um tempo ('industrial') e concomitante emergência de outro ('pós-industrial'), mais intensamente discutido nos últimos decénios, não é novo. O próprio Daniel Bell, tido como o autor da expressão 'sociedade pós-industrial', atribuiu-a, segundo Domenico de Masi (1999), a Arthur J. Penty, um socialista inglês, seguidor de W. Morris e de J. Ruskin, que, em 1914, organizara uma antologia intitulada Essays in post-industrialism. Acrescenta de Masi que Bell utilizara essa expressão, pela primeira vez, em 1959; em 1967, viria a usá-la num artigo publicado em The Public Interest, antes de colocá-lo no título do seu famoso livro, The coming of post-industrial society (1973), quatro anos depois de Alain Touraine ter publicado um outro justamente intitulado La société post-industrielle (1969).
De facto, há muito que se assiste à crescente 'terciarização' das economias industriais, à crescente importância económica e social dos setores que não produzem bens físicos. Em 1940, Colin Clark (1960) agrupou essas atividades no que então chamou 'setor terciário'. O seu crescimento e diversidade justificam hoje a sua classificação num quarto e num quinto setores, que integram os sindicatos, os bancos, as seguradoras, os serviços de saúde, a educação, a pesquisa científica, o lazer, a administração pública. Há muito que se verifica uma crescente automação das indústrias transformadoras dos países industrializados (Pomian, 2007). Há muito que se assiste à produção em massa e à feminização da mão-de-obra, mas o que é verdadeiramente novo, tanto na sua natureza técnica, como nas implicações civilizacionais, é a massificação à escala global das tecnologias da informação e da comunicação, da eletrónica e da informática, que aceleraram o ritmo da mudança verificada até aos anos 1990, induzindo o aparecimento de fenómenos inéditos, como o teletrabalho e a secretária virtual, a gestão em rede, o comércio eletrónico, a escola virtual e um crescente número de serviços e aplicações de inteligência artificial, que criaram a Telepolis, de que fala João Maria André (1999): “A Telepolis é a cidade a caminho do futuro, mas é uma cidade sem cidade, um espaço sem espaço, na medida em que é a negação do que constitui a própria Polis: a circunscrição territorial e a comunicação interpessoal”.
Uma sumária enumeração dos marcos cronológicos mais decisivos da história recente das tecnologias da comunicação e da informação é esclarecedora da celeridade das mudanças das últimas décadas, depois de um longo e lento processo de invenções e inovações, desde Babbage, no início do século XIX, até a John van Neumann, nos anos 1940 (Postman, 1994, p. 100). Em 1975, nasce o primeiro computador pessoal, o Altair, da Microsoft; em 1981, a IBM tornou pública a arquitetura do seu microprocessador, cinco anos depois da criação do Apple I, o primeiro computador single-board. Nesse mesmo ano, nasce o primeiro computador portátil; em 1983, a Microsoft anuncia o Windows; em 1984, a Apple lança o Macintosh, o primeiro computador com rato e interface gráfica, no mesmo ano em que a IBM lançou o PC-AT; em 1989, o britânico Tim Berners-Lee cria a Web; em 1991, nascem as redes comerciais GSM, dezanove anos depois de Martin Cooper, o diretor da Motorola, ter efetuado a primeira chamada móvel; em 1994, nasce o Netscape Navigator, e, no ano seguinte, é lançada a campanha planetária de promoção comercial do Windows 95, acontecimento que de algum modo obscureceu a apresentação da primeira longa metragem inteiramente realizada por computador - o Toy Story, de John Lasseter e da Pixar de Steve Jobs.
São referências obrigatórias de uma revolução que concedeu um lugar central às indústrias de computadores, de software, de telecomunicações e das mais diversas técnicas digitais ao serviço do 'hipercapitalismo' (Lipovetsky & Serroy, 2010), desde os anos 1980, fazendo disparar a produtividade empresarial e alterar profundamente as relações tradicionais entre espaço e tempo, abrindo o caminho, tanto à 'sociedade em rede' e à 'globalização' (Castells, 1999, 2005), como à “[...] hibridação cultural mediática” (Canclini, 2002, p. 212) e, no fim de contas, à ideologia da comunicação. Segundo I. Prigogine e I. Stengers (apud Spire, 2000, p. 15), “[...] a rapidez de circulação das informações que carateriza a nossa época, a possibilidade de tudo difundir imediatamente por todo o mundo, contribuem para manter todos os acontecimentos na insignificância e na anedota, para submeter todas as ideias às leis do espetáculo e da moda”.
Inédita é, igualmente, a obsessiva busca de 'inovação', a crescente importância atribuída ao conhecimento técnico em todos os ramos de atividade, servindo as lógicas dos 'mercados', da busca arrebatada de 'liberdade' e 'felicidade' individuais. Nessa medida, é igualmente nova a rápida obsolescência dos produtos, das técnicas e do design, bem como a sujeição do político ao económico, mercê da inexistência, ou da disfunção das políticas de regulação, uma vez que a economia se globalizou, enquanto a decisão política permaneceu no estreito e agora quase inoperante quadro nacional.
Os efeitos destas mudanças na economia são surpreendentes. Como refere Daniel Innerarity (2011, p. 53), “[...] a nova economia configura um mundo em que os recursos mais importantes são os mais intangíveis, o território é menos importante que o nível de educação da população, e as reservas de bens, de capitais e de mão-de-obra contam menos que os fluxos económicos”. Visto de outro ângulo, este capitalismo financeiro global põe de parte “[...] um sistema de produção com base na poupança e no trabalho [...]”, privilegiando “[...] o consumo, que pressupõe despesa e esbanjamento” (Bruckner, 2002, p. 40).
Em 1978, E. P. Thompson publicou The poverty of theory and other essays, onde defendia um marxismo com sujeito, contestando o estruturalismo althusseriano. Pois bem, poucos anos depois, a paisagem mudou: em 1984, Alain Touraine (1996) falava de um 'retorno do ator'. Em poucas décadas, a 'sociedade da confiança' de Alain Peyrefitte (1995) estava dando lugar à pessimista 'era do vazio' de Lipovetsky (1989), a uma 'sociedade invisível' (Innerarity, 2009) e à consciência trágica de que “[...] provavelmente, a humanidade já excedeu a capacidade biótica máxima do planeta” (Gray, 2008, p. 268).
Não espanta, pois, que as diversas configurações das sociedades atuais suscitem tantas análises desencontradas e grandes debates em muitas áreas do saber. Depois de Lipovetsky, Giddens e outros, Zygmunt Bauman (2007) propôs o conceito de “modernidade líquida”, colocandoa ênfase na ambivalência e na incerteza desta pós-modernidade.
Efeitos dessas mudanças na Educação
Na Educação, esse tsunami está varrendo a praia luminosa das nossas certezas, tornando obsoleto o currículo unidimensional, assente na continuidade do ciclo de vida - escola, trabalho, reforma -, ainda que este fenômeno tenha as suas raízes nosanos 1950-1960. Como mostra Bernard Charlot (2007, p. 130), com o fim da II Guerra Mundial, o 'Estado educador' foi dando lugar a um Estado que “[...] coloca a educação ao serviço do desenvolvimento”. Mas hoje, mais do que nesses anos - sentenciam os ideólogos do Presente -, quem quiser “[...] desempenhar um papel na cronocracia tem de aprender, em rede, antes da escola, nela e depois dela, durante toda a vida. Deixou de ser possível descansar sobre aquilo que se aprendeu em tempos, porque o conhecimento necessário amanhã será diferente do de hoje” (Baltes, 2005, p. 39).
Deste modo, a educação vê ameaçado o seu carácter multidimensional ao tornar-se quase apenas sinónimo de 'qualificação', de saber 'produtivo' e efémero, com prejuízo para os saberes e as aprendizagens que não fazem girar a roda da fortuna da globalização financeira. Dada a crescente complexidade das sociedades deste mundo global, a Escola fez-se palco dos combates pelo futuro. A competição entre países desenvolvidos e entre empresas “[...] é decidida, em primeira linha, pela capacidade das suas elites” (Baltes, 2005, p. 39), ao mesmo tempo que uma corrente persiste no objetivo expresso por Rousseau, no Émile (1762) - 'ensinar a condição humana' -, desígnio que Edgar Morin (2002) defende como fim primordial da educação.
Essa produtividade dos saberes técnicos na escola, os valores que lhe contestam a supremacia e uma 'surrealidade societal' emergente, mais interessada em celebrar a vida, uma 'vida sem projeto', uma 'vida sem objetivo', constituem um paradoxo aparente deste tempo que vivemos. Na verdade, como salienta Maffesoli (2001, p. 10), a “[...] sinergia do arcaísmo e do desenvolvimento tecnológico [...]” constitui a melhor definição de pós-modernidade, “[...] definição provisória, bem entendido, mas que é congruente com todos esses fenómenos musicais, de linguagem, corporais, de vestuário, religiosos, medicinais, que voltam a dar à natureza, ao primitivo, ao bárbaro, um lugar de eleição”.
Com esta pós-modernidade, emerge uma outra concepção de tempo - 'imóvel', para uns, 'perpétuo', para outros -, de qualquer modo, um tempo instalado no presente, um 'fim da história', portanto. Esta preocupação de viver “[...] sem nos preocuparmos em demasia com o futuro”, como diz Maffesoli (2001, p. 47), constitui fenómeno de difícil compreensão para uma civilização como a nossa, que “[...] depende do futuro do mesmo modo que depende do petróleo” (Pomian, 2007, p. 156). De qualquer modo, o carpe diem, o prazer do aqui e agora, o gozo instintual da 'intemporalidade da vida imediata', se não for moda passageira, irá provocar profundas alterações no domínio da educação, cuja história assenta na ideia de 'projeto', como mostra Zaki Laïdi (2001), num ensaio sobre a emergência do 'homem-presente'. Para este sociólogo, o tempo do 'homem-presente' está “[...] enrolado sobre si próprio, incapaz de voltar a ligar-se aos dois canais simbólicos do tempo, que são a faculdade de 'transmitir' (o passado) e a de 'prometer'(o futuro)”, as duas principais funções da escola (2001, p. 109-110, grifo nosso).
Ironicamente (antecipando o futuro), Innerarity (2009, p. 189) considera que “[...] os pais já não reconhecem na escola dos seus filhos aquilo que foi a sua própria escola”. Na verdade, esse fenómeno (ainda) não está generalizado; em muitos aspetos, a escola não sofreu alterações substanciais desde o séc. XIX, como salientam diversos autores (cf. Silva & Amante, 2015).
De qualquer modo, esta 'aceleração da história' (Daniel Halévy, 1948) -, que para Koselleck (2011, p. 3 e 11, grifo do autor) é “[...] somente uma aceleração 'na' história [...]”, que “[...] resulta dos progressos técnicos e industriais [...]”, criou uma situação inédita, na opinião de Innerarity (2009, p. 187): “[...] cada vez estamos menos tempo onde estamos [...]”, de tal modo que “[...] nunca antes houve um tempo presente tão cheio de informações antiquadas [...]”, ao ponto de estarmos “[...] mais informados sobre um mundo que já não é o nosso”. Por isso, como salienta este filósofo espanhol (Innerarity, 2009, p. 192), todas as ciências têm “[...] uma maior consciência da provisoriedade das suas conquistas, e refletem com preocupação acerca dos cenários futuros”. Assim, “[...] se ver significa sempre antecipar, esta previsão torna-se muito mais necessária numa civilização dinâmica, na qual quem só atende ao que acontece não compreende sequer o que acontece [...] ”, fazendo com que “[...] a imaginação ocupe uma boa parte do espaço que era próprio da observação” (Innerarity, 2009, p. 186). Esta situação é geradora de uma rápida obsolescência social e cultural: os perfis profissionais modificam-se a grande velocidade, o fosso entre gerações alarga-se de forma inédita, tornando frágeis as formas tradicionais de transmissão, gerando exclusões, incompreensões. E medo. Não por acaso, a segurança é um dos domínios económicos que maior desenvolvimento experimentaram nos últimos tempos (Innerarity, 2009; Bauman, 2006).
Entre as grandes dificuldades sentidas atualmente no mundo da educação, Zygmunt Bauman (2008a) destaca a 'síndrome da impaciência'. Sente-se em todos os domínios uma busca quase desesperada de satisfação imediata, de gozo instantâneo. Tal como o consumo já não se define pela acumulação de coisas, mas pelo breve gozo das coisas, o conhecimento, tornado produto, está igualmente sujeito à erosão da novidade, daí o culto atual da 'educação permanente' (Bauman, 2008a). Ora, a busca permanente de inovação, a idolatria do 'novo' - confundido com efémero e vazio (Catroga, 2003) - está a liquidar a memória e a solidez dos valores que ela preserva, e, consequentemente, a derruir os fundamentos de instituições da modernidade, criando uma volatilidade tal que faz da prospetiva uma preocupação de todos os saberes, de todos os poderes.
Nessa medida, este presente desvaloriza o Livro e a Escola, que o mesmo é dizer, desvirtua a secular relação entre mestre e discípulo, fenómeno a que de certo modo não será alheia, também, a chegada à escola de “[...] toda uma população que possui e exterioriza, de forma cada vez mais evidente, caraterísticas bastante divergentes das que anteriormente estavam presentes no grupo socioprofissional para o qual a escola tinha sido concebida” (Cortezão, 2000, p. 17). Segundo George Steiner (2004, p. 147), a relação entre mestre e aluno, originariamente enraizada na experiência e no culto religioso - “[...] as lições do Mestre eram as do sacerdote [...]” -, permaneceu em vigor ao longo da modernidade secular: “[...] reverenciar o Maître era o código de relacionamento natural”. Hoje, continua Steiner (2004, p. 147), “[...] os louvores são principalmente dirigidos aos atletas, às estrelas pop, aos milionários ou aos reis do crime. A celebridade, que satura a nossa vida mediática, é o contrário da fama”. Noutro sentido, afeminização, nomeadamente a feminização do mundo da Escola - numa época de feminismos plurais (Fournier, 2010) -, está a criar algo novo, abrindo espaço à pluralidade e à antinomia de valores, criando condições para a emergência de um verdadeiro humanismo (Maffesoli, 2001).
E que dizer da extraordinária importância da 'Imagem'na educação? O mundo 'imaginal' pós-moderno, em que a imagem omnipresente fundou uma ética do instante, diferente da ética racional da modernidade (Maffesoli, 2001). Prometeu parece estar dando lugar a Dionísio e a Epicuro. A razão cede à emoção, ao sensível, ao corpóreo, ao lúdico, ao festivo, ao superficial, ao irracional, ao arcaico, ao efémero. O 'Texto escrito', o 'Texto impresso' em papel, tornado autoridade especialmente desde 1517, cede protagonismo ao texto digital, ao hipertexto e ao multimédia, permanentemente alterável.
No quadro da telepolis, o “[...] ingresso de grandes multinacionais nas escolas [...]” e a consequente criação de um “[...] mercado da educação” (Charlot, 2007, p. 132-133) e de um “[...] mercado do conhecimento” (Bauman, 2008b, p. 37) - ainda que esse fenómeno atinja, por enquanto, quase apenas o ensino superior - está a favorecer a expansão de uma modalidade de escola, até agora claramente residual: a escola sem muros, a escola virtual, em rede. Também o sonho de educação à distância não é de hoje. Recordo os cursos de ensino a distância, com envio pelo correio de materiais pedagógicos impressos, desde meados do século XIX; a criação da telescola, em Portugal, cujas emissões tiveram início em outubro de 1965; a criação do Ano Propedêutico, em 1977, tirando partido das possibilidades da televisão (Carvalho, 2001), e da Universidade Aberta, fundada em 1988 (João, 2018). Mas nunca como agora se reuniram meios técnicos capazes de criar condições para a concepção de escolas sem edifícios, de aprendizagens diretas ou diferidas, com recurso a suportes digitais, tirando partido da Internet, nomeadamente da Web2.
As duas primeiras fases do ensino a distância, o ensino por correspondência e a fase analógica (rádio, televisão, cassetes áudio e vídeo) complementavam o processo bem conhecido de organização da transmissão e da criação de conhecimento. Mas esta nova fase, digital pela sua linguagem - a “[...] nova linguagem planetária” (Lipovetsky & Serroy, 2010, p. 95) -, poderá impor o fim da sala de aulas, como a conhecemos desde que a escola abandonou a igreja e a casa, “[...] para ocupar as praças e as avenidas da cidade”, tornando-se pública “no duplo sentido da palavra” (Faria Filho, 1998, p. 4). Abre-se, assim, o caminho para a transformação da escola num 'não-lugar', via nova para velhas tentações no domínio das políticas educacionais (redução de custos, controlo ideológico de conteúdos ministrados, etc.), a par das enormes e promissoras possibilidades de formação, mais económica e democrática.
Tudo somado, parece evidente que estamos perante um 'mal-estar educativo' (Cortezão, 2000), um “[...] tempo de grandes incertezas e de muitas perplexidades [...]” na educação (Nóvoa, 2009, p. 27), de que Eduardo Terrén (2001, p. 10) realça alguns sintomas - desmotivação, indiferença, relativismo -, sublinhando, todavia, que é urgente fundamentar a educação, na linha da utopia reflexiva de Bourdieu. Urge igualmente, segundo este autor, rever a própria ideia de aprendizagem, “[...] eixo central do trabalho escolar [...]”, favorecendo “[...] as qualidades comunicativas, a capacidade de iniciativa e as competências relacionais [...]”, privilegiando um modelo dinâmico, “[...] centrado não na preparação para postos, mas para processos [...]”, pois, como defendem Lucia Gaspar da Silva e Lúcia Amante (2015, p. 6), na esteira de autores como Siemens (2004), Downes (2005) e Cormier (2008), “[...] a aprendizagem é essencialmente concebida como algo que acontece em interação, centrada no desenvolvimento de processos cognitivos superiorese como um processo que, também ele próprio, produz conhecimento”. E, como salienta António Nóvoa (2009, p. 12), “[...] quando se fala de aprendizagens, fala-se, inevitavelmente, de professores”. Perante os novos desafios, os professores “[...] reaparecem, neste início do século XXI, como elementos insubstituíveis não só na promoção das 'aprendizagens', mas também na construção de processos de inclusão que respondam aos desafios da diversidade e no desenvolvimento de métodos apropriados de utilização das novas tecnologias” (Nóvoa, 2009, p. 13, grifo do autor). Todavia, Lucia Gaspar da Silva e Lúcia Amante (2015, p. 9), parecem dar-se conta das dificuldades, quando afirmam que, “[...] passado pouco mais de um século [...] temos um professor desafiado a ensinar com ferramentas [digitais] que não domina e que exigem uma espécie de velocidade cognitiva de que não dispõe”. Na realidade, os desafios do 'bom professor', segundo António Nóvoa (2009), vão para lá das competências digitais, embora muitos vejam 'a tecnologia como a chave para a educação do futuro'; um 'bom professor', segundo Nóvoa (2009, p. 44), terá de ter "[...] conhecimento, cultura profissional, tacto pedagógico, trabalho em equipa e compromisso social". Assim, a educação, nesta 'fase de transição', terá de três condições da cidadania: 'mais' aprendizagem, 'mais' sociedade - "[...] uma escola é uma sociedade, e não uma comunidade" (Nóvoa, 2009, p. 66) -, 'mais' comunicação.
No tocante ao combate ao relativismo, Eduardo Terrén advoga um 'modelo de racionalidade dialógica' - uma 'razão dialógica e argumentativa”, defende João Maria André (1999) -, recusando um universalismo dogmático e um relativismo extremo, tendo como fim último a autonomia do sujeito. Mas para isso, como advoga António Nóvoa (2009, p. 32), a formação de professores deve assumir, para lá da estéril dicotomia “[...] teoria vs. prática [...”, “[...] uma forte componente práxica, centrada na aprendizagem dos alunos e no estudo de casos concretos, tendo como referência o trabalho escolar”.
Emergência da mercantilização da cultura e do patrimônio
É no horizonte destas extraordinárias mutações que teremos de pensar, hoje, o património, em geral, e o da educação, em particular, a par das transformações registadas nos museus e do extraordinário incremento do turismo, “[...] a indústria singular mais importante do mundo”, como sublinham John H. Falk e Lynn D. Dierking (apud Mendes, 2009, p. 26).
Depois da II Guerra Mundial, e muito especialmente após a 'época de ouro do crescimento', que antecedeu o primeiro choque petrolífero (1973), assistiu-se a um movimento de inventário patrimonial no Ocidente, com especial destaque para os países que viram os seus territórios devastados pela guerra. Esse fenómeno adquiriu uma escala inaudita, nas últimas décadas, em resultado dos efeitos conjugados desta pós-modernidade e da globalização, tanto pela transfiguração das hierarquias dos espaços geográficos, como pela massificação planetária da escolarização, da investigação científica e da pressão dos meios de comunicação social. Assistiu-se, assim, a um movimento de afirmação cultural de escala geográfica reduzida, fenómeno que é atestado pela mole de estudos de incidência local e pelacriação de um elevado número de novos museus, de uma “explosão museológica”, de uma 'patrimonialização' de uma 'vaga patrimonial', que se fez sentir na diversidade de expressões: 'património cultural de proximidade', 'pequeno património', 'património natural', 'património vivo', 'património imaterial', etc. (Hartog, 2006). Como refere Marta Anico (2005, p. 79-80), a crescente patrimonialização de elementos das culturas locais
[...] contribuiu para o alargamento do campo patrimonial que integra não só o património associado a práticas culturais eruditas e elitistas, mas também um património vernacular, quotidiano, material ou intangível, relacionado com as memórias e as histórias orais, abrindo assim caminho à integração de um vasto conjunto de bens culturais na categoria de património, fruto de uma crescente elasticidade conceptual, mas também temporal.
Em 1992, numa conferência promovida pela Fundación Cultural Banesto, Gilles Lipovetsky (1993, p. 79, grifo do autor) afirmava: “A cultura pós-moderna está 'dominada pelo consumo e pelos meios de comunicação', e encontra-se reestruturada segundo a 'lógica da sedução e do efémero'”. Paradoxalmente, realçava então Lipovetsky: “[...] quanto mais se guia a nossa sociedade pelo efémero, maior é o entusiasmo pelo passado, pela sua reabilitação, pela sua conservação e revalorização”. Todavia, essa valorização parece ser “de natureza puramente estética e ‘museísta’. Trata-se de um culto gratuito, de um divertimento, de simples decorado, sem maiores consequências para a criação do presente”. Mas advertia que “não se deve esquecer de que o património se está transformando cada vez mais num 'produto de consumo cultural de massas', num produto económico [...], num dos setores da ‘engenharia cultural’ e do ‘marketing urbano’” (grifo do autor).
Duas décadas depois, Gilles Lipovetsky voltou ao tema, então com Jean Serroy (2010, p. 15), mostrando que, no âmbito daquilo a que chamam 'cultura-mundo', se assiste a “[...] uma mercantilização integral da cultura, que é também uma culturalização da mercadoria [...]”, em resultado de terem desaparecido “[...] as antigas oposições entre economia e quotidiano, mercado e criação, dinheiro e arte [...]”, pois “[...] o mercado integra cada vez mais na sua oferta as dimensões estética e criativa”.
Os efeitos dessas mudanças na museologia são óbvios: “[...] o anterior modelo dos visitantes enquanto cidadãos transforma-se num modelo de visitantes enquanto consumidores, que passam a ocupar o cerne de todas as atividades museológicas”. Esta alteração “[...] veio provocar uma situação de crise no que concerne ao papel dos objetos e das coleções nas atividades desenvolvidas pelos museus, conduzindo a uma redefinição das suas funções tradicionais” (Anico, 2005, p. 82). O mercado mudou o vetusto mundo da arte, como está a mudar o novíssimo 'mercado do património', “[...] quando não em valor de transação (isto é, de compra e venda), pelo menos em valor de uso” (Mendes, 2009, p. 14). Por isso, “[...] em todo o mundo abrem novos museus, que rivalizam em gigantismo, arquitetura inovadora e imagens-choque [...]”, de modo que “[...] a época da cultura-mundo é a dos museus-espetáculo guindados ao nível de destino turístico de massas [...]. O museu era lugar de recolhimento, mas ei-lo agora como espaço de recreação, destinado ao consumo visual e hedonista do grande público” (Lipovetsky & Serroy, 2010, p. 110-111), e “[...] surge cada vez mais como um elemento do desenvolvimento urbano [...]”, como acontece, por exemplo, com o museu-escultura de Frank Gehry, que é o Guggenheim, em Bilbau, um museu “[...] que não dispõe de obras próprias” (Lipovetsky & Serroy, 2010, p. 110-111).
Também o 'turismo cultural' usa o património cultural como recurso (Mendes, 2009, p. 15), tendendo a condicionar a transmissão e a preservação do património cultural e arregimentando saberes académicos para legitimar os seus propósitos, como no passado esses mesmos saberes legitimaram outras políticas, nomeadamente as do Estado-nação. A agência turística SWA Safardis, com sede em Tsumeb, no norte da Namíbia, oferece um programa chamado 'As tribos do norte da Namíbia'. A este propósito, Manuel João Ramos (2003, p. 47-48) afirma: “[...] a situação social de muitas populações San, que vivem nas imediações dos parques nacionais e das reservas de caça privadas da Namíbia, Botswana e África do Sul, é profundamente degradante [...]”, pois, após décadas vivendo em bairros da lata, desempregadas e entregues às bebidas alcoólicas, essas populações “[...] viram folclorizada para consumo turístico a sua cultura [...]”, sendo muitos indivíduos
[...] contratados pelos proprietários para representarem, perante os visitantes, aspetos de uma vida que provavelmente já não conheceram: vestindo tangas de pele, fazendo flechas, colhendo bagas e tubérculos, cantando em línguas que não conhecem e dançando danças descritas em manuais etnográficos sobre bosquímanos.
Este é apenas um exemplo...
Do dever de preservação do patrimônio da Escola
Não obstante o crescente interesse pelo património material da educação, a escola não possui o estatuto mediático, a sedução da grande pintura e da arquitetura-espetáculo, menos ainda o valor de troca no mercado antiquário e no colecionismo que possuem as obras de arte. Este património cultural não se move no mar alto da globalização; poderemos entrevê-lo mais nas margens, servindo fins académicos, culturais, fetichistas e turísticos de dimensão localizada, não global, ainda que, antropologicamente, esse património irmane as populações à escala planetária, em especial nas sociedades escolarizadas. Por outro lado, o interesse pelo património e pela museologia da escola e da educação - Juri Meda (2010) refere outras designações: museu escolar, museu didático, museu pedagógico, museu universitário, museu da escola -, é recente; terá nascido nos anos 1970. Chegou a Portugal duas décadas depois (Felgueiras, 2005). Em 1995, Dominique Julia publicava o estudo seminal Culture scolaire comme object historique, dois anos depois de ter proferido, em Lisboa, uma conferência sobre o tema. Em 1998, Viñao Frago, na sequência de estudos dos anos anteriores sobre história da educação e história cultural, publicava L’espace et le temps scolaires comme object d’histoire, enquanto, no Brasil, Ulpiano T. Bezerra de Meneses, apresentava-nos um conjunto de reflexões sobre a importância dos artefactos no campo da memória. É, pois, na última década do séc. XX que este movimento ganha força. No ano 2000, no Brasil, a cultura material escolar ainda era “[...] um tema ainda pouco investigado” (Veiga, 2000).
Na viragem do milénio, surge um primeiro conjunto de trabalhos que “[...] procuram restituir o quotidiano escolar [...]”, no cruzamentoentre “[...] a perspetiva etnográfica e a cultural e se presta uma progressiva atenção à cultura material escolar” (Felgueiras, 2008, p. 494). O conceito de cultura escolar “[...] demonstrou possuir fortes potencialidades para a compreensão da escola e dos sistemas educativos, permitindo estudar dimensões ignoradas até aos anos noventa” (Mogarro, 2010, p. 91). Uma década depois, a paisagem cultural da História da Educação, o interesse pela Escola e pelo seu património era completamente diferente. Como salienta Maria João Mogarro (2012, p. 69), internacionalmente, “[...] este movimento de preservação e valorização do património da educação tem vindo a ganhar uma relevância crescente nos campos científicos da educação e da história [...]”, “[...] alargando e diversificando orientações, perspetivas, discursos, temas, metodologias e fontes de informação, estabelecendo a convergência com outros campos do conhecimento além da história da educação” (p. 71).
Com a renovação do parque escolar, foram sendo dados os primeiros passos na preservação do património educativo. Suscitando um movimento de duas faces, a reabilitação de velhas escolas primárias serve, tanto os interesses turísticos de pequenas localidades, como, aqui e ali, possibilita a preservação da cultura material, entendida como “[...] cultura do grosso da população, não das elites” (Mendes, 2009, p. 20). Algumas vezes, os edifícios são preservados para aí nascerem pequenos museus, tantas vezes ainda em busca de coleções próprias. Exemplos de projetos bem-sucedidos, em Portugal, nasceram em Marrazes, Leiria,e em Válega, Ovar (Salgueiro, 1999; Pinho, 1999). Noutros casos, aos edifícios foram dadas funções diferentes. Bom exemplo é a velha escola de Macieira de Alcoba, transformada no restaurante A Escola por uma parceria público-privada lançada pela Câmara Municipal de Águeda, com vista à promoção do “[...] turismo de toda aquela franja da zona serrana do concelho [...]”, possibilitando, deste modo, “[...] apetrechar aquela aldeia montesina com uma infraestrutura capaz de captar turistas e visitantes” (A velha escola..., 2009). Noutros casos, esses edifícios foram cedidos a associações culturais locais ou servem outros projetos do poder local. Também nas cidades se tem assistido, nos últimos anos, à refuncionalização de alguns edifícios escolares notáveis, como na Escola-Museu Brotero.
Não obstante os muitos estudos de história da cultura material das instituições educativas, publicados em diversos países, como mostrou Juri Meda (2011), especialmente nas duas últimas décadas, a memória oupatrimónio educativo, material e imaterial, está seriamente ameaçada pela emergência dos novos materiais, pela construção de novos edifícios, pelas mais recentes ferramentas de aprendizagem e pelo “novo-riquismo desmemoriado” de que fala António Gomes Ferreira (1999, p. 13). Por outro lado, a sua extraordinária heterogeneidade coloca inúmeros problemas de recolha, inventário, catalogação, conservação e valorização e estudo (cf. Meda, 2010). Muito se perdeu, mas ainda é possível impedir a destruição de um vasto e muito diversificado de bens materiais e imateriais que podem transformar a História da Educação. A este propósito, Margarida Louro Felgueiras (2005, p. 95) reconhece que os historiadores da educação têm enfatizado a necessidade de se conservar “[...] a documentação arquivística, os manuais escolares, os mapas [...]”, assumindo que “[...] pouco se sabe dos trabalhos de professores e de alunos, fundamentais para o conhecimento das práticas educativas”. Todavia, a referida historiadora salientava que, nesses discursos, “[...] os edifícios, os materiais pedagógicos, o mobiliário e os jogos foram os mais esquecidos”. A pioneira 'Exposição do Património Documental e Museológico dos Estabelecimentos de Ensino', promovida pelo Ministério da Educação, em 1990, no Porto, mostrou bem a enorme diversidade e importância cultural deste património, dos laboratórios e instrumentos científicos aos trabalhos realizados por alunos-artistas, ao longo de décadas (Alves, 1990). Nesse mesmo ano, foi publicado o primeiro volume de uma obra que dá especial atenção à evolução espacial e material dos edifícios para o ensino infantil e primário, dos primórdios até 1941 (Beja, Serra, Machás, & Saldanha, 1990).
A recolha do património escolar está se realizando um pouco por toda a parte. Juri Meda (2010) propõe um programa constituído por sete objetivos, de que destaco quatro: 2. salvaguardar, valorizar e promover o estudo das coleções de património cultural escolar, de acordo com critérios científicos; 3. classificação sistemática do património cultural escolar, segundo uma ordem racional que facilite a sua descrição, acesso e uso; 4. recuperação e recuperação de património cultural escolar particularmente raro, danificado devido a usura e / ou negligência; 7. a divulgação da história da educação, tanto para estudantes de escolas de diferentes tipos e níveis, através de atividades educativas, exposições e visitas guiadas, e para os profissionais da escola e educação através de reuniões e seminários destinados a reforçar o património culturalda escola.Estas atividades permitiriam, segundo o referido autor, valorizar esses bens, não permitindo a sua destruição, tornariam os museus escolares espaços de aprendizagem, possibilitariam uma clara melhoria do ensino e das aprendizagens, favoreceriam um diálogo intergeracional e criariam novas oportunidades de emprego.
Porque o património cultural tem “[...] a propriedade de conferir espessura ao tempo” (Rèmond-Guilloud, 2002, p. 221), temos obrigação moral de reabilitar a preocupação com o património material da educação, “[...] revigorando a própria ideia de transmissão, as obrigações assimétricas e diferidas que isto implica (credor dos antepassados, em primeiro lugar, torno-me depois devedor dos meus sucessores), bem como de todo o tempo que seja preciso” (Ost, 2002, p. 229).
A paixão como princípio criador da História da Educação
Naturalmente, todos estes solavancos e incertezas repercutem-se na oficina dos historiadores, levando-os a perguntar-se com inquietação, cerca de meio século depois de E. H. Carr, o Que é a história, hoje? (Cannadine, 2006). No início dos anos 1990, Peter Burke (1992) falava de uma prolongada guerra entre historiadores situados em extremos opostos: historiadores 'narrativos' e historiadores 'estruturais', e entre estes e os 'empiristas'. Em 1997, num texto sobre 'história e paradigmas rivais', Ciro Flamarion Cardoso (1997, p. 19) recusava “[...] escolher entre teorias deterministas da estrutura e teorias voluntaristas da consciência". Anos depois, segundo Carlos Barros (2004), “[...] vivemos uma crise, uma dificuldade/mutação global, porque afeta a prática da história (a maneira de investigar e de escrever a história), a teoria da história e a função social da história (desvalorizada, num mundo futuro, que alguns ainda querem sem alma, tecnocrático)”.
Os movimentos de 'rutura' ou de 'revisão'dos últimos decénios, colocados sob o lema do 'regresso' -'regresso' da narrativa, 'regresso' do sujeito, 'regresso' do acontecimento, 'regresso' do político, 'regresso' da própria historiografia ao seu antigo estatuto de saber mais próximo da literatura do que dos paradigmas de qualquer ciência (Catroga, 2010) -, serão, em parte, fruto da 'surdez especializada' da Ciência (Boulding, 2004) que também fez a história mostrar 'as suas muitas faces'(Pallares-Burke, 2000). Peter Burke (1992, p. 35) fazia então um diagnóstico pessimista: “[...] a disciplina da história está atualmente mais fragmentada do que nunca: os historiadores económicos são capazes de falar a linguagem dos economistas, os historiadores intelectuais, a linguagem dos filósofos, e os historiadores sociais, os dialetos dos sociólogos e dos antropólogos sociais, mas estes grupos estão descobrindo ser cada vez mais difícil falar uns com os outros [...]”, e terminava perguntando: “Teremos de suportar esta situação, ou há uma esperança de síntese?”. Ainda que tal esperança faça algum sentido, importa recordar, com as palavras de Krzysztof Pomian (2007, p. 256), que, em resultado da sua historicidade e da diversidade do humano, “[...] a história só se declina no plural”. Mais. Se essa síntese de que fala Burke é desejo de busca de totalidade, gostaria de usar as palavras de Goethe (apud Mattoso, 1988, p. 124): “O todo não pode ser procurado por nós no excessivo, no imenso, mas no particular, num particular, num fragmento da totalidade, de que esse fragmento é parte e reverberação”.
Também no domínio da história da educação, Justino Magalhães (2007, p. 26) salienta justamente a “[...] diversidade, material e simbólica, fruto de uma epistemologia interdisciplinar, multifatorial, com base em discursos e imagens, ícones, testemunhos e resíduos materiais e artefactos, memórias [...]”, que se traduzem em discursos criativos, possibilitando multiplicar os temas: cultura escolar, arquitetura e espaços escolares, rede escolar, públicos, disciplinas escolares, manuais, materiais pedagógicos e didáticos, tempo escolar, representações da escola, memórias da escola, história dos públicos, história da profissão docente, mas, também, história do feminino, história da infância, das políticas educativas, do pensamento pedagógico, da educação não-formal, das instituições educativas, dos discursos e das práticas educativas escolares e não-escolares. Dando-se conta das transformações nos domínios da cultura material da escola e da educação patrimonial nos últimos anos, Escolano Benito (2010, 2017) afirmou que a história cultural da educação desembocou, como uma das vias ou desvio das diversas propostas pós-estruturais, que se foram ensaiando nas últimas décadas, na atenção aos objetos, imagens, textos e vozes que compõem esse património.
É possível que o extraordinário número de publicações académicas, da autoria de um cada vez maior número de historiadores universitários e profissionais em atividade em todos os continentes, também questione a mirífica unidade da história. Naturalmente, essa “[...] irredutível pluralidade da história” (Pomian, 2007, p. 249) traduz-se por uma enorme heterogeneidade epistemológica, filosófica, estética e literária, em razão das diferentes fontes utilizadas e das metodologias adotadas, dos públicos visados, da distinta valorização da teorização, da investigação, da explicação/compreensão (ou interpretação), como do diverso entendimento do papel da escrita no discurso historiográfico.
Mas as raízes do mal-estar das últimas décadas parecem encontrar-se mais nas mudanças que procurei enumerar nas páginas anteriores, com destaque para a emergência do digital e para a pressão autoritária do presente, que pouco espaço deixa para a materialidade, para se pensar o tempo, fazendo reeditar os debates do século XIX sobre a “utilidade” da história, agora num quadro diverso de reinvenção do Estado-nação. Esta modernidade líquida diluiu a solidez dos conceitos e antinomias do passado, gerando, simultaneamente, entusiasmos, hesitações e receios, novos caminhos e impasses, mercê da tentação das derivas dogmáticas ou relativistas. Desse modo, as oposições história/memória, ciência/arte, natureza/cultura, objetividade/subjetividade, real/virtual, pares antinómicos de fronteiras vincadas até há poucas décadas, aproximam-se, perdem algumas vezes sentido enquanto tal, transfigurando o labor dos historiadores. Vivemos “[...] uma época de heterodoxias [...]”, como salienta Rui Bebiano (2002, p. 49), de consciência aguda da multiplicidade de pontos de vista possíveis na compreensão e explicação dos fenómenos, situação que questiona o papel do historiador em todas as dimensões da 'operação historiográfica' (Certeau, 1982), da pesquisa à construção do texto, tanto pelo 'princípio da indeterminação' das suas escolhas (Stone, 1979), como pelas afinidades da narrativa ficcional com a narrativa histórica (White, 1973). Todos esses fenómenos minaram a confiança dos historiadores, diz Peter Burke (Pallares-Burke, 2000, p. 200), tornando-os “[...] mais humildes, o que é bom, e menos reducionistas, o que também é bom”. Mais interessados na reflexão epistemológica.
Deste modo, muitos historiadores demandam novas veredas para o diálogo interdisciplinar ou transdisciplinar, rompem barreiras temáticas e cronológicas dos seus objetos de estudo, renovam velhos métodos e experimentam novos caminhos, constroem novos modelos de explicação histórica, refletem sobre as operações de vigilância e verificabilidade, aproveitam as vantagens da informática e da Internet, buscam novos públicos, fazem uso da 'imaginação histórica' (Collingwood) ou “imaginação interpretativa” (Catroga), da intuição e várias formas de evidência, conscientes de que o conhecimento histórico é um saber 'mediato' (e que o historiador é um 'sujeito-mediador').
Na medida em que as fontes “[...] são a única parte do passado a que temos acesso direto” (Fernández-Armesto, 2006, p. 199) - não esquecendo de que, no plano epistémico, 'documento' e 'fato histórico' são produtos da 'operação historiográfica', isto é, do 'problema'(Catroga, 2010)-, pela sua natureza, os artefatos, as fontes materiais (bem como as orais), no quadro da rotura do “[...] vínculo monogâmico entre história e escrita” (Pomian, 2007, p. 108), desempenham um papel fulcral no labor historiográfico. Refiro-me a objetos e equipamentos vários, aos que Margarida Louro Felgueiras indica, como trabalhos de professores e alunos, edifícios, materiais pedagógicos, mobiliário e jogos, mas também a outro diverso material escolar (pastas, mochilas e vestuário, mobiliário, etc.), aos gestos que envolviam, aos seus usos, ao seu consumo, sem esquecer os materiais de que todos esses objetos são feitos, as fábricas e oficinas onde eram produzidos, os locais e as formas da sua aquisição, seus custos, mas também a arquitetura e os espaços e tempos da educação, enquanto espaços e tempos de memória e representação (Escolano Benito, 2000), e todos os aspetos com eles relacionados, como os transportes escolares, a localização das escolas, etc. O estudo dos mais variados objetos da Escola, olhados como testemunhos históricos -pois não falam por si sós nem dizem o mesmo a todos, exigindo, nessa medida, ser integrados e contextualizadosteoricamente (Tilden, 2007; Viñao Frago 2012)-, abre novos caminhos à história e à museologia da educação, possibilitando uma visão unitária dos processos educativos e do lugar destes nas sociedades, gerando condições para a criação de uma história da cultura material escolar que tem, também - parafraseando Daniel Roche, em entrevista a Maria Lúcia G. Pallares-Burke (2000, p. 168) - “[...] uma ambição intelectual”. Trata-se de um grande desafio, porquanto esta “[...] preocupação de não separar esses dois domínios [...]” tem esbarrado em obstáculos vários, como o quadro nacional de pesquisa, o confinamento a círculos disciplinares restritos, etc. Convém recordar que a nossa cultura banaliza o objeto e o seu papel na sociedade, esquecendo o seu lugar e sua função (Roche, 1998, p. 8). Também por esses motivos, a análise desses restos heteróclitos reunidos num 'Museu da Escola e da Educação', a observação desses 'objetos de sutura' (Guillaume, 2003) deverá ir além da sua exposição e descrição, deverá perscrutar-lhes os significados (dados e construídos), deverá olhá-los como partes significantes de um amplo e complexo sistema de relações e pontos de vista, deverá suscitar confrontos com os objetos de outros espaços geográficos, não deixando de abrir, simultaneamente, novas veredas à fruição cultural, ao diálogo entre centros e periferias, ao encontro de nós mesmos, como em boa medida há muitas décadas vêm fazendo, de forma marginal, os pesquisadores de Arqueologia e Património Industriais.
É neste quadro que os museus da educação/museus da escola poderão desempenhar um papel importante no processo de renovação e enriquecimento da história da educação; por seu lado, esta possibilitará redesenhar, de forma dialogal, a missão daqueles, como sugere Casasanta Peixoto (2006, p. 458), ao perguntar: “A que história, a que educação, a que escola se refere o acervo do Museu da Escola de Minas Gerais? O que oculta, o que revela?”. O diálogo com a história da educação pode fazer do museu escolar um espaço de dinamização e realização cultural, de produção de conhecimento, em que a pesquisa constitui uma dimensão importante da identidade de um museu (Peixoto, 2006), que se torna “[...] um espaço que nos conta uma história sobre as formas de pensar, sentir e fazer a educação, e que nos remete, ao mesmo tempo, ao centro das discussões contemporâneas sobre o papel da escola e seu futuro na sociedade” (2006, p. 462).
Oriundo da arqueologia e do materialismo histórico, o conceito de 'cultura material escolar' foi recuperado pela Nova História francesa e “[...] agora deslocado para o campo educativo [...]”, tendo, “[...] logo à partida, a virtude de obrigar a mover o olhar do discurso escrito para a materialidade de diferentes registos; instituir o estudo do quotidiano da educação, não como curiosidade, mas como projeto comum; reintroduzir os atos no cenário historiográfico” (Felgueiras, 2010, p. 27). Esse movimento tem levado os historiadores da educação “[...] a prestar atenção a um leque variado de fontes materiais [...]”, “[...] orientando o estudo para a 'caixa negra da escola' [Lacey, 1970], tentando perceber as diferentes realidades que a constituem e dando relevo ao que se passa na sala de aula, como no corredor, no recreio ou nas reuniões de professores [...]”, permitindo, por fim, “[...] considerar os atores não tanto pela sua singularidade, mas, sobretudo, para evidenciar os traços coletivos de uma sociedade e as formas de diferenciação que nela se operam” (Felgueiras, 2010, p. 27, grifo do autor).
Noutro estudo, a mesma autora salientara já a necessidade de se “[...] centrar o debate no campo teórico da história da educação, da possibilidade científica de articulação de novas abordagens e novos objetos, como a necessidade de constituição de uma sólida cultura histórica e de competências de investigação em história da educação [...]”, sendo “[...] indispensável voltar a questões epistemológicas básicas, como sobre fato e interpretação, sujeito e narrador, sujeitos e estruturas; autenticidade, significado e veracidade, estatuto do testemunho oral e material; difusão de modelos e interligação de culturas” (Felgueiras, 2008, p. 499).
Subscrevo esse 'programa' que, realçando a importância das fontes materiais, não esquece as fontes orais e enfatiza o crescente interesse dos historiadores da educação pela discussão teórica, no quadro da atual da 'crise' da história e do concomitante interesse dos historiadores pela reflexão epistemológica, mas entendo que importa discuti-lo, alargá-lo e precisá-lo. Para tanto, lanço o desafio de fazermos essa tarefa à luz das seis (contra)propostas apresentadas por João Maria André (1999), numa evocação das Seis propostas para o próximo milénio incompletamente formuladas por Italo Calvino (1998). À 'leveza', à 'rapidez', à 'exatidão', à 'visibilidade' e à 'multiplicidade' apresentadas pelo escritor italiano, o filósofo de Coimbra propõe “[...] que o perfume da nova Fénix se escreva com as seguintes categorias: o 'peso' ou a 'densidade', a 'lentidão', a 'indeterminação', a 'invisibilidade' e a 'unidade' [...]” (André, 1999, p. 154, grifo do autor), a que juntou a 'paixão', “[...] dado que a razão atuante em todas elas parece ser sobretudo razão sensível [...]” (p. 154), ou “[...] razão prática, que é a razão dos nossos afetos e, por isso, da nossa abertura aos outros” (p. 154).
Assim, diz J. M. André que uma das dimensões da Telepolis é o “[...] esquecimento do corpo [...]” - “[...] na imagem virtual é o corpo que se apaga”. Esquecendo o corpo, “[...] não é apenas a dor que é apagada da memória. É também o desejo”. Desse modo, “[...] contra a leveza que nos asfixia numa era de vazio [...]”, J. M. André propõe “[...] uma revalorização do peso do pensamento que seja, simultaneamente, uma revalorização das suas raízes corpóreas e materiais e da sua inscrição no mundo” (André, 1999, p. 154).
A segunda proposta, a reaprendizagem da 'lentidão', constitui um antídoto contra a velocidade do tempo técnico da Telepolis - "[...] tempo vazio e manipulável, mecanizado, retardado ou acelerado [...] repetitivo [...]"-, cuja lei é a da "[...] desrealização do espaço e do tempo". Urge, pois, contrapor um "[...] tempo irreversível [...], "[...] o tempo da criação e das criações, o tempo cairológico, o tempo hermenêutico da experiência da existência humana que rompe e estilhaça a caráter redutor da experimentação técnico-científica" (André, 1999, p. 158).
A terceira proposta, a 'indeterminação', decorre da verificação de que a redução da verdade "[...] à clareza e à distinção é reduzir o ser ao que dele podemos conhecer". Na verdade, "[...] uma cultura da exatidão será, com muito mais razões, uma negação da própria cultura, na medida em que implicará a negação da permeabilidade entre cultura e arte, já que a arte é o domínio do inexato, por ser o domínio da liberdade criadora". Defende, assim, o retomar das "[...] virtualidades hermenêuticas da 'douta ignorância' que pressupõe a consciência do caráter inexato de todo o saber" (André, 1999, p. 160-161, grifo do autor).
Porque de todos os sentidos 'o olhar é o mais dominador', à 'visibilidade' de Italo Calvino, João Maria André contrapropõe a 'invisibilidade', "[...] pois só aceitando que a verdade reside no invisível será possível abrirmo-nos ao ser na sua apresentação e na sua doação que nos faz de si próprio e não na sua representação". E recorda-nos o segredo que a raposa confiou ao Principezinho de Saint-Exupéry: "O essencial é invisível para os olhos" (André, 1999, p. 165).
Não contra a multiplicidade de Calvino, mas contra a "[...] multiplicidade fragmentadora do real [...], João Maria André contrapõe a unidade, a unidade da concordantia, cumplicitas, "[...] outra palavra que tem a mesma raiz para dizer a secreta convivência dos múltiplos dizeres do que se não diz, porque ao contrário da visibilidade, remetem sempre para o inefácil e para indizível que, partilhando no silêncio, nos torna cúmplices uns dos outros" (André, 1999, p. 165). A 'paixão', a última proposta de João Maria André – proposta ou contraproposta que “encerra todaas outras” – decorre da consciência de que “[...] a paixão é o princípio de toda a ação verdadeiramente criadora”.
Considerações finais
Diz Fernando Catroga (2010, p. 21, grifo do autor) que, “[...] ao aderir ao princípio segundo o qual não há prática historiográfica sem teoria da história, também se terá de perceber que esta só será proficiente se os seus cultores ousarem problematizar 'o que' e 'para'fazem”. Ora, ao propor o diálogo, o convívio proveitoso com as propostas de um filósofo, que propõe a conciliação da filosofia com a vida, com o quotidiano, estou consciente da advertência de Catroga (ver, especialmente, 1997, p. 12-13, grifo do autor) sobre a “[...] inadequação dos discursos 'normativos'(enunciação externa do que a historiografia deve ou não ser) ou exclusivamente 'explicativos' (como se deve proceder tecnicamente com os documentos) [...]”, pois “[...] continua em aberto todo um conjunto de temas (a delimitação dos objetos historiográficos, a narratividade, os critérios de validação), que tem de ser pensado, sob pena de a historiografia se confundir com o mais acéfalo (e mentiroso) dos empirismos”.