Introdução
Para alguns dos delegados aqui presentes - disse no seu discurso -, vindos de países onde o analfabetismo praticamente desapareceu, pode parecer anacrônico que existam povos nos quais, ao lado de uma elite universitária, e sob os restos de cultura uma grande linhagem, milhões de jovens e adultos nem mesmo possuem o domínio do alfabeto.[...] Entendemos que a organização que se projeta é um primeiro passo e, por isso, apreciamos e aplaudimos. Mas sentimos que deverá seguir esse primiero passo uma reunião que afronte corajosamente essas três questões: O que estão dispostos a fazer dos países mais ricos e tecnicamente preparados para ajudar outros a elevar o nível educacional de seus habitantes? Como conciliaremos tal ajuda com o dever de respeitar a liberdade de cada nação na escolha de seus métodos internos para organizar o ensino em seu território?E de que forma coordenaremos essa liberdade -que julgamos inalienável- com a urgência de decidir sobre os objetivos gerais da educação do homem? (Bodet, 1969, p. 1, tradução nossa)2.
O discurso do político, filósofo e escritor mexicano Jaime Torres Bodet, por ocasião da Conferência Preparatória3 da Unesco, em Londres em 1945, reverberou o alerta para o tema da educação de adultos, logo nos primeiros anos de fundação da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco). Nesse pronunciamento, seus argumentos estavam pautados nas disparidades sociais e econômicas entre os países4 signatários da Unesco, pois sua voz nesse organismo fazia ecoar as demandas educacionais do México e, notadamente, dos demais países da América Latina, especialmente nos anos em que ele esteve a frente desse organismo (1948-1952).
Este texto é ambientado nesse período histórico, avançando até 1956, ano da publicação da Cartilha do povo: para ensinar a ler rapidamente, de Manuel Bergström Lourenço Filho, e tem por objetivo analisar a relação estabelecida entre Jaime Torres Bodet e Lourenço Filho, nas campanhas de alfabetização de adultos no México e Brasil, no período entre 1947 e 1956, que culminaram com a realização do VI Seminário Interamericano de Alfabetização e Educação de Adultos, no Brasil em 1949.
Os antecedentes desta história residem no passado do México, que desenvolveu experiências outras em matéria de educação de adultos, que resultaram na criação da Secretaría de Educación Pública (SEP) em 1921 (Miranda, 2014). Com a tônica do social, construiu-se nesse país um modelo de educação de adultos, com características especialmente revolucionárias5, a partir de 1910. Essas condições históricas constituíram as bases para a construção de escolas rurais, missões culturais, escolas normais rurais e granjas-escolares, respaldadas no conceito de educação fundamental - recém-criado, à época, pela Unesco, especialmente com a criação em 1951 do primeiro Centro Regional de Educación Fundamental para la América Latina [Crefal] 6, em Pátzcuaro, Michoacán, México.
A ideia de educação fundamental, apoiada pela Unesco, tem como marco a teoria da modernização e responde ao formato das organizações internacionais da época, a partir de uma noção: “[...] suficientemente ampla e geral e de um diagnóstico de toda a região, se elabora um conjunto de técnicas e estratégias de intervenção, as quais são replicadas como uma ‘receita’ nos diferentes países” (Fernández, Welti, & Guida, 2009, p. 249-250, tradução nossa, grifo do autor)7. Isso sem levar em conta as particularidades dos diferentes contextos, neste caso, as experiências brasileiras e mexicanas. No entanto, para criar um conceito padrão, uma definição universal, um grupo de trabalho composto por representantes das secretarias das Nações Unidas e das instituições especializadas, reunidas em Paris em novembro de 1950, sancionou o seguinte:
O nome de educação fundamental é dado ao mínimo de educação geral que tem por objetivo ajudar crianças e adultos, que não usufruem dos benefícios de uma boa instrução escolar, para compreender os problemas peculiares do meio em que vivem, para formecer uma ideia exata dos seus direitos e deveres cívicos e individuais e para participar de forma mais eficaz no progresso social e econômico da comunidade a que pertencem.Essa educação é fundamental porque proporciona o mínimo de conhecimento teórico e técnico necessário para alcançar um padrão de vida adequado. É um requisito prévio indispensável para que a atividade de serviços especializados (higiene, agricultura, etc.) seja plenamente eficaz. (Centro Regional de Educación Fundamental para la América Latina [Crefal], 1952, p. 14-15, tradução nossa)8.
Uma das tarefas da Unesco era a de fomentar a educação fundamental, enquanto o mínimo necessário de educação para a população adulta. Baseado neste conceito, foram desenvolvidas a Campanha de Educação de Adolescentes e Adultos (CEAA) no Brasil e, no caso mexicano, a Campaña Nacional pro alfabetización, entre 1947 e 1963. Os princípios da educação fundamental se fizeram conhecidos, especialmente, com a realização do VI Seminário Interamericano de Alfabetização e Educação de Adultos, realizado no Hotel Quitandinha, Petrópolis, Rio de Janeiro, de 27 de julho a 2 de setembro de 1949. Nessa ocasião se fizeram presentes diversas referências intelectuais em matéria de educação de adultos.
Em relação às opções teórico-metodológicas, este texto se pauta nos pressupostos da história conectada. Essa referência historiográfica consiste em teoria/método que estabelece conexões pela abertura do diálogo. Neste sentido, assumimos a tarefa do historiador encarregado de “[...] exumar as ligações históricas ou, antes, para ser mais exato, a de explorar as connected histories” (Gruzinski, 2003, p. 19). Para tanto, tivemos que nos converter em uma: “[...] espécie de eletricista encarregado de restabelecer as conexões internacionais e intercontinentais” (Gruzinski, 2003, p. 19). A metáfora do eletricista, encarregado de restabelecer as conexões internacionais e intercontinentais, oferecida pelo historiador francês Serge Gruzinski, é utilizada para conectar uma trama de relações sobre a educação de adultos no espaço Brasil/México.
A partir disso, formulamos alguns questionamentos: Como se estabeleceu a relação entre Lourenço Filho e Jaime Torres Bodet, em prol da educação de adultos na América Latina? Como e porque o Brasil se apropriou das iniciativas mexicanas para educação de adultos? De que natureza foi o material usado para alfabetizar adultos em ambos os países? O que representou a realização do VI Seminário Interamericano de Alfabetização e Educação de Adultos no Brasil?
“Viejito... Pero aprendiendo”9: a campanha de educação de adultos no Brasil e o exemplo mexicano
Campanha brasileira de alfabetização
Uma campanha no Brasil destinada a letrar analfabetos de todas as idades para ler e escrever resultou no estabelecimento desde o início de 1947 de quase 14.000 escolas. Isso foi anunciado pelo brasileiro e Diretor-geral da Educação Dr. Lourenço Filho, delegado da Segunda Conferência Geral da Unesco, em uma coletiva de imprensa na Cidade do México em 25 de novembro, que declarou que era em grande parte devido ao exemplo do México que o Brasil iniciou sua campanha de Educação Fundamental (Brazil campaign for literacy, 1948, p. 4, tradução nossa)10.
Na entrevista cedida por Lourenço Filho ficou evidente que o exemplo mexicano, em seu conjunto de iniciativas, sobressaltou no cenário mundial e, consequentemente, despertou o interesse de conhecidos educadores. Como foi o caso de Lourenço Filho que viajou para o México duas vezes, cumprindo um plano de trabalho institucional, especialmente por ocasião da II Conferência Geral da Unesco (1947) e a I Reunião do Conselho Interamericano Cultural (1951), sem deixar de percorrer o país em busca de observar o desenvolvimento da educação de adultos, sobretudo no meio rural. Evidências disso foram as imagens das ações do Crefal encontradas no acervo de Lourenço Filho, a exemplo dessa em que aparece um cartaz que anuncia: “Viejito... pero aprendiendo” (Figura 1):
No governo do presidente Eurico Gaspar Dutra (1946-1951), Clemente Mariani (então ministro da Educação e Saúde, no período entre 1946 e 1950), em 1° de fevereiro de 1947, instalou o Serviço de Educação de Adultos, nomeando o professor Lourenço Filho como coordenador da Campanha de Educação de Adultos. De acordo com ele, as propostas da Unesco e a Organização dos Estados Americanos (OEA) deveriam ser seguidas: “[...] nas suas linhas capitais” (Lourenço Filho, 1947, p. 14), pois nesse período, as Campanhas de Jovens e Adultos consolidavam os pressupostos e as recomendações de caráter uni versal da Unesco. De acordo com Paiva (1987), com o surgimento da Unesco o Brasil passa a sofrer pressões externas para investir nesta problemática. A Unesco, portanto, denunciava ao mundo as profundas desigualdades entre os países e: “[...] alertava para o papel que deveria desempenhar a educação, em especiala educação de adultos, no processo de desenvolvimento das nações categorizadas como ‘atrasadas’” (Haddad & Di Pierro, 2000, p. 111, grifo do autor).
Jaime Torres Bodet propôs a criação, pela Unesco, de centros regionais de educação de adultos: “[...] a população mundial somava 2,378 milhões de pessoas. Destes, 1,200 milhões não sabia ler e escrever. A urgência e necessidade de cuidar deste vasto número de analfabetos eram óbvias.” (Guerra, 2002, p. 12, tradução nossa)11. Por conseguinte, considerou-se que essa rede de centros de educação de adultos permitiria reduzir, em todo o mundo, esse número de analfabetos.
Este investimento da Unesco em campanhas de erradicação do analfabetismo adulto incluiu a criação de selos postais. A matéria escrita por C. W. Hill, intitulada-Les timbres, alliés de l’ ou A. B. C selos, aliados do A. B. C.-, congrega informações sobre selos postais confeccionados com o propósito de representarem a imagem dos seus respectivos países, enquanto nações empenhadas em combater o analfabetismo na população adulta. A figura 2 abaixo mostra os selos da campanha de alfabetização no Brasil e no México.
Dos selos brasileiro e mexicano, respectivamente, pode-se ler:
A realização de campanhas em larga escala para a educação de adultos não é tarefa fácil em um país como Brasil, onde existem imensos setores com população de cerca de uma por milha quadrada. Mas é isso que o governo vem fazendo desde 1947, após as estatísticas revelarem que 50% da população adulta era analfabeta. Decidindo sobre uma solução em massa, o Governo iniciou um plano para a abertura de 10.000 escolas para analfabetos adultos e adolescentes. O selo simboliza a luz da educação (The Unesco Courier (1958b, p. 29, tradução nossa)12.
Removendo a venda do analfabetismo simboliza, neste selo mexicano, o esforço educacional em larga escala feito pelo México nos últimos anos. Uma das conquistas mais notáveis dos governos foi a câmara nacional paragem iniciada e desenvolvida entre 1943 e 1946 por Jaime Torres Bodet, ministro da Educação, que mais tarde (1948-53) se tornou Diretor General da Unesco (The Unesco Courier (1958b, p. 29, tradução nossa)13.
Em ambos os casos, o autor considerou a atuação de Lourenço Filho e Jaime Torres Bodet como fundamentais nas campanhas em larga escala de combate ao analfabetismo adulto. No caso do selo brasileiro, lê-se: ‘Brasil correio A B C - Campanha de Educação de Adultos’, ilustrado por um homem, propositalmente adulto, realizando uma leitura e no plano de fundo uma explosão de luz que faz alusão à luz trazida pelo conhecimento escolar. No caso do selo mexicano, pode-se ler: ‘Quitemos la venda! Campaña Nacional pro alfabetización’, ilustrado por mãos que retiram a venda dos olhos de um adulto, indicando a necessidade de ler o mundo.
Doravante, as organizações multilaterais, notadamente a Unesco, por intermédio de comitês e comissões, com suas recomendações, resoluções, convenções e acordos internacionais em assuntos educacionais postulavam, imprescindivelmente, orientar ou mesmo intervir nas políticas educacionais nacionais gerais e específicas uniformemente, mediante a convergência de princípios, preceitos teóricos, materiais de ensino e aprendizado, procedimen tos didáticos, pedagógicos e educativos e destinatários das políticas públicas de educação de jovens e adultos. Segundo Araújo, Alcoforado e Ferreira (2015), nas décadas de 1940 e de 1950, foram oficializadas, no Brasil, no período de 16anos (1947-1963): “[...] as Campanhas de Educação de Adultos, destinadas, par ticularmente, a grupos de jovens e adultos com idade entre 14 a 35 anos que não haviam frequentado a escola ou tinham abandonado precocemente” (Araújo, et al., 2015, p. 17).
As campanhas de educação de adultos, que aconteceram concomitantes em outros países do mundo, tiveram sua importância na medida em que foram definidos os princípios básicos sobre os quais a educação de adultos em todo o mundo deveria ser fundada. Conforme a lista de projetos associados à Unesco em países da América Latina, o Brasil despontava em primeiro lugar e o México em quarto lugar: “1 Brazil - Campanha de Educação de Adultos; 4 Mexico - Ensayo Piloto de Educación Fundamental de Nayarit” (The Unesco Courier (1958b, p. 29). No caso brasileiro, as deliberações da campanha acabaram por resultar no projeto de desenvolvimento de Missões Culturais, inspiradas nas experiências mexicanas de educação voltadas ao meio rural.
Em matéria publicada pelo El Correo de la UNESCO (Educación fundamental por Jonh Bowers, 1948, p. 4, tradução nossa)14, Lourenço Filho declara que: “A campanha também será estendida por meio de centros e missões culturais, e espera-se que o número de alunos excederá um milhão em 1948”. Em outra matéria - Fight ers for literacy ou Lutadores pela alfabetização -Jaime Torres Bodet e Lourenço Filho dividem a mesma página do jornal The UNESCO Courier. Na matéria, ambos foram destacados pelo envolvimento nas campanhas de educação de adultos em seus respectivos países (Figura 3):
No artigo, Jaime Torres Bodet é descrito como um grande concretizador da política pública contra o analfabetismo, culminando com a criação de 60 mil centros de ensino coletivo, além de impressos de natureza diversa (jornais, livros e cartilhas) destinados ao projeto de alfabetização de jovens e adultos. O artigo louva a tradução das cartilhas para os dialetos indígenas, ágrafos até aquele momento e, por fim, informa que em apenas dois anos o resultado do projeto foi de pouco mais de 1,2 milhões de pessoas alfabetizadas, o que rendeu ao México visibilidade internacional.
Lourenço Filho, por sua vez, foi saudado pelo título de ‘Maestro de las Américas’, conferido a ele pelo seu conhecimento dos sistemas de ensino nos países da América Latina, pela sua projeção nas mais diversas áreas de produção intelectual e nos mais distintos órgãos governamentais, nos idos dos anos de 1920 e 1960. O artigo enfatizou que sua atuação determinou os rumos da educação de adultos no Brasil no século XX, sobretudo pela atuação junto à Unesco, especialmente quando esteve à frente da Campanha. Os resultados considerados positivos dessa liderança, que nos primeiros três anos atingiram cerca de 2milhões de adultos e adolescentes matriculados, conferiu ao Brasil reconhecimento internacional, o resultou na escolha do paíspara sediar o VI Seminário Interamericano de Alfabetização e Educação de Adultos. Ambos os artigos podem ser lidos, respectivamente:
Quando Jaime Torres Bodet se tornou Diretor-geral da Unesco, em 1948, ele já tinha uma distinta carreira como poeta, romancista, ensaísta, educador, diplomata internacional e político. Um dos pontos altos de sua carreira é certamente uma das fases mais brilhantes da história da Educação mexicana, foi o período de 1943 a 1946, quando serviu como Ministro da Educação de seu país e iniciou e desenvolveu uma ampla campanha contra o analfabetismo. Nenhuma campanha desse escopo ou originalidade já havia sido realizada no México. JaimeTorres Bodet fez um apelo para todos os mexicanos instruídos para se tornarem professores ‘emergenciais’ de pelo menos um de seus compatriotas analfabetos. Ele visitou cidades e vilas despertando e inspirando as pessoas. Logo, mais de 60.000 centros de ensino coletivo foram organizados por advogados, médicos, homens de negócios, industriais, agricultores e proprietários de terras pelo presidente do México, Ávila Camacho e sua esposa, juntaram-se como professores para tornar a campanha um sucesso. Colunas especiais de jornais foram impressos e mais de 10.000.000 de livros e cartilhas de leitura elementar começaram a inundar o país. Para aqueles índios do México que não falavam espanhol, Jaime Torres Bodet preparou edições especiais em seus idiomas, que nunca haviam sido escritos antes, ele chamou equipes de linguistas para fazer isso. Quando os resultados foram tabulados após apenas dois anos de trabalho, verificou-se que mais de 1.200.000 de mexicanos foram ensinados a ler e escrever. As campanhas de sucesso incentivam outros países latino-americanos a adotarem métodos semelhantes (The Unesco Courier (1958a, p. 22-23, tradução nossa)15.
O Brasil iniciou um ataque em larga escala em 1947, lançando uma ampla campanha de educação de adultos. A área tremenda e escassamente povoada do país há um índice de analfabetismo adulto de mais de 55% que consiste em um problema cuja solução exigia concepções e métodos ousados de educação fundamental e liderança vigorosa. O homem que deu liderança e força motriz para a campanha foi Manoel Lourenço Filho. Um dos principais educadores da Unesco, autor e professor de psicologia no Brasil, Lourenço Filho já dedica seus esforços há mais de um quarto de século à causa da educação em seu país. O custo dos primeiros três anos da campanha de educação de adultos, 100 milhões de cruzeiros (55.000.000), foi justificado pelos resultados. Em 1947, havia 10.416 escolas ‘Campanha’ em operação; no ano seguinte, 14.300, e em 1949 o número alcançado 15.300. Nos primeiros três anos, cerca de 2.000.000 de adultos e adolescentes matriculados e mais de 1.000.000 de pessoas foram ensinadas ler e escrever. A abordagem brasileira dos problemas da educação fundamental foi observada com interesse em outros países: o cuidadoso equilíbrio mantido entre a escola e a educação de adultos; o edifício em uma base sólida de fatos estatísticos e a ligação dos diversos interesses das comunidades em alfabetização, melhorou a saúde e a agricultura. Com liderança bem-sucedida de Lourenço Filho a campanha ganhou reconhecimento internacional e, em 1949 no Seminário Interamericano de Alfabetização e Educação de Adultos, ele foi saudado como El Maestro de las Americas (Professor das Américas) (The Unesco Courier, 1958a, p. 22-23, tradução nossa)16.
Com Jaime Torres Bodet à frente da Unesco, o México despontou como um pioneiro laboratório de experiências educativas em larga escala, aperfeiçoando investigações que almejavam igualar a qualidade e os níveis de ensino dos sistemas educativos internacionais, perspectivando uma margem de resultados mais efetivos no tocante à alfabetização em idade escolar e extraescolar. Assim, Jaime Torres Bodet e Lourenço Filho foram sujeitos que atuaram em seus respectivos países ante as políticas nacionais e internacionais de combate ao analfabetismo e campanhas de educação de adultos. Segundo a Unesco, eles foram homens: “[...] que ensinaram seu povo a ler na América” (The Unesco Courier (1958a, p. 21, tradução nossa)17 e, por isso, em certa medida sofreram influência mútua, com a troca de referenciais educacionais. As experiências mexicanas, com seus métodos e teorias, serviram de referência para outras campanhas de educação de adolescentes e adultos em outros países, inclusive o Brasil.
Nas décadas de 1940 e 1950, Brasil e México eram os países com a população mais numerosa da América Latina, pois juntos reuniam aproximadamente a metade dos habitantes. Por isso, os números absolutos de analfabetos adultos eram preocupantes em ambos os países. Nos anos 1950, o Brasil tinha uma taxa de analfabetismo de 51% entre a população com mais de 15 anos, e o México de 43%. No entanto, essa sistematização estatística deve ser questionada. Longe de serem neutras, “[...] as estatísticas expressam posições e interesses bem delimitados pela maneira como são organizados os dados, nas categorias formuladas, na decisão do que incluir e de que cálculos fazer” (Gil, 2007, p. 19). Em relação às estatísticas educacionais utilizadas pela Unesco, essas usufruíram de crescente interesse nesse momento histórico porque sintetizavam dois dos signos da modernidade à qual, então, o Brasil e o México buscavam-se alinhar-se: a racionalidade científica e a escola elementar.
No caso brasileiro, ganhou destaque internacional o envolvimento da professora Zilma Coelho Pinto e do seu planejamento pedagógico em favor da alfabetização, assistência social e profissionalização, durante a primeira CEAA, em Cachoeiro de Itapemirim, Espírito Santo, entre 1947 e 1963. A alfabetização proposta pela professora Zilma “[...] envolveu outros conteúdos, a saber: valores e comportamentos pautados em preocupações com a higiene, a saúde e a moral” (Costa, 2017, p. 279). O caso da professora ganhou uma página no El Correo de la Unesco, com a denominada “La ‘loca de la escuela’: campaña contrael analfabetismo en el Brasil” (Figura 4). Segundo a publicação:
O começo foi muito difícil e Dona Zilma teve que mostrar muita paciência e energia para levantar a modesta soma com que empreender sua campanha, enfrentando impassivelmente as zombarias e críticas de muitos. Havia quem a chamasse de ‘a louca de Itapemirim’; também que a batizou com o nome ridículo de ‘a mendiga’[...] Mas Dona Zilma não desanimou com tão pouco: ora a pé, ora a cavalo, organizava coletas em todos os bairros da cidade e nas roças vizinhas (El Correo de la Unesco, 1950, p. 12, tradução nossa, grifo do autor)18.
A participação ativa da professora Zilma, na CEAA, construiu uma boa relação entre ela e o professor Lourenço Filho. Costa (2017) encontrou, nos documentos pessoais arquivados por sua família, uma carta enviada e assinada por Lourenço Filho, que acredita se tratar de um prefácio de um livro sobre a campanha dirigida pela professora. Nela, Lourenço Filho não mede palavras para elogios à atuação de Zilma, tal relação de certa forma explica a divulgação das ações dessa professora nas páginas do jornal El Correo de la Unesco. Aqui nos resta interrogar: Qual o envolvimento de Lourenço Filho e Jaime Torres Bodet com o mercado editorial de alfabetização de adultos?
“Para ensinar a ler rapidamente”19: as cartilhas de alfabetização de adultos no Brasil e México
Que a Cartilha do povo, como o seu próprio título indica, continue a concorrer para a educação de crianças e adultos, mesmos os mais distanciados dos grandes centros, ensinando a ler e escrever milhões de brasileiros, da forma mais simples. A educação popular não se resume, certamente, nesse aprendizado. A leitura e a escrita representam apenas um instrumento, não trazem em si mesmas uma finalidade. Educar o povo será dar-lhe também o civismo, a capacidade de produção, a saúde, o emprego sadio das horas de lazer (Lourenço Filho, 1956, p. 2).
As palavras acima foram extraídas da recomendação ‘Aos senhores professores’, que abre a Cartilha do povo: para ensinar a ler rapidamente, de Lourenço Filho (1956). Ele teve uma relação estreita com o mercado editorial da época, traduzida em inúmeros títulos publicados, prefaciados ou organizados. Segundo Silva e Guimarães (2017), a proposta de alfabetização de Lourenço Filho sintetizada em Cartilha do povo “[...] correspondeu à tentativa de responder às demandas de erradicação do analfabetismo, sobretudo no que diz respeito a crianças e adultos” (Silva & Guimarães, 2017, p. 4382). A preocupação maior do autor consistia em ofertar, portanto, um instrumento de educação de alcance popular, correspondente à técnica do ler e do escrever, entendida como uma maneira de aquisição de cultura letrada.
Ao assumir a direção da CEAA, o intelectual levou a cabo as ações do setor de orientação pedagógica, supervisionando a elaboração do material que seria posto em circulação pela campanha. Conforme previsto pela Unesco em suas recomendações, ao menos o material inicial da Campanha, destinado ao primeiro ciclo de alfabetização, indicava preocupações gerais com a formação e a adaptação do cidadão ao ambiente social. Avultam-se, então, regras para a boa preservação da “[...] saúde, que variam desde o cuidado com moscas, mosquitos e piolhos, vetores de doenças, até indicações de oito horas de sono diárias para o restabelecimento do trabalhador” (Azevedo, 2019, p. 93).
Ao fomentar o processo de ampla distribuição do material dirigido à alfabetização e leitura dos adultos alcançados pelo movimento campanhístico em voga, Lourenço Filho posiciona a campanha nos quadros comparativos com os demais países da América Latina. Com isso, o localismo brasileiro tendia a circular internacionalmente com o objetivo da partilha de experiências pedagógicas.
A experiência mexicana serviu de modelo para o Brasil, inclusive no aspecto editorial. Nesse período, o Ministério da Educação: “[...] fez imprimir quinhentos mil ‘Guias de Leituras’ com o fito de servir ao plano nacional de alfabetização de adultos, [...] a exemplo do que já se fez em outros países do mundo, especialmente o México” (Brasil, 1947, p. 08, grifo do autor). A partir dos estudos de García (2014), a Campanha Nacional contra o analfabetismo, levada a cabo no México por Jaime Torres Bodet, possui pontos de similitudes com a campanha brasileira, a saber: luta contra o inimigo comum do analfabetismo; apelo ao voluntariado; uso de cartilhas específicas para adultos, entre outras características.
Segundo o relatório A educação rural no México, construído por Lourenço Filho, a máxima ‘Saber ler e escrever’, enquanto o mínimo necessário para o indivíduo: “[...] não se logrou obter por igual para todos os mexicanos - julgamos indispensável propor a questão em termos nacionais” (Lourenço Filho, 1952, p. 162). O problema do analfabetismo no México recaía em problemas sociais, como o alcoolismo, a criminalidade, a mendicância e o desenvolvimento precário da agricultura e das indústrias. Neste contexto, a campanha contra o analfabetismo deveria visar, de modo particular, as populações rurais e indígenas, sobretudo os falantes das línguas maya, tarasco, otomi náhuatl, náhuatl, uma vez que:
[...] as populações rurais, onde era, e é, ainda hoje, maior a taxa de analfabetos, e onde também comunidades inteiras da população indígena não praticam o espanhol. Para que o ensino a essas populações pudesse alcançar, foi criado um instituto especial, que se incumbiu de redigir cartilhas em idiomas maya, tarasco, otomi náhuatl (variante de Puebla) e náhuatl (variante de Morelos). Um grupo de cinqüenta professores, conhecedores desses idiomas nativos, foram preparados para transmitir aos mestres rurais os processos de ensino mais recomendáveis, em cada caso (Lourenço Filho, 1952, p. 162, grifo do autor).
À época, parte da problemática indígena era seu completo desconhecimento do idioma oficial, o espanhol, o que impedia seu status educacional e cívico. Para tentar resolver este problema, foram elaboradas cartilhas apropriadas para a alfabetização da população indígena em quatro idiomas diferentes: náhuatl/español, otomí/español, maya/español, tarasco/español.
Foi nesse contexto que a Unesco organizou, em conjunto com o governo do Brasil e a OEA, o VI Seminário Interamericano de Alfabetização e Educação de Adultos, em 1949.
“América se alfabetizará - aportación quedará nuestro país”20: o VI Seminário Interamericano de Alfabetização e Educação de Adultos
América se alfabetizará - a contribuição que dará nosso país
O México levará ao Seminário de Estudos Práticos sobre a alfabetização na América, que por iniciativa do Secretário-Geral da Unesco, Jaime Torres Bodet, foi inaugurado hoje na cidade do Rio de Janeiro, todo o acervo técnico e as experiências coletadas em nosso país e nos cursos dos trabalhos da Campanha Nacional contra o analfabetismo.Nossas autoridades docentes têm o propósito de colocar à disposição das nações irmãs do Continente, que se interessaram profundamente pela obra educacional que se desenvolve no país, miniciosas informações acerca das realizações alcançadas em nosso meio, no que diz respeito à incorporação cultural dos analfabetos. [...] O professor Bonilla levará consigo uma ampla documentação acerca da forma como está sendo atacado o tremendo problema dos analfabetos em nosso país, incluindo filmes ilustrativos, gráficos e vários elementos ilustrativos (Novidades, 1949, p. 1, tradução nossa)21.
A matéria escrita no jornal mexicano Novidades explicita a intenção de Jaime Torres Bodet em levar ao VI Seminário Interamericano de Alfabetização e Educação de Adultos22, realizado no Hotel Quitandinha, Petrópolis, Rio de Janeiro, de 27 de julho a 02 de setembro de 1949, as experiências sociais e técnicas vivenciadas no México, que incluíam filmes ilustrativos e gráficos utilizados na Campaña Nacional pro Alfabetización em curso no país. O então secretário de Educação Pública do México, Manuel Gual Vidal, enviou uma delegação ao Seminário de Alfabetização, chefiada pelo professor Guillermo Bonilla, conhecido como El Maestro, organizador das famosas Missões Culturais de alfabetização no México e então diretor de educação extracurricular.
O ano de 1949 foi notadamente singular para a educação de adultos no cenário global. O setor de educação extraescolar da Unesco elencou dois eventos importantes que colocaram em pauta o tema, sendo o primeiro a Conferência realizada em Elsinore23 e o segundo o VI Seminário Interamericano de Alfabetização e Educação de Adultos. Nesse sentido, as recomendações e acordos que foram deliberadas a partir dessas reuniões: “[...] representam uma vontade de mudança por parte das nações e do corpo de especialistas convocados, mas também um embate por disputas pela visibilidade dos projetos políticos e pedagógicos em debate” (Azevedo, 2019, p. 111). Estes espaços legitimados pela Unesco serviam para discussão do destino da educação de adultos mundialmente, além de se constituírem em um lugar de circulação de referências legitimadas para tratar do assunto.
O VI Seminário Interamericano de Alfabetização e Educação de Adultos aconteceu com a cola boração da Unesco, OEA, Organização Internacional do Trabalho [OIT], da Organização Mundial da Saúde [OMS], do Escritório Internacional de Educação24 de Genebra (dirigido naquele momento por Jean Piaget) e, no caso brasileiro, do Instituto Brasileiro de Educação Ciência e Cultura [IBECC]. Estes organismos internacionais fomentaram uma agenda única na alfabetização e educação de adultos no continente americano, reforçando o projeto coletivo transnacional de atenção aos altos índices de analfabetismo estatisticamente levantados, que deixam as sombras dos problemas nacionalmente localizados e se unem ao clamor global levantado por Torres Bodet na reunião de abertura do Seminário sediado no Brasil. O acontecimento foi divulgado no The UNESCO Courier, com a seguinte chamada: The latin american struggle against illireracy, ou seja, ‘A luta latino-americana contra o analfabetismo’ (Figura 5):
Apenas diante do recorte do ano de 1949, torna-se evidente o espaço que a alfabetização de adultos ocupa na agenda institucional da Unesco. Principal entidade direcionadora dos meios de universalização da educação, a Unesco foi o órgão responsável por estabelecer o diálogo entre as partes interessadas e o intercâmbio de conhecimento, a fim de: “[...] nortear os principais objetivos da bandeira educacional, organizando seminários e conferências para o debate e nivelamento de novas ideias, pesquisas e resultados de campo” (Azevedo, 2019, p. 112). Dentre as recomendações da Unesco estava a organização de seminários internacionais sobre a educação de adolescentes e adultos, conforme publicado no El Correo de la UNESCO:
A fim de realizar os objetivos da Unesco e colocar em prática as recomendações da Conferência (sugere-se) a criação de um órgão de cooperação entre as instituições e as pessoas que dirigem a educação de adultos no mundo inteiro. Se subentende que uma organização desse gênero deve, nas atuais circunstâncias, fazer uso das facilidades oferecidas pela Unesco e operar por meio dela.[...] Outra resolução importante, adotada pela Conferência, sublinha, a fim de estender o movimento de educação de adultos a todo o mundo, a necessidade de organizar seminários internacionais para o estudo dos problemas particulares da educação de adultos.‘Se trata de uma função da Unesco’, declara a resolução, ‘V recomendamos encarecidamente que a Unesco organize a partir de agora um seminário a ser realizado em 1950’.(El Correo de la Unesco, 1949a, p. 8, tradução nossa, grifo do autor)25.
Por ocasião desse seminário, estiveram presentes delegados, observadores e técnicos de países americanos (Guatemala, México, Venezuela, notadamente), incluso o Ministro da Educação Nacional da Colômbia e membro do Conselho Executivo da Unesco, Guillermo Nannetti. Segundo o jornal El Correo de la UNESCO, esse educador se tratava de: “[...] especialista em educação fundamental e educação de adultos. Atualmente está encarre de dirigir o grupo de educação de adultos do Seminário, para o estudo do analfabetismo na América” (El Correo de la Unesco, 1949c, p. 12, tradução nossa)26. A fotografia abaixo mostra Guillermo Nannetti, Lourenço Filho e demais educadores no referido seminário (Figura 6):
Guillermo Nannetti juntamente com demais especialistas compuseram, durante as cinco semanas do seminário, o primeiro Manual de educación de adultos, posteriormente publicado em português e espanhol. O manual tratava os aspectos fundamentais da educação de adultos (Tejada, 1950), são eles: objetivos e conteúdo; método; a ação de grupos sociais primários; instituições e meios; educadores de adultos. Os nomes dos principais convidados para esse seminário foram divulgados em uma nota publicada em 1º de outubro de 1949 pelo El Correo de la UNESCO. Nela, estas personalidades estão listadas:
[…] o organizador das famosas ‘Missões Culturais’ de alfabetização no México, Professor Guillermo Bonilla Segura, conhecido simplesmente em todo o seu país como ‘El Maestro’;o jovem e enérgico Ismael Rodríguez Bou, pesquisador pedagógico de Porto Rico; o grande e agudo espírito estatístico da Argentina, Ernesto Nelson; o psicólogo suíço Jean Piaget; a especialista em cartilhas alfabetização Aun Nolan Ciar, dos Estados Unidos, e o Coronel George Selwyn Simpson, com seus 35 anos de experiência no ensino de alfabetização no Exército Britânico.O Governo do Brasil enviou para este seminário seus especialistas em pedagogia: Fernando Tude de Souza, Antonio Almeida Júnior, Mário Teixeira de Freitas e Mário Paulo de Brito. O Dr. ‘Lourenço Filho’, que com tanto êxito dirigiu no Brasil, durante dois anos e meio, a campanha contra o analfabetismo no Brasil, deixou seu gabinete, no décimo quarto andar do ultramoderno Ministério da Educação e Saúde, para assumir a direção do seminário internacional.(El Correo de la Unesco, 1949b, p. 2, tradução nossa, grifo do autor)27.
Os nomes citados demonstram a rede de políticos, educadores e intelectuais nacionais e internacionais envolvidos nesse seminário. O Quadro 1mostra os grupos, temas e nomes dos presidentes do seminário (Quadro 1):
Aqui também se faz necessário mencionar que o professor suíço Jean Piaget28 participou do seminário enquanto representante designado por Jaime Torres Bodet, pois conforme acima anotado, ele ocupava o cargo maior Escritório Internacional de Educação da ONU. Segundo o discurso de Lourenço Filho, por ocasião da abertura do evento: “Aqui nos sentimos amparados pela Organização das Nações Unidas, cujo Secretário-Geral teve a gentileza de enviar seu digno representante.” (Lourenço Filho, 1950, p. 19, tradução nossa)29. E continuou: “[...] cujo eminente Diretor da UNESCO, Dr. Jaime Torres Bodet, nos enviou uma mensagem tão expressiva e mandou apresentar uma grande figura, o Professor Jean Piaget” (Lourenço Filho, 1950, p. 19, tradução nossa)30. A Figura 7 mostra o professor suíço no referido evento:
A participação de Jean Piaget nesse seminário, dada sua importância intelectual, conferiu mais robustez teórica ao evento. No entanto, aqui nos interrogamos: Esse intelectual teria alguma reflexão pedagógica voltada para a educação de adultos? Seus estudos sobre a epistemologia genética e as fases da criança se aplicavam - de igual maneira - para os adultos analfabetos? Parte da resposta para estas perguntas está nas reflexões de Di Pierro, Joia & Ribeiro (2001). Segundo esses autores, a Campanha de 1947
[...] deu também lugar à instauração no Brasil de um campo de reflexão pedagógica em torno do analfabetismo e suas consequências psicossociais; entretanto, ela não chegou a produzir nenhuma proposta metodológica específica para a alfabetização de adultos, nem um paradigma pedagógico próprio para essa modalidade de ensino. Isso só viria a ocorrer no início dos anos [19]60, quando o trabalho de Paulo Freire passou a direcionar diversas experiências de educação de adultos organizadas por distintos atores, com graus variados de ligação com o aparato governamental (Di Pierro, Joia & Ribeiro, 2001, p. 61).
Outra hipótese para responder a essas questões reside no equívoco de se considerar que o processo de alfabetização seria o mesmo em qualquer idade, ou seja, o uso de métodos e teorias que eram idênticas às utilizadas com crianças no ensino primário para a educação de adultos. Só então, a partir de Paulo Freire e o conjunto de experiências dos programas do Movimento de Cultura Popular do Recife, do Movimento de Educação de Base (MEB), ambos iniciados em 1961, dos Centros Populares de Cultura da União Nacional dos Estudantes, que foi possível a construção de um arcabouço teórico e, sobretudo, metodológico em matéria de educação de adultos.
Por certo, esse evento denotou a relação de proximidade que se estabeleceu entre Lourenço Filho e Jaime Torres Bodet, por intermédio desse seminário. Tal proximidade também se mostrou em uma matéria publicada no El Correo de la UNESCO, intitulada ‘Un problema mundial’:
É de se esperar que a qualidade dos participantes e a boa organização do Seminário confiado ao professor brasileiro ‘Lourenço Filho’, contribuam em alto nível para o êxito desta empresa.
Por sua vez, a Unesco tem insistido com especial ênfase no caráter mundial que deve ter o Seminário. O Dr. ‘Jaime Torres Bodet’, em nome da Instituição, convidou todos os países a enviarem seus representantes (El Correo de la Unesco, 1949c, p. 1, tradução nossa, grifo do autor)31.
Segundo o pronunciamento de Lourenço Filho por ocasião desse seminário, a educação de adultos, especialmente nos países latino-americanos, era insuficiente na medida em que era incapaz de cooperar com a elevação do padrão de vida. “[...] isso explica inclusive a indiferença das pessoas para com ela, a escassa frequência escolar e a falta de prestígio social do professor, bem como a insuficiente remuneração destes” (El Correo de la Unesco, 1950, p. 2, tradução nossa)32. A mensagem inaugural de Jaime Torres Bodet convergiu com o discurso de Lourenço Filho, quando enfatizou em forma de questionamentos o papel da educação de adultos nos países da América Latina.
Como intensificar as campanhas de alfabetização sem descuidar a reforma adequada dos programas das escolas primárias? Como outorgar maior credibilidade aos planos de estudo, segundo a diversidade das regiões, e como adaptá-los de forma mais racional às necessidades das coletividades rurais? E, por último, Como tornar realidade o princípio da escolaridade obrigatória? Se trata, em suma, de eliminar progressivamente o analfabetismo e elevar, passo a passo, o nível de vida graças a um sistema de educação que abarque todos - e com simultânea eficácia - o ensino primário (El Correo de la Unesco, 1950, p. 2, tradução nossa)33.
As perguntas de Jaime Torres Bodet pareciam transparecer os anseios do organismo internacional que conduzia. A saber: a relação equilibrada entre as campanhas de alfabetização de adultos e a reforma dos programas da escola primária; o sentido dos currículos, de acordo com a diversidade das regiões, especialmente em relação às necessidades das comunidades rurais e, finalmente, a realização do alcance total da escolaridade obrigatória. Em suma, seu discurso estava pautado nos princípios de educação fundamental da Unesco, na medida em que pretendia eliminar progressivamente o analfabetismo e elevar o padrão de vida da população adulta, especialmente nas áreas rurais.
Por fim, podemos considerar que após cinco semanas de estudos, debates e pesquisas, o seminário deliberou uma série de recomendações para a Unesco e para a OEA, dentre elas podemos citar: aperfeiçoar os dados estatísticos em matéria de educação de adultos; desenvolver uma estratégia de ação conjunta nas Américas em relação à educação, ciência e cultura; ofertar aos países signatários os meios necessários para o desenvolvimento de investigações sobre o tema; estruturar um centro interamericano para a elaboração de materiais de formação de professores de adultos; fomentar nas universidades pesquisas com respeito à comunidade local; realizar pesquisas sobre os métodos em voga nos países americanos para tornar a educação de adultos parte do sistema educacional e possibilitar aos adultos obterem certificados ou diplomas; preparar um plano de atividades a ser submetido ao próximo Congresso Interamericano.
Considerações finais
Para fazer a connected history foi preciso assumir o ofício de eletricista encarregado de instalar fios condutores adequados para estabelecer as complexas relações estabelecidas entre Jaime Torres Bodet e Lourenço Filho. Este texto teve como ponto de partida alguns questionamentos sobre a educação de adultos no Brasil e no México e, em que pese os limites, foram respondidos ao longo desta narrativa.
Em síntese, a relação entre esses homens se constituiu no movimento campanhista de erradicação do analfabetismo adulto, em curso em seus países, que resultaram na realização do VI Seminário Interamericano de Alfabetização e Educação de Adultos e, consequentemente, em uma vasta produção intelectual e didática sobre o tema.
Esse seminário se constituiu em um espaço para o debate público acerca do tema, na medida em que as reuniões, os grupos de trabalhos, os jantares, os encontros entre esses agentes públicos (cônsul, delegados, técnicos, embaixadores e diplomatas) serviam para o estabelecimento de uma rede de relações. A atuação desses sujeitos foi decisiva na constituição de seus grupos e espaços de ação, nas redes organizacionais, em torno da Unesco, em que se moveram e atuaram e, por fim, na constituição de projetos políticos para a educação de adultos.
A relação de proximidade entre a Unesco e o Crefal, sobretudo pelo papel desempenhado por Jaime Torres Bodet, indica um dos motivos pelo qual o Brasil se apropriou das iniciativas mexicanas para educação de adultos. Assim, Jaime Torres Bodet e Lourenço Filho, dadas as diferenças de cada um, fôramos intelectuais que se influenciaram mutuamente e despontaram em seus respectivos países no combate ao analfabetismo da população adulta. A máxima ‘luta contra o analfabetismo’ é o maior ponto de similitude que uniu ambos ao campo educacional e pedagógico. Para tanto, Unesco, OEA e Crefal se constituíram no lugar onde a produção intelectual por eles feita ganha o selo de legitimidade e, consequentemente, por meio das publicações oriundas de seminários.
Por fim, esses sujeitos se constituíram em referências sobre o tema, ou seja, foram intérpretes autorizados das políticas latino-americanas de alfabetização de adultos de seus respectivos países, especialmente pela produção do material didático utilizado em ambas as campanhas. Nesta perspectiva, assumem nas atividades da Unesco, OEA e Crefal a notoriedade legitimada por suas ações locais, e, se nos campos educacionais de seus países, tais intelectuais desenvolveram seus ofícios direcionados às ações políticas de instituição de campanhas e elaborações de impressos em matéria de educação de adultos.