Introdução
Nas discussões em torno da memória durante a ditadura militar brasileira, o dia 31 de março, data do golpe civil-militar, denominado na época ‘Revolução Democrática de 1964’, passou a representar um acontecimento simbólico, vinculado à implementação de um suposto ‘novo’ regime político nacional e fundamentado no apelo das Forças Armadas ao clamor popular. Mediante uma política intervencionista de Estado, em nome da soberania nacional, foram implementados mecanismos de censura e controle dos direitos democráticos durante todo o período do regime autoritário no Brasil (1964-85). Nesse universo de cerceamento de liberdades, o civismo e o patriotismo foram incorporados como elementos de uma composição simbólica e ritualística da realidade social, difundidos por meio de um grande investimento estatal em um projeto educacional de viés patriótico, estruturado pelas comemorações de datas vinculadas ao Calendário Cívico Nacional. Para demarcar o culto ao civismo, a Educação Moral e Cívica (EMC) foi implementada no currículo escolar como disciplina obrigatória em todos os níveis de ensino do país, a partir do Decreto-Lei nº 869, de 12 de setembro de 1969. Alinhadas com tais práticas cívicas, também estavam as festividades alusivas à ‘efeméride’ de 31 de março, organizadas com a intenção de promover lembranças do acontecimento, que deveria ser divulgado amplamente como fato histórico responsável pela ‘eliminação’ do comunismo, criando um proposital esquecimento do caráter inconstitucional e ilegal da tomada do poder (Ferreira, 2017).
Ao problematizar os desdobramentos de memória envoltos no processo de comemoração desse evento durante a ditadura militar brasileira, questionamos a ação específica de memória empreendida em torno das comemorações do golpe civil-militar de 1964 entre os anos de 1970 e 1971, com especial atenção às peculiaridades contidas nas diferentes formas de lembrar e comemorar o 31 de março como ‘data cívica’. A investigação pressupõe a análise de elementos articulados ao âmbito comemorativo e às circunstâncias pedagógicas vinculadas à disciplina de EMC e às ‘homenagens cívicas’, identificando os princípios que regeram as festas cívicas do 31 de março. Diante dessas questões articuladas à análise da efeméride, o objetivo deste artigo consiste em investigar os discursos e as práticas cívico-patrióticas alusivas ao aniversário do golpe civil-militar, referenciado na época pelos grupos apoiadores do regime como a ‘Revolução Democrática de 1964’, no período entre 1970-1971, marcado pelo governo ditatorial do general Médici. A análise histórica foi pautada na História Política e consiste na identificação dos elementos simbólicos e ritualísticos evocados nas programações festivas e na implementação do 31 de março no Calendário Cívico Nacional.
O corpus documental da pesquisa mobilizou um conjunto de fontes composto por duas tipologias principais: 1) imprensa de circulação nacional, representada pelos periódicos Folha de S. Paulo1 e Jornal do Brasil2, em um recorte que contemplou 182 notícias e manchetes vinculadas à comemoração do 31 de março, entre as datas de 28 de março a 04 de abril de 1970 e 1971; 2) manuais de EMC (Fontoura, 1970b, 1970a; Kelly, 1970; Ávila, 1972), obras de caráter didático e instrucional que circularam em instituições escolares nesse período3.
Os manuais incentivavam as práticas cívico-patrióticas como fundamento para a manutenção dos valores conservadores - ligados à família, à moral e à religião -, “[...] associados à leitura desenvolvimentista de um futuro glorioso, capitalista e ocidental produzido pelo discurso otimista” (Maia, 2014, p. 96), sob a égide da simbologia discursiva de ideais como ordem, tradição e patriotismo. Ancoradas pela tríade anticomunismo, modernização conservadora e nacionalismo autoritário, as “[...] estratégias de conciliação/acomodação incidiram tanto nas políticas modernizadoras quanto nas ações repressivas” (Motta, 2013, p. 21), originando uma cultura política multifacetada. Tais questões teórico-metodológicas evidenciam o caráter plural do conceito de culturas políticas, estreitamente ligado às variáveis históricas e sociais e, portanto, compreendido como um complexo sistema de representações que formulam uma “[...] chave de inteligibilidade” (Berstein, 2009, p. 35) para a interpretação da realidade. Nesse universo, as comemorações de datas cívicas cumprem a função de reviver coletivamente acontecimentos considerados representativos para a identidade e buscam gerar mecanismos de continuidade temporal: do passado a ser rememorado, do presente vivido e do futuro como projeto de sociedade ‘ideal’. Por consequência, os dispositivos de memória acionados fazem “[...] intervir não só a ordenação de vestígios, mas também a releitura” (Le Goff, 2013, p. 388) desses acontecimentos. Considerando que “[...] toda estrutura política cria representações sobre si mesma e procura difundi-la no campo simbólico, como forma de legitimar no imaginário social a sua existência e permanência” (Pacheco, 2008, p. 180), cabe analisar o impacto das comemorações cívico-patrióticas alusivas ao aniversário do golpe civil-militar de 1964, de forma a questionar a circularidade de ideias e a reconstrução de significados atrelados à memorialística de cunho celebrativo em torno do 31 de março, permitindo aprofundar os conhecimentos acerca do estratagema simbólico e discursivo difundido pelos governos autoritários no ambiente comemorativo.
A caracterização do processo de implementação da Educação Moral e Cívica durante a ditadura militar brasileira inicia o debate, com ênfase na discussão sobre os discursos instrucionais que destacavam a importância da prática cívica no cotidiano escolar, por meio das comemorações de datas aportadas no Calendário Cívico Nacional. Questionamos a função simbólica e pedagógica atribuída ao calendário comemorativo e ao processo de implementação do 31 de março na condição de ‘efeméride’ alusiva à denominada ‘Revolução Democrática de 1964’. Na sequência, também são discutidas as peculiaridades delegadas às comemorações do golpe civil-militar, entre os anos de 1970 e 1971, para problematizar os discursos e as práticas cívico-patrióticas contidas nas programações festivas, com ênfase no detalhamento dos elementos ritualísticos dos desfiles e na adesão da juventude nacionalista aos festejos.
‘Educar a juventude no civismo’: pedagogia cívico-patriótica e o 31 de março ordenado pela memória
Instaurado o golpe civil-militar de 1964 e a ditadura que o seguiu, os impulsos contraditórios vinculados à ação autoritária do Estado, adornados pelo discurso de salvação da democracia, mediante a atuação do governo ilegalmente instituído, investiam não apenas na truculência, mas também na legitimação do poder (Reis Filho, 2014). Nesse contexto, a denominada pedagogia cívico-patriótica, radicalizada pelo pensamento conservador e ultranacionalista, constituiu elemento importante no tocante à elaboração de estratégias de aproximação entre civis e militares, buscando “[...] imprimir uma noção mais ampla de pertencimento [...]” e legitimar o regime autoritário a partir da sociabilidade festiva (Filgueiras & Araújo, 2019, p. 47). Indicativo da preocupação com a formação moral e cívica da população durante a ditadura militar, pode ser observado no reestabelecimento da disciplina escolar Educação Moral e Cívica (EMC), própria para tratar das referidas temáticas junto à juventude. Cabia à disciplina promover a recuperação dos ideais cívico-patrióticos a partir da implementação de projetos cívicos mediados por ações comemorativas.
Os estudos recentes sobre o período ditatorial brasileiro têm sido cuidadosos em evitar abordagens que vigoram em lados opostos e dicotômicos, com especial atenção às discussões sobre memória. Ao ressignificar o caráter passado daquilo que se deseja lembrar, os historiadores dedicam-se à análise dos enigmas da ‘presença do ausente na imagem’, em uma luta constante contra a ‘incredulidade e a vontade de esquecer’, e articulam as dimensões verificativas e pragmáticas interligadas ao exercício da memória (Ricoeur, 2018). O tempo presente requer que revisitemos o passado a partir de suas demandas e exigências, portanto, é preciso interrogar-se acerca da relação peculiar entre presente e passado, considerando que a dimensão do presente confere uma ressignificação ao pretérito, em uma relação de circularidade entre as distintas temporalidades. Os usos políticos do passado são um tema fundamental nas lides dos historiadores engajados na interrogação das formas de narrativa histórica e visam à constituição de um “[...] discurso verdadeiro a respeito daquilo que foi subtraído pelo tempo à observação humana” (Hartog & Revel, 2001, p. 13). Nesse sentido, o estudo sistemático de imagens e atores do passado compõe-se como “[...] referências para imaginar o mundo em que se vive” (Hartog & Revel, 2001, p. 13), articulando política e escrita histórica vinculadas às experiências humanas no tempo.
Tais questões remetem à perpetuação de memórias operacionalizadas por meio de mecanismos imbuídos do culto ao civismo e patriotismo, promovidos ao longo da História por intermédio de desfiles cívicos ou datas comemorativas, o que comporta uma problematização detalhada das práticas de implementação de uma pedagogia cívico-patriótica, tanto voltada para um público em geral quanto para a educação de crianças e jovens nos espaços escolares. Como o civismo englobava uma série de questões da ritualística do amor à Pátria, convém lembrar as diferenças e semelhanças que articulam as questões do nacionalismo e do patriotismo à cultura cívica. O nacionalismo costuma ser marcado pela identificação de uma pessoa com uma só nação ou outra unidade, “[...] colocando-a acima do bem e do mal e ignorando qualquer outro dever além daquele que visa promover os seus interesses” (Orwell, 2020, p. 118). Por sua vez, o patriotismo está voltado à devoção a determinado local e a determinado modo de vida, além de ser, por natureza, “[...] defensivo, em termos tanto militares como culturais” (Orwell, 2020, p. 118-119). Cabe, portanto, o questionamento em torno dos elementos simbólicos mobilizados no âmbito do civismo e do patriotismo, a partir da interrogação sobre os usos da memória na composição da cultura cívico-patriótica do período.
De maneira particular, o processo de implementação da Educação Moral e Cívica esteve associado à radicalização política vivida entre os anos de 1968 e 1969, em período de ascensão dos grupos ultranacionalistas e vinculados à direita conservadora. A imposição do Ato Institucional n° 5 (AI-5) foi representativa do recrudescimento do regime autoritário que, além de legitimar e institucionalizar as práticas de censura e perseguição política, fomentou “[...] também iniciativas visando a disputar com a esquerda a mente e o coração dos jovens” (Motta, 2014, p. 184). Nesse contexto, a juventude nacional era considerada um alvo mais suscetível à penetração de ideias ‘subversivas’, tendo em vista a ligação de alguns grupos universitários e secundaristas com atividades de cunho contestatório, fator responsável por adensar as discussões em torno da necessidade de implementação da EMC como disciplina obrigatória (Lima, 2019). Além disso, os pronunciamentos governamentais expressavam uma grande preocupação com a juventude por este grupo representar o ‘futuro’ do Brasil, no sentido de garantir o desenvolvimento nacional aliado à preservação dos ideais vinculados à dita ‘Revolução de 1964’. As comemorações de datas cívicas aportadas no Calendário Cívico Nacional cumpriam papel estratégico nesse universo, contribuindo para a tentativa de disseminação de padrões comportamentais alinhados com os propósitos governamentais, expressos por meio de cerimoniais de caráter enaltecedor.
As iniciativas pedagógicas voltadas aos preceitos morais e cívicos para a juventude foram manifestas durante o governo ditatorial de Médici, a partir da promoção de comemorações vinculadas às datas cívicas nacionais e do incentivo às práticas cívico-patrióticas. Tal questão pode ser observada com base na publicação de um Calendário cívico brasileiro, em 1970, organizado pelo Ministério da Educação e Cultura (MEC) em meio às comemorações da Semana da Pátria e distribuído em todo o país na ocasião da efeméride. Segundo o prefácio da obra, escrito pelo Ministro da Educação à época, o coronel Jarbas Passarinho, o Calendário configurava-se em “[...] uma tentativa honesta e admirável de mostrar aos jovens brasileiros o que eles devem aos homens de ontem”. Sua narrativa exaltava que os agentes de uma ‘guerra revolucionária’ estariam tentando inculcar uma “[...] revisão da História à base de interpretação marxista, para desmerecer os nossos pró-homens, que nos legaram o Brasil Hodierno” (Passarinho..., 1970, p. 4). Nesse mesmo tom, os manuais de EMC4 ressaltavam “[...] uma enorme crise de civismo no Brasil [...]”, responsável por desencadear “[...] tristes extremos, em que certo número de jovens desconhece as datas nacionais, não liga para os nossos heróis, não quer saber dos assuntos da nossa Pátria” (Fontoura, 1970a, p. 8-9). As iniciativas voltadas para a juventude nacionalista eram concebidas a partir do objetivo de “[...] arrancá-la da girandola das ‘contestações vazias’ e situá-la na vanguarda das dedicações sociais” (Reale, 1970, p. 5).
Esses discursos buscavam legitimar e estimular o empreendimento de práticas cívico-patrióticas mediante uma suposta ‘crise do civismo’ que afligia o Brasil, fazendo com que os jovens se afastassem do patriotismo, não cultuassem mais a Pátria nem seus símbolos. O dilema da juventude nacionalista mobilizou várias iniciativas pedagógicas coordenadas no intuito de gerar mecanismos de aproximação com o governo autoritário, como no caso da própria implementação da EMC. As políticas educacionais preconizadas pela ditadura militar buscaram demarcar um esforço governamental em educar os jovens e crianças a partir do civismo e do patriotismo dito ‘saudável’, com a suposta intenção de salvá-los das ameaças ‘demagógicas’ e ‘desviantes’.
Dentre as atividades pedagógicas a serem desenvolvidas pela EMC, Afro do Amaral Fontoura ressaltava que não bastava “[...] que o professor [fizesse] lindíssimas palestras [...] se não [fossem] acompanhada[s] da prática do Civismo” (Fontoura, 1970b, p. 167). Para tanto, era necessário o desenvolvimento de “[...]atividades extraclasse [...]” e “[...] projetos de pes quisa e ação [...]”, aos quais deveria atribuir-se “[...]a maior significação [...]” (Kelly, 1970, p. 39). A denominada ‘prática cívica’ era estimulada e promovida pelos professores e direção escolar, a partir do desenvolvimento de projetos extraclasse ou por meio das ‘homenagens cívicas’, momentos que congregavam cerimoniais e solenidades de caráter patriótico em alusão às datas cívicas representativas para a História Pátria. A narrativa dos manuais didáticos prosseguia indicando que ‘um ótimo curso de Civismo’ deveria pautar-se ‘seguindo o calendário’, suporte em que “[...] surgirão todas as grandes datas nacionais, todos os nossos heróis, todos aqueles que dedicaram sua vida ao bem da Pátria ou da comunidade” (Fontoura, 1970a, p. 23). Desse modo, o denominado Calendário Cívico Nacional tornava-se uma ferramenta eficiente para a sistematização das datas cívicas consideradas relevantes para a formação da identidade nacional, conectando-se ao desejo de manutenção e perpetuação do ideário cívico-patriótico. Em articulação a essas questões, serão discutidas as formas de apropriação simbólica e comemorativa operadas pelo regime militar no Calendário Cívico Nacional, a partir das iniciativas pedagógicas de caráter autoritário que foram empreendidas nesse período.
A composição de calendários pelas sociedades vincula-se à necessidade de contagem do tempo na experiência humana, permitindo realizar o controle e a ritualização das atividades. A singularidade delegada aos calendários festivos sustenta-se por meio dos “[...] vínculos particulares que a festa mantém com o tempo” (Ozouf, 1989, p. 217), com base na articulação entre as diferentes temporalidades. Nesse sentido, a expressividade das manifestações festivas pode ser compreendida por intermédio de uma “[...] teia de malha fina, diante da imensidão de vínculos e nexos criados nos espaços de sociabilidade” (Ferreira, 2018, p. 243), a partir dos significados compartilhados e reelaborados pelos sujeitos históricos em torno da constituição do real.
Os calendários festivos, ao selecionarem os acontecimentos e eventos considerados representativos da Nação, materializados pela ação comemorativa de datas cívicas, conduziram “[...] à instituição de uma história cronológica dos acontecimentos” (Le Goff, 2013, p. 477). Por sua vez, a memória constituída em torno das datas cívicas alimenta-se do material produzido pela história, operando uma releitura desses eventos e fornecendo “[...] referências para as lutas contemporâneas” (Thiesse, 2001, p. 12), no sentido de conferir legitimidade às ações do presente por intermédio do passado. É inegável que a memória histórica está em constante reconstrução, tornando-se fundamental compreender os “[...] processos e os atores que intervém no trabalho de constituição e formalização das memórias” (Pollak, 1989, p. 4), em especial àquelas vinculadas ao Calendário Cívico Nacional, atentando para as transformações que acompanham as conjunturas históricas e políticas.
No caso da implementação da ordem política de cunho autoritário vigente após o golpe civil-militar de 1964, as tensões convergiram para a propagação de uma memória histórica “[...] capaz de conferir autenticidade à contemporaneidade [...] com vistas a cristalizar sua monumentalização física ou imagética” (Ferreira & Silva, 2014, p. 364). Exemplo disso foi a demarcação do Calendário Cívico Nacional, com base nos feriados nacionais, dias santos de guarda, datas relacionadas aos grandes feitos da história militar, políticos, culturais e econômicos de destaque. Dentre as datas cívicas contempladas pelos calendários, destacavam-se os acontecimentos históricos considerados representativos para a História Pátria, tais como: 31 de março (aniversário da dita ‘Revolução Democrática de 1964’, em alusão ao golpe de Estado que implementou a ditadura militar no país); 21 de abril (Tiradentes); 22 de abril (Descobrimento do Brasil); 1º de maio (Dia do Trabalho); 7 de setembro (Independência); 15 de novembro (Proclamação da República) e o 19 de novembro (Dia da Bandeira) (Kelly, 1970).
Logo, essas publicações organizavam-se em torno do “[...] método das efemérides, seguindo a ordem natural do calendário, de 1º de janeiro a 31 de dezembro” (Fontoura, 1970a, p. 23), pela via da linearidade, mediante a marcação de datas com ênfase nas respectivas personagens históricas associadas ao fato. Uma série de impressos didáticos5 voltados à demarcação do Calendário Cívico Nacional brasileiro e à comemoração de datas cívicas também se proliferou, originando um rol diversificado de publicações dessa natureza, que acompanharam a implementação da disciplina de EMC no período da ditadura militar. A criação do Calendário Cívico Nacional remonta ao período imperial, quando, após a Independência em 1822, o Estado monárquico encarregou-se de fixar um calendário festivo, no intuito de celebrar datas consideradas representativas em âmbito político. Embora as datas oficiais tenham mudado de acordo com diferentes temporalidades, o Calendário Cívico Nacional ainda vigora em diversos estabelecimentos públicos, com destaque para o ambiente escolar (Cf. Oriá, 2012). Conforme mencionado anteriormente, durante a ditadura militar brasileira, sobretudo a partir do estabelecimento da EMC como disciplina obrigatória, as publicações vinculadas ao Calendário Cívico Nacional tornaram-se suporte referencial para o empreendimento de comemorações alusivas a datas cívicas e ao culto às personagens heroicas.
No âmbito das programações festivas vinculadas ao aniversário da denominada ‘Revolução Democrática de 1964’, constavam diversos pronunciamentos comemorativos de autoridades políticas civis e militares que buscavam atribuir o significado histórico do 31 de março à História Pátria, assim como definir o que a data representava do ponto de vista das transformações políticas e sociais. Por ocasião do 6º aniversário da ‘Revolução’, a Ordem do Dia proferida pelo Ministro do Exército, general Orlando Geisel6, ressaltava o desejo de que a História retratasse “[...] em sua verdadeira dimensão, na perspectiva do amanhã, o que [a ‘Revolução’] apresentou para os destinos do Brasil [...]”, enfatizando “[...] a preservação da democracia e da paz universal” (Geisel..., 1970, p. 5) como princípio do regime. Para Adalberto de Barros Nunes, Ministro da Marinha, o significado simbólico concedido à chamada ‘Revolução Democrática de 1964’ deveria ser o mesmo “[...] do 7 de setembro e do 15 de novembro. O início de uma etapa, a reformulação de estruturas obsoletas e a renovação de nosso amor e dedicação a esta imensa pátria debruçada sobre o Atlântico” (A meta..., 1970, p. 6).
Os discursos alinhavados pelos representantes das Forças Armadas evidenciavam o desejo de instituir o 31 de março como data cívica nacional, ao equiparar esse evento à Independência do Brasil e à Proclamação da República. Nesse processo, “[...] os acontecimentos são cronologicamente organizados com o propósito de ordenar um calendário cívico a ser rememorado pelos brasileiros, cujo sentido é a busca pela Revolução Democrática” (Cardoso, 2011, p. 135-136), materializada na ação empreendida em 1964. Tais dispositivos discursivos intencionavam realizar um processo de reinterpretação dos fatos históricos em sua ‘verdadeira’ dimensão, estratégia em que o narrador assume a posição de testemunha fiel aos acontecimentos, tornando-se inconcebível o exame de sua veracidade (Vasconcelos, 2019).
A imprensa de circulação nacional também destacava o 31 de março de 1964 como “[...] a data que marcou um novo e importante capítulo da história pátria [...]”, assinalando as comemorações festivas como “[...] instante de renovação pública de fidelidade à Revolução a ser festejada por civis e militares numa integração sem precedentes” (Revolução..., 1970, p. 7). Ao efetuar a rememoração do evento, o governador do Paraná, Paulo Pimentel, afirmava que “[...] em 1964 se encontraram e se chocaram no Brasil, de maneira irreconciliável, o fim de uma época e o início de outra. A primeira pertence à História, enquanto a segunda é de nossos dias, impulsionada pela preocupação de construir o futuro” (Luís..., 1970, p. 5). Havia um desejo expresso de que o período anterior à ‘Revolução de 1964’ permanecesse relegado ao passado e ao consequente esquecimento, concentrando a atenção na dimensão temporal do futuro. Ao determinar o evento de 31 de março como ponto de ruptura entre o Brasil do ‘passado’ e do ‘presente’, a fala de Pimentel articulava-se aos demais discursos comemorativos que preconizavam uma retórica alinhada à mudança que a ‘Revolução’ supostamente havia operado no Brasil. Portanto, ao instituir-se uma nova data-marco na História do Brasil, também era necessário, no âmbito simbólico e ritualístico, demarcá-la enquanto data comemorativa pertencente ao Calendário Cívico Nacional, com a intenção de preservar os sentidos de sua comemoração, alinhada ao ‘ideal revolucionário’ propagado pela ditadura militar.
Convém observar que a inserção do 31 de março de 1964 na condição de data cívica7 não foi adotada como padrão comemorativo do calendário escolar e, durante a vigência dos governos militares, não ocorreu a outorga de legislações federais vinculadas às comemorações da ‘Revolução Democrática de 1964’, tampouco ela fora transformada em feriado nacional. Contudo, essas questões não foram impeditivas de comemorações cívico-patrióticas alusivas ao acontecimento, oportunidade em que determinados grupos apoiadores do regime antidemocrático demarcavam aspectos históricos e políticos, a partir de narrativas de caráter congratulatório e enaltecedor, em alusão às supostas ‘grandes transformações’ que a ‘Revolução’ havia proporcionado ao país. Ao situar o 31 de março na condição de data representativa do ponto de vista da história pátria, que deveria integrar o Calendário Cívico Nacional, os discursos comemorativos e instrucionais operavam um trabalho de constituição de memórias, forjando um sentido cívico-patriótico para legitimar o golpe civil-militar de 1964 e os princípios ditos ‘revolucionários’.
Ao realizar uma sistematização dos eventos históricos que mereciam ser lembrados pela memória coletiva e, ao mesmo tempo, destacar a necessidade de comemorar e rememorar tais datas cívicas, o Calendário Cívico Nacional atribuía ‘um valor simbólico’ ao 31 de março de 1964, “[...] em função dos interesses e de categorias do momento” (Ferreira, 1997, p. 159), extraindo sua significação do contexto real e associando-a aos embates do presente. Cabe destacar que a construção da memória histórica não é um conjunto daquilo que existiu no passado, mas uma escolha efetuada pelas forças que operam no desenvolvimento temporal do mundo e da humanidade, com atenção para os processos de reconstrução e reelaboração de significados do passado na contemporaneidade. Portanto, as comemorações cívico-patrióticas alusivas à denominada ‘Revolução de 1964’ tornavam-se espaços privilegiados para a difusão de narrativas de caráter legitimador, congregando o culto a determinados elementos vinculados à atuação dos ‘governos revolucionários’. Nesse cenário, o civismo e o patriotismo surgiram “[...] como radicalização do espírito da nacionalidade” (Maia, 2012, p. 29-30), de modo a estabelecer significados simbólicos e ritualísticos no ato de rememoração da ‘data cívica’ de 31 de março. Cabe sustentar como análise que, embora o 31 de março não tenha sido consagrado enquanto data cívica oficial, tal questão não impossibilitava a profusão de discursos comemorativos e programações festivas alicerçadas no Calendário Cívico Nacional. Entre a história e a memória, vários recursos discursivos e ritualísticos foram lançados, no afã de justificar e enaltecer os ideais ‘revolucionários’ por ocasião das comemorações do 31 de março, questão que incidiu nas programações festivas alusivas à data.
A ritualística do golpe: festividades memoráveis, desfiles patrióticos e o apelo à juventude nacionalista
No cerne das comemorações alusivas às datas cívicas, foram incorporados valores e tradições impregnados de ritualísticas e simbolismos, utilizados para expressar ideias e ações (Ferreira, 2018), em um constante exercício de rememoração ou esquecimento, no qual os dispositivos de memória intervêm na reinterpretação e organização do passado a partir das demandas do presente. O universo das práticas cívico-patrióticas congrega um amplo investimento no processo de comemoração de datas cívicas que, por sua relevância do ponto de vista histórico, contribuem para o processo de ritualização de memórias, na medida em que seus “[...] ritos de recordação cumprem funções criadoras de sociabilidades” (Catroga, 2001, p. 58). No ato comemorativo, observa-se a profusão de projeções de memória que se baseiam na representação de um passado específico, de modo a transformá-lo “[...] na formalização simbólica e narrativa das autorrepresentações partilhadas [...]” pelo grupo (Portelli, 2006, p. 121), conferindo sentido coletivo a uma multiplicidade de experiências subjetivas.
No caso das comemorações cívico-patrióticas empreendidas nos aniversários da dita ‘Revolução Democrática de 1964’, os dispositivos comemorativos direcionavam para a preservação e recordação do ‘ideal revolucionário’. Em 1970, no 6º aniversário da efeméride, a programação festiva foi uma constante na maior parte das capitais do país, entre Norte e Sul. Os cerimoniais e ritualísticas eram repletos de diferentes atividades que envolviam tanto o setor civil quanto o militar, ficando a cargo dos militares do Alto Comando realizar “[...] palestras a respeito da Revolução, além de desfiles nas proximidades dos quartéis”. O início das celebrações nas Forças Armadas foi marcado por uma “[...] alvorada festiva, com disparos de canhão [...]”, realizada pelo 20º Esquadrão de Reconhecimento Mecanizado, seguido de “[...] formatura da tropa, recepção ao comandante do II Exército, canto do Hino Nacional, leitura da Ordem do Dia do Ministro do Exército e desfile” (II Exército..., 1970, p. 6). Em grande parte dos estados, também foram realizadas diversas missas campais e “[...] em ação de graças” (Luís..., 1970, p. 5), no intuito de evidenciar os contornos religiosos assumidos pelas comemorações.
No tocante à imprensa de grande circulação, os discursos comemorativos destacavam as programações festivas vinculadas à denominada ‘Semana da Revolução’, instituída pelo prefeito Paulo Maluf, na capital de São Paulo, organizada “[...] para comemorar o movimento de março de 64”. No transcorrer da semana, foram realizados diversos eventos comemorativos, como o hasteamento diário da bandeira nacional em todas as unidades municipais, além de pronunciamentos televisivos de diversas autoridades civis e militares, com o intuito de esclarecer “[...] os objetivos da Revolução, particularmente na recuperação econômica, social e moral do país” (II Exército..., 1970, p. 6). As iniciativas gestadas pelo poder público indicavam o desejo de demarcar significativamente o aniversário da dita ‘Revolução de 1964’, em especial porque as comemorações não se limitavam a uma única ocasião, mas eram articuladas por intermédio de uma programação festiva ao longo de toda a semana.
No Rio de Janeiro, as festividades também ganharam expressiva dimensão, contabilizando a presença de cerca de “[...] 30 mil pessoas” (Maracanã..., 1970, p. 32). O ‘espetáculo’, realizado no estádio do Maracanã, contou com diversas atrações, com destaque para um show com artistas de rádio e televisão, com apresentações de Elizeth Cardoso e Jair Rodrigues, além de desfile de escolas de samba e um “[...] jogo entre as Seleções A e B do Brasil, em mais um treino preparatório para a Copa do Mundo” (Festa..., 1970, p. 7). As perspectivas otimistas em relação ao campeonato mundial de futebol foram expressas por meio de ações imbuídas de forte simbolismo, a exemplo do “[...] hasteamento da Bandeira Nacional, feito por Pelé” (Maracanã..., 1970, p. 32), reconhecido naquela época como um dos maiores jogadores de futebol do mundo e ídolo nacional. Eis uma demonstração de que os dispositivos comemorativos eram impulsionados pelos “[...] propósitos de celebração patriótica” (Reis Filho, 2014, p. 81) atrelados às potencialidades brasileiras diante do evento futebolístico.
Toda a organização da programação festiva ficou sob a responsabilidade da Assessoria Especial de Relações Públicas da Presidência da República (AERP) e foi transmitida por uma cadeia de canais de televisão (Maracanã..., 1970). A atuação da AERP, embora nominalmente vinculada às ‘Relações Públicas’, buscava implementar mecanismos propagandísticos alinhados com a intenção de preservação do regime ditatorial vigente, a partir de “[...] um nítido padrão pedagógico, portanto, criador de uma pauta de preocupações cívicas, e que pretendia estabelecer um tipo de cidadania decorativa [...]”, pautada em princípios patrióticos (Fico, 1997, p. 93), presumindo atrair a participação dos cidadãos em eventos enaltecedores dos feitos ditos ‘revolucionários’. Ao congregar atrações de grande notoriedade, como a realização de um show musical com personalidades artísticas de destaque e da participação da seleção brasileira A e B, em um momento de grandes expectativas nacionais relacionadas à Copa do Mundo, o ambiente festivo favorecia e possibilitava a adesão de parcela significativa da população às comemorações.
Os cerimoniais de cunho espetacular configuravam-se componente de destaque nas programações festivas, com ênfase para a propagação de elementos de origem simbólica. Em São Paulo, os aviões do Aeroclube de Ourinhos “[...] lançaram grande quantidade de papéis picados sobre a cidade” (1500 Jovens..., 1970, p. 6), assim como em Salvador, onde as comemorações iniciaram com uma “[...] salva de 21 tiros de canhão” (Médici..., 1970, p. 7). Além disso, diversas solenidades em todos os estados do país também investiam em performances aéreas, exposições de equipamentos bélicos e alvoradas festivas com soltura de pombas (Festa..., 1970, p. 7). Esses elementos ritualísticos eram mobilizados para reforçar o desejo governamental em auferir visibilidade às comemorações do 31 de março, evocando uma força simbólica que extrapolava o discurso e articulava-se às práticas cívico-patrióticas.
No ato comemorativo, as festividades cívicas congregavam elementos capazes de revelar tensões e conflitos, afinal de contas, os processos de memória relacionados aos usos políticos do passado comportam propositais omissões e silenciamentos. Nesse sentido, questionamos tais apropriações comemorativas, especialmente no tocante às “[...] estranhas ressurgências do passado no presente” (Gagnebin, 2004, p. 89), tornando-se imperativo não apenas lembrar para não esquecer, mas também promover ações que denunciem e se comprometam com o combate às formas governativas regidas pelo autoritarismo. No contexto ditatorial, a questão da segurança contra o inimigo interno permeou toda a estrutura do poder público brasileiro, manifestando-se a partir da articulação de novas estruturas jurídicas, tal como os Atos Institucionais e a atuação dos dispositivos censórios. Combinando ações de matriz preventiva e repressiva, a censura configurou-se como elemento de radicalização política, estando vinculada às atividades de repressão moral e política que mantinham vínculos para coleta e análise de informações (Carneiro, 2019).
Tal questão se refletiu nas ocasiões festivas, quando o aspecto autoritário se fez presente, combinado ao componente da violência e repressão. Indicativo disso pode ser expresso em notícia veiculada em 31 de março de 1970, na qual a imprensa ressaltava que “[...] a Operação-Bandeirantes, dentro das comemorações do aniversário da Revolução, entregará hoje às autoridades militares o material apreendido em poder de elementos subversivos” (Luís..., 1970, p. 5). O conteúdo da apreensão, composto por “[...] diversos fuzis, metralhadoras, balas, materiais cirúrgicos e medicamentos [...]”, havia sido encontrado em posse de um ‘terrorista’, integrante da Vanguarda Popular Revolucionária, que matou um “[...] sargento da Força Pública e morreu durante um tiroteio” (Médici...,1970, p. 7). Essa fala evidenciava os múltiplos confrontos e a brutalidade dos dispositivos persecutórios e das ações deflagradas pela Polícia Política. A Operação Bandeirantes (Oban), mencionada como protagonista das ações de confisco e combate à organização ‘clandestina’, foi criada em 1969, extraoficialmente, sendo incorporada ao sistema DOI-Codi em 1970, sob a justificativa de conter a violência ‘subversiva’, no contexto de consolidação e aperfeiçoamento do aparelho repressivo (Ridenti, 2007). Nesse sentido, é possível observar que o detalhamento de equipamentos bélicos e ações vinculadas à atuação dos setores militares não era desprovida de intenções, tendo em vista a necessidade constante em demarcar o poderio governamental destinado à ‘Segurança Nacional’, reafirmando a intransigência autoritária transvestida pelo ambiente festivo.
No Distrito Federal, as comemorações foram iniciadas com desfile militar de 5 mil homens, que “[...] aplaudiram com entusiasmo o Presidente Médici, os Dragões da Independência e a tropa da Polícia Militar, equipada com seus novos instrumentos para combates de rua” (Médici...,1970, p. 7). Na agenda presidencial, constava ainda a presença em uma missa de ação de graças e almoço com autoridades civis e da Alta Cúpula Militar. A tradição dos desfiles em congraçamento às datas cívicas e festivas não foi exclusividade da ditadura militar brasileira. Sua origem remonta às práticas simbólicas difundidas desde o final do século XVIII, quando as nações recém-emancipadas, como os Estados Unidos da América, abriram espaço na composição de suas culturas políticas, mediante a capacidade de congregar diferentes grupos da sociedade na realização do culto festivo (Ryan, 1992).
Durante a ditadura militar brasileira, os desfiles cívicos tornaram-se elementos representativos da criação de sociabilidades por intermédio da ocupação de espaços públicos por setores civis e militares da sociedade, assinalando o envolvimento da população com o evento e sinalizando o viés patriótico atrelado às comemorações (Ferreira, 2017). Os desfiles ocupavam lugar de destaque nas programações delegadas ao 6º aniversário da ‘Revolução’ e receberam ampla cobertura pelos jornais de circulação nacional. A historiografia dedicada ao estudo desses periódicos ressaltou o viés colaboracionista estabelecido entre a denominada ‘grande imprensa’ e o regime militar, no intuito de compreender sua atuação, extrapolando a dicotomia entre apoio e rejeição, sendo possível verificar em suas páginas “[...] desde denúncias sobre os tempos vividos [...]” e, principalmente, “[...] o reflexo do seu aval às conjunturas do momento” (Kushnir, 2004, p. 250-251).
Em Belo Horizonte, o simbolismo do 31 de março foi saudado “[...] com uma grande concentração e o desfile de sete mil estudantes secundários [...]”, além de uma programação festiva que envolveu aviões da FAB que “[...] sobrevoaram o local durante o desfile” (Médici..., 1970, p. 7). O interesse em demarcar a presença da juventude nos espaços festivos mostrava-se evidente, na medida em que grande parte das notícias alusivas às comemorações destacava que as programações do 31 de março contavam com “[...] uma grande concentração de estudantes” (Discurso..., 1970, p. 4). Para além das atividades pedagógicas ligadas à formação cívico-patriótica no ambiente escolar, por meio de disciplinas específicas, como a EMC, constava uma preocupação na organização das atividades cívicas, consolidando uma visão histórica específica em torno do acontecimento do 31 de março de 1964.
O próprio Decreto-Lei nº 869 8, que institucionalizou a disciplina de EMC, determinava o estímulo aos “[...] movimentos de juventude [...]”, “[...] atos cívicos [...]” e “[...] promoções extraclasse” (Brasil, 1969, p. 7769), enfatizando os princípios pedagógicos que vigoravam e extrapolando a educação moral e cívica em sala de aula, com fomento às práticas cívicas diárias dos jovens. Os manuais didáticos evidenciavam que os denominados Centros Cívicos ou Clubes de Civismo deveriam constituir “[...] a própria base em que se assentará o ensino da Educação Cívica [...]”, pois configuravam-se como o “[...] maior e melhor instrumento metodológico de que pode lançar mão o mestre para realizar efetivamente a Educação Cívica em sua escola” (Fontoura, 1970a, p. 34-35). A participação nos Clubes de Civismo era efetivada a partir da realização de atividades extraclasse que, orientadas pelos professores, deveriam estimular “[...] importantes virtudes morais e cívicas do educando” (Kelly, 1970, p. 39). Aos Clubes de Civismo, caberia a tarefa de estimular as comemorações cívico-patrióticas, reforçando o empreendimento de rituais solenes e de atividades extraclasse que deveriam congregar a participação dos estudantes e docentes.
Nas comemorações alusivas à denominada ‘Revolução de 1964’, o ponto de convergência cívica nas relações instituídas entre festividade e ambiente escolar foi composto por uma programação que preconizava a participação dos estudantes em desfiles e cerimoniais de congraçamento. Tal questão pode ser observada a partir do detalhamento de eventos comemorativos, como no caso do Rio de Janeiro, em que a programação festiva contou com a participação dos ‘61 municípios’ do estado, promovendo diversos “[...] desfiles escolares e palestras sobre a Revolução” (Todo..., 1970, p. 8). Em São Paulo, a prefeitura organizou uma manifestação popular em homenagem às Forças Armadas, e a atração principal foi um desfile, com mais de dez mil escolares, em frente ao QG do II Exército (O Brasil..., 1970, p. 1). Na composição dos pelotões do desfile, a imprensa destacava a participação de “[...] 185 escolas municipais, organizadas em 18 grupos, cada qual precedido por uma fanfarra. Além deles, desfilarão também as 4.215 crianças dos 106 parques infantis e 15 centros juvenis, divididos em 5 grupos” (Revolução..., 1970, p. 7). As comemorações na capital paulista também contavam com a adesão do Centro da Juventude “[...] 31 de março” (1500 Jovens..., 1970, p. 6), indicativo da criação de uma instituição destinada à juventude e que congregava em seu próprio nome a data alusiva ao ideal político vinculado ao movimento de 1964.
A nomenclatura atribuída aos Centros Cívicos era um aspecto de grande relevância nos manuais didáticos de EMC, dedicados a reforçar que a personagem ou fato histórico homenageado deveria “[...] constituir objeto de lembranças frequentes e, se cabível, de estudos continuados [...]”, efetuados pelos membros do clube, de modo a servir como “[...] fonte de inspiração cívica do mais alto valor” (Kelly, 1970, p. 39). Havia uma recomendação de que o nome do homenageado revelasse claramente a ‘mentalidade dos associados’ ao Clube da Juventude, mediante aspectos de identificação com o ‘patrono’ da instituição (Fontoura, 1970a). Nesse caso, ainda mais relevante era a menção honrosa da ‘data cívica’ de 31 de março para denominação de um centro destinado à juventude nacional, questão que se manifesta pelo fato de esse acontecimento ter sido escolhido como patrono da instituição, como um ativo centro cívico nas comemorações alusivas à efeméride.
A preocupação com a manutenção do ideal cívico-patriótico também foi manifesta dentro das programações festivas que ultrapassavam os desfiles. Em Pernambuco, aproximadamente 340 mil escolares participaram das comemorações alusivas à ‘Revolução’, além da recomendação disposta aos professores para “[...] orientar os alunos no sentido de despertar-lhes o sentimento de brasilidade e civismo [...]”, com explicações acerca das “[...] causas da Revolução e o papel das Forças Armadas garantindo a integridade nacional” (Todo..., 1970, p. 8). De forma semelhante, nas festividades de Salvador, foi instalado, na Penitenciária Lemos de Brito, um curso sobre Educação Moral e Cívica, voltado a aproximadamente 550 internos (Atos..., 1971, p. 3), evidenciando que a necessidade de educar os indivíduos a partir de preceitos cívico-patrióticos não se limitava apenas ao ambiente escolar. Já na região Sul do Brasil, a recomendação do governo e suas respectivas secretarias de educação eram voltadas a todos os estabelecimentos de ensino, solicitando a realização de conferências e palestras alusivas ao 31 de março, de modo a assegurar que “[...] a data fosse comemorada em todas as escolas” (Todo..., 1970, p. 8). As evidências discursivas citadas demonstram que as regulamentações para os desfiles e comemorações cívicas eram centralizadas nos líderes militares do governo e, posteriormente, repassadas aos estados, células responsáveis pelo cumprimento formal das solicitações governamentais, cuja prática cívica era destinada a reforçar a necessidade de comemoração de datas representativas, a exemplo do aniversário da dita ‘Revolução de 1964’.
Em 1971, por ocasião do 7º aniversário do acontecimento, a prefeitura de Guaratinguetá, “[...] a fim de comemorar condignamente [...]” o evento, organizou a “II Gincana Literária, tendo como tema ‘A Revolução de 1964’”. No concurso organizado, constavam duas modalidades distintas, vinculadas à própria condição de aprendizagem dos estudantes, subdivididos entre níveis 1 e 2. Enquanto os estudantes pertencentes ao nível 2 estariam participando ativamente da gincana, aos alunos considerados de nível 1, provavelmente pertencentes aos anos iniciais, foi solicitado “[...] como tema desenhos sobre os símbolos nacionais, ou mesmo outro tema alusivo à data” (Comemorado..., 1971, p. 6, grifo nosso). Esse exemplo indica claramente a difusão dos símbolos nacionais associada às comemorações vinculadas à chamada ‘Revolução de 1964’, corporificando e difundindo práticas já cristalizadas na escola com novas atividades (Filgueiras, 2006), como no caso do culto aos símbolos nacionais ‘tradicionais’ combinado com a celebração da ‘efeméride’ do 31 de março.
Assim como nas demais festividades cívicas, nas comemorações alusivas à denominada ‘Revolução de 1964’, constavam cerimoniais que congregavam o culto aos símbolos nacionais na composição ritualística e simbólica do evento, com ênfase para “[...] o hasteamento da bandeira, o canto do Hino Nacional e desfile dos alunos” (Todo..., 1970, p. 8). Os manuais didáticos aconselhavam o empreendimento das chamadas ‘homenagens cívicas’ no ambiente escolar pelo menos ‘uma vez por semana’, imbuídas do “[...] máximo de organização, seriedade, disciplina e respeito”. Era imprescindível que essas ritualísticas fossem iniciadas “[...] sempre com o hasteamento da bandeira [...] ao som do Hino Nacional, cantado por todos os presentes” (Fontoura, 1970a, p. 39-40), conforme as disposições do próprio Decreto-Lei nº 5.700/1971 acerca da representação dos símbolos nacionais. Logo, as práticas cívico-patrióticas preconizadas pela EMC recorriam às tendências disciplinadoras, cujo objetivo residia na formulação de uma consciência cívica, incorporando valores autênticos do culto à pátria, expressos por meio dos símbolos e heróis nacionais.
Mediante uma suposta ‘crise do civismo’ que atingia a juventude, era necessário reafirmar o culto aos símbolos nacionais como práticas inerentes ao ambiente escolar, situação em que a comemoração de datas cívicas assumia uma função estratégica para a pedagogia cívico-patriótica. Tais recursos foram mobilizados no ambiente festivo alusivo à denominada ‘Revolução de 1964’, momento em que os dispositivos simbólicos e ritualísticos buscavam aproximar o regime autoritário da juventude nacionalista, por meio de desfiles escolares e homenagens cívicas. Nas ocasiões comemorativas, vários recursos discursivos foram lançados, com a prerrogativa de legitimar a tomada do poder, com ênfase no caráter popular e defensivo da ação deflagrada no golpe civil-militar de 1964.
Considerações finais
Durante a ditadura militar brasileira, os dispositivos simbólicos e ritualísticos atrelados às comemorações de datas cívicas fundamentaram-se nos padrões narrativos de caráter patriótico e ultranacionalista. Isso significa dizer que os elementos fornecidos pela História sustentaram um enquadramento da memória no governo autoritário, tornando-se imprescindível pensar a rememoração de acontecimentos considerados fundamentais no debate sobre o ensino e a pesquisa em História do Brasil, a partir da problematização das datas cívicas vinculadas ao chamado Calendário Cívico Nacional e à disciplina de Educação Moral e Cívica no período de 1970-1971.
No âmbito simbólico e ritualístico, o processo de implementação da data cívica vinculada à denominada ‘Revolução Democrática de 1964’ no Calendário Cívico Nacional congregou elementos pautados em uma construção narrativa que estabelecia o 31 de março como ponto de ruptura e recomeço para a política e história nacionais. Contudo, tal constructo da memória não obteve adesão unânime por parte das publicações didáticas vinculadas à disciplina de EMC, fator que nos remete a considerar as disputas envolvidas no reconhecimento simbólico da data cívica pela população brasileira.
As circunstâncias comemorativas voltadas à celebração do aniversário da chamada ‘Revolução’ congregavam a difusão de narrativas de caráter elucidativo ao reportar-se para os grandes feitos realizados pelos sucessivos governos ‘revolucionários’. Por extensão, as festividades cívicas empreendidas nesse contexto envolviam cerimoniais públicos e eventos exclusivos para o Círculo Militar, apresentando programações diversificadas, como palestras, inaugurações de obras públicas e desfiles de congraçamento. Os aniversários do golpe civil-militar de 1964 também foram ambientes favoráveis para a profusão de discursos e pronunciamentos de autoridades políticas civis e militares, interessados em enaltecer e referenciar as mudanças significativas ocasionadas pelo regime autoritário. Os grupos apoiadores da ditadura militar buscavam constituir uma memória histórica que articulava conceitos, por vezes, antagônicos e contraditórios, colocando como elementos centrais a ‘modernização’ e a ‘tradição’.
As questões cívico-patrióticas estavam eivadas de dispositivos de memória vinculados à legitimação da ação golpista e difundiam uma miríade de discursos e simbolismos gestados com a intenção de promover e enaltecer as supostas mudanças significativas e paradigmáticas ocasionadas pela dita ‘Revolução de 1964’, com destaque para sua ação defensiva, de salvaguarda da democracia e dos valores tradicionais cristãos. A análise detalhada de determinadas óticas cívico-normativas definidas pelo Estado opressor, em circunstâncias culturais e pedagógicas, gerou a identificação de uma cultura política voltada ao estímulo do patriotismo perante a juventude, fomentando o despertar da consciência cívica nos moldes dos princípios autoritários. Determinados acontecimentos históricos foram abordados pela imprensa e por manuais didáticos investigados sob um viés positivado e pautado nos interesses de propagação dos ideais ‘revolucionários’ e autoritários, a exemplo do golpe de 31 de março, que virou uma festa cívica nos discursos e nas práticas escolares. A ritualística festiva tratava de encobrir arestas e omitir aspectos da violência e perseguição política praticadas no regime ditatorial do governo Médici, deturpando e silenciando o caráter inconstitucional e ilegal do marco inicial da ditadura militar no Brasil.