Introdução
Este estudo toma como ponto de partida uma questão norteadora: que representação da polícia, incorporada na figura do policial, constroem crianças de três anos que frequentam uma creche do Morro do São Carlos no Rio de Janeiro? De acordo com Vygotsky (2003), para as crianças pequenas pensamento significa lembrança e este processo de significação envolve funções utilizadas a todo o momento na recriação da realidade. Para o autor, o processo cognitivo infantil pode ser configurado numa dialética que dispõe da linguagem que nos diferencia dos outros animais. É através dela, sob diferentes formas, verbais ou escritas, que o homem se constitui como sujeito histórico e social no processo de ouvir, ler e interpretar, se constituindo a partir de tessituras sociais. O mesmo autor se refere à vivência (VIGOTSKY, 2009) como processos dinâmicos, participativos, que envolvem indivíduos e meio. A vivência é assim algo que causa impacto ao indivíduo, contribuindo para que ele atribua sentido ao que se vive. Um dos aspectos que essa pesquisa pretende expor é que as representações se expressam em vivências das crianças, sendo estas também fontes de representações.
No cenário do Morro do São Carlos, as crianças que ali vivem e frequentam creches atribuem significados a diversos objetos, ressignificando situações cotidianas vivenciadas. Esse morro situa-se no Complexo do São Carlos, conjunto de favelas localizado na região central da cidade do Rio de Janeiro, marcado por violências de várias ordens, sobretudo a que envolve interações entre polícia e traficantes de drogas. A violência imposta aos moradores, em razão da “disputa de território” entre as diferentes facções criminosas e a polícia, fazem a população refém de conflitos armados que atingem diretamente a criança pequena em seu território de infância.
Frente a essa realidade, na tentativa de combater o tráfico drogas, desarmar os traficantes e diminuir os índices de violência, em 2008 foi proposta no Rio de Janeiro uma política de segurança pública que instalou unidades de grupamentos de policiais, denominadas Unidade Pacificadora de Polícia (UPPs), cujo objetivo era aproximar a polícia e os moradores da favela. Assim foi instalada uma UPP no São Carlos, em 2011. Dentro desse cenário da comunidade, no contexto da violência, estão as crianças e o policial da UPP.
Essa conjuntura é propícia para estudos de representação social, visto que um novo objeto, o “policial da UPP”, passou a fazer parte do contexto em questão, despertando atribuição de significados por pessoas e grupos que convivem com ele na favela, incluindo as crianças em suas interações com os adultos. Desse modo, tomamos como referência a Teoria das Representações Sociais (TRS), apresentada por Moscovici (1961/2012), buscando dialogar com a perspectiva da psicologia do desenvolvimento proposta no âmbito dessa mesma teoria (DUVEEN, 2011) e também estudos de Vigotsky (2003). Uma das questões que atravessou a pesquisa foi: crianças de três anos podem elaborar representações sociais? Nos apoiamos em estudos nos quais as crianças são consideradas sujeitos (CHOMBART DE LAUWE, 1991; DUVEEN, 2011; CASTORINA, 2013; ANDRADE, 2014; ANDRADE, SOUZA e SEIDMANN, 2019) e não objeto de representações.
Conforme a pesquisa foi se desenvolvendo, os dados gerados e a discussão dos resultados nos levaram a formular a hipótese que, dependendo do contexto e do objeto que a cerca, a criança pode formar representações sociais. No caso desse estudo, foi possível verificar que crianças de três anos formam representações a respeito do policial e ainda elaboram metáforas espontâneas. Elas se comunicam no grupo, argumentam sobre o objeto com outras crianças, elaborando significados comuns. De acordo com Moscovici (2012), os saberes compartilhados nos grupos, por meio das comunicações, sustentam as crenças que circulam entre os sujeitos nesses grupos.
O desenvolvimento infantil está diretamente relacionado com as interações que as crianças firmam com o meio cultural e social, com os adultos (professores, pais, responsáveis, vizinhos, conhecidos) e com as crianças que fazem parte do seu dia a dia. Interagem integralmente com e nos espaços sociais dos quais fazem parte, criando relações e fazendo análises nas diversas experiências vividas e/ou observadas ou através do comportamento dos adultos.
O estudo teve como objetivo, por meio da escuta de crianças pequenas, investigar representações sociais de polícia para elas, com atenção especial para as implicações da violência materializadas na figura do policial. Tais inquietações conduziram a problemática da pesquisa e foram despertadas por questões como: Quem é esse policial para aquelas crianças? Que imagem constroem sobre ele? Como percebem a ação da polícia em seu cotidiano, particularmente no entorno da creche? Para responder a essas questões, o diálogo entre TRS e a psicologia do desenvolvimento, pautada na aprendizagem mediada pelas interações (VIGOTSKY, 2003), nos parece promissor.
O Rio e a polícia: elementos para a contextualização do estudo
Fazendo um recorte temporal, a cidade do Rio de Janeiro, especialmente nos anos de 1980 e 1990, atravessou inúmeros problemas financeiros, econômicos, políticos, culturais e sociais, e foi perdendo a importância no contexto nacional, fato que contribuiu para a escalada da violência (FRANCO, 2014). De acordo com Pizzolante (2018), crime e segurança pública têm sua correspondência identificada como a possibilidade de coibir a criminalidade de modo a estabelecer a sensação de segurança na população. Dessa maneira, a falta de controle sobre a violência crescente gera a insegurança.
Como expõem Ribeiro e Koslinki (2009), traços característicos da organização social e urbana da cidade configuram uma composição territorial chamada de “modelo carioca de segregação social”, que se caracteriza por apresentar combinação entre distância social e significativa proximidade geográfica das diferentes camadas sociais. Desse modo, a organização das favelas pela cidade é a representação material do retrato carioca de desintegração entre o morro e a cidade, com uma explícita distância material e simbólica.
O início do tráfico de drogas nos morros do Rio de Janeiro se deu a partir dos anos de 1970, com o aparecimento da facção criminosa “Falange Vermelha”, que surgiu dentro dos presídios da Ilha Grande. A “Falange Vermelha” teve sua importância no cenário do crime da cidade do Rio de Janeiro quando seus líderes entenderam que conseguiam controlar de dentro do presídio o crime nos morros dominados por eles e, assim, com custos baixos, aumentarem seus lucros.
Desde esse período, a exposição das populações das favelas à violência que decorre do cerco territorial advindo do tráfico de drogas, em conjunto com a forma truculenta da atuação da polícia, ora recebendo propina do tráfico para não incomodá-lo, ora realizando incursões nas favelas, quase sempre deixam um saldo de inúmeras vítimas fatais e de traumas psicológicos nos adultos, e principalmente nas crianças.
Mantendo um recorte temporal, tomamos o ano 2008, quando o Governo do Estado criou as Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs), que trouxeram em seu bojo a entrada da força policial nas favelas, evocando a metodologia do policiamento comunitário1 (SANTOS, 2016). A cidade se preparava para receber dois grandes eventos esportivos mundiais: a Copa do Mundo de 2014 e as Olimpíadas de 2016. Era necessário apresentar ao mundo propostas de segurança pública que tranquilizassem governantes e atletas de outros países, bem como a população nacional. De acordo com Fleury (2012), policiais teriam base firmada em favelas, com os objetivos de aproximação de moradores locais, policiamento e segurança. A proposta era de ocupação permanente das favelas, desenvolvendo uma estratégia de aproximação entre a população e a polícia, a inclusão de políticas sociais, retomada dos direitos de acesso a serviços públicos e a incorporação das favelas e dos seus moradores como parte pertencente à cidade.
Quando, entre suas metas, colocava que seu principal objetivo era o de “acabar com a circulação de armas nas mãos de gangues de traficantes” (BURGOS et al, 2011), pelas UPPs o discurso do poder público promovia um debate mais complexo, desmembrando o combate ao tráfico de drogas do problema da territorialização da economia do tráfico. Com isso, o foco passa a ser a “retomada de territórios”, antes dominados por gangues de traficantes fortemente armados, comprometendo-se a emancipação dos moradores desses territórios do jugo dos traficantes.
Em 17 de maio de 2011 é inaugurada a UPP no Morro São Carlos, com 241 efetivos da Polícia Militar do Rio de Janeiro. No entanto, ela não assumiu o controle de fato do território, pois o tráfico continuou ativo na região. O São Carlos sempre foi considerado por policiais um dos lugares mais arriscados, pelas dificuldades geograficas de se operar e a violenta reação dos criminosos locais às operações.
O Programa das UPPs teria um papel fundamental no desenvolvimento social e econômico das comunidades, pois potencializaria a entrada de serviços públicos, infraestrutura, projetos sociais, esportivos e culturais, investimentos privados e oportunidades (MISSE, 2014). Contudo, não foi o que aconteceu. As três instâncias legislativas não cumpriram com o pacto. Apesar de ainda hoje tais promessas constarem, sem alterações, no site do programa, é claramente perceptível que na maioria dessas áreas há o encolhimento, quando não o abandono, dos objetivos iniciais das UPPs. De um lado, pelo desmonte da sua dimensão social e, de outro, pelo afastamento das práticas de policiamento de proximidade, tais como diálogo permanente com os moradores, parcerias com instituições locais e mediação de conflitos (FRANCO, 2014).
É nesse cenário que está vivendo a maioria das crianças que frequentam creches do Morro São Carlos. A comunidade escolar onde foi realizado o estudo está inserida em um contexto onde a pobreza, o desequilíbrio social e a violência urbana estão presentes. Defendemos que crianças inseridas em espaços educacionais, situados em contextos de violências diversas, constroem significações sobre a polícia em várias situações do seu cotidiano.
Criança e infância à luz da TRS e da psicologia do desenvolvimento
O campo de estudo referente à Educação Infantil vem ampliando as discussões sobre as teorias e práticas que abordam a epistemologia do conhecimento sobre a criança e infância(s). Segundo Chombart de Lauwe ):
a maneira de perceber e de pensar a criança influi sobre suas condições de vida, sobre seu estatuto e sobre os comportamentos dos adultos em relação a ela. Em dada sociedade, as ideias e as imagens relativas à criança, por mais variadas que sejam, organizam-se em representações coletivas, que formam um sistema em níveis múltiplos. Uma linguagem “sobre a criança” é criada assim como uma linguagem para a criança, já que as ideias e modelos lhe são propostos (CHOMBART DE LAUWE, 1991, p.2).
Para adensar a discussão sobre a possível formação de representações sociais por crianças, é importante pontuar a distinção entre os conceitos de criança e infância. Para tanto, foram utilizados como referência estudos de autores como Javeau (2005) e Sarmento (2005), que tratam da conceituação dos termos.
Em relação ao termo criança, Javeau (2005) afirma que se constitui em um conceito abstrato e que a criança passará por uma sucessão de diferentes níveis para aquisição de competências. Tal afirmação contempla a criança como sujeito com suas especificidades. O autor conceitua a infância como categoria geracional distinta do adulto, o que se torna basilar para a orientação de políticas públicas com o objetivo de garantir seus direitos, assegurando qualidade de vida para as crianças. Criança e infância foram dois campos semânticos desenvolvidos por Javeau (2005), sob uma perspectiva antropológica ou socioantropológica.
De acordo com essa perspectiva, as crianças são consideradas como um grupo ou um conjunto de populações com direito pleno, com suas características, culturas, hábitos, linguagens, imagens, ações, estabelecendo no espaço e no tempo suas estruturas e padrões de pensar e agir. A Educação Infantil é o segmento da educação que incide efetivamente sobre esses distintos campos semânticos abordados por Javeau (2005). É uma área que trabalha com crianças no sentido antropológico, com a criança no sentido psicológico e com infância no sentido demográfico, orientando as políticas públicas destinadas a esse grupo a partir dessas concepções.
A infância ocupa um lugar demarcado no quadro populacional mais amplo de um determinado espaço demográfico, de acordo com os diferenciais característicos de geração e de faixa etária. De acordo com Sarmento (2005, p. 365), sob um olhar sociológico, esse campo semântico reconceitualiza o conceito de geração, marcando um tempo histórico/sociológico “[...] sem perder de vista as dimensões estruturais e interacionais”.
Diversas significações sobre criança e infância, e sobre objetos que lhes afetam, supõem um campo simbólico no qual se inserem diversos grupos sociais, constituídos tanto por adultos quanto por crianças. Para estudar construções de significados, em contextos interacionais específicos desses grupos, a Teoria das Representações Sociais (TRS) se apresenta fecunda.
De acordo com Moscovici (2003), as representações sociais expressam a construção social de um saber de senso comum, elaborado por e dentro das interações sociais, por meio de imagens, valores, crenças, estereótipos. São compartilhadas por grupos sociais no que concerne a diferentes objetos, pessoas, acontecimentos, dando lugar a uma visão comum das coisas. Nessa perspectiva, as representações sociais são um conjunto de conceitos, afirmações e explicações sobre objetos e eventos que se originam no cotidiano e que, no decurso das comunicações, são compartilhados pelos membros de um grupo social, servindo para orientar comportamentos e práticas.
Segundo Jodelet (2001), as representações sociais são importantes na vida cotidiana porque nos guiam no modo de nomear e definir conjuntamente os diferentes aspectos da realidade diária, no modo de interpretá-los, tomar decisões e, eventualmente, posicionar-nos frente a eles de forma defensiva. Para a autora, a representação social se refere a como os sujeitos apreendem os acontecimentos da vida no dia a dia. Em outras palavras, o conhecimento é adquirido por meio da compreensão alcançada por indivíduos que pensam, porém não sozinhos, pois a semelhança de ideias dos indivíduos de um grupo demonstra que pensaram juntos sobre um mesmo assunto. Assim, a representação social é elaborada na rotina diária das pessoas, refletindo a produção de saberes no cotidiano.
Resumindo, as representações sociais podem ser definidas como um “conjunto de crenças e saberes socialmente construídos, socialmente partilhados, com os quais e através dos quais nós pensamos, falamos, decidimos fazer o que fazer, nos apropriamos do mundo e lhe damos sentido” (GUARESCHI, 2012, p. 8). Para Lima et al (2006 p. 117)
quando as representações sociais são elaboradas por sujeitos, as noções e conceitos formulados imergem nas práticas sociais e nas diversidades grupais, atribuindo sentido à realidade cotidiana, orientando as condutas do homem e produzindo identidade social. Em suas interações sociais, o sujeito não só elabora conhecimento como, também, socializa-se. Ou seja, os valores e as ideias circulantes na sociedade vão sendo reconstruídos constantemente, influenciando, assim, a identidade social dos grupos.
Ao apresentar a Teoria das Representações Sociais (TRS), Moscovici (2012) afirma que não existe recorte entre o universo exterior e o interior do indivíduo e que não há separação entre o sujeito e o objeto em seu campo comum. O autor também considera que, por não ser fácil transformar palavras não familiares, assim como as ideias ou os seres, em palavras e atitudes familiares, são necessários dois mecanismos: a ancoragem e a objetivação. Esses processos estão intimamente ligados e são modelados por fatores sociais. O primeiro processo corresponde à tentativa de ancorar ideias estranhas em imagens comuns, tornando-as familiares:
ancoragem é um processo que transforma algo estranho e perturbador, que nos intriga, em nosso sistema particular de categorias e o compara com um paradigma de uma categoria que nós pensamos ser apropriada. É quase como ancorar um bote perdido em um dos boxes (pontos sinalizadores) de nosso espaço social (MOSCOVICI, 2012, p. 61).
O segundo processo, a objetivação, é aquele que transforma algo abstrato em algo próximo ao concreto. Assim, objetivar é tornar concreto ou materializar o conhecimento em palavras, é transformar o conceito em figura (MOSCOVICI, 2012). Moscovici (2003), define os processos de objetivação e ancoragem como aqueles que contribuem para nos familiarizar com o novo, primeiro colocando-o em nosso quadro de referência, onde pode ser comparado e interpretado, e depois reproduzindo-o e colocando-o sob controle.
Esses aspectos da TRS tornam possíveis relações com a perspectiva da psicologia do desenvolvimento, particularmente a proposta por Duveen (2011), que a inclui em estudos de representação social. De acordo com Chombart de Lauwe e Feuerhahn (2001), a representação é um mecanismo relevante para estudos sobre a infância. Ela aparece como um instrumento de cognição que, por meio de sensações, ações e experiências, confere sentidos e valores fornecidos pelo meio, principalmente em suas relações e trocas com o outro. Castorina (2013), afirma que a criança só tem acesso aos conhecimentos na medida em que participa da vida grupal e institucional, conforme lhe é permitido. Logo, da mesma forma que sofre influência do grupo, a criança reelabora estas informações.
Entendemos que esse saber funciona como orientador, considerando que as representações já estão inseridas no contexto das crianças. Vale ressaltar que, ao mesmo tempo que entram em contato com estes conteúdos, elas vão elaborando novas possibilidades. Faz-se necessário que se tenha o olhar cuidadoso e atento ao status social dos pequenos como sujeitos de representações sociais (ANDRADE, 2014) ou como se tornam protagonistas e se posicionam diante do todo a sua volta.
De acordo com Duveen (2011, p. 214) “a criança figura como objeto para representações e […] gradualmente ela começa a internalizar essas representações. Ao fazer isso, também chega a identificar sua posição própria dentro do mundo”, o que pode indicar transição de objeto a sujeito que forma representações. O autor estabelece relações entre a TRS e a psicologia do desenvolvimento, dentro de uma perspectiva genética das representações sociais. Esse ponto de vista especifica a transformação do conhecimento em formas mais avançadas de desenvolvimento, permeadas por sua construção social que traz da teoria sociocultural as tradições do conhecimento do senso comum. O autor se preocupou em reafirmar o processo através do qual as crianças incorporam as crenças e o conhecimentos de sua comunidade, adquirindo uma identidade social e transformando-se em atores sociais.
Entendemos que a obra de Moscovici não é fechada, e por isso demanda a aproximação de teorias do desenvolvimento infantil, como as propostas por Piaget, Vygotsky e Wallon. Duveen (2011) iniciou esse debate, sobretudo quando faz pensar no potencial de criação das crianças enquanto produtoras de cultura. Andrade, Souza e Seidmann (2019) contribuem também ao dialogarem com a abordagem histórico-cultural. Consideramos que o estudo aqui apresentado dá pistas para a continuidade dessas discussões.
Metodologia: a bússola que dá o norte
Optamos pela pesquisa qualitativa, que atribui relevância aos discursos subjetivos sobre o objeto analisado, possibilitando, assim, estudar suas particularidades e experiências individuais. É uma orientação que segue tradição compreensiva ou interpretativa e que considera os significados do comportamento humano e seus discursos. Ela parte do princípio que, para compreender o significado de um comportamento, é preciso situá-lo nas interrelações que emergem do contexto social (ALVES-MAZZOTTI; GEWANDSZNAJDER, 1999).
Apresentamos a análise microgenética como opção metodológica, com base na abordagem histórico-cultural como referencial para a investigação de problemas de pesquisa em Educação. Inspirada principalmente na obra de Vygotsky, que se ocupa do estudo dos sujeitos nas ações e interações nos grupos (GÓES, 2000).
Segundo Meira (1994), o termo “micro” remete-se à observação das minúcias, dos detalhes, e o termo “genética” focaliza o movimento do comportamento dos sujeitos, suas relações com outras pessoas. Uma pesquisa de base histórico-cultural, significa considerar condições históricas com objetivo de focar o movimento do sujeito durante os processos, relacionando-os a condições passadas e presentes. De acordo com Tomio, Schoroeder e Adriano (2017), a palavra “micro”, neste contexto, não se refere ao sentido literal da palavra (minúsculo), mas a um tempo relevante, cuidadosamente observado, analisado e transcrito.
Por se tratar aqui de uma pesquisa de campo em que a escuta em contexto específico se fez necessária, foi adotada a técnica de observação através da videografia. Pela utilização da gravação/filmagem, foi necessário planejar de forma cuidadosa e criteriosa a observação das experiências que seriam vivenciadas pelas crianças para que os dados produzidos pudessem ser analisados posteriormente. De acordo com Victora, Knauth, Hassen (2000), é importante compreender que as ações individuais e grupais, a linguagem corporal e a dinâmica da temporalidade em que acontecem os fatos são essenciais, não somente para a produção de dados, mas como fontes para posterior interpretação.
Foram realizadas oito visitas à creche, entre 2018 e 2019, para que as crianças se familiarizassem com a pesquisadora e os materiais. O grupo era composto por dez crianças na faixa etária de três anos, meninas e meninos. Crianças incluídas não faziam parte dessa turma na creche. Todas residiam na comunidade, constituída por muitos moradores oriundos da Região Nordeste do Brasil. Essas informações foram obtidas junto à secretaria da creche. Por se tratar de estudo com seres humanos, o projeto dessa pesquisa foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da Universidade Estácio de Sá (CAAE: 01363418.7.0000.5284). Foram gravados 86 minutos de atividades, divididos em três dias de filmagem. Desse modo, as crianças brincaram livremente com os diferentes brinquedos oferecidos pela pesquisadora: bonecos de policiais, helicóptero e o caveirão, por fazerem parte das ações policiais e do cotidiano da favela. Durante esses momentos de brincadeira, foram selecionados para análise somente os diálogos relacionados aos objetivos da pesquisa. O recorte foi dado para falas e movimentos que expressavam a dinâmica das ações do policial, por este ser o objeto de investigação.
As informações foram organizadas sem categorias previamente definidas. A análise ocorreu com o material já todo coletado, buscando garantir a coerência teórica e metodológica. Para efetuar a análise do material filmado, foi necessário selecionar imagens e diálogos relevantes, o que nos levou a escolhas e decisões que fossem significativas e que tivessem ressonância nos objetivos de estudo e no referencial teórico. Assim, o filme foi revisto várias vezes, na sua totalidade, para posteriormente descrevermos as cenas, transcrevermos os diálogos e extrairmos as unidades de análise que se constituíram em falas, sons e gestos expressando ações dos policiais durante atuações da polícia na favela.
Para a produção dos dados foi confeccionada uma maquete do morro, com réplicas de moradias, moradores, veículos, transeuntes e animais que transitam pela favela, reproduzindo assim a comunidade. Os brinquedos são objetos empregnados de significados e representações da infância (KISHIMOTO, 1994). Enquanto as dez crianças participantes manipulavam os brinquedos e ressignificavam os seus usos, a pesquisadora pontualmente conversava com elas, individualmente e/ou em grupo, buscando os significados sobre a “polícia”. Os diálogos foram transcritos e nesse sentido a videogravação se constituiu em adequado recurso metodológico.
Inicialmente, ao observarem a maquete, as crianças apontaram a ausência de alguns elementos presentes no cotidiano, tais como: pontos comerciais, moradias, características como cores e formas presentes no contexto da favela. Após essa conversa foi combinado que seria feita a reorganização da mesma. Foi acordado que os espaços que compõem o cenário da favela seriam confeccionados coletivamente e incorporados à maquete. A pesquisadora voltou à creche munida de caixa de papelão, embalagens, argila, gesso, tinta e sucata em geral, para que juntamente com o grupo de crianças a maquete fosse ampliada e ressignificada de modo que elas vissem a comunidade ali representada. Foram incluídas construções como a própria creche, casas e pontos básicos do contexto, além de objetos que as crianças pudessem manipular (helicóptero da polícia, bonecos representando crianças, professores, policiais, familiares, comerciantes locais, moradores, entre outros). Elas brincaram individualmente ou em grupo, com a mediação da pesquisadora.
Resultados e Discussões... A Dinâmica da Brincadeira
No primeiro encontro, as crianças rodearam a pesquisadora e queriam saber quem era ela, o que tinha no saco que carregava e se ia ficar para almoçar com o grupo. O momento da brincadeira foi sempre um convite. Embora fossem 10 crianças na sala, todos tinham a liberdade de se levantar para brincar de outra coisa ou para pegar outro brinquedo e inseri-lo na “nossa” brincadeira.
Na segunda visita, o espaço foi organizado com dois celulares com boa câmera de imagem e som, com a colaboração e participação direta das crianças. Optamos por colocar os celulares em cima de uma mesa, de frente para as outras. As crianças sabiam que seriam filmadas e, conforme os aparelhos eram posicionados, corriam para frente dos celulares fazendo caretas e pulando.
Desde o primeiro momento foi possível perceber o grande interesse pelos “bonecos policiais”, helicópteros, carros da polícia e o “caveirão”, nome popular de blindados da polícia que circulam pelo morro com o desenho de uma caveira. Os pequenos ficaram fascinados por esses brinquedos. De acordo com Bomtempo (2005), no Brasil, crianças que vivem nas favelas onde predomina a luta entre policiais e bandidos têm como tema preferido de suas brincadeiras esses conflitos. (BOMTEMPO, 2005).
Foi necessária uma negociação para que se acalmassem e se sentassem em círculo. Fizemos alguns combinados: a brincadeira aconteceria com todos sentados no chão, cada um brincaria um tempo com o brinquedo escolhido e depois passaria para um amigo que manifestasse a vontade de também brincar com o brinquedo. As crianças tiveram oportunidade de manusear e de brincar com os brinquedos escolhidos. Em seguida serão transcritos os episódios principais, para posterior análise.
Episódio 1 – O Caveirão não é só um blindado (Duração 7´16)
CR12: Pega o boneco policial e diz: Ah, vou te matar!
P3: Por que você vai matar ele?
CR1: Sou mau mato todo mundo!
CR2: Não mata nada, né tia? Esse boneco é de mentirinha.
CR3: Mas ele pode bater. A "polícia" entrou na minha casa e bateu no meu irmão.
(As crianças brincam, mas sem diálogo. Depois de um tempo CR1 responde a CR2).
CR1: Viu, então ele morreu.
CR3: Não morreu nada! Só saiu sangue da boca. A "polícia" é mau. Mau igual ao "caverão".
P: Igual ao "caverão"? Não entendi!
CR2: É "quinem" cachorro latindo bem fooooorte!
P: Quem é igual ao Caveirão? Como é cachorro latindo forte?
CR2: Bate na perna e diz: o "polícia" que é mau (imita o latido do cachorro e as outras crianças concordam, falam ao mesmo tempo e começam a imitar o som de latidos, em tom bem forte).
P: Ei, assim todo mundo junto não estou entendendo nada!
CR1: Não é nada cachorro! É leão que é mais mau. (faz o rugido do leão e põe as mãos em posição de garras)
P: Nossa, porque o leão? (Nesse momento todas as crianças imitam o leão).
P: Mas por quê? (As crianças começam a falar ao mesmo tempo).
CR1: Porque ele é mais forte.
CR2: Porque ele tem arma, mata e é mau.
CR4: Porque o "polícia" tem "agema" que agarra e prende. Você viu no filme que o "leião" agarra? Entendeu? (Ela estava se referindo ao filme do Rei Leão na cena que Scar – leão mau, com as patas, pisa no pescoço do Zazu, o pássaro).
CR2: Ela não é burra! (Se referindo a pesquisadora)
Nesse momento, o grupo de crianças começou a dispersar e a pesquisadora disse: “Bem, agora preciso ir... outro dia volto para brincar mais”. Umas fazem muxoxo4, mas a maioria concorda e já se levanta para outra brincadeira. Após análise das falas é possível identificar algumas recorrências de enunciados trazidos pelas crianças. As palavras mau/ferocidade apareceram nove vezes e as palavras matar/morte sete vezes.
As crianças convivem regularmente com a dinâmica das operações policiais nas comunidades. Assim, desde os primeiros momentos de observação das brincadeiras e das conversas, fica evidente a familiaridade com que conversam sobre polícia, morte e maldade. Durante a brincadeira, quando perguntado o porquê de um policial parecer com um cachorro latindo, a criança trinca os dentes e imita um cão latindo ferozmente para mostrar o quanto o animal é perigoso. Ao serem perguntadas sobre quem é igual ao “Caveirão” e ao cachorro latindo forte, as crianças respondem que é o “polícia”. Reafirmam, quase em uníssono, que o “polícia é mau”. Em suas narrativas também apresentam o leão como referência aos “polícias” que veem no morro. Indagadas sobre o porquê de o leão parecer com o “polícia”, descrevem a ferocidade do animal e mais uma vez fazem relação com o “polícia”. Comparam e identificam a maldade do policial com a do Scar, (personagem do filme O Rei Leão) quando este pisa no pescoço do pássaro Zazu.
Quando o blindado “Caveirão” se locomove pelas ruas da comunidade, que são asfaltadas, é possível ouvir o som de suas rodas pesadas se movimentando no chão. O “Caveirão” se utiliza de um megafone como meio de comunicação com os moradores. O som que sai de dentro do blindado é alto, forte e intimidador. Em adição aos tiros que são trocados entre traficantes e policiais, a cena torna a incursão e a figura do policial ainda mais assustadoras.
Episódio 2 – Era uma vez o Scar e não era o do Rei Leão (5´39)
Ao retornar para uma outra visita, percebemos que algumas crianças lembram o nome da pesquisadora e imediatamente perguntam-lhe se havia levado os bonecos. A partir da afirmativa e diferente da primeira visita em que tivemos que negociar para iniciar a brincadeira, dessa vez, sem que lhes fosse pedido, as crianças deixam de brincar com os brinquedos da sala e correm para se sentar na rodinha. O diálogo se iniciou:
P: Hum, trouxe tudo... Como vamos brincar?
CR2: Quero o "helicópo" e a "policia"; não quero a boneca.
P: Vamos ter que decidir junto com os amigos, porque eles também querem escolher.
CR2: Mas, se você der para CR1, ele vai matar de novo (CR2 lembra da visita anterior).
P (para todas as crianças): Então, como faremos? (Umas ficam quietas pensando, outras dizem que não sabem. Até que uma das crianças dá uma ideia).
CR5: Faz assim... Dá os brinquedos para quem não brincou.
P: Mas todas (as crianças) brincaram com os brinquedos.
CR5: Gesticulando e com voz e impaciente... Dá o "helitopquero" e os "policia" para quem não brincou!
P: Ah, entendi... E aí pessoal, pode ser assim? (As crianças fazem um muxoxo concordando e os brinquedos são distribuídos).
CR1, que não ganhou um dos brinquedos, diz para CR5: Quando eu pegar o "polícia" vou lá na sua casa matar todo mundo.
P: Por quê?
CR1: Porque sim.
P: Hum, não gosto dessa resposta de porque sim.
CR1 sai da roda resmungando
P: Outro dia alguém disse que a “polícia” parecia o leão. Quem pode contar isso para CR6, que não estava aqui naquele dia?
CR2, CR3 e CR4 (falando todas ao mesmo tempo): a gente "falô" que a “polícia” era "leião" (faz o som do rugido) porque ela é muito forte e mau (levanta os braços). Que ela prende e não solta mais.
CR6: Solta sim!
CR1 (que até então estava fora): Solta e depois mata! (Fala e olha para os amigos buscando cumplicidade).
CR2: Ô tia, ele tá falando de novo que vai "matá"!
CR4: "Leião" só prende e machuca... (fala baixinho), mas ele é mau!
CR1 (fala olhando para CR3): O “polícia” é mau e machuca, né? Eles foram lá no beco e bateram no Robin, né? Ele ficou cheio de sangue, né? E foi pro hospital, né? (CR3 concorda). Robin é meu primo e é legal.
CR3 (bastante exaltado, fala olhando para CR1): diz pra ele (referindo-se a CR4) que o “policia” é mau e também mata. (CR1 afirma com a cabeça e conta que o “polícia” também pegou o celular e dinheiro do pai dele. Neste momento, as crianças falam ao mesmo tempo com CR4 e vão narrando alguma experiência truculenta, em relação a polícia, que já presenciaram ou ouviram relatos dos pais. CR4, então, concorda com os amigos).
P - pergunta, então, como e onde eles viram tudo aquilo acontecer. As crianças contam que foi perto de casa, no beco, na “vilinha”.
A partir desse momento, as crianças começam a imitar leão e ao mesmo tempo relatam experiências negativas vividas com a entrada da polícia em suas casas. São relatos de policiais batendo no rosto do pai ou do irmão, colocando a arma na cabeça deles, arrombando porta, jogando móveis no chão, revirando gavetas. Assim, de forma explícita, como se não percebessem nossa presença, as crianças deixam claro o que pensam a respeito da violência que presenciam diariamente e o quanto isto as assusta. Após análise das falas foi possível identificar algumas recorrências de enunciados trazidos pelas crianças: as palavras matar/morte apareceram quatro vezes e mau/ferocidade três vezes.
Assim como ocorreu no primeiro episódio, foi possível perceber que o sentimento de medo atravessa, de modo contundente, as falas das crianças, mas nem por isso as silencia. Elas relatam, com familiaridade, as experiências e o que pensam sobre os momentos de violência em seu dia a dia. Nas narrativas estão presentes os momentos de agressão vividos por parentes ou conhecidos.
Outro elemento constatado, foi a argumentação. Quando encontram alguém que se opõe à ideia deles, imediatamente buscam apoio e cumplicidade nos demais, para convencer os amigos destoantes de suas convicções. Tal ação dialoga com a concepção da “infância com possibilidade de acontecimentos inusitados” e nesse caminho “essa significação destaca o potencial criativo das crianças” (ANDRADE, 2014, p.148).
Episódio 3 - Caveirão e Scar não são personagens (Duração 20´)
A chegada à escola no dia em que esse episódio foi filmado foi peculiar. Havia operação no morro e a quantidade de policiais, carros e helicópteros sobrevoando era muito maior do que o habitual. Embora não houvesse tiroteio, só a presença do BOPE5 e da Policia Militar, de forma mais ostensiva, mostravam o risco da situaçao. As crianças estavam agitadas. Foi proposto que todas se sentassem em círculo, para conversarmos. Não foi uma tarefa fácil, pois elas queriam contar o que tinham visto até chegarem à creche.
Entendendo o momento que estava sendo vivido ali, sentamo-nos e deixamos que todas falassem o que quisessem. Todos falaram ao mesmo tempo, querendo atenção e com a urgência de contar tudo, rápido e de uma só vez. Aos poucos, vão ficando menos agitados. Alguns lembraram que este seria nosso último encontro. Pegamos a maquete, os brinquedos, armamos no chão, começamos a brincar e os diálogos se iniciaram:
CR6: (pega no rosto da pesquisadora para demonstrar que quer atenção total): O “Policia” tem uma arma beeeem grande (e faz o gesto com a mão). Perguntado sobre como viu, respondeu que a arma estava bem pertinho dele. CR4 fala que também viu e saiu correndo. Perguntado por que ele saiu correndo, ele responde que o “polícia” ia matar ele. Dizemos que não, que a polícia não ia matar. Ele insiste em dizer que ia matar sim. CR1, CR2, CR3, CR5 CR6, e CR7 concodaram que ia matar, sim. Argumentamos que a “policia” apenas pega o bandido. Nossa observação causou alvoroço.
CR5 diz que não é só bandido, não. Conta que o “polícia” pegou o irmão e o tio dele.
CR8 diz que o “polícia” também levou a mãe. A partir daí as crianças voltam a falar juntas. São falas que trazem a experiência de quem presenciou a truculência da polícia com familiares, vizinhos.
P: Outro dia alguém disse que a polícia era igual ao Caveirão.
CR3 levanta a mão e diz: Eu!
P:Entendi. Me diz uma coisa: Igual ao Caveirão como?
CR3 levanta as sobrancelhas e arregala os olhos, fazendo uma cara feia.
P: Brinca e diz: Ui, que medo!
CR3 responde: Sou forte e feroz! Não “percisa” ficar com medo; é de mentirinha.
CR4 entra na conversa e diz. Ele (o Caveirão) atira, mas não mata. CR2 afirma que mata, sim, e chama CR5, CR3, CR1 para confirmar. Dizem, todos ao mesmo tempo, que o Caveirão e a polícia levam as pessoas (não chamam de bandidos), e, depois elas morrem. CR2 fala para CR4 que fulano entrou no Caveirão e depois caiu na vala. Conta que depois vão para o cemitério e encontram com Deus.
P: Me surpreendo (é a primeira vez que Deus aparece). Pergunto se Deus está no cemitério? Uns respondem tááááá! Continuo... Vocês sabem onde é o cemitério? Respondem que não com a cabeça e dizem que é lá looonge!
As crianças brincaram mais um tempo com os brinquedos e informamos que estava quase na hora do almoço e que íamos embora. Elas nos convidam para almoçar, o que foi prontamente aceito. Após análise das falas é possível identificar algumas recorrências de enunciados trazidos pelas crianças: as palavras matar/morte apareceram quatro vezes, e mau/ferocidade três vezes.
A presença de maior efetivo da polícia na comunidade suscitou novos elementos aos dos significados atribuídos aos policiais e trouxe representações a respeito da morte e da figura de Deus. Ao comentarmos que o policial somente pega o bandido, as crianças nos apresentam a apreensão que fazem da realidade, mostram-nos que no cotidiano, na realidade deles, a polícia não pega apenas o bandido, pega seus familiares. Mesmo que tenham envolvimento com a criminalidade, para as crianças são pessoas boas. A polícia é “mau” porque humilha, prende e mata pessoas que elas não reconhecem como criminosas.
Outro aspecto a destacar é a relação que estabelecem entre o real e o imaginário, quando uma das crianças diz “ser de mentirinha”, ao imitar o policial que é igual ao Caveirão. Os temas maldade, ferocidade e morte são retomados mais uma vez e emergem do relato a vala, o cemitério e a figura de Deus, na narrativa em que o Caveirão leva as pessoas que, depois, caem na vala, vão para o cemitério e se encontram com Deus. Há uma sequência lógica estabelecida nos diálogos, reproduzida ou não a partir de falas dos adultos com quem convivem essas crianças. Elas elaboram, formulam hipóteses e atribuem significados ao que acontece na comunidade em que vivem e buscam meios para lidar com as situações que vivenciam no cotidiano. Isto reforça que são protagonistas de suas próprias histórias.
A análise dos dados nos levou a retomar a obra seminal de Moscovici (2012), em que o autor propõe um “modelo figurativo” em estudos de representações sociais, posteriormente designado “núcleo figurativo” (MOSCOVICI, 2003). O autor se refere a este núcleo como um esquema que organiza os elementos da representação, dando a ela concretude por meio de uma imagem. Não é apenas um modo de classificar as informações, mas o resultado da coordenação que caracteriza os termos da representação Formas abstratas tornam-se assim compreensíveis, indicando a “objetivação”, um dos processos formadores da representação social (LIMA e CAMPOS, 2020).
Mazzotti (1998, p. 4) relaciona o núcleo figurativo a figuras de pensamento, mais especificamente às metáforas. Para o autor, a metáfora é, ao mesmo tempo, um produto, resultado de um processo, e o processo pelo qual o ‘novo’ é assimilado nas representações prévias: “O processo de metaforização se faz pela transformação do ‘objeto’ em algo que se apresenta como uma ‘imagem’, materializando-o na forma inteligível para o grupo social, o qual é o ponto de apoio ou âncora das significações postas na metáfora”.
Com essa fundamentação procuramos nos dados analisados metáforas ou elementos que pudessem organizar os discursos e gestos das crianças, indicando uma representação de “polícia” construída pelo grupo. Em um primeiro momento, o “medo” foi considerado este termo organizador dos discursos (FERREIRA, 2019). Posteriormente, ao se refletir mais sobre os resultados, consideramos que o “medo”, embora muito relevante na análise, não traduzia exatamente a dimensão imagética, tão característica do modelo figurativo.
Para as crianças participantes da pesquisa, a figura do policial está atrelada à maldade, à ferocidade. Em alguns momentos elas se aproximam da "farda" de modo positivo, pois desejam o boneco para brincar. E brincando com a figura do policial se sentem autorizadas a “serem más”. Em seus diálogos, o medo fica evidenciado como consequência das ações de alguém que as ameaça.
Ao propormos a brincadeira com os brinquedos que representam pessoas e elementos que circulam na comunidade onde vivem, tínhamos intenção que as crianças falassem por si e que falassem entre elas. Nos diálogos observados, elas expressam a violência que vivenciam diariamente, particularmente gerada pelos conflitos provocados pela polícia no morro. Desse modo buscamos ilustrar, na Figura 1 um esquema representacional que tem como base a ideia de um modelo figurativo da representação de “polícia” construída pelas crianças.
Os termos apresentados na Figura 1 se basearam, principalmente, em metáforas espontâneas expressas pelas crianças. Segundo Dias (2005), a metáfora, com suas múltiplas possibilidades de combinação, possibilita a mediação entre a realidade e o pensamento. Assim, as metáforas, “leão ferroz”, “cachorro latindo”, e “Caveirão” revelaram, por meio de formas imagéticas, uma relação de subjulgação impressa pela figura do policial por uso da força. A polícia “má”, “perigosa”, que “machuca” e “mata” gera medo nessas crianças. Desse modo, o “medo” é analisado como uma reação delas à violência policial.
Mais questões do que conclusões
Tendo as crianças como sujeitos, o estudo buscou investigar a representação social de “polícia” para elas. Foi possível perceber que, apesar da influência do adulto em suas vidas, mesmo com pouca idade, três anos no caso dessa pesquisa, elas conseguem utilizar estratégias para inferir, negociar e argumentar, expressando seus pensamentos e sentimentos. Os dados gerados nesse grupo permitem reforçar a hipótese que, dependendo do contexto e do objeto que as cercam, a criança pode formar representações sociais. O “medo” provocado pela polícia materializada no policial “mau”, perigoso”, que “machuca” e “mata”, faz com que as crianças se comuniquem a respeito do tema, conversem entre si, troquem ideias, compartilhem informações. Evidentemente, a hipótese aqui apresentada precisa ser desenvolvida em outros estudos.
A pesquisa mostrou as vivências das crianças em um contexto específico e o modo como tais vivências podem tanto gerar representações quanto ser constituídas por elas. O contexto de violência e precariedade socioeconômica em que vivem foi fundamental para a compreensão da representação que têm da polícia. Quando escolhem brincar com algemas, helicóptero e bonecos policiais, deixam claro, em suas falas, a intenção de utilizar esses objetos para dar legimidade a ações agressivas. Ao sentirem medo da polícia, mostram que não confiam no Estado que supostamente deveria estar alí para protegê-las. Ao mesmo tempo, expressam afetos por pessoas próximas, na maioria das vezes familiares, agredidas pela polícia e não criminosas para elas. Sua construção identitária se faz nesse contexto em que a aproximação maior tende a ser com o traficante, formando um círculo perverso que inspira uma questão: “Quem está cuidando das perspectivas de vida dessas crianças?”. É nesse contexto de desamparo que elas representam o “policial”.
Retomando o referencial da TRS, na perspectiva de buscar os processos formadores da representação social de polícia para as crianças, pudemos evidenciar com mais clareza indícios do processo de objetivação: a concretização por meio da imagem do policial mau, perigoso, que machuca e mata, experessa principalmente nas metáforas “cão latindo”, “leão feroz”, “Caveirão”. Para a ancoragem, enraizamento da representação no espaço socio-cultural, seria necessário maior aprofundamento dos contextos histórico, sociológico, antropológico em que o objeto “policia” está inserido para as crianças. Trata-se de um desafio para estudos ulteriores de representações sociais, principalmente em sua relação com a perspectiva da psicologia do desenvolvimento. Que repertório histórico teria uma criança de três anos para “ancorar” sua representação social de polícia? Se para “ancorar” ela precisa se apoiar em representações de adultos, como se daria esse processo de negociação de significados? Ao considerarmos as crianças como sujeitos, produtoras de representações, não há dúvida de que outros estudos precisarão ser realizados nessa direção.
Considerando a situação de crianças que moram em comunidades/favelas, a pesquisa tem também o papel político, ético e pedagógico de denunciar formas de violência e de maus-tratos sofridos por elas. Esse estudo é um campo aberto e propõe elementos introdutórios e provisórios para a realização de outros trabalhos. Em seu conjunto, ele nos provocou várias indagações: como educar crianças em contextos tão violentos? É possível pensar em uma “educação em valores”, como propõem autores como Piaget, Wallon e Vygotsky? O que fazer quando as crianças estabelecem relações afetivas com o traficante (o tio, o irmão, o pai...) e rejeitam a polícia (o estranho que invade, bate...)? É possível mensurar o impacto da violência policial na saúde emocional, na aprendizagem escolar das crianças e na formação deste sujeito como cidadão? Como as secretarias de Educação, de Segurança Pública, de Saúde e de Desenvolvimento Social dialogam, numa perspectiva de responsabilidade sobre a infância carioca, diante da imagem tão negativa que a criança tem do policial, já aos três anos de idade?
Entendemos que uma contribuição foi dada ao mostrarmos que a violência, presente nos espaços mais fragilizados, atinge de forma cruel e crescente o universo infantil e deve ser compreendida enquanto aspecto social que interfere direta e indiretamente nos processos de desenvolvimento e educativo das crianças. Espera-se que as secretarias envolvidas possam refletir acerca da necessidade de um trabalho mais coletivo que reverta a situação de violência constante, presente na vida dos meninos e das meninas dessa cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro.