Introdução
O objetivo deste trabalho é apresentar uma metodologia de análise dos manuais escolares sob uma perspectiva sociológica. Reconhecem-se aqui os desafios que se colocam para tal empreitada, considerando, sobretudo, a heterogeneidade existente nesse campo. Poderíamos afirmar que nem mesmo a nomenclatura ‘manual escolar’ chega a ser consensual, na medida em que os múltiplos agentes que compõem o campo educacional também transparecem suas disputadas por meio dos processos de nomeação e classificação do mundo social, portanto, manuais escolares, livros escolares, livros didáticos etc., tendem a representar objetos ‘semelhantes’, mas que indicam visões de mundo distintas.
Como partimos de uma perspectiva sociológica neste trabalho, mais especificamente a partir do substrato teórico de Bourdieu, retomamos o princípio epistemológico do sociólogo francês que busca superar a dualidade entre agência e estrutura/micro e macro na interpretação do mundo social. Assim sendo, buscamos operar neste trabalho, a partir de uma tentativa de compreender o manual escolar não como um reflexo automático das estruturas sociais, tampouco como uma realidade autônoma que reflete unicamente a dimensão autoral de quem o produz. Mais adiante poderemos explorar de forma mais precisa como buscamos solucionar esse dilema teórico e metodológico.
Apesar da crescente valorização do manual escolar como fonte de pesquisa histórica, educacional e sociológica, ainda são raros os trabalhos que visam abordar questões metodológicas sobre esse objeto. A ausência de uma metodológica para o estudo dessas fontes dificulta o desenvolvimento de estudos comparativos e balanços mais precisos entre regiões e Estados nacionais. Portanto, tendo em vista os avanços das últimas décadas em relação à catalogação, criação de acervos, bancos e bases de dados nacionais e internacionais, o presente estudo justifica-se pela necessidade de fomentar e ampliar o debate sobre as metodologias de análise dos manuais escolares.
Dado este contexto, o trabalho organiza-se em duas partes: a primeira discute o conceito de manual escolar, seus consensos e dissensos, e de forma particular, como essas fontes vêm sendo trabalhadas no Brasil, mais especificamente pelas ciências sociais e educação; o segundo centra-se numa discussão metodológica para análise dos manuais escolares por meio de uma perspectiva sociológica.
O manual escolar como objeto e fonte de pesquisa
Para alguns autores (Magalhães, 2011; Munakata, 2016; Galván, Martínez; López, 2016), ainda não há um consenso sobre o conceito de ‘manual escolar’. Isso, possivelmente ocorre pela diversidade de contextos nacionais em que essa fonte se faz presente, acrescenta-se ainda as múltiplas dimensões: linguística, política, educacional, cultural etc., que dificulta ainda mais a construção de um termo preciso que dê conta de nomear esse artefato cultural que é, ao mesmo tempo, produto e produtor de cultura.
Para Ossenbach (2010), as características de um manual escolar estariam ao redor de determinadas aspectos, tais como a intencionalidade do autor ou editor de ser expressamente voltado para o ensino escolar; sistematicidade e sequencialidade na exposição dos conteúdos; adequação para o trabalho pedagógico; estilo textual expositivo; combinação de imagem com texto; presença de recursos didáticos explícitos, como tabelas, quadros, exercícios etc.; regulamentação dos conteúdos segundo os planos de ensino oficial e fiscalização do Estado sobre a produção e circulação desses artefatos culturais etc. Ainda conforme a autora (2010, p. 120-121, tradução nossa), a combinação particular entre as imagens e o texto “[...] somada a uma estrutura sequencial e cíclica dos saberes transmitidos, constitui na marca de identidade dos manuais escolares, o que faz deles um produto editorial específico e diferenciado [...]1, o que permitiria distingui-los dos demais empreendimentos editoriais impressos.
Ocorre que a maioria das definições de manual escolar está ligada intrinsecamente ao ambiente escolar, que não corresponde ao ensino superior ou demais níveis educativos (Escola Normal, Pós-graduação, Educação de adultos etc.), já que estes podem utilizar outros materiais como suporte de ensino. Nesse sentido, alguns pesquisadores preferem utilizar o conceito de manual escolar quando se referem ao ensino de uma disciplina no âmbito escolar, e livro de texto (libro de texto), para aqueles livros destinados ao ensino superior. De fato, há uma diferença entre um material planejado para o ensino primário/secundário daquele destinado ao ensino superior, ainda que essas barreiras sejam mais perenes quanto mais próximas forem dos níveis de ensino, visto que em muitos contextos nacionais, tal como no Brasil, as universidades surgem tardiamente, sendo a educação secundária por longo período considerada um nível educativo elitizado e enciclopédico.
Além disso, para analisar um manual escolar é preciso estar atento às dinâmicas históricas das disciplinas escolares. No Brasil, por exemplo, o ensino de sociologia na escola secundária antecede a disciplina no ensino superior, porém a produção de manuais escolares e livros de texto - se quisermos diferenciar conceitualmente esse objeto, muitas vezes se confundem, já que os primeiros manuais de sociologia destinados ao ensino da disciplina eram estrangeiros e, em seus países de origem não se constituíam como um manual propriamente dito (Oliveira, 2013). Também podemos destacar que no caso brasileiro, os manuais escolares surgiram posteriormente a institucionalização das disciplinas, sendo, portanto, muitos livros, sem nenhum tratamento didático, utilizados para o ensino das disciplinas.
Em relação à conceitualização, parece que o problema não é a ausência de um conceito sobre o que é um manual escolar, mas a variedade de nomenclaturas - livros escolares, manuais escolares, livros didáticos, manuais didáticos, compêndios escolares, livros de texto, textbooks, libro de texto etc. (Choppin, 2004, 2009; Magalhães, 2006; Escolano, 2009a; 2012; Munakata, 2012a, 2012b; Viñao, 2012; Teive, 2015), que se vinculam às particularidades dos contextos nacionais, aos níveis educativos, aos sistemas de ensino, as disciplinas escolares etc. Portanto, parece-nos ser fundamental a contextualização desses elementos para delimitar um conceito que dê conta de circunscrever a potencialidade e a complexidade do manual como objeto capaz de evidenciar as práticas sociais e culturais de determinada sociedade.
Apesar dessas questões, pode-se dizer que essa amplitude de conceitos possui características semelhantes, pois descreve o manual como: a) um conjunto de conteúdos respectivos de um campo de conhecimento; b) organizado por determinados agentes, portadores de determinadas visões e representações sobre o mundo social; c) materializado em papel, por meio de tecnologias de impressão; d) destinado ao ensino de uma disciplina/matéria.
Para este estudo, talvez uma das melhores definições do que se entende por manual escolar é oferecida por Ossenbach e Somoza (2009, p. 20, tradução nossa)2: “Os livros escolares são os livros que são utilizados na escola, mas com motivações e fins que transcendem a instituição escolar, e isto também deveria refletir sua definição”. Em outras palavras, o manual escolar é objeto da escola, mas, ao mesmo tempo, transcende aos interesses pedagógicos e didáticos internos a ela, pois também está imbricado na configuração de um campo social caracterizado pela existência de grupos sociais com interesses divergentes e culturais para o qual a escolarização se constitui como um trunfo social, político e simbólico (Forquin, 1992).
Historicamente, podemos indicar que o pioneiro nesse campo de estudos foi o historiador alemão Georg Eckert3, quem, no final da Segunda Guerra Mundial, investigou o ensino do patriotismo e da identidade nacional por meio dos manuais escolares (Rocha & Somoza, 2012). Mais tarde, na década de 1980, Alain Choppin na França deu início ao projeto Emmanuelle, destinado ao recenseamento dos manuais escolares franceses de 1789 até os dias atuais. Conforme Choppin4, esse projeto teve por objetivo mapear os manuais escolares de todas as disciplinas e níveis de ensino. Para Teive (2015), o projeto de Choppin inspirou a criação de outros centros de documentação e catalogação, bem como o desenvolvimento de pesquisas cujo foco é o resguardo da memória documental dos manuais escolares. Assim, foram criados diversos centros de pesquisa dedicados ao estudo de manuais escolares, tais como: Les Manuels scolaires québécoises, em 1993, no Canadá; o Projeto Manes (Manuales escolares), em 1992 na Espanha; o Projeto Edisco, que reúne pesquisadores de seis universidades italianas; o projeto LIVRES, que é um banco de dados da Universidade de São Paulo (USP) sobre livros escolares brasileiros; o Programa História Social do Ensino de Leitura na Argentina (HISTELEA); o Centro internacional de la Cultura Escolar (CEINCE), em 2006, na Espanha.
Dentre esses projetos, o Centro de Investigação Manuais Escolares (MANES), do Departamento de História da Educação e Educação Comparada da Universidad Nacional de Educación a Distancia (UNED), em Madrid merece destaque visto o desenvolvimento de projetos internacionais de catalogação e ampliação de bases de dados digitais interinstitucionais; a catalogação e acervo dos manuais escolares e o crescente diálogo e produção internacional de pesquisas científicas sobre essa questão. Conforme a professora Gabriela Ossenbach, diretora do MANES, a temática de investigação sobre os manuais escolares tem ganhado visibilidade na América Latina, principalmente depois do seminário organizado pelo referido centro em 1996. Nesse evento, visou-se discutir os manuais escolares como fonte para a história da educação na América Latina, por meio de análises comparadas. O seminário propiciou a organização de um livro, publicado em 2009, de mesmo nome, cujos organizadores foram Gabriela Ossenbach e José Somoza. Até o ano 2000, 13 universidades latino-americanas vinculavam-se ao MANES (Ossenbach, 2000).
No Brasil há poucos trabalhos de pesquisa originários da área de sociologia e ciências sociais sobre manuais escolares. Dentre eles é possível citar a dissertação e tese de Meucci (2000, 2006), realizadas na Universidade Estadual de Campinas. Esses estudos abordam os manuais escolares como fonte de pesquisa para a história da sociologia no Brasil. O trabalho de dissertação de Sarandy (2004), defendido pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, por sua vez, analisa os manuais de sociologia, a partir da década de 1980, quando essa disciplina retorna gradativamente à grade curricular da educação básica de alguns Estados brasileiros. Maçaira (2017) analisou a recontextualização pedagógica dos conhecimentos sociológicos nos livros de sociologia no contexto brasileiro e francês, por meio da análise das ilustrações presentes em 13 manuais. Recentemente, temos a tese de Cigales (2019), defendida junto ao Programa de Pós-graduação em Sociologia Política, que buscou compreender uma determinada concepção de sociologia desenvolvida no início do século XX no Brasil, o que se dá por meio da análise dos manuais escolares, evidenciando-se a concepção de sociologia proposta pelos intelectuais católicos entre os anos 1920-1940.
Majoritariamente, os demais trabalhos que tratam os manuais escolares como fontes de pesquisa vêm dos departamentos de História e de Educação. Nesse sentido, apontamos as investigações de Bittencourt (1993), com a tese de doutorado em História Social sobre o livro didático e conhecimento histórico, defendida junto a Universidade de São Paulo. Ressalta-se também a tese de Campos (2002), defendida junto ao PPG, em Educação da PUC-SP, que pesquisou a sociologia da educação nos cursos de formação de professores nas décadas de 1930 e 1950 por meio dos manuais didáticos. Nessa mesma universidade, ainda, se destacam as teses de Munakata (1997), que aborda a produção dos livros didáticos enquanto mercadoria, e de Cassiano (2007), que trata a questão da criação do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) até a entrada internacional do mercado espanhol em meados dos anos 2007 no processo de produção e divulgação desses livros no Brasil5.
Embora esses trabalhos utilizam os manuais escolares como fonte de pesquisa, é rara uma discussão metodológica específica sobre esse material, que, apesar da sua aparência ilusória (Choppin, 2009), carrega uma complexidade particular. Nesse sentido, existe uma carência metodológica em relação às análises históricas, educacionais e sociológicas dos manuais escolares. Mais especificamente, há uma lacuna relacionada à sociologia, o que se acentua por diversas razões, das quais assinalamos duas: a fragilidade com que a questão da metodologia é tratada no interior dos cursos de formação (Soares, 2005; Cano, 2012; Neiva, 2015) e a fragmentada produção teórica sobre métodos na sociologia. Assim, os manuais escolares acabam sendo tratados, sobretudo, por meio de métodos de análise de conteúdo e análise documental, não se privilegiando uma discussão epistemológica e metodológica.
Uma proposta metodológica para análise dos manuais escolares
Em relação à discussão metodológica ao redor da manualística, o MANES vem ganhando destaque com pesquisas recentes sobre análise e recepção dos manuais na cultura escolar (Teive & Ossenbach, 2016; Mahamud & Badanelli, 2013). No conjunto desses trabalhos, Mahamud (2014) evidencia uma proposta metodológica que analisa os livros escolares a partir de duas perspectivas: analyzing text books toward the inside and analyzing text books to ward the outside.
Mas, e em relação à sociologia? Em que sentido esse campo de conhecimento pode contribuir para a análise dos manuais escolares? Há diversas possibilidades, tendo em vista que a sociologia compreende uma gama de teorias aplicáveis na análise dos manuais escolares. A modo de exemplo, poderíamos pensar os manuais escolares como pertencentes: a) a racionalização da sociedade ocidental, e portanto, imbricados no processo de burocratização do Estado e, consequentemente, da formação dos sistemas de ensino, na perspectiva weberiana; b) como um instrumento ideológico a serviço da burguesia, na ótica marxista; c) como instrumento nevrálgico na sociologia educacional de Émile Durkheim, em que a educação e todo seu conjunto simbólico é transmitido de uma geração a outra; d) como um dispositivo de poder e controle, a partir da biopolítica de Michel Foucault; e) como constituinte de um processo civilizacional, sob o pensamento de Norbert Elias e; f) como um ‘arbitrário cultural’ (Bourdieu & Passeron, 2008), ao universalizar uma determinada cultura (a cultura da classe dominante), e por isso melhor a ser seguida e preservada, sendo tão mais eficiente quanto maior o grau de naturalização que impõe às demais culturas.
Sem a pretensão de analisar detalhadamente cada uma dessas teorias, mas ampliar o debate das diversas possibilidades metodológicas por quais os mesmos podem ser analisados, este estudo propõe abordar os manuais por meio de uma sociologia relacional. É dizer, busca-se perceber os pontos de tensão entre os níveis micro e macro. Evidenciando, por um lado, como o interior do manual reflete as disputas mais amplas nos campos sociais e, por outro, como essas disputas influenciaram na estruturação interna desses manuais, impondo sistemas de classificações e divisões do mundo social.
Baseado no conceito de campo social6 de Bourdieu (2011), a Figura 01 apresenta uma relação entre as estruturas mais amplas, os campos sociais, onde os manuais são produzidos a partir das disputas de poder inerentes na constituição desses espaços simbólicos, e o nível micro, as instituições escolares, para onde os manuais são destinados, recepcionados e ressignificados pela cultura escolar.
Pensamos que no Brasil, a constituição do campo educacional envolve o campo político, científico e cultural sendo a produção dos manuais escolares diretamente ligada a essas lógicas de disputas, pois é a partir do campo político que se negocia a estrutura curricular, as disciplinas e programas, livros e manuais escolares, produzidos em conformidade com as regras do campo científico, por qual a universidade tem peso considerável já que o Estado exige a planificação de determinados conteúdos e sentidos produzidos a partir do campo cultural, da qual se reconhece a cultura legítima, isto é, a melhor a ser mantida e preservada. Assim, a produção dos manuais escolares no campo educacional passa pelas demandas e exigências dos demais campos sociais, sendo que também poderíamos falar do peso que há no Brasil, em relação ao campo religioso, tendo em vista que por séculos a Igreja Católica deteve o monopólio do ensino escolar, principalmente para a formação de uma determinada elite intelectual, agindo inclusive sobre a censura de determinados produtos culturais, inclusive da produção dos manuais escolares.
É importante ter em mente que os diversos campos sociais estão sempre em disputa, disputas estas internas nos sentidos que os agentes que integram tais campos disputam a ‘doxa’, mas também, pode-se dizer que os campos também se tensionam na medida em que sua autonomia é sempre relativa. O processo de autonomização do campo implica assim em disputas em torno de visões de mundo, da produção de uma visão legítima sobre o mundo social. Isso significa também que o próprio manual escolar representa e materializa essas tensões, e essas disputas que se colocam na interface entre os diversos campos.
Para pensar a relação entre o macro e o micro, e como isso reflete na produção dos manuais escolares, destacam-se três condições: os manuais escolares (a) respondem a exigências externas (macro), pois são produtos e produtores de discursos e representações do mundo social, disputadas por agentes dispostos nos campos sociais, com destaque neste estudo para o campo educacional; (b) possuem uma lógica interna (micro), ou seja, fazem parte da cultura escolar e neste sentido, possuem uma lógica de produção inerente aos sistemas de ensino, sua intenção primária é pedagógica, mas também comportam poderes simbólicos ligados a intenções dos agentes sociais que os produzem; e (c) exigem para sua análise uma pluralidade de métodos. Não sem menor relevância, é interessante também destacar que os manuais também constituem um mercado de bens simbólicos e materiais, de modo que também deve-se inseri-los nesta lógica para melhor compreensão acerca de como se estrutura seu campo.
Em relação às duas primeiras questões, este trabalho se aproxima dos estudos de Mahamud (2014), desde uma perspectiva interna e externa aos manuais escolares. Detalha-se a seguir:
a) a lógica externa corresponde ao nível macro e significa reconhecer que, apesar de serem produzidos para a escola, os manuais transcendem as exigências desta instituição. Eles são antes de tudo, reflexo de disputas políticas, ideológicas, científicas, religiosas e de concepções sociais (sobre a modernidade, a moral, a família, o Estado etc.) que se quer incutir nas gerações em fase de escolarização, podemos recorrer aqui aos historiadores da educação, como Magalhães (2011) em que os manuais podem ser considerados como um mecanismo da educabilidade, que refletem intenções futuras, ou um ‘espelho da sociedade’, conforme Escolano (2009a, p. 44). Por isso, precisam ser analisados em um contexto mais amplo de produção e de reprodução do conhecimento. Nesse sentido, não basta olhar apenas para o cenário de circulação e recepção dos manuais, ou seja, para as instituições escolares. Uma análise sociológica de tais textos requer uma ‘mirada’ para as instituições sociais, os ‘agentes’, como diria Bourdieu (1996, 2004), que fazem parte do processo de disputa pelo discurso legítimo sobre o mundo social. Assim, tanto o Estado e a sua burocracia, responsáveis pela legislação e fiscalização da política educacional, quanto às universidades (lócus de desenvolvimento do conhecimento científico), a igreja, os movimentos sociais e a mídia relacionam-se direta ou indiretamente com a produção desse conjunto de conhecimentos imputados nos manuais escolares.
Neste sentido, podemos destacar o aspecto profundamente contextual da análise, uma vez que elementos como a presença de uma política de Estado voltada para os manuais escolares será um importante elemento estruturador do campo. No caso brasileiro, a existência do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD), que implica num processo de avaliação, aquisição e distribuição de livros didáticos, que estrutura de forma significativa o campo. Pode-se mesmo dizer que seus editais condicionam um determinado modelo de produção de livros didáticos, o que se relaciona diretamente com a dimensão mercadológica na qual tais objetos estão inseridos;
b) a lógica interna corresponde ao conteúdo propriamente dito, mas que também passa pela inter-relação entre autoria, organização, classificação e distribuição dos conteúdos até a escolha da capa e da contracapa; a seleção dos autores que introduzem a obra e redigem as orelhas (quando houver); a escolha da cor das fontes, do tamanho das páginas, da quantidade de folhas, do número da tiragem, do tamanho de página (isso influencia no custo de impressão); a opção tipográfica (certas fontes possuem melhor legibilidade em determinados papéis e há padrões que indicam os próprios conceitos estabelecidos na construção do projeto gráfico do manual), a determinação da mancha gráfica (área efetivamente impressa da página) e dos caracteres por linha (isso é estabelecido a partir de uma relação entre o quanto importa a compreensão do texto por parte do leitor e a importância dada ao orçamento da impressão, por exemplo). Em suma, além desses aspectos, existe uma série de relações sociais que também passa pela exigência dos editores, das livrarias, dos grupos sociais com interesses escolares. Além desses aspectos, está a análise dos aspectos que caracterizam um manual escolar: iconografía, lista de atividades, divisão e fragmentação (pedagogização) dos conteúdos, proposição e atividades práticas etc. Chartier (1993, p. 35) afirma que “[...] compreender as razões e os efeitos dessas materialidades (por exemplo, em relação ao livro impresso o formato: as disposições da paginação, o modo de dividir o texto, as convenções que regem a sua apresentação tipográfica, etc.) [...]” remete ao “[...] controle que editores ou autores exercem sobre as formas encarregadas de exprimir uma intenção, de governar a recepção, de reprimir a interpretação”. A lógica interna dos manuais não corresponde apenas ao formato final que chega às mãos dos professores e alunos, mas também a essa rede de relações, a essa configuração social que se faz presente na elaboração de um manual.
Pode-se mesmo indicar aqui que é neste aspecto que há uma possibilidade de adentrar mais profundamente na dimensão do habitus do (s) autor (es) do manual escolar. Se compreendemos o habitus como um conjunto de disposições incorporadas duráveis (Bourdieu, 2009), isso significa que a incorporação das estruturas sociais a partir das experiências únicas dos agentes é a chave para compreendermos suas práticas, ou em outros termos, a prática se engendra a partir da relação entre as disposições incorporadas e as estruturas sociais postas. A produção de manuais escolares, neste sentido, é compreendida como uma prática de tais agentes. Todavia, como já ressaltamos, há outros agentes envolvidos nesta produção, de tal modo que o manual escolar é a objetivação/materialização de um conjunto de relações sociais estabelecidas entre diversos agentes que orientam suas práticas a partir das disposições sociais incorporadas. Com isso queremos dizer que também é necessário compreender os agentes em suas trajetórias, percebendo seus deslocamentos entre os campos (Bourdieu, 1996), e os condicionantes estruturais de suas práticas. Isso não quer dizer, sem embargo, que o manual seja apenas uma estrutura estruturada, pois também possui uma dimensão estruturante na medida
que a própria existência de um determinado manual pauta modelos de organização e pedagogização do conteúdo escolar e possui a capacidade de impactar a produção de outros manuais;
c) pluralidade de métodos visto que os manuais escolares reivindicam uma criatividade metodológica, uma vez que não existe uma fórmula metodológica única para a sua análise. O pesquisador interessado nesse objeto e fonte de pesquisa deve ter claro que os manuais escolares são produtos de um determinado tempo histórico e representam determinadas preocupações e conteúdos que possivelmente só fazem sentido quando localizados no tempo e no espaço geográfico ao qual se vinculam. Além disso, eles correspondem a determinados conhecimentos, incorporados na constituição do Estado moderno por meio das disciplinas escolares. Realizar somente análise de conteúdo e documental, no nosso ver é insuficiente para a compreensão sociológica desse objeto. Assim, é preciso conciliá-las a outras técnicas e métodos de pesquisa, como a biografia e a prosopografia dos autores; a análise dos grupos editoriais; a análise dos capitais social e simbólico do autor (representados nos prefácios, elogios, agradecimentos que o manual pode conter); a análise dos documentos escolares (localizados em arquivos públicos e privados). Tais documentos possibilitam ver os manuais mais utilizados ou rejeitados e também os aspectos de sua recepção, como vem sendo trabalhado por Mahamud & Badanelli (2013); Teive e Ossenbach (2016). Enfim, esses textos requerem múltiplas abordagens e, nesse sentido, as técnicas de análise podem ser úteis quando se integram, dialogam e se complementam. Portanto, uma análise sociológica dos manuais escolares não está interessada apenas em descrever seu conteúdo e sua lógica interna: deve buscar, sobretudo, compreender a relação entre esse nível de análise e a lógica externa a que responde todo o processo de produção, circulação e utilização dos manuais na cultura escolar.
No Quadro 01, abaixo representado, fazemos uma síntese sobre os principais elementos a serem analisados nos manuais escolares.
Uma análise sociológica relacional dos manuais escolares não está interessada apenas em descrever seu conteúdo e sua lógica interna: busca-se, sobretudo, compreender a relação entre esse nível de análise, e a lógica externa a que responde todo o processo de elaboração, circulação e utilização desses artefatos culturais no campo educacional. Tecer essa rede de significações, tentando entender as disputas e os jogos de poder envolvidos nesse processo é a proposição desta metodologia.
Considerações finais
Ainda que breve, este artigo apresentou uma metodologia baseada na sociologia para análise dos manuais escolares, apontando elementos que possibilitam a abertura de uma nova agenda de pesquisa nessa área. Para isso, abordaram-se algumas questões referentes ao seu conceito, bem como o desenvolvimento da manualística, com destaque para os centros de investigação e catalogação na Europa e América Latina. Sobre o conceito de manual escolar, destaca-se que ainda não há um consenso sobre os elementos que caracterizam esse objeto, tendo em vista as particularidades dos níveis educativos e da própria restrição que cada contexto nacional impõe a sua definição - textbooks, manuales escolares, libros de texto, livro de texto, manuais escolares etc. podem ser considerados como o mesmo objeto? O que buscamos neste estudo foi apontar algumas características comuns aos diversos contextos, tais como: a) intencionalidade do autor para o uso didático; b) sequencialidade na exposição dos conteúdos; c) utilização de imagens e atividades; d) vinculação à parte didática das editoras; e) utilização no ambiente educativo.
Em relação à metodologia, destaca-se que os manuais escolares são objetos complexos e, portanto, necessitam de uma abordagem que dê conta de captar os diversos elementos presentes na sua produção, circulação e utilização. Assim, é proposta uma concepção metodologia na ideia sociológica de macro e micro que perpassa esses elementos, potencializando uma abordagem mais sofisticada desse objeto. Isso não representa um modelo fechado e completo das possíveis abordagens sobre essas fontes, mas antes um esforço de visualizar um quadro mais amplo de abordagens, assim como dialogar com a variedade de fontes, dos quais os documentos escolares são essenciais para o conhecimento da circulação e utilização desses objetos na cultura escolar.
Em certa medida, o desafio maior de pensar em termos sociológicos o manual escolar encontra-se na busca pela superação de explicações unilaterais, que compreendem o manual como fruto apenas dos condicionantes sociais ou apenas da dimensão autoral. A superação dessa dicotomia, a partir da articulação entre o micro e o macro, parece-nos, que é de fato a contribuição mais substantiva que a análise sociológica pode trazer para esta seara.
Por fim, destaca-se que as pesquisas sobre manuais escolares, embora fortemente ligada à história da educação, vêm se constituindo em outras áreas como uma fonte heurística para a investigação do universo social, cultural e educativo das sociedades modernas contemporâneas, potencializando, que os demais pesquisadores (as) possam se beneficiar dos diversos acervos e bancos de dados sobre manuais escolares. Sendo assim, o painel que este artigo faz parte reflete esse esforço de ampliação, divulgação e diálogo internacional dessas questões.