Introdução
Ao folhear a revista mensal ilustrada Folha da Serra, publicada entre 1931 a 1940, na cidade de Campo Grande, Mato Grosso uno1, chamou-nos a atenção a quantidade de reportagens com o tema educação sexual em diferentes edições. Considerando o gênero impressona revista como umperiódico de variedades (Luca, 1999), e que a Folha da Serra foi produzida com circulação ampla em todo aquele rincão nacional, com o objetivo enfático de contribuir com a “[...] moderníssima parcela de boa vontade para o progresso e engrandecimento [...] de Mato Grosso” (Editorial, 1931, p. 13), inquirimos sobre a relevância dos conteúdos ligados à educação sexual para ajudar a alcançar o objetivo proposto pelo referido impresso.
O levantamento dos artigos sobre educação sexual na Folha da Serra nos permitiu interrogar sobre como tais conteúdos circularam pelo periódico entre novembro de 1933 a agosto de 1935, totalizando 21 títulos sobre o tema2. O que motivou a publicação de tal temática? Qual era o conteúdo veiculado nesses artigos? Quem escrevia tais matérias? Como foi a recepção de tais assuntos pelos leitores? Considerando os títulos que se referiam à educação sexual para as crianças e adolescentes, bem como a preocupação com os ‘falsos pedagogos da sexualidade’ e a educação sexual nas escolas, havia a intenção de criar uma matéria escolar com tal abordagem? Tratou-se de uma problemática local/nacional? Nessa primeira etapa da ‘operação historiográfica’, como define Certeau (2011), para além dos artigos que tratavam explicitamente do assunto, localizamos outros que, indiretamente, abordavam a educação sexual.
Pautamos a análise das reportagens selecionadas na Folha da Serra, com conteúdos de educação sexual,pela perspectiva da história da educação dos sentidos e das sensibilidades, atentos às “[...] relações entre cultura e natureza [...]”, à “[...] dimensão material da vida [...]” e à “[...] corporalidade ao longo da história [...]”, como afirma Taborda de Oliveira (2018, p. 119), compreendendo que os artigos prescritos objetivavam afetar os sentidos, estabelecendo modos ‘certos’ de pensar e agir em relação ao sexo e àeducação sexual.
A análise dos artigos em questão permitiu constatar que a discussão sobre educação sexual presente nas páginas da Folha da Serra atendia aos reclames em âmbito nacional, da abertura da discussão sobre sexologia3, mais especificamente no Rio de Janeiro, com o médico José de Oliveira Pereira de Albuquerque, que assina grande parte das matérias veiculadas no referido periódico. Nossa hipótese é a de que essa revista, com seu objetivo principal de contribuir para a modernização de Mato Grosso, considerava importante atentar-se aos temas em voga em âmbito nacional, como a campanha pela educação sexual, conclamada na capital federal, apresentado como tema urgente e necessário ao fortalecimento da nação brasileira, de forma enérgica e coesa, inserindo novos valores e novas sensibilidades sobre o tema.
Albuquerque criou, em julho de 1933, no Rio de Janeiro, uma entidade filantrópica denominada ‘Círculo Brasileiro de Educação Sexual’[CBES], com o intuito de promover uma reforma sobre a cultura sexual do povo brasileiro, com campanhas no rádio, jornais, revistas, panfletos, boletins e palestras4, em prol da modernização da cultura nacional, como afirmam Reis (2006) e Oliveira (2012). Para Fontoura (2018), no entanto, os atributos de ‘impressionante penetração midiática’ e de ‘racionalidade modernizante’ conferidos a Albuquerque e ao CBES, apresentados inicialmente por Carrara (1996) e Vidal (1998), devem ser relativizados.
Com o objetivo de “[...] melhor coordenar esta propaganda [...]”, o CBES “[...] concebeu a organização de um ‘Circuito Jornalístico’ [...]” para auxiliar na propagação da educação sexual, “[...] levando aos pontos mais distantes do país o sopro animador de uma mentalidade nova” (Albuquerque, 1933a, p. 8, grifo do autor). Acreditamos ser aí que entra a revista Folha da Serra, que recebeu e publicou os artigos enviados pelo CBES, entre 1933 a 1935. Em publicação no jornal Correio Oficial, em Goiás, de dezembro de 1933, encontramos uma carta do CBES convidando o jornal a fazer parte do seu recém-criado ‘Circuito Jornalístico’ e explicando sobre a gratuidade e a isenção de compromisso com a continuidade das publicações.
[...] tivemos a boa lembrança de incluí-lo no nosso ‘Circuito Jornalístico’, de que, estamos certos, não se negará a fazer parte. Desnecessário é lhe dizer que nenhuma despeza tal iniciativa acarretará ao seu jornal, bem como nenhum compromisso assumirá com nosso Círculo, lhe sendo facultado pleno direito, de uma vez ingressado no nosso ‘Circuito Jornalístico’, dele se desligar quando bem lhe aprouver. Aos jornais que constituírem o nosso ‘Circuito Jornalístico’, remeteremos quinzenalmente um artigo [...]. (Correio Oficial de Goiáz, 1933, p. 8 apud Diniz, 2012, p.7, grifo do autor).
Acreditamos que a mesma carta foi remetida pelo CBES às distintas formas de imprensa existentes no país à época, incluindo a Folha da Serra. O circuito jornalístico propagava o Boletim de Educação Sexual, escrito pelo CBES, com circulação nacional entre 1933 a 1939. A revista Folha da Serra de Campo Grande publicou chamadas sobre o referido Boletim, como a que descrevemos a seguir:
BOLETIM DE EDUCAÇAO SEXUAL
Está em circulação o número de Maio do ‘Boletim de Educação Sexual’, orgão oficial do Círculo Brasileiro de Educação Sexual, que tem como seu diretor-redator-chefe o dr. José de Albuquerque.
Destina-se este boletim a propagar entre o povo, os conhecimentos indispensáveis de sexologia, pelo que está sendo distribuído gratuitamente e remetido a todos os pontos do país, devendo os que se interessarem em receber o presente número, enviar seus endereços para sua redação, á rua 7 de setembro n. 207 - 1.o andar - Rio de Janeiro (Boletim de educação sexual, 1934, p. 11, grifo do autor)5.
A Folha da Serra também divulgou notas a respeito do ‘Posto Gratuito para Conselhos Sexuais’, dirigido pelo Dr. Cunha Ferreira e “[...] destinado a fornecer aos indivíduos de ambos os sexos, conselhos sobre higiene e fisiologia sexual” (Posto Gratuito para Conselhos Sexuais, 1934, p. 29). As notasparecemevidenciar a necessidade de a Folha da Serra dar a conhecer à população mato-grossense os assuntos modernos em circulação na capital federal, considerada como um modelo de cidade a ser seguido.
Considerando a gratuidade de todas as atividades propostas pelo CBES, tais como o Boletim e o Posto de Conselhos Sexuais, e que se tratava de uma entidade filantrópica, indagamos sobre quem arcava com os custos dessas atividades. Fontoura (2018) afirma que o CBES não possuía estrutura física, de pessoal ou financeira para arcar com os custos de tiragem e distribuição do seu material de campanha. Ele cita Leonardo Malcher (2007, p. 131-132), que por sua vez afirma que “[...] havia uma relação com colaboradores, filiados que de certa forma deviam contribuir com as iniciativas do Círculo”6.
Outra observação que fazemos diz respeito à eficiência logística de correspondência entre o periódico Folha da Serra e o CBES, considerando que, apesar da distância geográfica entre Campo Grande e o Rio de Janeiro, e da dificuldade de acesso à informação, poucos meses depois de os acontecimentos surgirem na capital federal, eram noticiados no sul de Mato Grosso pela Folha da Serra. Quiçá a ferrovia Noroeste do Brasil, criada em 19147, tenha contribuído.
Campo Grande, que em 1977 se tornariaoficialmente a capital do então criado estado de Mato Grosso do Sul, ampliava na década de 1930 sua campanha pela divisão de Mato Grosso, que àquela época tinha Cuiabá, ao norte do estado, como capital. Era visível na imprensa certa rivalidade entre as duas cidades8. Campo Grande, a ‘rival invencível’ contava com uma ‘população de intelectuais’ e por isso os ‘livros’foramapresentados como um ‘comercio redondo na terra’ e o ‘ensino’ como uma ‘indústria disputada’ (Altiva Serrana, 1933).
Com o intuito de remover o estigma de ‘bárbaros’, a revista Folha da Serra parece ter contribuído abertamente para promover o sul de Mato Grosso, em especial o município de Campo Grande, como lugar moderno, sinônimo de laborioso progresso. E para contribuir com essa nova representação, os conteúdos veiculados no círculo jornalístico do CBES foram de grande valia, apresentando a educação sexual como um tema polêmico, mas ao mesmo tempo, simbolizando o que havia de mais avançado em termos educacionais, descolado de preconceitos, atrelado à ciência e às novidades advindas do Rio de Janeiro.
A partir da cultura social em que os artigos sobre educação sexual foram publicados na Revista Folha da Serra, a análise que apresentamos a seguir está baseada em duas perspectivas, caras às discussões propostas pelo CBES. A primeira pela relação que a educação sexual estabeleceu entre moralidade e ciência; e a segunda sobre os dilemas da educação sexual como tema no lar e na escola. Tais questões permitiramlevantar as perguntas que respondemos a seguir: 1. Seria a educação sexual ciência ou ‘imoralidade’?; 2. Deveria a educação sexual ser uma disciplina escolar?
Seria a educação sexual ciência ou ‘imoralidade’?
Começamos a gritar aos quatro ventos que sexualidade não é imoralidade. Isto, constituiu um verdadeiro escândalo e contra nós se insurgiu a grande massa de nosso povo.
[...] é com a maior satisfação, que vemos, muitos daqueles que a principio se insurgiram contra nossos propósitos, formando hoje a nosso lado, em nossas fileiras!
[...]
A despeito da heterogeneidade dos elementos que o compõe, o tribunal da opinião pública, ainda é, depois do tribunal da nossa consciência, o nosso melhor juiz! (Albuquerque, 1934a, p. 30).
Os discursos de Albuquerque, proferidos em prol da educação sexual nas páginas da Folha da Serra9, apresentavam o tema com caráter de cientificidade, como uma reforma que pretendia substituir ‘as normas empíricas’ por “[...] normas científicas, calcadas nos postulados da biologia [...]”, prescrevendo uma nova interpretação sobre os assuntos de ordem sexual. Ainda assim, era forte e constante a resistência por parte de diversas categorias sociais, alegando a ‘imoralidade’ do assunto, como se pode perceber no desabafo descrito acima (Albuquerque, 1934a, p. 30).
José de Albuquerque alertava - ao apresentar o CBES aos editores de periódicos de todo o país e oferecer gratuitamente a publicação dos conteúdos do Boletim de Educação Sexual -, que “[...] estes assuntos requerem, quando tratado pela imprensa, muito tato e delicadeza, para que não ofendam nem de longe a falsa pudicícia de seus leitores [...]”, razão pela qual “[...] não se deve descer a detalhes técnicos, nem a nomenclatura de órgãos e funções, o que prejudicaria de certa forma a campanha, arregimentando de início uma avalanche de descontentes” (Albuquerque,1933a, p. 8). Essa afirmação exibe as estratégiasda campanha dirigida por Albuquerque, atento às ‘delicadezas’ que o tema requer, propondo a inclusão gradativa da educação sexual na sociedade, para convencer o ‘tribunal da opinião pública’ sobre novas sensibilidades e novos comportamentos em tornodas questões sexuais. Albuquerque parecia deveras preocupado com a opinião pública, consideradapor ele como seu segundo ‘melhor juiz’. Após afirmar, em 1933, que “[...] para muita gente, sexualidade é sinônimo de imoralidade” (Albuquerque, 1933c, p. 9), em 1934 ele acreditava ter vencido o preconceito e já contar com o apoio da opinião pública, tendo criado um ambiente capaz de permitir “[...] o livre curso das verdades sexuais” (Albuquerque,1934a, p. 30).
De forma entusiástica, José Firmo escreve na Folha da Serra sobre a abertura de espaço ao tema da educação sexual, com a inclusão de novos sentidos e novas sensibilidades propostos pelo CBES. Firmo expõe que “[...] ha apenas alguns mezesatraz [...] o ambiente, si não era absolutamente hostil, era, pelo menos, indiferente á idéa”. Antes do CBES “[...] ninguém tinha a coragem de pronunciar com o mesmo timbre de voz, com que entabolava as suas palestras habituais, nada que se referisse ao sexo”. Entretanto, o início dos anos 1930 passava por vários ‘avanços’ nesse quesito: “Vencemos todas as etapas iniciais, destruindo as sentenças pessimistas dos que previam o nosso fracasso, agarrados às superstições” (Firmo,1933, p. 7).
Contudo, apesar dos discursos de satisfação pela abertura social em relação à temática, após algumas publicações sobre educação sexual na Folha da Serra, o jornalista e polemista cuiabano, José Nonato, faz uma crítica enfática à revista, indagando porque seu editor, Aguinaldo Trouy, permitiu que o tema da sexualidade - “[...] praga transplantada da Europa e da América do Norte, dessas sociedades em franca dissolução [...]” - tivesse espaço em seu periódico, com excertos “[...]que ferem a sensibilidade das nossas patrícias, e que tem por fim materialisal-as, animalisal-as, embrutecel-as”:
Deixemos a sós o Dr. José de Albuquerque e os seus companheiros empenhados nessa obra má de corrupção da moral social brasileira, investindo, assim, de lança em riste contra o pudor, couraça natural com que a Providencia preserva a mulher da prostituição. Não; não auxiliemos esses inovadores, operários da corrupção da moralidade, base da família, alicerce da Patria (Nonato,1934, p. 8).
Para José Nonato, qualquer arte, ciência ou filosofia que “[...] não tem por escopo o aperfeiçoamento moral da espécie, não é arte, não é ciência, não é filosofia, não é nada de valor [...]”, mas são, ao revés, “[...] concepções arbitrárias geradas em cérebros mórbidos, trabalhados pelo pecado [...]”, afirma o jornalista, ‘ferindo as sensibilidades’ e corrompendo a moral estabelecida (Nonato, 1934, p. 8).
A ‘franqueza da censura’, apresentada na carta de Nonato, é publicada na íntegra, segundo o editor Aguinaldo Trouy, o qual comenta que: ‘democraticamente’, tem aparecido na revista assuntos que, às vezes, ‘se contrastam e contradizem’. A Folha da Serra tem publicado, “[...] sem pendores alguns de caráter politico ou religioso [...]”, diversos artigos do Círculo Brasileiro de Educação Sexual, com assuntos de “[...] caráter cientifico, e que vem sendo objeto de acurado estudo por parte da ciência médica moderna [...]”, mas que vem “[...] chocar-se contra os preceitos da moral e também da religião, irredutíveis em certos pontos”(Albuquerque,1934b, p. 8), afirma o editor, evidenciando as limitações na construção de uma sensibilidade nova em torno do sexo e da sexualidade.
Segundo Trouy, a revista mensal ilustrada Folha da Serra
[...] honra, sobremaneira, a arte gráfica neste ainda bem pouco conhecido ‘rincão nacional’.
E não é só isso, revela, ainda, que aqui neste abençoado Estado, não somente se cuida de colher mate, criar bois, catar pepitas, arrancar do seio da terra as gemas preciosas e outros trabalhos visando benefícios materiais, mas, também do cultivo das letras, sendo disto testemunhas as suas brilhantes páginas (Albuquerque,1934b, p. 8, grifo nosso).
Voltando à acusação de Nonato, no que toca ao materialismo da educação sexual, cabe notar que em setembro de 1934 a Folha da Serra publica um artigo de Albuquerque intitulado: ‘Educação sexual não é materialismo’. O médico afirma ser um erro acreditar que “[...] educação sexual seja uma tarefa inspirada em requintado materialismo”. Para o médico, “[...] o donjuanismo é símbolo de inferioridade masculina e a ‘coquetterie’ de inferioridade feminina”. Segundo ele, “[...] em consequência da falta de educação sexual, é que pululam os Don Juans e as ‘coquettes’, criaturas que apenas vêem a vida pelo lado da satisfação material de seu instinto sexual” (Albuquerque,1934c, p. 7, grifo do autor). Nessa afirmação, Albuquerque condena os gestos de sedução e ‘paquera’ por parte de homens e mulheres, prescrevendo condutas consideradas mais adequadas. Apesar de propor uma ‘nova moral’ para a educação sexual, asensualidade foi uma atitude denunciada pelo referido médico.
No artigo ‘A dança’, de autoria de Cecílio Rocha, o ‘baile’ é apresentado pelo autor como uma escola ‘viciada ou não, de sexualismo’. Para Rocha “[...] o baile é o ponto principal em que se converge a juventude moderna desejosa de maiores sensações sexuais” (Rocha, 1934, p. 18). Ao afirmar que “[...] lutamos pelo saneamento físico e moral das raças, sobrepondo a dogmas religiosos preceitos científicos [...]”, o autor objetiva, numa perspectiva higienista, dar maior ênfase aos “[...] ensinamentos sexuais, evitando que certos indivíduos consumassem atos impróprios asua constituição físico-moral”. Para Rocha, o controle do corpo, durante o gesto da dança, deveria ser explicado à juventude, considerando os perigos do ‘sexualismo’ e do ‘instinto sexual’.
A matéria intitulada ‘A voz do sexo’ ressaltava a importância de se escutar o ‘instinto sexual’ não como uma ‘fera desenfreada e indômita’, como defendia o discurso popular, mas como uma lei da natureza, pertencente, portanto, ao campo da biologia. Tratava-se de uma nova prescrição de sentido sobre o corpo do indivíduo, pautada na ‘moral científica’, nos aspectos ‘naturais’ do corpo físico. “Respeitem-se as leis biológicas que regem a sexualidade e então em vez do rugir da féra enraivecida, se ouvirá na plenitude de sua serenidade, pacífica e amena, a voz do sexo!” (Albuquerque, 1934e, p. 37).
Si se quizerimpôr ao homem certas normas sexuais empíricas, dictadas pela sociedade, mas contrarias á natureza, o seu instincto sexual, de sereno e plácido que é, quando respeitadas as determinações biológicas, - tal como a féra, serena em sua jaula a quem se irrita - lenvanta-se impetuoso, e impetuoso tenta investir, contra quem o procura contrariar.
Por conseguinte, a culpa está no homem que ‘provoca’, e não no sexo que ‘reage’ (Albuquerque, 1934e, p. 37, grifo do autor).
Significa, portanto, uma tentativa de inserir um novo sentido à corporalidade, ao propor que o ‘instinto sexual’ não devia ser negado, por tratar-se da biologia, da natureza do homem, devendo ser racionalmente controlado e respeitado, ao contrário do que professava a moral cristã. Tais explicações vão ao encontro do objetivo maior do CBES, de reeducar a população com novos valores sexuais, alcançando sensibilidades em prol da higienização e do combate às enfermidades, desligando-se plenamente do preconceito e do desconhecimento da biologia do sexo, ou da sexologia.
Essas tentativas de educação das sensibilidades, a partir de novos sentidos, propondo novos comportamentos em torno do sexo e da sexualidade, pressupõem uma nova relação com o corpo físico, em especial com os órgãos sexuais. A ‘nova moral’, proposta por Albuquerque, estabelece como um erro àabstenção da relação sexual como forma de garantir ‘graças sobrenaturais’ pela negação do prazer. Ao contrário, estabelece que os órgãos sexuais, assim como os demais órgãos do corpo humano, são necessários “[...] à conservação da saúde e ao equilíbrio geral do organismo” (Stephanou, 2000, p. 37). A ênfase é dada à fisiologia do corpo. Porém, em nenhum momento a ‘nova moral’ condena a religião, mas sim a ‘velha moral’, baseada em preconceitos religiosos. Afinal, como afirma Fontoura (2018, p. 687), para Albuquerque a educação sexual deveria ser discutida para que a reprodução, “[...] verdadeira função do sexo [...]”, pudesse ser atingida. Para Albuquerque, uma educação sexual científica deveria favorecer a biologia própria da criação.
Sobre a sexologia, lembremos que entre o final do século XIX e início do XX, houve uma ampliação do discurso sobre o sexo no Brasil (Russo & Carrara, 2002; Oliveira, 2012), com ênfase para a década de 1930, quando surgem os primeiros profissionais e grupos voltados à institucionalização do estudo da sexologia, como o CBES. Nesse contexto, a sexologia e a psicanálise são denominadas as áreas por excelência para tratar o tema. No entanto, como lembram Russo e Carrara (2002), havia relações conflituosas entre esses dois campos do saber, refletidos no mercado editorial, resultado da resistência às publicações sobre educação sexual e sexologia, em contraposição àabertura para as produções científicas que versavam sobre a psicanálise.
No que tange às publicações com o tema da sexualidade, o médico José de Albuquerque critica certas publicações que dizem referir-se à sexologia:
Muitos dos que se encontram enchendo as montras das livrarias, embora façam suppôr serem livros que se occupem dos mais elevados e puros problemas da sexualidade, entretanto não passam, de abominaceis repositórios da mais baixa e asquerosa imoralidade, isto é, livros que exploram o que no indivíduo, possa haver de sexual, apenas pelo lado da libidinagem e da sensualidade (Albuquerque, 1934d, p. 37).
A libidinagem e a sensualidade são mais uma vez julgadas como um problema moral. José de Albuquerque reclama dos “[...] falsos pedagogos da sexualidade [...]”, que, segundo ele, “[...] só querem da sexualidade a recompensa material, o lucro monetário [...]”, sendo “[...] ofensivos á moralidade publica” (Albuquerque, 1934f, p. 10). Tratava-se, segundo ele, de ‘execrados autores’ de livros que se dizem de sexologia. Segundo Albuquerque, muitos livros que se apresentavam como de sexologia, só o eram no título. Tais livros “[...] prestam um grande desserviço á causa publica [...]”, contribuindo para dar aos seus leitores, “[...] de pouca cultura, é claro, a impressão de que, sexualidade seja sinônimo de imoralidade” (Albuquerque, 1934e, p. 37).
É preciso que uma reacção se faça sentir neste particular, para que esta forma, dentre as muitas pelas quaes a sexualidade já é torpemente explorada, não continue a servir de repasto, em que se cevam autores e editores, em detrimento da verdadeira sciencia e do bem publico (Albuquerque, 1934e, p. 37).
Respondendo à questão sobre se educação sexual é ciência ou ‘imoralidade’, a resposta é, depende. Para Albuquerque o tema do sexo é ou não imoral, dependendo da forma como é abordado. O próprio médico confirma que, dependendo de como o assunto é apresentado, aumenta a barreira “[...] já não pequena, que tem até hoje tornado inaccessível o ensino da educação sexual á mocidade”. Segundo os preceitos do CBES para tratar da educação sexual, a função sexual não é imoral, mas, como todas as demais funções do corpo humano, podem ser imoralizadas, se desviadas de suas “[...] verdadeiras finalidades” (Albuquerque, 1934e, p. 37).
A condenação que Albuquerque faz a ‘certas publicações’ permite observar o crescimento do acesso à leitura, pela produção e circulação de livros e periódicos, com um mercado editorial em ascensão no Brasil a partir do final do século XIX, contribuindo para disseminar novas ideias, valores, hábitos, como os da ‘ciência sexual’. Não temos dimensão da capacidade de circulação da Folha da Serra, que se denominava uma revista de circulação internacional (Passone-Rodrigues, Moreira 2021)10, mas ela certamente contribuiu para disseminar tais conteúdos que buscaram romper com a moral religiosa - a qualenxergava imoralidade na prática da educação sexual -, apresentando o sexo numa perspectiva científica. Pelo visto, parece ter sido o único periódico, em Mato Grosso dos anos 1930, a aceitar publicar os conteúdos do Boletim de Educação Sexual11.
Ao prescrever novas formas de pensar, agir e sentir em torno das relações sexuais, com discursos biologizantes sobre o funcionamento do corpo humano, tentando escapar do rótulo de ‘imoralidade’ imposto pela ‘velha moral religiosa’, Albuquerque e o CBES criado por ele, se inserem nas representações conflitantes na década de 1930 sobre corpo/sexo/sexualidade, no intercâmbio das dimensões físico/materiais e simbólico/culturais da educação dos sentidos e das sensibilidades.
Deveria a educação sexual, ser uma disciplina escolar?
Para responder a tal pergunta, iniciamos com duas afirmações de Albuquerque:
[...] educação sexual, como disciplina escolar? Não falemos nisso, pois algum diretor de escola, mais esclarecido, nos ouvindo, será capaz de querer anexar ao programa de ensino do curso, mais essa disciplina, e, ai dele, poderá ser forçado, no dia seguinte, a fechar definitivamente o estabelecimento, por não permitirem os pais dos alunos que seus filhos, tornem a travessar os humbrais daquela casa, onde os mandaram ‘puros’ e os querem devolver ‘impuros e corrompidos’ (Albuquerque, 1933c, p. 9, grifo do autor).
Nas escolas, não há necessidade de uma cadeira de educação sexual, o que cumpre é que os mestres não criem na mentalidade infantil, o conceito de que a função sexual é imoral, envolvendo-a num halo de mysterio, nas disciplinas em que o assunto naturalmente se apresenta. (Albuquerque, 1934h, p. 28).
Na primeira citação, o médico José de Albuquerque ironiza, ao tratar da educação escolar como disciplina, e concluique “[...] esta infelizmente, é a mentalidade de nosso povo, no nosso tempo” (Albuquerque, 1933c, p. 9). Na segunda citação, Albuquerque reforça não ser necessária uma ‘cadeira de educação sexual’ na escola. Na matéria ‘Educação sexual nas escolas’, edição número 39, ano 1935, publicada na Folha da Serra, Albuquerque levanta novamente a questão sobre a educação sexual como disciplina escolar eratifica que, “[...] não há necessidade de se criar uma cadeira de educação sexual, como se pretendeu fazer em alguns paízes, e como se procurou levar a efeito ultimamente no México [...]”, o que levou à demissão do ministro da Educação daquele país12. O médico é ainda mais entusiasta aoafirmar que “[...] somente os espíritos pouco esclarecidos a respeito de sexologia, podem ser partidários, da instituição nas escolas de uma cadeira especial de educação sexual”. Apesar de ser favorável àinclusão de assuntos que propiciem a educação sexual na sala de aula, Albuquerque não é favorável àcriação de uma disciplina específica para atender a esse fim13.
Felicio (2011, p. 3) explica queAlbuquerque, receoso àcrítica popular contra o CBES, traçou uma justificativa para a educação sexual, baseada em dez pontos, dentre elas, afirma categoricamente que “5 - A educação sexual das crianças deve obedecer exclusivamente ao fator ―oportunidade, quer no lar, quer na escola; [...] 7 - Nas escolas, não há necessidade de uma cadeira de educação sexual [...]”.
Albuquerque afirmava ser suficiente “[...] que o professor de história natural, ao ensinar aos alunos a constituição morfológica do corpo humano, não salte por cima dos órgãos sexuais masculinos e femininos, silenciando a respeito dos mesmos”. E, assim como tratou dos ‘demais órgãos e aparelhos’ do corpo humano, deveria tratar os órgãos sexuais, utilizando-se da terminologia ‘correta’, pois os órgãos sexuais são normalmente conhecidos pelas crianças e até “[...] mesmo pelos adultos, pela nomenclatura da gíria, aprendida das fontes as mais suspeitas” (Albuquerque, 1935a, p. 58). Para o médico, a nominação ‘adequada’ das partes íntimas do corpo humano contribuiria para dar à educação sexual um sentido mais rigoroso.
No entanto, ao tratar do funcionamento do organismo, o professor de história natural devia apresentar o tema “[...] em linhas gerais, porque a mentalidade do aluno não está preparada a aprender detalhes [...]”, sendo necessário “[...] dar lhes noções sucintas de como funcionavam os órgãos sexuais”. Afinal “[...] nem tanto ao mar, nem tanto á terra. Nem o silencio sobre os fatos da sexualidade, nem o exagero de se querer dar-lhes uma situação de destaque no seio das disciplinas escolares” (Albuquerque, 1935a, p. 58). Albuquerque expõe que, na cadeira de higiene geral, “[...] que deveria existir em todas as escolas [...]”, deve-se ensinar, “[...] ao lado da higiene da respiração, da higiene alimentar, da higiene do vestuário, da higiene mental etc., a higiene sexual” (Albuquerque, 1935a, p. 58), completando, de modo suficiente, os pontos sobre a educação sexual, estabelecendo assim a educação de novos sentidos e sensibilidades sobre a sexualidade no âmbito da escola.
O conteúdo escolar sobrehigiene sexual, portanto, deveria cumprir seu caráter funcional, utilitário. Albuquerque explica que a higiene sexual vai além de profilaxia antivenérea, e não se restringe ao período da puberdade até o desaparecimento da atividade genital: “Há a educação sexual da criança, a higiene sexual do adulto, e a educação do velho [...]”, e os marcos delimitadores dessas fases “[...] são o aparecimento da puberdade e o aparecimento do climatério [...]”, não devendo ser marcados por datas fixas, “[...] visto se manifestarem em idades diferentes, segundos os sexos e, para o mesmo sexo, segundo os indivíduos” (Albuquerque, 1933b, p. 29). E ao responder sobre a quem compete a educação sexual, Albuquerqueexplica que ela “[...] deve ser iniciada pelos paes; continuada pelos mestres; e terminada pelos médicos” (Albuquerque, 1933b, p. 29), privilegiando a cientificidade em torno do assunto. Tais prescrições propõem novas sensibilidades em torno da sexualidade, atentas às diferentes fases biológicas do corpo humano, estabelecendo ações educativas por parte de pais, professores e médicos.
A resistência à educação sexual foi apresentada com argumentos religiosos, afirmando que tratar de sexo seria um atentado ao pudor, uma imoralidade. Para tal argumento, Albuquerque afirmava, como destacado na Folha da Serra, que “A educação sexual não atenta contra a moral de religião alguma, porque se funda nas verdades dos factos scientificos, que as próprias religiões ensinam a cultuar, com a sua advertência: ‘Não mentir’” (Albuquerque, 1933b, p. 29, grifo do autor). A educação sexual, portanto, consiste em dizer às crianças e adolescentes a verdade científica, seja no lar ou na escola, mantendo, como se observa, a conformidade com a moral religiosa. Albuquerque não se afasta, portanto, dos códigos morais já estabelecidos, mas os utiliza, transformando-os em instrumentos legítimos de convencimento. Na construção dessa nova sensibilidade em torno da sexualidade, pelo discurso científico, os saberes médicos passam a estabelecer o que é certo ou errado, moral ou imoral, propondo a interiorização de novos sentidosem relação àsexualidade, criando uma ‘nova moral’ de ordem e controle, que não se afasta aos anseios das instituições reguladoras da sociedade da época, o Estado e a igreja. Trata-se, na perspectiva da biopolítica (Foucault, 2008), da construção de novas verdades sobre o sexo, criando uma nova chancela de autoridade sobre o indivíduo e a população, por meio de verdades legitimadas pelo saber médico, dirigidas a ouvidos e situações autorizadas.
Os discursos em prol da ciência e da ‘nova moral’, estabelecidos pelo CBES, foram incorporados pelos médicos mato-grossenses. Exemplo disso é o texto do médico Dr. Peri Alves Campos, redator da revista Folha da Serra de 1933 a 1940, sobre ‘Como iniciar a educação do bebê’. O texto resulta de uma palestra ministrada por ele em Campo Grande, como parte da série de ‘palestras sobre a criança’ organizada pela Sociedade da Biblioteca de Campo Grande14. No texto, o médico enaltece a psicanálise, a eugenia e a pedagogia, “[...] irmanadas na obra de libertação espiritual e moral do homem” (Campos, 1935, p. 11). Quanto aos novos preceitos para a educação do bebê, o médico campo-grandense destacava o perigo de dar carinho à criança uma vez que “[...] o organismo infantil não reclama nossos beijos, nem nossos abraços [...] tal proceder é supremamente criminoso porque despertando as crianças para a vida sexual torna-as nervosas, irritadas e preparadas para enormes sofrimentos posteriores”. Cabe aos pais controlar, pela observação atenta e inteligente, os hábitos e emoções das crianças, “[...] afim de lograrmos educa-las cientificamente”. E sempre que os pais não souberem como tratar algum problema da criança, dessa natureza, “[...] deverão procurar um médico que lhes poderá ensinar como proceder” (Campos, 1935, p. 11).O afeto não poderia ser corporal, uma vez que o contato físico despertaria para a vida sexual. Em consonância com a campanha do CBES, Campos prescrevia, com argumento de autoridade médica, novas atitudes para os pais na educação infantil, baseada no controle dos corpos, alinhando dimensões, tanto materiais como simbólicas, em seus argumentos.
A segunda observação sobre a palestra de Campos diz respeito ao incentivo da presença do médico, como nosso sujeito social na educação de novos sentidos e sensibilidades, propondo novas formas de pensar, sentir e agir na educação dos filhos. Sobre a imposição da figura do médico à família, Costa (1999, p. 77) afirma que foi “[...] uma das mais importantes conquistas do movimento higienista”. Fazendo-se adotar por esta instituição, “[...] o médico, combatia o desprestigio social de que era vítima e produzia uma nova fonte de benefícios econômicos”. E aos poucos, como afirma o autor, “[...] o confessor e o filho-padre foram sendo substituídos por essa figura carinhosa e firme, doce e tirânica, o médico da família” (Costa, 1999, p. 77).
No que diz respeito à educação sexual da criança, o médico Fernando do Valle reforça a importância dos fatores ‘verdade e oportunidade’, ao afirmar que “Responder veridicamente, á altura da mentalidade infantil, as perguntas que os filhos formularem sobre as cousas do sexo, dis em que consiste a educação sexual da criança, pelos paes” (Valle, 1934, p. 8). Segundo Albuquerque, “[...] a criança que está habituada a ver sempre explicada da mesma forma por todas as pessoas, o porque do aeroplano voar; o porque do automóvel andar sem ser puxado por cavalo; o porque do telefone transmitir a voz á distância; etc. [...]”, não se conforma com a “[...] disparidade de respostas que lhe dão á pergunta relativa ao nascimento do irmão e por isso conclue, que lhe querem encobrir a verdade a este respeito e que a estão enganando” (Albuquerque, 1934a, p. 27). As novas sensibilidades previstas para educação sexual da criança previam, portanto, a ‘verdade sobre a biologia do sexo’, aproveitando a curiosidade infantil.
“Depois do individuo attingir a puberdade [...]”, o que lhe convém “[...] são iniciações claras e completas, ministrada por ‘medicos e medicas’, sobre tudo que diga respeito á sua sexualidade, para que se não venha a tornar victima inconsciente, das perversões sexuaes e das doenças venéreas” (Albuquerque, 1934h, p. 46, grifo nosso). A distinção entre médicos e médicas induz a pensar que os médicos atenderiam os meninos, e as médicas, as meninas. Soma-se a este argumento o fato de que nesse período a coeducação dos sexos estava em disputa entre educadores católicos e liberais. O Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova, publicado em 1932, entre seus lemas gerais, defendia a laicidade, a gratuidade, a obrigatoriedade e a ‘coeducação’. (Manifesto..., 1932). Mas como lembra Almeida (2006, p. 83), “[...] o sistema coeducativo, ao pregar ensino igual para ambos os sexos, se confrontaria com os ditames católicos e com a natureza do povo brasileiro, que ainda considerava as questões morais superiores aos apelos da modernidade”15.
Em suas publicações, Albuquerque refere-se à igualdade dos sexos, afirmando que a educação sexual deve ser dada tanto para homens quanto para mulheres, e que a expressão ‘sexo frágil’ é ‘deseducativa’, e suas consequências, ‘lastimáveis e temíveis’:
Erroneo é o conceito de que haja um sexo superior a outro, que haja um sexo destinado a mandar e outro para ser dominado, um que seja forte e outro que seja fraco. O conceito de ‘sexo fraco’ ganhou taes foros de verdade, que esta expressão é tida hoje como equivalente de ‘sexo feminino. O poder deseducativo desta expressão, é enorme, e as consequencias que acarreta na mentalidade daquelles que se habituaram a ouvil-a e réptil-a, são deveras lastimaveis e temiveis. A expressão ‘sexo fraco’, distituida de toda e qualquer senso critico, não formando mesmo sentido, porque divorciada da realidade, não tem feito até hoje senão despertar a competição entre os sexos e desencadear uma luctaaccesa entre a mulher e o homem (Albuquerque, 1935b, p. 36, grifo do autor).
O discurso científico de Albuquerque parece defender que as diferenças entre homens e mulheres eram justificadas biologicamente, sem que houvesse conotação de inferioridade ou superioridade para este ou aquele sexo. No entanto, nãose percebe no discurso de Albuquerque/CBES abertura para tratar da emancipação da mulher ou do direito ao prazer em seus textos. Em conformidade com as normas e bons comportamentos vigentes à época, cabia àmulher a virgindade, enquanto que os homens teriam maiores necessidades sexuais; discurso esse que permanece, pelo menos até os anos 1960 (Rago, 1985) e não foram confrontados por Albuquerque16.
Sobre a educação sexual feminina na revista Folha da Serra, Albuquerque considera um avanço que as moças possam se inteirar de assuntos sobre gravidez, parto e aborto.
As moças já não fogem da companhia das amigas de sua mãe, quando uma delas dá notícia de uma outra amiga que está gravida, teve um parto, sofreu de um aborto, etc., nem as mamães as mandam mais, ‘ver si tem alguém batendo palmas á porta da rua’, quando pretendem cogitar desses assuntos nas suas rodas de amigas. (Albuquerque, 1934g, p. 7, grifo do autor).
Voltando à pergunta sobre se a educação sexual deveria compor uma matéria específica de ensino no contexto escolar, a resposta é, não, não há necessidade. O tema da sexualidade não precisava entrar como disciplina escolar no currículo, bastando constar nas aulas de higiene geral e história natural, de forma moderada, nem negligenciado, nem exagerado. A introdução do tema deveria obedecer exclusivamente ao fator ‘oportunidade’, iniciada pelos pais, continuada pelos mestres nas escolas e terminada pelos médicos. Sobre o período ideal para tratar dos temas da sexualidade, acreditava que as ‘verdades sexuais’ deviam ser ‘reveladas’ gradativamente, desde a infância, porque revelá-las “[...] somente a partir da puberdade, depois de se as haver deturpado na infância, é tão inglória tarefa, quanto o se pretender desentortar o tronco de uma árvore, que propositalmente se entortou” (Albuquerque,1934h, p. 46).
Ao propor a educação sexual como conteúdo, mas não como disciplina escolar específica, o CBES evidencia suas limitações na proposição de novos modelos de práticas em torno da sexualidade de homens e mulheres, no esforço de não romper com as representações sociais vigentessobre as expressividades e potências docorpo humano, no esforço discursivo de conformar as proposições de novos comportamentos ao já estabelecido sócio culturalmentenos anos 1930.
Considerações finais
A publicação de textos sobre educação sexual na revista Folha da Serra, em Campo Grande, Mato Grosso, nos anos 1930 - propondo a substituiçãoda moral religiosa pela moral científica, ao compreender a educação sexual pela perspectiva racional, em conformidade com os discursos proferidos na capital do país -, conferiu ao periódico um aspecto de moderno, em conformidade com seus objetivos, o que responde sobre a relevância da publicação de tais conteúdos, mesmo compreendendo que tratar de sexualidade ou educação sexual por si só não garanta emancipação ou transformação social. A revista incorporou o discurso científico sobre a educação sexual proferido pelo médico Albuquerque, do Rio de Janeiro, com o intuito de demonstrar o ‘progresso e engrandecimento’ daquele rincão nacional, atenta ao que se apresentava de mais moderno nessa discussão.
A Folha da Serra foi palco de relações de forças discursivas sobre a educação sexual, buscando estabelecer novos sentidos e sensibilidades para a sociedade mato-grossense, pela autoridade do discurso médico-científico. Seus leitores acompanharam uma tentativa de impor a ‘verdadeira Moral Sexual’ fundada nos postulados científicos da fisiologia e higiene sexuais, em detrimento da ‘velha moral’, pautada por ‘terríveis grilhões’ que há tempos eram ‘impostos equivocadamente à humanidade’. Desse modo, a partir de diferentes instrumentos discursivos, o CBES buscou enfrentar o enunciado que tratava a sexualidade como imoralidade, criticando o silêncio sobre as questões sexuais, que deveriam ser abordadas numa perspectiva biológica, com base nos códigos da ciência sexual, filiando-se aos preceitos da fisiologia e da higiene, sem romper com os modelos sociais já estabelecidos.
A presente análise permitiu observar a mobilização de discursos na imprensa, por parte do CBES, com o intuito detransformar sensibilidades, afinadas com a educação dos sentidos corporais, bem como de novas práticas pedagógicas para a educação sexual na década de 1930, relacionando elementos da natureza e da cultura. A campanha do CBES evidenciou representações conflitantes sobre os conceitos de corpo, sexo e sexualidade, com discursos médico-científicos de caráter prescritivos, pautados nas dimensões materiais e culturais da vida humana, tendo como eixo norteador as velhas instituições reguladoras da sociedade, mas com uma nova chancela de autoridade sobre os indivíduos.