Introdução
O debate sobre a construção da identidade docente afeta os processos formativos, a reflexão sobre o papel da universidade nesse processo e ainda sobre o que significa produzir conhecimentos em nossa área, entre outros temas. Na atualidade, as instituições responsáveis pela formação de professores buscam, ao desenhar seus currículos, políticas que caminhem para a consolidação de um/a professor/a que se reconheça sujeito e ator no processo educacional de forma que a noção de identidade indique autoria e compromisso com a educação.
Reconhecemos que identidade profissional é um processo de construção marcado por contingências diversas, onde as características internas (como cada sujeito se vê e se reconhece) ligadas à sua autoimagem, e características externas (como é reconhecido por outros) se delineiam. Um aspecto importante no conceito de identidade é o reconhecimento que emana das relações sociais, trazendo com ele representações, crenças, estereótipos, já que sujeitos humanos que somos, temos a capacidade de simbolizar, de criar e compartilhar significados em relação a pessoas e objetos com os quais lidamos e convivemos.
Na construção da identidade docente, essas representações são levadas em conta, assim como o conceito de trabalho docente, de significação dos papéis sociais atribuídos ao professor, ou de crenças relacionadas às possibilidades ‘salvadoras’ da profissão. Construir a identidade profissional docente acontece na confluência de momentos de prática e de teoria, em que o professor, sujeito de sua formação, constrói saberes superando dicotomias e fragmentações tão características de nossos processos educacionais.
Marcelo (2009b) elabora uma longa lista do que chama de constantes no processo de construção da identidade docente, que vão desde o que intitula socialização prévia, remetendo às muitas horas que vivemos como alunos, passando pelas crenças sobre ensino, pela fragmentação do trabalho docente, pelas ideias de isolamento, do valor do conhecimento da prática, do papel dos alunos na motivação de professores, do lugar artesanal do fazer, das desconfianças com relação às inovações, do consumo de projetos prontos e do início difícil na carreira.
Tecendo considerações sobre alguns pontos sinalizados pelo autor, reiteramos que somos alunos sim por um longo período de nossas vidas e vamos acumulando saberes na área pela observação, seja para fazermos igual ou diferente do que vivemos; não somos ‘vasos vazios’, temos ideias e crenças quando chegamos aos espaços formativos, que condicionam nossos comportamentos e movimentos. É necessário que conheçamos o que vamos ensinar e saibamos como organizar esses conteúdos, daí a importância de um trabalho com uma didática significada, contextualizada e refletida. Em contraposição à crença de que basta saber o conteúdo para ensinar, crença encontrada em muitos cursos de licenciaturas, podemos reiterar a importância de pensar onde se ensina, a quem se ensina e como se ensina.
Concordamos com a solidão do fazer docente, que reforça um ‘artesanato’ profissional, mas buscando refletir sobre o que fazemos em conjunto podemos minimizar os efeitos disso. Não somos consumidores de pacotes prontos ou de tecnologia pela tecnologia, mas arquitetos de nossas vidas, articulando a prática e a teoria no conjunto de nossa formação. Muitas coisas nos motivam, alunos que aprendem, reconhecimento profissional, bons salários, condições de trabalho condizentes com a complexidade do fazer docente. Sobre professores iniciantes terem turmas mais difíceis, isso pode ser um fator auxiliar no abandono da profissão, o que poderia ser contornado caso houvesse uma política de apoio ao docente em questão.
Para Ferrarezi Jr. (2003) a educação tem que ser transformadora, e para tal não se constrói pela ação do acaso. Concordamos com o autor e nos perguntamos: nesse aspecto, o que significa educar alguém? Afirmamos que educar alguém não significa apenas fazer com que decore fórmulas, normas ou regras, mas sim influenciar de alguma forma nas posturas e entendimentos desse aprendente diante de construções históricas e cotidianas, frente à realidade pessoal e social, em uma abordagem holística.
Entendemos, com Cunha (2010), que a formação pode levar a um empoderamento dos professores que realmente se envolvem no processo, refletindo sobre e construindo sua condição de profissional da docência, ampliando sua autonomia intelectual, trabalhando valores individual e coletivamente. Os professores, para tal, precisam ter reconhecidos seus saberes e sua capacidade de produzi-los, se tornando educadores em construção, reafirmando a convicção e a pedagogia de Freire (1996, 2000).
Formação de professores
O conceito de formação, de acordo com Marcelo Garcia (1999), inclui uma dimensão pessoal de desenvolvimento humano global que é preciso ter em conta, frente a outras concepções mais técnicas. Complementa o autor afirmando que o conceito de formação tem a ver com a capacidade e com a vontade de formação. Nesse sentido, é o indivíduo, a pessoa, que é responsável pela ativação e desenvolvimento dos processos formativos, embora isso não signifique necessariamente uma formação para a autonomia. O autor traz ainda que é através da “interformação que os sujeitos podem encontrar contextos de aprendizagem que favoreçam a procura de metas de aperfeiçoamento pessoal e profissional” (p. 22).
Desenvolvendo outro aspecto da formação docente, Nóvoa (1997, 1992) enfatiza, em estudos sobre a vida dos professores e seu trabalho, a ideia do professor como pessoa, e, a partir dela, sobre os sentidos que imprimem ao seu trabalho. A riqueza e profundidade que este campo de pesquisa tem veiculado legitimam a subjetividade como elemento da formação profissional dos professores na perspectiva autoral e própria que a docência demanda, resgatando um universo complexo para a pesquisa na área das ciências humana.
Uma contingência importante a ser incluída em nossa reflexão é a visão de formação que reforça a separação entre as universidades (instituições formadoras) e as escolas (local de trabalho do professor), como aponta Dias da Silva (2005). Outro embate que identificamos no processo de formação docente destaca visões estruturantes ou reprodutoras em algumas práticas de estágio, onde teoria e prática não se articulam, em detrimento de uma proposta de apropriação, como sugerem Pimenta e Lima (2004) ao abordarem a questão do estágio.
Lüdke (1994), em pesquisa sobre as licenciaturas, já apontava para algumas questões que continuam bastante atuais: a não valorização dos cursos de formação de professores; a hierarquia entre cursos; o afastamento entre a universidade e as escolas; a falta de integração entre as áreas de formação. Estas e outras questões aparecem como pontos não resolvidos em nossas realidades de formadores de professores, mesmo com reformulações de cursos que trazem inovações, como ampliação da carga de estágio, mudanças importantes, porém ainda não atingindo o cerne dos problemas. No trabalho de investigação desenvolvido, a autora analisa as propostas de inovação, muitas na linha de conscientizar para a importância de promover uma formação mais articulada, reconhecendo a multidimensionalidade do saber e do fazer docentes, reforçar a pesquisa como importante e necessária para quem vai ser professor, tema retomado pela autora em muitas de suas pesquisas posteriores.
Consideramos que a análise das trajetórias de formação docente faz emergir concepções sobre o trabalho do professor entrelaçado em suas práticas cotidianas proporcionando pistas para a formação e profissionalização docente. Torna também possível andar em territórios que revelam a historicidade das experiências vividas, levando-as a ressignificações, fortalecendo o professor nos embates de sua formação, implicando na busca do entendimento de si e de sua ação cotidiana. Desse modo, a prática docente remete a uma dimensão que é individual e também coletiva, pois estão presentes em seu fazer sua história, seus valores e suas formas de pensar e agir, contextualizados na realidade vivida.
É preciso destacar, então, que dependendo da concepção que se tenha de formação, esta pode se apresentar como estratégia de intervenção, no sentido de gerenciamento do trabalho docente, ou como um processo no qual os professores produzem-se sujeitos do seu próprio trabalho. Cabe ressaltar que defendemos a segunda acepção devido à convocação por ela efetuada aos professores a se conceberem autores de seus conhecimentos, gestores do seu exercício e investigadores de si mesmo. Os movimentos formativos precisam partir da especificidade do trabalho docente, que é o de construir conhecimentos principalmente pelo enfrentamento diário do cotidiano, onde saber-fazer-pensar-sentir estão entrelaçados e que esse agir não se reduz à submissão de procedimentos técnicos ou prescrições didáticas (FONTOURA; TAVARES, 2013).
Segundo Nóvoa (1991), existem três aspectos na constituição do ser professor: aprendizagem profissional, ativismo docente e desenvolvimento pessoal, e cada um desses aspectos traz faces diferentes e envolve pontos distintos do fazer docente, embora se complementem e se interpenetrem. O ponto principal de destaque aqui é que a profissão docente não se caracteriza apenas por um conjunto de técnicas a serem aplicadas, mas sim um fazer que leva em consideração aspectos pessoais e profissionais sem reducionismos, englobando todos os saberes relacionados à docência. Para Marcelo (2009a), o conceito de desenvolvimento profissional é coerente quando pensamos no professor como profissional do ensino. Além disso, esse conceito visa romper com a tradicional fragmentação entre formação inicial e continuada, passando a ideia de evolução e continuidade ao longo da carreira.
Para nossa formulação, temos três aspectos envolvendo a construção da identidade docente: individual (a experiência pessoal de cada um/a), desenvolvimento profissional (questões de contexto em que nos formamos) e políticas públicas (geralmente associadas ao que é externo na conformação de procedimentos a serem implementados). Ser professor envolve ensinar e aprender como tarefas diárias próprias do fazer docente, considerando os níveis diferentes e includentes da construção identitária.
Saberes: ensinar e aprender
ensinar
en.si.nar
(lat insignare) vtd 1 Instruir sobre; lecionar: Ensinar gramática. 2 Dar ensino a: Ensinar crianças. Ensinaram-me a analisar logicamente. 3 Habituar a fazer alguma coisa; educar. 4 Dar ensino a (animais); adestrar: Criava e ensinava papagaios. Ensinou esta parelha a puxar o trole. 5 Dar as indicações ou os sinais precisos para se reconhecer (pessoas ou lugar). 6 Doutrinar. 7 Castigar, escarmentar. 8 Psicol Oferecer condições para que alguém aprenda.2
aprender
a.pren.der
(lat apprehendere) vtd, vti e vint Ficar sabendo, reter na memória, tomar conhecimento de: Em pouco tempo, aprendeu vários idiomas, tendo aprendido com sua mulher o alemão e o inglês. No trato da jurisprudência, aprendeu a arte de burlar as leis. Pela dor aprendeu o que é o mundo. Sempre receou aprender demais. A. à sua custa: aprender por experiência própria.3
Ensinar e aprender não são exatamente duas fases de um mesmo processo, são fases distintas de processos também distintos. Quando um/a professor/a acredita que ensino e aprendizagem são duas faces de um mesmo processo, pode achar que ao final do processo só restem duas alternativas: ou o aluno aprendeu ou não aprendeu. Diferentemente disso, se ele/ela vê a aprendizagem como uma reconstrução que o aluno faz dos seus conhecimentos anteriores, de seus esquemas interpretativos e percebe que esse processo é um pouco mais complexo do que o simples “aprendeu ou não aprendeu”, algumas questões precisam ser consideradas.
Refletindo sobre esses conceitos, tão utilizados em nosso dia a dia sem que percebamos suas potências, pensamos em ensinar como um ato que envolve um aspecto mais coletivo, já que espaços de ensino formal são aulas, palestras, conferências, enquanto aprender traz a dimensão individual mais potente já que cada um aprende de acordo com suas possibilidades. Os dois processos não são paralelos, podem ocorrer em sintonia, embora muitas vezes o que é importante para quem ensina pode não ser para quem está em situação de aprender.
Conforme Passmore (2010), definir a palavra ensino não é tarefa fácil, já que como a maioria das palavras de uso diário, não tem limites perfeitamente definidos. Um professor pode queixar-se dizendo: “Estou há seis meses ensinando matemática a esta turma e os alunos ainda não aprenderam nada”. Estaria implícito nessa afirmação que o fato de o professor ensinar deva ser uma garantia de aprendizagem por parte do aluno.
Porém, a relação entre ensino e aprendizagem não se realiza de uma forma diretamente proporcional, ou seja, não está determinado que se eu transmito certo conteúdo, ou conhecimento, ou instrução a alguém, isto assegura que ele ou ela aprendeu o que foi ensinado. Assim, muitas vezes se ensina muito e o outro pouco ou nada aprende. Não se trata de uma relação de causa e efeito. Ensino visa à aprendizagem, apesar de nem sempre promovê-la. Mesmo porque, do ponto de vista da prática do professor, algumas vezes o ato de ensinar centra-se apenas nas atividades dos alunos, como trabalhos ou provas, esquecendo das atividades do professor, parte importante dessa relação processual, tema de estudo caro à Didática atual.
Traz Libâneo (1994) que a Didática está intimamente relacionada ao ensino, relação essa realizada por meio dos componentes didáticos a ele referidos, os conteúdos escolares. Para o autor, “o objeto de estudo da Didática é o processo de ensino, campo principal da educação escolar. ” (p.54) E quanto à aprendizagem? Acreditamos que tanto a aprendizagem quanto o ensino, marcadas as suas diferenças, são extremamente importantes para que de fato se realize o ato de educar.
Didática: lugar e (con)texto
“Preciso aprender Os mistérios do mundo Prá te ensinar”4
Segundo Libâneo (1994, p. 52), a Didática é “uma das disciplinas da Pedagogia que estuda o processo de ensino através dos seus componentes - os conteúdos escolares, o ensino e a aprendizagem - para, com o embasamento numa teoria da educação, formular diretrizes orientadoras da atividade profissional dos professores”. Nesta afirmativa não estão descartados os conteúdos e a formação próprios das disciplinas específicas referentes aos saberes escolares, ao contrário, sem referi-las o ensino fica esvaziado.
Como lugar e (con)texto, Libâneo reitera a Didática como a disciplina que se dedica a pensar objetivos, conteúdo, métodos, formas de organização do trabalho docente, de forma integrada e integradora, buscando assegurar uma aprendizagem significativa, direcionar ações e tarefas sem engessar, mas trazendo alguma segurança.
Assim, a contribuição primordial da Didática é que ela fornece subsídios para criar condições para que alunos tenham um ensino e uma aprendizagem significativos e isso implica em que o professor tenha objetivos estipulados para ensinar e ainda que o aluno compreenda o que e para que está aprendendo. Ou seja, o ensino e aprendizagem devem fazer sentido tanto para o aluno quanto para o professor. Há de se ter finalidades e possíveis caminhos delineados para se ensinar e para se aprender, ainda que muitas vezes façamos correções de rumo.
No campo da Didática, Libâneo (1994, 2002), Pimenta (1997) e Candau (1983, 1988) apresentam a trajetória histórica desta disciplina e seu papel nos cursos de formação de professores, o que nos desobriga aqui dessa tarefa. A (re) construção da Didática resgata e atualiza a perspectiva de uma visão contextualizada e multidimensional do processo pedagógico. (CANDAU, 1983).
Em pesquisa com professores em formação em uma universidade no Rio de Janeiro, Fontoura (2008) entrevistou licenciandos de diferentes áreas, que ao serem perguntados sobre o que é Didática, demonstraram em suas respostas que concebem a Didática como a ‘arte de ensinar’, como uma disciplina que fornece ‘receitas’ sobre como ensinar e agir em sala de aula ou como utilizar técnicas para dinamizar o ensino, resolver problemas de disciplina, de desinteresse do aluno no cotidiano escolar. Sobre a importância do conteúdo da Didática em sua formação, não souberam precisar já que o grupo pesquisado havia tido diferentes professores e os programas eram os mais diversos possíveis. Mas apareceu em muitas respostas a possibilidade de ‘ajudar a dar aulas’, mesmo que essa ajuda ainda parecesse difusa.
Martins e Romanowski (2008), em levantamento sobre o estado do conhecimento na área apresentado nas teses do período de 2004 a 2006, constatam que a disciplina Didática, nos meios acadêmicos, diferentemente do que se verificou na década de oitenta do século passado, volta a valorizar questões mais específicas, deixando de abordar a dimensão de totalidade. Segundo as autoras, os poucos estudos que abordam questões do ensino - objeto de estudo da Didática - limitam-se a focos pontuais com a valorização de estratégias de ensino ora focalizando os recursos didáticos e o uso de tecnologias da informação e comunicação, ora tomando o método em uma determinada orientação teórica de uma disciplina ou área de conteúdo. A questão da relação da formação inicial de professores com as práticas desenvolvidas nas escolas de educação básica, marca importante do período delimitado na investigação, não é priorizada, ainda que diretrizes determinem a ampliação da carga horária destinadas às atividades práticas que via de regra acontecem nos espaços escolares.
Outra pesquisa, com licenciandos em Pedagogia, realizada por Martins (2009), teve como foco as relações entre formação, trabalho e identidade. Segundo a pesquisadora, a docência, como todas as profissões, é permeável a fatores sociais, econômicos e culturais que atravessam as relações de trabalho na sociedade contemporânea, desta forma construindo novas subjetividades profissionais. Para a autora, a construção se faz no percurso formativo, “configurada por diferentes fatores que se interpenetram” (p.364). Pontua que os professores são solicitados a externarem determinadas características, como criatividade, autonomia, mediação, discernimento na escolha de métodos e na busca de novas formas de ensinar, de avaliar, de se relacionar com famílias, ou seja, romper com as formas convencionais de seu trabalho, embora, muitas vezes, não tenham tido preparação em suas instituições formativas para tal atuação.
Martins e Romanovski (2010), visando compreender tendências da formação de professores e o lugar da Didática nessa formação, trabalhando com a concepção da teoria como expressão de uma determinada prática e não de qualquer prática, desenvolveram uma pesquisa tomando como campo de investigação os cursos de licenciatura de cinco universidades de grande porte do estado do Paraná. Por meio de análise documental e entrevistas semiestruturadas, com uma abordagem qualitativa, analisaram as tensões e prioridades dessas universidades nos processos de formação de professores.
Cruz et al (2017), ao pesquisarem a formação em Didática de futuros professores, concluintes de cursos de licenciaturas, refletem sobre os processos de constituição dos saberes profissionais docentes, com foco na Didática. Este trabalho faz um retrospecto histórico das visões sobre Didática, mapeia algumas perspectivas teóricas, apresenta resultados de pesquisas no campo em tela, indicando que licenciandos informam a predominância de formação na área específica em detrimento da formação pedagógica propriamente dita, com uma distinção para o curso de Pedagogia, com um investimento maior em questões curriculares e pedagógicas, embora apresentando algumas deficiências na formação para o conteúdo, na percepção dos participantes.
A esses estudos acrescemos a proposta de Cunha (2010) que elege três eixos capazes de favorecer a compreensão analítica sobre a discussão a respeito de acertos e desacertos entre formação e trabalho docente, a saber: (a) o conceito de formação e sua relação com a docência; (b) o significado e processos de formação inicial e (c) a inserção profissional do professor iniciante. Ou seja, para além dos estudos específicos na área de Didática, ampliamos o escopo para contemplar processos formativos na docência e formas de inserção na carreira como determinantes da construção da identidade docente.
Assim, as perspectivas acima indicam o empenho de pesquisadores na compreensão do universo da formação docente trazendo contribuições às políticas e normatizações estabelecidas. Estudar as implementações e lógicas sobre as quais as instituições se voltam é também uma necessidade para a qual estamos voltadas. As Diretrizes Curriculares Nacionais para a formação inicial em nível superior (BRASIL, 2015, p. 2) apontam que os cursos de licenciatura deverão considerar “a articulação entre graduação e pós-graduação e entre pesquisa e extensão como princípio pedagógico essencial ao exercício e aprimoramento do profissional e da prática educativa”.
Um movimento que nos chama atenção é no sentido da aproximação entre a universidade e a escola básica que pode esboçar proposta de parceria frente à formação docente. No entanto, via de regra, a prática desenvolvida nem sempre avança no sentido de promover reflexão na busca de equacionar os problemas que enfrentam as escolas, e menos ainda deflagram o enquadre do saber acadêmico. Além disso, a manutenção dos estágios no final do curso indica a permanência da lógica das escolas como espaço de aplicação dos conteúdos das disciplinas teóricas.
Algumas considerações (in)conclusivas
É verdade que as práticas de formação tradicionais continuam a ter uma presença considerável. Mas é também certo de que pouco a pouco emergem estratégias e processos alternativos baseados no reconhecimento de que os saberes docentes se desenvolvem ativamente em processos de troca com seus pares. Diferente das práticas tradicionais que pouco relacionam a formação com o cotidiano das salas de aula, as tendências atuais se orientam em direção a atividades reflexivas em torno das ações diárias do professor. Apostamos nas narrativas docentes como forma de pesquisar o que acontece e como professores ressignificam suas práticas de atuação em seus espaços de docência (MONTEIRO; FONTOURA, 2016; MARIA; FONTOURA, 2015).
Não temos a intenção de esgotar o tema, mas sim socializar nossas reflexões como professora de Didática em nível superior há tempos, um lugar de responsabilidade pelo que fazemos - formar professores - e pelo que compartilhamos. Reafirmamos, como Cunha (2010), que nossas lentes de observação e análise dos fenômenos educativos, em especial da Didática, sua contribuição e importância no processo formativo docente, é pedagógica e política, considerando sempre a complexidade do tema formação de professores.
O desafio dessa proposta de formação está no apostar na complexidade, superando dualidades, articulando todas as dimensões da formação, sem dar mais peso aos aspectos relativos aos conteúdos ou às metodologias específicas, enfatizando o conhecimento didático do conteúdo, proposto por Shulman (2005, p. 11), que “representa a ligação entre matéria e Didática, visando compreender como determinados temas e problemas podem ser organizados, representados e adaptados aos diversos interesses e capacidades dos alunos e expostos para seu ensino”, em um determinado contexto de inserção social.
Para dialogar com nossas reflexões, trazemos Bartolomeu Campos de Queirós5, que nos diz que “viver é legendar o mundo”, sem o que o real se torna ilegível. “Dar sentido é tomar posse dos predicados. Trabalho incessante esse de nomear as coisas. Chamar pelo nome o visível e o invisível é respirar consciência”, pontua poeticamente o autor citado acima. Ter um nome é uma marca de reconhecimento. Não ter um nome é uma marca de falta, de não reconhecimento. Nosso nome Professor/a nos marca e nos faz reconhecidos/as. Na metáfora do nome trazemos o tangível e o intangível presentes em todo processo de formação profissional, e também pessoal. Reconhecemos ainda, confirmado no posicionamento de um pensamento emergente e condizente com a atualidade, que o saber traz a possibilidade do intangível, e por isso legendado...
Este é o enorme desafio que se coloca para os cursos de formação de professores. Não se trata somente de procedimentos ou regulamentações. Porque reconhecemos o espectro onde se instaura esta formação, é preciso trazer para o palco os papéis das universidades que nesse momento estão em questão: o que sabiam fazer ou achavam que sabiam fazer já não sabem mais. Resta à universidade construir como engendrar, com os sistemas de ensino, com as escolas e com os espaços educadores na sociedade, processos formativos mais integrados e integradores.
Torna-se fundamental incluir distintos movimentos envolvendo conhecimentos básicos para o processo de aprendizagem da profissão. Novos paradigmas estão em construção onde a Didática é chamada a participar. Da mesma forma, é necessário considerar que o processo de formação de professores é resultado também do compromisso de cada professor com seu próprio desenvolvimento pessoal e profissional. São eles que atribuem ou não sentido ao que fazem e ao que externamente recebem. E isso os torna corresponsáveis pelos processos formativos e pelos desdobramentos dessa formação na prática dos que escolhem o nome professor, sua identidade profissional.
Ao sinalizar a Didática como elemento construtor de uma proposta de formação de professores ancorada na reconstrução do conhecimento da área, apontamos que isso não se faz por meio de reflexões exclusivamente teóricas, mas emerge das contradições presentes na prática de nossas instâncias formativas, expressando o que fazem e pensam seus participantes ao vivenciarem e refletirem sobre essas contradições.
Um ponto importante a realçar é que não é possível vislumbrar melhoria na educação brasileira sem valorizar o professor e seus espaços de atuação. Dar nome às coisas é legendar o real, sem o que fica, como vimos, incompreensível, impossível de ser lido. Nosso fim, afinal, na ordem das coisas escolhidas por fazer, é formar professores leitores de escritos, escritores de leituras, nas linhas e entrelinhas de suas práticas, assinando o nome com o compromisso de educadores e cidadãos.