Introdução
O presente artigo analisa o aparecimento e desenvolvimento da noção de educação estética no contexto das formulações de propostas educativas para a escola primária no Estado do Paraná nas primeiras décadas do século XX. Interroga os nuances em torno dos sentidos atribuídos a essa noção no debate educacional e em função de diferentes projetos educativos propostos para o respectivo nível escolar naquele contexto. A partir da ótica da história do currículo, especialmente na perspectiva da produção das definições curriculares proposta por Ivor Goodson (1995, 1997, 2003), procura, por um lado, compreender os discursos e retóricas legitimadoras que mobilizavam o tema e/ou argumento da educação estética nas proposições para a escola primária no Estado do Paraná; ao mesmo tempo em que busca analisar o modo como tais retóricas e discursos estavam associados às dinâmicas que instituíam saberes, conteúdos e formas curriculares. Ou seja, interroga como, sob o argumento da educação estética, apareciam e desapareciam, estabilizavam-se ou se modificavam certos componentes curriculares.
Do ponto de vista metodológico, o artigo está ancorado em dois pressupostos teóricos. O primeiro deles é o recurso à noção de ‘palavras-chave’, no sentido que se apreende da obra de Raymond Williams (2003, 2007, 2011), como subsídio para a composição de uma estrutura heurística para o exame das fontes históricas. Essa abordagem interroga os ‘usos’ das palavras ao longo do tempo, tomando-as como mediadores a fim de capturar ecos de uma realidade histórica. Em síntese, busca apreender os significados de cada aparecimento do termo que está sob análise em diálogo com seus respectivos contextos de significação. O propósito é compreender como determinados sentidos se fortalecem ou se enfraquecem historicamente, atentando para as posições sociais ocupadas pelos sujeitos quando tomam em uso a palavra em questão, as possíveis disputas em torno de significados divergentes e as combinações com outras palavras e/ou sentidos para a composição de determinados argumentos. Nesse sentido, ‘educação estética’ foi examinada como uma palavra-chave em relação à realidade educacional/ curricular investigada, porque, no caso específico das questões propostas acima, atende aos dois critérios fundamentais indicados por Williams: é “[...] significativa e vinculante em certas atividades e em sua interpretação [...]” (no contexto em questão, a atividade educacional); ao mesmo tempo em que é estruturante e “[...] indicativa de algumas formas de pensamento” (Williams, 2007, p. 32).
O segundo pressuposto está relacionado ao âmbito da historicidade do currículo e se refere à necessidade, indicada por Goodson (1997), de se investigar o currículo a partir de um ponto de vista ‘integrado’ ou ‘interacionista’. Isto é, em lugar de perseguir o processo de elaboração do currículo no sentido da prescrição para as práticas, interrogar o modo como os documentos curriculares se relacionam, são impactados e dão tratamento às matrizes teóricas e à pluralidade de interesses e prioridades sociais que se articulam com o tema educacional em determinado lugar e momento histórico.
Para Goodson, as investigações históricas têm papel importante a cumprir junto à comunidade educacional no esforço coletivo de construir um conhecimento de relevância e interesse público a respeito do funcionamento curricular e suas consequências. Permitem, pela mobilização dos recursos de análise da disciplina histórica, suspender o efeito de continuidade linear que sua lógica interna evoca no sentido das ‘prioridades sociopolíticas’ e ‘discursos de ordem intelectual’ em direção às instâncias de realização da ação educativa e ao fazer escolar (Goodson 1995). O autor inglês insiste na necessidade de elaboração de estratégias de investigação e de mobilização de fontes que possam sustentar análises capazes de atravessar e reintegrar as diferentes fases e níveis que se chocam e se interpenetram nos processos de elaboração das definições estampadas nos documentos curriculares, de forma multidirecional. Isto é, que atentem para as interseções entre os aspectos macrossociais que produzem o ambiente contextual, os aspectos intraescolares, além dos constrangimentos e convenções pertinentes à própria lógica prescritiva do currículo, como diferentes domínios considerados em seus próprios contextos de funcionamento, repercussão e alcance sobre as definições curriculares.
Nesse sentido, a análise mobilizou a organização de três grupos de documentos, capazes de sustentar a triangulação entre diferentes domínios da realidade educacional paranaense, condensados, respectivamente, em a) documentos que dizem respeito à esfera administrativa, de proposição e confecção do currículo escrito, como textos normativos e curriculares, relatórios de autoridades políticas e educacionais; b) documentos que permitem se apreender os marcadores teóricos e as definições intelectuais que informavam o campo do debate pedagógico, como livros e artigos que circularam na imprensa pedagógica paranaense, especialmente em torno do empreendimento da revista A Escola1; e c) documentos com vistas a se recolher ecos dos usos e destinações que sujeitos como professores faziam das prescrições curriculares, tais como relatórios, ofícios e requerimentos que professores primários eram obrigados a remeter às autoridades sobre as condições de instalação escolares e o ensino nas escolas pelas quais eram responsáveis; além de relatórios que estudantes normalistas eram obrigados a elaborar, a partir do final da década de 1910, sobre suas atuações na realização da prática pedagógica, como condição para a conclusão do curso de formação dos professores2. Esses documentos foram recolhidos em diferentes arquivos paranaenses e sua análise consistiu na tentativa de apreendê-los, mediado pelos usos que abrigavam o termo educação estética, nas suas possibilidades de interação e cruzamento.
Assim realizada, a investigação perseguiu três objetivos interrelacionados. Em primeiro lugar, o de constatar possíveis deslocamentos nos sentidos atribuídos à noção de educação estética, nos sentidos sincrônico e diacrônico, de modo a apreender tanto modulações motivadas por usos que diferentes sujeitos faziam da noção quanto mudanças que se processaram por acúmulo ao longo do período analisado. Complementarmente, buscou-se compreender, pelo modo como comparecia em diferentes argumentos educacionais, como a noção era mobilizada para a proposição de finalidades para a escolarização, em geral, e para o respectivo componente, em particular. Finalmente, intentou-se apurar como a noção de educação estética funcionou como elemento estruturador da organização do trabalho pedagógico e de seleções culturais efetivadas por meio do currículo, isto é, como ensejou a formulação de objetivos de ensino; a definição de saberes, conteúdos e práticas escolares; a prescrição de métodos e materiais de ensino; o arranjo de tempos e/ou espaços escolares; a demarcação de especialidades docentes; e a produção de ‘formas curriculares’. Nesse sentido, um destaque importante é o modo como a noção esteve ligada ao aparecimento das rubricas ‘Música’ e, posteriormente, ‘Canto Escolar’. Em um contexto no qual se intensificavam as proposições voltadas à escola primária como parte da problemática da educação popular, como expediente privilegiado com vistas a ‘modernizar’ a sociedade e ‘civilizar’3 a população, o tema da educação estética era mobilizado como uma das peças capazes de compor o sentido educativo que se pretendia conferir a esse nível escolar. De igual modo, as formulações e proposições em torno do que se denominava educação estética frequentemente se relacionavam, de diferentes maneiras, a temas caros ao debate sobre modernização e renovação pedagógica, tais como educação integral, educação ativa, educação intelectual, educação moral, educação física, educação da vontade, educação da sensibilidade, educação dos sentidos, educação e trabalho, em tentativas de se (re)definir os contornos de um projeto formativo para a escola primária e as suas respectivas práticas.
Essa diversidade de associações constatadas em relação à ocorrência do termo educação estética na documentação analisada indica como a sua mobilização no contexto paranaense era feita, impulsionada por um aspecto que tem sido cada vez mais destacado na historiografia educacional: a valorização dos sentidos físicos e de toda a experiência sensível como um elemento fundamental dos métodos, práticas e processos pedagógicos nas iniciativas de alcance internacional de renovação pedagógica que tiveram lugar no final do século XIX e primeiras décadas do século XX (Martins, 2012; Pineau, 2014a; Taborda de Oliveira, 2019a).
Nesse sentido, especialmente porque são evidenciadas algumas convergências importantes entre os elementos identificados em relação à realidade paranaense com os apontados por esses pesquisadores, a análise dialoga com as considerações produzidas em torno das noções de estética escolar (Pineau, 2014b e Taborda de Oliveira, 2019b) e educação dos sentidos e das sensibilidades (Taborda de Oliveira, 2012a; Braghini, Munakata & Taborda de Oliveira, 2017). De forma particular, na esteira do que propuseram esses autores, são analisados os diferentes esforços e iniciativas que procuraram estabelecer a educação estética no currículo da escola primária no Estado do Paraná como propostas de realização de determinadas finalidades educacionais pela via da afetação dos sentidos ou mobilização das estruturas sensíveis dos educandos, enquanto se busca interpretar suas consequências para o conjunto de esforços de escolarização da sociedade.
O debate sobre educação estética no Estado do Paraná: a educação como cultivo de sensibilidades
Nos debates em torno do tema da educação escolar que foram analisados, os quais estão localizados no início do século XX, um elemento bastante marcante é a ocorrência de apelos pela reforma da escola primária, na direção de torná-la cada vez mais expressão de ‘educação popular’. Tais apelos têm conotação consensual apenas no seu aspecto mais superficial, por dentro o debate é todo matizado, na medida em que enfeixa aspirações tão diversas como a necessidade de expansão do número de escolas e de matrículas, o apelo pela modernização material e administrativa das escolas, a defesa de transformações nas suas práticas e nos seus métodos de ensino e aprendizagem, a alteração dos programas de ensino adotados, entre outros. São pontos sem dúvida conectados, mas que têm, cada qual, sua própria lógica de inteligibilidade e que guardam seus próprios nuances internos.
Do ponto de vista dos problemas da composição dos programas escolares e da renovação dos métodos e dos processos pedagógicos, a discussão estava estabelecida sobre uma série de iniciativas que procuravam redimensionar a compreensão da atividade educativa. Partindo da oposição instrução x educação, essas iniciativas intelectuais investiam na caracterização de dimensões cada vez mais amplas da existência humana sobre as quais a escola deveria investir para realizar a tarefa educacional. O argumento spenceriano da tríplice natureza educativa (educação moral, educação intelectual e educação física) (Souza, 2008) é reiteradamente evocado. Na sua esteira podem ser localizadas outras categorizações que procuram incluir os sentidos, as emoções, os sentimentos, as paixões, os desejos e as vontades dos alunos, no centro do pensamento sobre a atividade educativa na escola. O elemento comum a todos esses diferentes enunciados era a preocupação em como se tornar mais efetiva a ação escolar sobre a transformação/ regulação de todo o comportamento dos escolarizáveis; como se investir na racionalização desses aspectos todos que tensionavam a racionalidade então erigida. Do ponto de vista da tópica curricular, pode-se dizer que as perguntas e os debates estavam dirigidos na tentativa de se escolarizar todos esses elementos, cujos esforços, apresentados no intuito de se responder a essas demandas, mobilizavam proposições que tocavam métodos, programas, objetos, espaços, tempos, práticas, sujeitos.
Uma demarcação importante no debate sobre a realização de uma educação integral por meio da ‘instrução popular’ havia sido organizada por Dario Vellozo4. Como se apreende da sua obra Compêndio pedagógico - o qual, de acordo com a apresentação do autor deveria ser lido como um manual de pedagogia prática, resultado das lições que ministrava à frente da cadeira de pedagogia na Escola Normal do Estado - a educação compreendia ou dividia-se em física, moral, intelectual, estética, além de cívica.
A educação intelectual, que se realizaria pela ‘instrução’, deveria ‘desenvolver, elucidar e orientar a mente’, devendo começar na infância pelos ‘sentidos’, porque é necessária a ‘consciência das coisas’ (Vellozo, 1926). Da educação moral, concebia que ela estava ancorada nos ‘fatos da sensibilidade’, da ‘inteligência’ e da ‘vontade’. Os ‘fatos da sensibilidade’, por sua vez, decorriam das ‘emoções e do belo’, e tinham como resultado a capacidade de levar aos “[...] sentimentos do dever e o amor ao bom” (Vellozo, 1926, p. 129); estavam assentados, portanto, na capacidade de provocar sentimentos nas crianças a partir da afetação das suas ‘capacidades’ (inatas). Era nesse ponto que a educação moral se conectava com a educação estética, que, na definição do autor, consistia no desenvolvimento das “[...] faculdades criadoras, o sentimento artístico, o amor do Belo”. Tal tríade se conectava em via direta com os ‘sentimentos superiores’ que são não apenas “[...] fontes de emoções superiores, como fatores de educação moral” (Vellozo, 1926, p. 132).
Essa elaboração feita por Dario Vellozo demarca, na documentação analisada, as primeiras ocorrências sistematizadas em torno do termo educação estética. Além disso, essas demarcações estruturam os sentidos que se depreendem das primeiras tentativas de se incluir a realização da dimensão nominalmente reconhecida como educação estética nos programas para as escolas primárias do Estado.
Dario Vellozo era uma das vozes mais ativas e uma liderança intelectual no debate educacional naquele momento histórico. Ele defendia uma reforma profunda da escola primária, que tinha na completa reformulação do programa de ensino o aspecto mais destacado. Durante os trabalhos legislativos de 1907, particularmente à Comissão Especial de Reforma da Instrução Pública, Vellozo apresentou projeto que, entre outros pontos, alterava completamente o programa então oficialmente em vigor nas escolas primárias. Essa proposta decorria das demarcações teóricas que estavam expressas no seu Compêndio pedagógico e dava vazão ao que ele entendia como desenvolvimento da educação estética pela inclusão da música, da poesia, da literatura, dos trabalhos manuais, da horticultura e da jardinagem (Vellozo, 1908). Para ele, tanto a organização escolar quanto a ação educativa deveriam se fundar na ação, no fazer da criança e, para tanto, postulava um projeto de educação baseada no ‘trabalho’5.
Mas Dario Vellozo recordava que uma educação baseada no trabalho não poderia confundir ‘trabalho’ - humano e humanizador - com o ‘labor insano’, tão característico das profissões especializadas que as sociedades industriais vinham produzindo. Nesse sentido, ele afirmava que o primeiro ideal educacional deveria ser a realização da ‘perfectibilidade humana’ e o trabalho (escolar) deveria ser um caminho para a sua realização, não para se afastar dela (Vellozo, 1907).
Encampando o argumento iluminista de que o ideal da perfectibilidade estava associado à ‘emancipação humana’ e que a emancipação só era possível na conciliação entre razão e trabalho, Dario Vellozo advogava um tipo de ‘Escola Nova’ que se fundasse na perspectiva de oferecer a “[...] cada um dos alunos a máxima soma de aptidões, variados ensinamentos teórico-práticos” (Vellozo, 1908, p. 5). Para isso, ele vislumbrava a realização de um programa de ensino que conseguisse formar ‘homens práticos’ com o cultivo da razão necessária para formar ‘consciências livres’ (Vellozo, 1907).
É preciso fazer trabalhar as mãos e o cérebro; nem theoristas somente, nem somente ‘rotineiros’ [...]. Que o trabalho dos ‘braços’ esteja sempre subordinado à lucidez do ‘cérebro’ (Vellozo, 1908, p. 5, grifo do autor).
Segundo sua argumentação, era na fusão da ‘tradição das profissões liberais’ - baseadas no ensino das humanidades - com as ‘tradições das profissões utilitárias’ que se poderia evitar o trabalho vazio e mecânico, desprovido de razão. Seria, portanto, fundamental que nos exercícios escolares se perseguisse um sentido de beleza para que o trabalho conservasse o seu potencial educativo. Por conseguinte, a sua argumentação em favor de uma escola baseada no trabalho deveria comportar o cultivo de um senso estético como parte fundamental do seu programa formativo.
O projeto de Dario Vellozo foi derrotado na ocasião, mas suas formulações tiveram rebatimentos nos anos seguintes em outras manifestações públicas. Veríssimo de Souza6, professor primário e membro da diretoria do Grêmio dos Professores Públicos do Estado, explorou o tópico em alguns artigos publicados na revista A Escola. Para ele, a educação estética consistia no cultivo do senso do Belo, ‘sentimento sublime’, do qual decorriam todas as artes como “[...] manifestações diversas de um único princípio íntimo, inato, espiritual”. Esse sentimento era o responsável por nobilitar a alma humana e fazer os homens ascenderem da simples condição de existência animal; era a espécie de sentimento da qual os ‘homens superiores’ estavam inteiramente tomados (Souza, 1907, p. 21).
Para Veríssimo de Souza, assim como para outros agentes que defendiam a necessidade de se incluir a dimensão estética em um projeto de educação popular, essa era uma forma de se fazer emergir uma educação moral em viés positivo, que não nascia de constrangimentos sobre o indivíduo, mas em acordo com a sua liberdade e a autonomia de consciência. Uma espécie de ‘moral bela’, que ele defendia como ‘sensibilidade’ (‘sensibilidade moral’), capaz de se instalar naquela porção mais íntima da existência individual. Este ‘desenvolvimento estético’, contudo, não se produziria espontaneamente, nem se fazia dirigindo-se diretamente à ‘inteligência propriamente dita’. Era fruto de um cultivo deliberado de uma porção constituinte da existência humana, que o autor indicava como responsável pelos ‘movimentos da alma’. Essa porção se identificaria com as harmonias gerais presentes no universo, e a maneira de despertá-la e dirigi-la era por meio da afetação das qualidades sensíveis presentes na espécie humana, isto é, por meio da produção de ‘sentimentos’ e ‘emoções’ (Souza, 1907).
Quanto às possibilidades de se realizar a educação estética na escola, Veríssimo de Souza destacava a importância de se incluir, entre os conhecimentos a serem ensinados, a música e a poesia. Para ele, esses eram conhecimentos que poderiam servir de “[...] bons adubos que se haviam de empregar muito mais a miúde para estímulo de entendimentos preguiçosos e vontades indolentes” (Souza, 1907, p. 23). Desse modo, ele aludia a mais um aspecto da existência humana que seria de crucial importância para a educação do indivíduo: a vontade. Uma verdadeira educação moral deveria nascer das forças que residem no interior do próprio indivíduo e que fazem dirigir suas vontades, nunca por meio de constrangimentos que partem de fora, feitos de regras estranhas à própria consciência individual e que fazem sufocar as suas disposições interiores, porque somente do interior poderiam brotar a atividade e a iniciativa individual, capazes de perdurar no tempo. As vontades constrangidas seriam vontades débeis, e delas resultava o espírito de passividade. Vontades firmes só se poderiam obter por cultivo.
A discussão sobre educação estética estava, por esse modo, ligada ao tema mais amplo da educação da vontade, uma tópica que, segundo Taborda de Oliveira (2019b), se desenvolveu ao longo do século XIX, ascendendo como um elemento comum a diversas expressões de renovação educacional pelo mundo nas décadas iniciais do século XX. Um tema que se tornou caro às perspectivas educacionais que reivindicavam uma educação mais completa do ser humano e que se fundamentava na afetação dos sentidos como forma de se produzir e disseminar pautas de regulação das paixões humanas, dos esforços individuais, dos hábitos e comportamentos das pessoas. Veríssimo de Souza, por exemplo, considerava que a educação estética pelo ensino da música e da poesia era fator de ‘civilização’, muito presente ‘onde há Filosofia’, como na Alemanha.
Os antigos, por instinto, o adivinharam quando meteram entre as lições de suas fábulas a de Orpheu e de Amphião, domando rudezas, amançando feras, erigindo cidades de cem portas e imenso trato, ao som de suas lyras (Souza, 1907, p. 23).
A partir das considerações de Veiga (2000) sobre o tema da educação estética no debate educacional brasileiro, pode-se apurar que Vellozo e Veríssimo estão bebendo em uma mesma tradição ao elaborarem seus argumentos. Trata-se, segundo a autora, da longa tradição iluminista de pensamento filosófico e pedagógico que, desde Rosseau, com desenvolvimento em autores alemães com Kant e Schiller, sugere a formação e elevação moral da população a partir do cultivo da sua sensibilidade, uma potência intuitiva presente no espírito humano, complementar à razão intelectual. A alusão acima, feita por Veríssimo à Alemanha e à filosofia, é denotativa desse sentido. Essa tradição fecundaria o pensamento pedagógico no início do século XIX, prolongando-se em autores como Pestalozzi e Fröebel, ajudando a definir os contornos de uma pedagogia que punha ênfase no apelo à afetação dos sentidos como marca de modernização pedagógica.
Ainda segundo a autora, essa tradição seria um dos motores de renovação pedagógica no Brasil desde o final do século XIX, sendo ativada em uma série de momentos importantes da nossa história educacional, como na reforma Benjamin Constant e os pareceres de Rui Barbosa sobre a reforma do ensino, dos quais se depreende a valorização da educação estética, vinculada com as artes e a educação musical. Contudo, como sugere Goodson (1995), do ponto de vista curricular, trata-se não apenas de se rastrear tradições que impactam o currículo, mas principalmente como o fazem, em que circunstâncias e com quais consequências nas dinâmicas próprias envolvidas na sua atualização e nos processos de seleção que tornam os documentos curriculares manifestações de ‘tradição seletiva’. Em síntese, importa se compreender as operações de seleção, descarte e atualização operadas em face de uma tradição pedagógica nos contextos educacionais específicos.
Um pouco antes de vir a público o artigo de Veríssimo de Souza, A Escola também publicou um artigo de Joana Falce7 que mobilizava pressupostos muito semelhantes para defender que o ensino da leitura não apenas era capaz de desenvolver a ‘palavra falada’, senão também a ‘inteligência, a moral, a sensibilidade’ (Falce, 1906). Para isso, no entanto, era preciso que o ensino fosse feito com ‘método e critério’, a fim de que os componentes expressivos e sensíveis pudessem aflorar e se fortalecessem na leitura.
Esse sentido de educação estética como uma sensibilidade - como uma disciplina das qualidades sensíveis do ser humano para fazê-lo identificar-se com o belo, de modo a fazer aflorar os ‘verdadeiros fatores do bem’ - tornou-se desde então um elemento presente no debate educacional protagonizado no Estado ao longo de todo o período analisado e produziu algumas repercussões nas definições curriculares. Próximo à entrada da década de 1920, no entanto, ele passou a concorrer com outros sentidos decorrentes, principalmente de algumas expressões derivadas da ascensão de um nacionalismo militante - especialmente a partir da projeção do que se denominou ‘sentimento patriótico’ - junto com um projeto cultural autoidentificado como de ‘restauração dos valores católicos’ - nomeadamente em nome do tripé Deus, pátria e família -, encampado por uma série de agentes que ocuparam a estrutura político-administrativa do governo do Estado8. Tentar-se-á identificar como esses elementos repercutiram na produção de configurações curriculares.
Retóricas e definições curriculares quanto às possibilidades de escolarização da educação estética
A primeira referência explícita à realização de uma educação estética na escola primária paranaense constou no texto da lei que reformava o ensino público no Estado em 19099. Tal referência acompanhava muito de perto a indicação sinalizada no artigo de Veríssimo de Souza. Na ocasião o texto legal que foi aprovado estabelecia que, além das matérias indicadas para compor os cursos elementar e complementar do ensino primário, deveriam ser “[...] instituídos, em cada escola, os exercícios estéticos de recitação e canto” (Lei nº 894, 1909, p. 9). O mesmo enunciado constou no texto da lei de reforma aprovado em 1912, o que indica como o tema havia angariado força naquele momento em que se debatiam os rumos que deveriam prevalecer na reforma da instrução pública (Lei no 1.236, 1912).
Entre a aprovação desses dois textos legais, a revista A Escola publicou um novo e mais longo artigo de Veríssimo de Souza sobre o tema, em que ele discutia o valor da música e da poesia como fatores de educação estética em favor de uma educação integral do ser humano. Na ocasião o autor se colocava entre os responsáveis pela inclusão desses conteúdos no Regulamento Orgânico que então acabava de ser oficializado, alegando que havia sido ‘o primeiro no Paraná’ a aventar a ideia de se ensinar música como ‘uma disciplina’ na escola primária (Souza, 1910). Ele defendia a adoção de uma ‘música escolar’ - como uma forma tipicamente escolar de se abordar e ensinar elementos da música - como forma de se fazer com que os alunos estabelecessem contato com as realizações artísticas que o homem fora capaz de produzir.
Por música escolar, Veríssimo pretendia assegurar a realização de um ensino capaz de atender às necessidades e finalidades da escola.
Sou pelo ensino da música em as escolas primárias, não pelo ensino completo da arte, e menos ainda pelos péssimos compêndios que conheço, em que já na segunda licção se ensinam os modos maior e menor, quando o aprendiz nem faz idéia do que é um fá sustenido.
O ensino desta arte requer muito methodo e uma especial maneira de transmittir, e a organização d'uma - ‘Artinha infantil’ -, feita de acordo com a moderna pedagogia. Ensinada de modo recreativo, nos intervallos de outras licções, não só é de mui fácil aprendizagem, como também é attraente, vindo suavizar as agruras dos trabalhos escolares, descansando o espirito infantil (Souza, 1910, p. 210, grifo do autor).
Com a defesa pelo ensino da música escolar - como uma expressão da arte na escola -, Veríssimo não pretendia que fossem representados todos os aspectos da arte e da música, mas a possibilidade de se condensar os aspectos educativos presentes nessas manifestações, em uma forma possível de ser realizada na escola; uma ‘artinha infantil’, como ele se referia. Nessa forma de realização tipicamente escolar da arte/ música, deveriam ser ressaltados aqueles elementos valorizados em uma perspectiva de renovação pedagógica como fatores dinamizadores da atividade infantil, nos quais deveria se fundamentar a educação: o aspecto atraente, o apelo aos sentidos e às sensações agradáveis. O próprio sentido de recreação, na medida em que era capaz de suavizar o trabalho mental e reabilitar as energias debilitadas pelo prolongado esforço intelectual (Souza, 1907, 1910), deveria prevalecer na realização desse componente curricular, não só porque era imanente ao próprio objeto desse ensino específico, mas também porque auxiliava a compor o ambiente educativo de toda a escola, na direção do que Pablo Pineau denomina de uma ‘maquinaria estética’ (Pineau, 2014b).
A outra expressão capaz de compor uma ‘artinha infantil’ a ser realizada na escola era a poesia que, tal como em relação à música, exigia um tratamento particular. Isso significava valorizar o senso de harmonia que decorreria da ‘natural cadência do verso’, a experimentação do ‘ritmo e da música’ que o encadeamento de palavras e versos faziam emergir e que eram capazes de ‘despertar no aluno’ a vocação natural que muitos deles poderiam guardar em seu íntimo, como uma disposição para a ‘bela arte poética’, e que em muitas ocasiões eram sufocadas ‘por falta de incentivo’. Isso tudo deveria se realizar por uma série de ‘exercícios’ que tinham por finalidade fazer com que os alunos adquirissem as ‘noções práticas’, mesmo que rudimentares, que compunham a parte técnica de qualquer arte. Com elas, deveriam tornar-se “[...] aptos para ler e entender uma composição poética [...]”, o que não era pouca coisa, segundo sua ótica, uma vez que, embora um tanto difícil para iniciantes, saber ler e desfrutar uma poesia poderia ser “[...] um belo ornamento da educação do aluno” (Souza, 1910, p. 210).
Por todos esses motivos, ele insistia que a educação estética deveria ser realizada a partir da ideia de cultivo, isto é, por um tipo de excitação ativa dos seus componentes.
Fazendo a apologia da educação esthetica, não pretendo que dos nossos alumnos façamos poetas e músicos; taes serão os que forem pela natureza predestinados; mas penso que poderemos cultivar e desenvolver na infância ‘o sentimento do bello e as emoções da arte’. E quem sabe a grande e salutar influência que a esthetica exercera nos destinos de nossa Pátria, modificando os hábitos do povo (Souza, 1910, p. 211, grifo do autor).
Esse é um tipo de manifestação que deixa clara a expectativa de que pela educação se conseguiria transformar os hábitos das pessoas, modificar costumes; e os sentimentos e as emoções, mobilizados na educação estética, deveriam contribuir para que tal pretensão se tornasse factível. Além disso, tal como Veríssimo de Souza a concebia, a educação estética comporia uma dimensão formativa que estava em uma órbita alternativa à educação intelectual simplesmente. Ou seja, muito pouco dizia respeito à inteligência dos alunos, mas à capacidade de reconhecer, de identificar, de fruir o belo nas suas mais diversas manifestações.
Essa acepção de educação estética teve continuidade nos anos seguintes, em posições defendidas por agentes como Claudino dos Santos e Azevedo Macedo10. No relatório que produziu em virtude do período em que permaneceu à frente da Diretoria Geral da Instrução Pública, Claudino dos Santos aludiu ao tema como um aspecto a ser considerado para a realização da educação popular. Fazendo referências à obra A educação estética nas escolas belgas, de Léon Riotor, ele inscrevia o tópico como forma de se dar tratamento à presença das crianças no ambiente escolar, chamando a atenção para os efeitos sensíveis e emocionais relacionados com essa presença. Ao evocar o tema, sua preocupação era menos com os programas e matérias de ensino e mais com a constituição da escola como ambiente capaz de impressionar positivamente as qualidades perceptivas das crianças. Isto é, de modo a “[...] despertar na creança as impressões delicadas, tendentes a lhe desenvolver o sentimento do belo, apurando-lhes os sentidos” (Santos, 1913, p. 8).
Para Claudino dos Santos, a perseguição dos fundamentos da educação estética na composição do ambiente escolar culminava em dois pontos principais. O primeiro, no sentido de tornar o ambiente da sala de aula materialmente atraente de modo que ‘o olhar se esbalde’, despertando, pela ‘visão, o espírito infantil’; o que não aconteceria em “[...] salas desguarnecidas, onde o olhar se esbate, fastidiento e cansado, nas paredes nuas” (Santos, 1913, p. 8). O segundo ponto, em relação à realização das festas escolares, a exemplo do que ocorria nas escolas paulistas - “Nenhum de nós ignora o alcance que na alma infantil exercem as festas escolares [...]”, argumentou. Nesse sentido, as festas deveriam, sobretudo, se prestar a incutir nas almas dos escolares um apreço pela “[...] contemplação e carinho à natureza, em todas as suas múltiplas e complexas manifestações”. Por isso, os motivos das festas, ao lado da celebração dos marcos que constituiriam a memória nacional, deveriam remeter às manifestações da natureza: as aves, as flores, as árvores, todas essas expressões que evocam a beleza natural (Santos, 1913, p. 9). A natureza, aliás, guardaria nas suas manifestações um sentido de educação estética por excelência, uma marca bastante presente em determinado âmbito do debate educacional no período (Taborda de Oliveira, 2012b.). Assimilar, pelo cultivo ordenado dos sentidos, a harmonia perfeita que ordenaria a natureza era a própria realização do senso estético em cada indivíduo. À celebração da natureza também deveria ser consagrado um hino ao se encerrarem os exercícios escolares diários, enquanto um hino consagrado ao trabalho deveria ser adotado no início das aulas. Natureza e trabalho, portanto, deveriam ser expressões de educação estética.
A elaboração que Claudino dos Santos faz do tema mantém, portanto, aquele sentido de educação estética como cultivo do belo associado à ideia de suavidade, delicadeza e atraente. O deslocamento que pode ser apreendido na sua formulação em relação às manifestações anteriores é que em Claudino a educação estética ocuparia um lugar auxiliar à configuração do programa de ensino. Ou seja, não constituiria um conjunto de conhecimentos a serem aprendidos, mas seria um meio de se ‘facilitar e abreviar o ensino’. Não obstante, Claudino sugeria que existiriam finalidades e resultados educativos que estariam além dos conhecimentos que pudessem ser obtidos na escola.
No ano seguinte foi Azevedo Macedo quem abordou o tema da educação estética para defender o ensino da música e do canto nas escolas primárias. A ‘canção escolar’, que, segundo ele, era a maneira como a música deveria estar na escola, composta de “[...] exercícios vocais, completados pelas noções fundamentaes da theoria musical [...]”, teria importante valor educativo como ‘exercício estético’, isso porque teria a capacidade de “[...] despertar intensa emoção artística, elevar o espírito, cultivar o amor do belo, desenvolver a imaginação, dar prazer e tornar a vida melhor” (Macedo 1913 apud Santos, 1914, p. 24).
Azevedo Macedo estava, portanto, inscrito no mesmo fluxo intelectual que vinha fazendo desenvolver o tema da educação estética no Estado. Não obstante, em comparação com a posição encampada por Veríssimo de Souza, ele não distinguia a educação estética como uma dimensão à parte da educação intelectual, ambas eram igualmente expressões da inteligência humana. O resultado prático disso é que, diferentemente de Veríssimo de Souza, para quem o ensino da música na escola deveria residir na sua fruição e na aprendizagem dos componentes técnicos para tal, para Macedo, a canção escolar deveria ser concomitantemente sentida e compreendida. Por isso ele considerava de fundamental importância a escolha de letras apropriadas, isto é, que encerrassem ‘sempre ensinamento moral ou cívico’; letras que, além de serem cantadas pelos alunos, deveriam também ser “[...] convenientemente explicadas pelo professor” (Macedo 1913 apud Santos, 1914, p. 24).
Mas a importante contribuição da educação estética realizada por meio da canção escolar não se restringiria a esse aspecto mais evidente. Macedo evocava a sua associação com a ideia de ‘harmonia’ para aludir a uma contribuição menos explícita, porém de resultados mais duradouros, da música como lição moral. Segundo ele, a música era basicamente ‘harmonia, combinação, solidariedade, ordem’, portanto, capaz de simbolizar a ‘vida social’ e estimular a alma da criança a aspirar por esses elementos na sua vida diária. Esse sentido se ligava a outra premissa que havia se estabelecido no desenvolvimento da noção de educação estética, qual seja, a ideia de se compor um tipo de aprendizado que perdurasse no tempo, para além dos limites da escola e das vacilações da memória, e se aderisse à vida social.
[A música] É, sob todos os aspectos, ensinamento popular: transpõe os humbraes da escola, vae de lar em lar, propaga-se nas ruas, penetra a alma do povo: a creança canta no lar o que cantou na escola; com a canção, o ensinamento se transmite naturalmente a todos os que ouvem - paes, irmãos, amigos, vizinhos; de canção da escola passa a ser canção da família; de canção da família passa a ser canção do povo, em cuja tradição se perpetua, em cuja vida se dillue, vindo afinal a constituir attibutos essenciaes do carcater nacional (Macedo 1913 apud Santos, 1914, p. 24).
Azevedo Macedo tinha na música escolar um exemplar do modo como a escola poderia mobilizar elementos capazes de aderir aos costumes, de se perpetuar e dar sentido à tradição de uma sociedade, portanto, de como a escola poderia atuar na produção de uma determinada organização social. Embora não usasse o termo que outros agentes no Estado utilizaram, antes e depois dele, pode-se falar da sua expectativa em torno de como a escola poderia atuar como um vetor para a formação de uma sensibilidade identificada com ordem e coesão social. Sensibilidade na direção de que fala Pablo Pineau, como um feixe de sentimentos compartilhados, capazes de mobilizar “[...] respostas emocionais de afinidade ou rechaço em relação a determinadas formas desejáveis de funcionamento social” (Pineau, 2014b, p. 24). Essa direção se confirma ainda no entendimento que Macedo empresta à noção de ‘popular’, presente no excerto acima, e que marcava o sentido que ele atribuía à educação popular. O popular como aquilo que se alastra, que se expande pelo meio social e faz os indivíduos se aproximarem e se identificarem, popular no sentido de comum. É sintomático que ele tenha sugerido o funcionamento desse complexo temático em termos de invenção de uma tradição.
No ano seguinte, quando incluiu os ‘cânticos escolares’ no programa que elaborou para as escolas primárias do Estado, completados na 4ª série pelas ‘noções fundamentais da música’, Azevedo Macedo os anunciou como um ‘meio de educação estética, moral e cívica’ que deveriam contribuir para a ‘formação do caráter’ por meio da ‘cultura da vontade e do sentimento’ (Portaria nº 4, 1914). Seguindo as indicações abertas por Goodson (1995) de inspiração no pensamento de Raymond Williams, se do ponto de vista da compreensão do currículo como repositório seletivo de valores expressos em formas culturais é importante se compreender as interações entre a circulação de retóricas legitimadoras e o aparecimento e transformação de formas curriculares, pode-se encarar o registro acima como um marco de inclusão dos cantos escolares no currículo oficialmente adotado nas escolas primárias paranaenses, depois de algumas insinuações que já haviam ocorrido em documentos anteriores, mas que haviam sido abortados. Mesmo que essa presença seja ainda muito precária para se caracterizar uma disciplina escolar, pode-se apreender a afirmação da rubrica que pretende designar uma prática escolar específica, em percurso de autonomização desse conteúdo no programa de ensino (Goodson, 1997).
Além disso, o quadro aponta para a progressiva aproximação com outros cenários educacionais no Brasil, especialmente com a realidade paulista, na qual o canto escolar já constava no programa para a escola primária desde o final do século XIX, inclusive com estatuto de disciplina escolar, como legado do projeto de formação integral perseguido pelas reformas republicanas (Jardim, 2008). A partir desse marco, o ensino da música, sobretudo na forma dos ‘cânticos escolares’, como expressão de educação estética, se tornou uma prática ininterruptamente presente em todo o período analisado. Essa presença, no entanto, não significou estabilidade nos sentidos e nas finalidades associadas à sua realização.
O ensino da música nos grupos escolares paranaenses: novos sentidos para a educação estética?
O programa de ensino aprovado exclusivamente para o Grupo Escolar Modelo e Similares em 1917 incluiu, entre o conjunto das matérias que compunham o curso primário, o ensino de música. O programa proposto para essa matéria, embora mais extenso e mais minucioso do que aquele que constara no programa elaborado por Macedo em 1914, fazia uma espécie de encaminhamento objetivo do conjunto das considerações que haviam sido divulgadas em anos anteriores por agentes como o próprio Azevedo Macedo e Claudino dos Santos. Desse modo, a prescrição ressaltava a importância das letras das músicas a serem cantadas para que as crianças pudessem compreender, sentir e traduzir cantando os sentimentos que as canções evocavam. Também aludia à importância da escolha das músicas, as quais deveriam “[...] versar sobre fatos que se relacionem com as aves, árvores, cousas morais e principalmente com a nossa história, de modo a despertar sentimentos de civismo e amor à Pátria [...]”; e também para que se pudesse observar uma “[...] ordem progressiva de maneira que a criança, ao passar de um a outro hymno de maior extensão [...]”, pudesse fazê-lo sem demasiado ‘esforço’; além de outras recomendações para que os professores atentassem para a clareza da pronúncia das palavras e a “[...] correção do português” (Paraná, 1917, p. 74).
Os relatórios que os alunos normalistas praticantes no Grupo Escolar Modelo confeccionavam permitem se apurar que os cantos foram uma prática presente no cotidiano desse estabelecimento de ensino, permitem ainda identificar alguns aspectos que estavam relacionados a essa realização. Como no relatório da praticante Arthemia de Oliveira Cruz, que dedicou algumas linhas para expor o modo como ocorria o que ela denominou de ‘exercícios de música’ em uma classe de 2º ano. Segundo o que havia constatado, os exercícios ocorriam por meio de ‘hymnos e canções’ cantados pelos alunos. As escolhas dessas peças eram feitas pelo diretor do estabelecimento, para todas as turmas; indicado um hino pelo diretor, os professores deveriam “[...] escrever no quadro negro em suas respectivas classes, para os alunos copiarem”. Em seguida, o professor explicava “[...] o assunto e as palavras desconhecidas dos alunos [...]”, depois disso, os alunos deveriam ler a peça “[...] diversas vezes para corrigir os erros de pronuncia”. Esses trabalhos preliminares, segundo a praticante conseguira notar, eram “[...] indispensáveis para os alunos poderem dar expressão ao canto”. Quanto à execução propriamente dita dos cantos, elas aconteciam no pátio do estabelecimento, reunidas todas as classes, em momentos específicos como a entrada para as salas de aula e o encerramento dos trabalhos (Departamento Estadual de Arquivo Público do Paraná [DEAP], 1918, p. 29).
Esses relatórios também permitem se identificar o modo como outra expectativa em relação ao ensino de música na escola havia avançado: o da sua capacidade de produzir comoção ou sentimento de reverência à ideia de pátria como aglutinadora da nação. Como consta, por exemplo, no relatório da praticante Donatella Baptista Tavares que, em relação ao ensino da música na Escola Modelo, registrou o entendimento de que a prática visava inspirar ‘sentimentos’ fortalecedores do senso de dever para com a história nacional, o “[...] civismo e o amor à Pátria” (DEAP, 1919, p. 221). Não que o sentido de educação estética como realização da simples identificação com o princípio de beleza para a sua fruição tivesse desaparecido completamente, mas ele havia se tornado mais impreciso, do ponto de vista curricular, mais difícil de ser diretamente vinculado a algum componente em particular. Tudo sugere que se está diante de um deslocamento em torno das finalidades para esse componente curricular, em que os apelos pela formação estética cedem lugar aos apelos pelo civismo.
Os relatórios sugerem ainda que uma preocupação estética estava presente nos exercícios de caligrafia. Além das expectativas em torno da sua contribuição para a aprendizagem da escrita - predominante, aliás -, muitos professores manifestavam a intenção de que pudessem proporcionar uma escrita bonita, despertando nos alunos o desejo de produzir as letras em belos traços nos cadernos, para inspirar neles o gosto pelo estilo, pela comoção que a simples beleza era capaz de gerar. Esse sentido de educação estética também foi evocado nas recomendações para que os espaços escolares fossem cuidadosamente preparados, com destaque especial para os pátios, no sentido de que fossem arborizados e floridos com vistas a despertar nos alunos o gosto pela beleza natural (Meurer, 2017). O argumento estético também era lembrado em relação às aulas de desenho, especialmente nos ‘desenhos do natural’, que, além de despertar os sentidos e aprimorar o senso de observação, tinham no princípio de ‘ornamentação’ um aspecto destacado; poderia ainda ser sugerido como uma finalidade perseguida pelo ensino de linguagem, como no exemplo a seguir:
Nos trabalhos do natural, as alumnas farão exercícios oraes, os quaes serão feitos de collaboração. São de uma grande utilidade para desenvolver nas alumnas o sentimento da educação esthetica, isto é, o gosto artístico, fazendo nascer em seu coração o amor ao bello, adorando tudo aquilo que for bom e justo. Nestes exercícios oraes, as alumnas organizarão phrases sobre o que veem, as quaes devem ser escriptas no quadro negro, de collaboração (DEAP, 1919b, p. 91).
Aqui, novamente se fazia presente um elemento que frequentemente comparecia nas alusões a uma dimensão estética nas atividades escolares: a associação com a ideia de natureza ou natural, na qual a produção de um senso, sentimento ou emoção estética decorria da observação e assimilação das suas formas, aspectos, harmonias.
O fato é que aquelas que tinham sido indicadas com as razões ou finalidades principais para a inclusão do ensino da música e da prática de cantar na escola - identificação sensível com o princípio universal do ‘Belo’ - já não podiam mais ser diretamente associadas a esse componente curricular à entrada da década de 1920. Se ainda guardavam um sentido de contribuição para a educação estética, junto com outros componentes, a música e o canto estavam, a essa altura, associados a um conjunto de expectativas mais diversificado. O relatório que Cesar Prieto Martinez11 elaborou em 1920, ao final do seu primeiro ano à frente da direção geral da Instrução Pública paranaense, contém uma síntese exemplificadora dessa diversificação de sentidos.
O respectivo relato indica que, em relação ao ensino de música - que recebeu dele o status de ‘disciplina’ e ‘matéria’ -, ainda permaneciam alguns daqueles sentidos apontados por Veríssimo de Souza na década inicial do Novecentos, como a sua capacidade de promoção do sentimento estético e fundamento da educação artística. Também permanecia a correspondência com a ideia de educação das vontades, com conotação de dulcificação do caráter e regulação das paixões, dos instintos e dos afetos. Permanecia ainda a percepção de que se tratava de um componente educacional com alto poder de afetação dos sentidos e desencadeador de emoções. Contudo, ao lado dessas permanências, desde então outros significados haviam investido sobre o componente em questão. Entre essas transformações, estão a associação com a noção de ‘disciplina escolar’, que nesse momento significava a capacidade de manutenção de uma atividade constante, regular e ordenada; sua participação na educação física ou educação do físico, em uma perspectiva higiênica e de aprimoramento das estruturas biológicas ligadas aos sentidos; e sua vinculação com a noção de civismo, que tinha como elemento definidor a imagem da pátria brasileira.
Especialmente esses dois últimos sentidos ganharam proeminência nas definições curriculares e no fazer educacional ao longo da década de 1920. Enquanto a previsão do ensino de música desapareceu do programa de estudos elaborado para as escolas isoladas, o programa proposto para os grupos escolares valorizou a sua contribuição para a formação do físico e a educação cívico-patriótica. Ao lado da prescrição de componentes técnicos da música como ritmos, compassos, notas, linhas, melodias, claves, intervalos, além do estudo de escalas e de rudimentos da leitura de partituras para o 4º ano, o respectivo programa dava grande ênfase à execução de ‘canções e hymnos pátrios’, aos ‘exercícios de respiração torácica’ (1º ano), à ‘ginástica respiratória e exercícios de vocalização’ (2º, 3º e 4º anos). Além disso, previa que os cantos poderiam ser combinados com exercícios de marcha, especialmente quando as classes apresentassem sinais da “[...] necessidade de trabalho corporal, que corresponde a um pequeno descanso para o espírito [...]”, ou quando o professor percebesse que a classe estava “[...] indisposta, preguiçosa ou indisciplinada”. Tal prescrição era especialmente conveniente para os “[...] dias de rigoroso inverno” (Paraná, 1921, p. 29).
Essas indicações em relação ao ensino do canto e da música nas escolas paranaenses permitem se inferir um gradual descolamento dos marcos da tradição indicada por Veiga (2000), que vinculava a educação estética ao cultivo da sensibilidade humana. São operações seletivas de que fala Goodson (1997), que, em circunstâncias contextuais, acionam e atualizam tradições no currículo escolar a partir da perseguição de determinados valores. Esse movimento significou o desligamento da prática de cantar na escola de outras práticas ou mesmo de uma concepção mais ampla de ensino das artes, ao mesmo tempo a transformação dos valores e sentidos que estavam a ela associados. Trata-se de um percurso de alinhamento aos marcadores que prevaleciam nas escolas paulistas em relação ao canto escolar, conforme se pode inferir do trabalho de Jardim (2008).
Segundo essa autora, são três as marcas mais expressivas que se acumularam em relação ao ensino de música desde o início do século XX nas escolas paulistas e que, a partir da década de 1920, prevaleceram também na realidade paranaense. Em primeiro lugar, a ênfase no indivíduo, que era um elemento central dos enunciados sobre educação estética da tradição iluminista, deu lugar ao apelo pelo caráter coletivo, com o predomínio do canto coral, alinhado com a ideia de formação da nacionalidade como produção de uma coletividade coesa. Em segundo lugar, o acirramento da vinculação da prática aos investimentos de educação do corpo, pela exercitação de órgãos, aparelhos e sentidos, implicada no ideal de formar corpos fortes capazes de suster vontades e caráteres não vacilantes. E, por fim, a preponderância da dimensão intelectual, do sentido de que a música deveria ser, sobretudo, compreendida. Balizados pelos pressupostos do método analítico, a música e o canto passaram a ser contidos nos marcos da cultura escrita, inclusive na sua especificidade, pelo ensino de elementos para compreensão da notação musical. Para a experiência paranaense, isso significou o enfraquecimento do princípio da fruição estética. Todas essas modulações apontam não só para a convergência desse componente em particular, mas para um alinhamento mais amplo do sistema de escolarização primária paranaense ao paulista, no que diz respeito às prioridades educacionais.
Nos relatórios que os diretores dos grupos escolares confeccionavam é possível se identificar como as perspectivas higiênica e cívico-patriótica predominaram nesse período. Se no início daquela década, logo após a publicação de um novo programa de estudos direcionado para os grupos escolares, alguns diretores relatavam que os professores queixavam-se de que não tinham o conhecimento musical necessário para ensinar o que estava previsto no respectivo programa, outros, como a diretora do Grupo Escolar Tiradentes, informavam que o ensino dessa matéria se dava por meio da execução de cantos, como um ‘efetivo exercício higiênico’, que servia também para “[...] despertar na criança, pelo conhecimento de hymnos patrióticos, os sentimentos cívicos e o amor à sua terra natal” (DEAP, 1921, p. 10).
Cesar Prieto Martinez reconheceu as dificuldades em se realizar o ensino dos elementos técnicos da música na escola e, por isso, defendeu a contratação de profissionais para atuar nos grupos escolares, a fim de se remediar a “[...] falta absoluta de harmonia, de suavidade, de rythmo, de gosto na escolha dos hymnos e na adaptação da letra à música [...]”, tal como via acontecer nas escolas paranaenses (Martinez, 1920, p. 17). A expectativa foi atendida em parte, mas somente para os grupos escolares de Curitiba, para os quais um profissional foi contratado; esse profissional atendia aos grupos escolares da capital em regime de itinerância.
Depois que Cesar Prieto Martinez deixou a Inspetoria Geral do Ensino, após 1925, não foi mais possível se encontrar alguma referência à atuação desse profissional, o que pode significar que ela tenha cessado, ou que ela não tenha mais encontrado reverberação entre as autoridades do ensino paranaense. Também não foi mais possível se encontrar qualquer tipo de manifestação em relação ao ensino dos aspectos técnicos da música que constavam no programa em vigor. As manifestações localizadas associavam tão somente a prática de canto nas escolas aos valores e sentimentos patrióticos. Em ofício no ano de 1926, encaminhado pelo diretor do Grupo Escolar Barão de Antonina, Antonio Tupy Pinheiro, ele informava à Inspetoria Geral do Ensino que “[...] o ensino da música estava sendo ampliado [...]” naquele estabelecimento. As justificativas apresentadas para essa providência são muito significativas.
Cantar nas escolas a musica puramente nacional é prestar um grande serviço à Patria. Eis a razão da nossa escolha. Somente cantaremos a musica e os versos de autores brasileiros. Deverá ser ensinado os hymnos característicos da nação (DEAP, 1926).
Considerações finais
A perseguição à noção de educação estética no debate educacional paranaense e seus rebatimentos no currículo da escola primária indicam como, sob uma aparente estabilidade de um componente curricular, ocorreram relativas transformações nos juízos e valores projetados sobre a escola. Escola que era tomada como instituição de socialização com papel importante para a afirmação de determinadas prioridades culturais vinculadas às pautas de organização social.
Por vezes, diferentes prioridades disputaram a prevalência nos espaços de significação da experiência escolar, como a afirmação no currículo. Como tal, investiu-se também em componentes identificados com o que, em determinado momento histórico, pode ser reconhecido como parte da educação estética; pode-se mesmo se referir a eles como nuances de expectativas educacionais ou projetos formativos para a escola. O elemento comum que persistiu abaixo desses nuances era a aposta na escola como instituição capaz de produzir pautas de regulação do comportamento individual e coletivo a partir de uma atuação que ia além dos conteúdos de ensino/ aprendizagem declarados, mas que dava grande importância à manifestação das sensações, das emoções e dos desejos no espaço escolar, enquanto previa e prescrevia seu adequado tratamento para a educação de sensibilidades humanas.
Percorrer o tema da educação estética nas suas relações com as definições curriculares para a escola primária paranaense permite se ensaiarem alguns juízos sobre a escolarização voltada para as massas no Brasil, a partir da estruturação do seu currículo. Especialmente no caso da temática mobilizada no presente artigo parece não caber dúvida de que se está diante de um caso de empobrecimento cultural e das consequentes possibilidades formativas pois que no movimento que permitiu a escolarização da educação estética sob a forma da música e/ou do canto escolares, esse componente foi destituído daquelas que podem ser reconhecidas como algumas das suas principais potencialidades formativas, as quais eram celebradas no início do século XX e que, pouco a pouco, foram sendo silenciadas.
Aquele sentido de educação com vistas à identificação com o princípio do ‘Belo’ e à contemplação das suas diversas possibilidades de manifestação, que residiam, por exemplo, no simples e puro prazer da fruição da música, da poesia e da literatura, foi quase inteiramente desfigurado. Se permaneceu a referência à capacidade de a música educar mobilizando emoções e despertando sentimentos, o lugar que antes era ocupado pelo potencial de comoção da ‘beleza’ na alma ou espírito humano foi ocupado por um apelo nacionalista que produziu suas próprias expressões escolares em termos de ‘música nacional’ e ‘sentimento patriótico’.
Ao final da década de 1920, a música estava presente no currículo da escola primária paranaense somente para as escolas que funcionavam sob a forma de grupos escolares, com a finalidade de contribuir para a formação de corpos fortes e saudáveis e de consciências capazes de identificar os deveres cívicos para com a pátria. Em relação ao ensino da música na escola, pode-se afirmar que a finalidade de promover a identificação com a pátria ocupou o lugar que em formulações anteriores era ocupado pela identificação com o ‘Belo’. Além disso, outras formas de se desenvolver a educação estética que, em determinados momentos foram propostas para as escolas paranaenses - como a jardinagem e a horticultura, a pintura, a poesia e a literatura, a escultura e a marchetaria, entre outras - foram esquecidas ou desfiguradas nas suas finalidades. Pode-se com isso dizer que um sentido utilitário atuou fortemente sobre a educação estética e dirigiu muitas das qualidades pedagógicas que nela eram localizadas para a dimensão da transformação e conformação dos costumes.