1 INTRODUÇÃO
Ao longo da última década, temos verificado o crescimento dos indicadores relativos à formação de professores-pesquisadores, no contexto da pós-graduação stricto sensu no Brasil, de modo especial, nos cursos organizados na modalidade mestrado profissional (MARQUEZAN; SAVEGNAGO, 2020). Atualmente, a Coordenação de Pessoal de Nível Superior (CAPES) anuncia o total de 191 Programas de Pós-Graduação em Educação e 185 em Ensino, ofertando 94 cursos de mestrado na modalidade acadêmica (50 em ensino e 44 em educação) e 134 na modalidade profissional (49 em educação e 85 em ensino) (PLATAFORMA SUCUPIRA, on-line).
A formação em nível de mestrado é uma experiência vivida por muitos educadores que buscam na pós-graduação stricto sensu uma oportunidade de desenvolvimento profissional que supere a perspectiva da racionalidade técnica historicamente presente no contexto educacional brasileiro e que compreende esses sujeitos como meros consumidores de conhecimentos produzidos por especialistas, negando, assim, o reconhecimento deles como intelectuais (GHEDIN; FRANCO, 2011).
É necessário destacar que a aprendizagem da pesquisa e a construção de conhecimento sobre a educação são perpassadas por desafios diversos relacionados às condições materiais de formação, de vida e trabalho dos mestrandos (LIMA; COSTA, 2017). Esta realidade demanda dos professores dos programas de pós-graduação a construção de estratégias que tornem significativos os diálogos entre formação teórica e a vivência investigativa, sem perder de vista as relações com a dimensão experiencial da formação desses sujeitos. Nesse processo, destaca-se a necessária articulação de três importantes referências: a Educação como prática história e socialmente situada; a Pedagogia como Ciência da educação; e a Didática como parte dessa ciência que investiga fundamentos e determinantes que atravessam os fenômenos educativos e os modos de ensinar.
Este artigo objetiva, então, refletir, a partir dos contributos da Didática, sobre os limites e as possibilidades da formação vivida por professores da educação básica vinculados ao Mestrado Profissional em Ensino e Formação Docente, ofertado por duas Instituições de Ensino Superior no Ceará - Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (UNILAB) e Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará (IFCE). Metodologicamente, assenta-se na abordagem qualitativa, com base na análise documental e recorrendo à análise de registros pedagógicos produzidos pelos mestrandos da primeira turma do programa. Os principais aportes teóricos utilizados foram Pimenta (2019), Franco (2019), Diniz-Pereira (2014), Candau (2012), Ghedin e Franco (2011), Lima e Costa (2017) e Marquezan e Savegnago (2020), entre outros.
Assentada na abordagem qualitativa (GHEDIN; FRANCO, 2011), a investigação lançou especial olhar ao contexto e aos sujeitos, considerando a dinâmica de relações estabelecidas entre formação e exercício profissional dos mestrandos. O estudo foi desenvolvido em duas diferentes etapas: na primeira, foi realizada uma revisão de literatura, considerando os contributos de pesquisadores da área da educação sobre Didática e Formação de Professores. Na sequência, foram realizados os movimentos de levantamento e análise documental, considerando o histórico e o escopo do Programa de Pós-Graduação, assim como os registros pedagógicos produzidos por mestrandos da primeira turma, mais especificamente os diários de formação (COSTA; LIMA, 2019), propostos no componente curricular Pesquisa Educacional.
Os resultados apontam que a permanência na profissão é fator que dialeticamente limita e potencializa possibilidades formativas no contexto do Mestrado Profissional, permitindo concluir que o diálogo crítico entre a formação e a profissão, iluminado pelos contributos da Didática, é fundamental em cursos dessa natureza.
2 A DIDÁTICA E OS DESAFIOS DA FORMAÇÃO DO PROFESSOR-PESQUISADOR
Quando lançamos o nosso olhar sobre os processos educativos que se desenvolvem em espaços formais de educação, não podemos deixar de considerar como uma primeira e importante reflexão as relações que se estabelecem entre Educação, Pedagogia e Didática.
A Educação é uma prática social complexa voltada à formação dos sujeitos e à construção de suas subjetividades, buscando integrá-los a interesses e compromissos relacionados a projetos de sociedade (PINTO, 2017). Envolve, portanto, elementos históricos, culturais, políticos, econômicos, dentre outros que atravessam a existência humana e a afetam de diferentes maneiras. Assim sendo, é possível dizer que a Educação articula responsabilidades com processos de manutenção e transformação da sociedade, fato que confere a ela um caráter contraditório.
Diante do exposto, visualizamos a não neutralidade dos processos educativos, permitindo-nos compreender que, a depender de quem os orienta, é afirmado tanto compromisso de ordem emancipatória e inclusiva quanto de alienação e exclusão. Tal questão se constitui como referência-chave para elaborarmos uma leitura crítica dos processos educacionais que se dão de forma ampla, nos mais diferentes espaços de convivência social; e dos que se dão de forma restrita, em espaços formais de educação.
A partir do reconhecimento da complexidade inerente à Educação, a Pedagogia passa a fortalecer-se cada vez mais como Ciência que se dedica à tarefa de problematizar as finalidades dos projetos educativos, com vistas ao desvelamento das bases políticas e pedagógicas e dos horizontes formativos para onde conduzem os sujeitos. Nesse movimento, são identificadas as tensões e contradições que os atravessam e desafiam educadores, tanto em seu processo formativo quanto em seu exercício profissional como docente. Para Pimenta (2019, p. 29):
A pedagogia é a ciência que tem esse papel: estudar a práxis educativa com vistas a equipar os sujeitos, profissionais da educação, dentre os quais o professor, para promover as condições de uma educação humanizadora. Seu objeto de estudo é a educação humana nas várias modalidades em que se manifesta na prática social. Ao se debruçar sobre o fenômeno educativo, busca a contribuição de outras ciências que têm a educação como um de seus temas. A pedagogia investiga a natureza do fenômeno educativo, os conteúdos e os métodos da educação, os procedimentos investigativos, e articula as contribuições das demais ciências da educação sobre ele.
É importante destacar, a partir das reflexões trazidas pela autora, a necessidade de desenvolvimento de procedimentos de investigação próprios, que não desconsiderem os contributos de outras áreas de conhecimentos, como a Psicologia, a Sociologia, a História, entre outros, e nem percam de vista a compreensão de que é a Pedagogia a ciência que dispõe dos elementos necessários à compreensão do fenômeno educativo, “[...] a partir da ótica do pedagógico” (FRANCO; PIMENTA, 2016, p. 542).
No processo investigativo desenvolvido pela Pedagogia enquanto ciência da Educação, cabe à Didática o papel de lançar um olhar problematizador sobre os diferentes fatores (políticos, econômicos, culturais, entre outros) que se fazem presentes nos contextos sociais, o modo como atravessam a práxis educativa e os elementos que a fundamentam, estabelecendo contornos, limites e possibilidades aos processos de ensino. Esse movimento demanda dos professores-pesquisadores a articulação de aportes diversos que permitam a materialização de uma compreensão ampla do fenômeno educativo, numa perspectiva crítica, dialética e dialógica.
Verificamos, a partir das reflexões expostas, que qualquer discussão sobre Didática não pode se dar de modo descolado da Pedagogia e da Educação, tendo em vista as diferentes disputas, tensões e contradições que atravessam essas três referências e que atribuem a cada uma delas significados e compromissos distintos (CANDAU, 2012; PIMENTA, 2019). Há, de maneira constante, movimentos de disputa em torno dos elementos políticos e técnicos, colocando em evidência distintas racionalidades em torno dos processos formativos que ora concebem o professor como um técnico, cujo papel é ora consumir e reproduzir conhecimentos gerados por especialistas, ora é assumir o papel de intelectual, politicamente situado, que produz, a partir da investigação sobre as próprias práticas, conhecimentos sobre sua profissão.
Diniz-Pereira (2014), ao refletir sobre as diferentes racionalidades que vêm historicamente orientando a formação de professores no Brasil e em outros países, aponta que tanto a racionalidade técnica (de base objetivista) como a racionalidade prática (de base subjetivista) não são capazes de capturar a complexidade da educação, tendo em vista a maneira como lidam com a objetividade e subjetividade. Diante desta compreensão, o autor aponta para a racionalidade crítica (de base dialética) como aquela capaz de superar essa falsa dicotomia, lançando sobre a realidade um olhar pautaDo no reconhecimento da Educação como uma prática histórica, socialmente e politicamente situada, cujos compromissos e finalidades afetam e envolvem indivíduos e coletividade.
No atual contexto, marcado por valores neoliberais que atravessam todos os níveis e modalidades de ensino, torna-se cada vez mais evidente o avanço da dimensão técnica em detrimento das demais dimensões que constituem o exercício profissional docente, fato que reduz as possibilidades de compreensão crítica do próprio trabalho. Assim, são reiterados os embates políticos e pedagógicos em torno da formação de professores, a partir de novas e antigas referências que nos convidam, enquanto pesquisadores, a problematizar a serviço de que e de quem essas lógicas operam e com qual delas nos identificamos e nos comprometemos (FREIRE, 2011).
Encontramos nos estudos de diferentes professores-pesquisadores, pautados em uma Didática crítica (PIMENTA, 2019; FRANCO, 2019; DINIZ-PEREIRA, 2014), referências capazes de ampliar nosso entendimento acerca dos processos de formação docente. Dentre tais referências, destacamos, inicialmente, a necessidade de leitura dialética dos contextos, problematizando: o progressivo esvaziamento teórico, crítico e pedagógico da formação, distanciando-a de seus objetivos emancipatórios; o avanço dos processos de desprofissionalização e desvalorização do trabalho e dos saberes dos docentes; o aprofundamento da distância entre universidade e escola, teoria e prática, ensino e pesquisa, entre outras. Aliados a esses elementos, que se constituem como problemas comuns que atravessam a realidade do Brasil e de outros países, são apresentadas, também, possibilidades de desenvolvimento de práticas insurgentes, capazes de se constituir como pontos de resistência e defesa da educação pública de qualidade, como: aproximações dialógicas entre universidade e escola, reconhecendo ambas as instituições como locais de produção da profissão; valorização da experiência e dos conhecimentos produzidos por professores, mediante a reflexão crítica sobre a prática; reafirmação da importância da dimensão pedagógica nos cursos de formação inicial e contínua de professores, na graduação e na pós-graduação; a valorização da pesquisa como princípio formativo, com reconhecimento dos professores como pessoas, profissionais, intelectuais e lideranças.
Na próxima seção, abordaremos, de forma mais específica, a discussão sobre o mestrado profissional.
3 O MESTRADO PROFISSIONAL EM ENSINO E FORMAÇÃO DOCENTE UNILAB-IFCE E OS DESAFIOS DA FORMAÇÃO DO PROFESSOR-PESQUISADOR
A partir do avanço no processo de democratização do acesso da população brasileira à escolarização e das demandas formativas que emergem da sociedade contemporânea, marcada pelas rápidas transformações científicas e tecnológicas, a docência tem se tornado cada vez mais complexa, demandando investimentos na formação inicial e contínua dos professores. Assim, ao longo das últimas décadas, o Brasil vem registrando um significativo aumento nos indicadores relativos à qualificação profissional dos docentes, em nível superior, em cursos de graduação e pós-graduação (BRASIL, 2019).
No que diz respeito à formação dos professores no contexto da pós-graduação stricto sensu, destacamos, dentre os dados apresentados pela CAPES, o significativo número de Mestrados Profissionais avaliados e reconhecidos. Os dados disponíveis na Plataforma Sucupira, no extrato relativo às áreas de avaliação, podem ser visualizados no Quadro 1:
Programas e Cursos de Pós-Graduação Stricto Sensu - 2020 | ||||||
---|---|---|---|---|---|---|
Áreas | Programas - Mestrado | Cursos de Mestrado | ||||
Total | Acadêmico | Profissional | Total | Acadêmico | Profissional | |
Ensino | 185 | 50 | 85 | 231 | 87 | 94 |
Educação | 191 | 44 | 49 | 288 | 138 | 52 |
Fonte: Plataforma Sucupira (2020).
Marquezan e Savegnago (2020) apontam a trajetória histórica por meio da qual os mestrados profissionais vêm avançando nos processos de regulamentação no Brasil. Este processo, que teve início na década de 1990, passou por sucessivas mudanças, até chegarmos ao atual contexto em que os programas/cursos da modalidade profissional e acadêmica dispõem, igualmente, de validade nacional para os diplomas, por meio da avaliação realizada pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoa de Nível Superior (CAPES), do reconhecimento emitido pelo Conselho Nacional de Educação (CNE) e homologação concedida pelo Ministério da Educação (MEC).
Para Costa e Lima (2019), os mestrados profissionais se configuram como um espaço formativo de extrema relevância, considerando dois diferentes aspectos: a perspectiva de inclusão, pela oportunidade de retorno de professores da educação básica ao espaço da academia, em um ambiente historicamente negado a esses sujeitos - a pós-graduação stricto sensu; a possibilidade de construção de diálogos entre a escola e a universidade, culminando na ressignificação de teorias e práticas.
O Programa Associado de Pós-Graduação em Ensino e Formação Docente UNILAB-IFCE, aprovado pela CAPES no ano de 2019, teve seu reconhecimento homologado por meio do Parecer CNE/CES n. 654/2019 (BRASIL, 2019) e tem como objetivo “Formar profissionais qualificados para o exercício da docência por meio da pesquisa aplicada, de modo a gerar conhecimento no campo do ensino em sintonia com o debate contemporâneo da formação docente”. Sua estrutura é composta por um curso de mestrado, que recebe a mesma denominação, e se organiza a partir de duas linhas de pesquisa: Ensino e Formação e Currículo e Avaliação. Ambas, partindo do reconhecimento dos professores como pessoas, como profissionais e intelectuais, buscam dialogar com os contextos de trabalho, problematizando seus limites e possibilidades e analisando-os a partir de referenciais teóricos que lancem luzes sobre os fenômenos educativos, com vistas ao fortalecimento da práxis educativa.
O processo de formação dos mestrandos como professores-pesquisadores é perpassado por desafios que colocam em questão a distância entre as teorias produzidas pelo contexto acadêmico e os contextos de atuação profissional dos professores que atuam na educação básica (FRANCO, 2016), pouco interferindo na transformação das práticas educativas. Outro aspecto a ser considerado são as condições objetivas em que esses sujeitos realizam a formação no mestrado, muitas vezes marcadas por falta de apoio e carências de ordens diversas (LIMA; COSTA, 2017).
As estratégias formativas desenvolvidas na pós-graduação stricto sensu historicamente têm se direcionado à formação do pesquisador, relegando a um segundo plano as preocupações com o ensino e com a formação do professor. Nessa perspectiva, as escolas de educação básica e os sujeitos que a constituem são tratados como objetos, reiterando princípios presentes no pensamento moderno e no paradigma do positivismo clássico, como apontam Ghedin e Franco (2011). Assim, o desafio posto aos Mestrados Profissionais e à pesquisa em educação é construir uma perspectiva formativa dialógica, dialética e crítica que pressuponha a valorização dos contextos e dos sujeitos histórica, social e culturalmente situados.
5 O QUE ANUNCIAM OS DIÁRIOS DE FORMAÇÃO?
Analisando a produção escrita dos mestrandos por meio dos diários de formação, propostos por Costa e Lima (2019) como exercício de fortalecimento da autoria e da identidade dos professores como intelectuais, observamos que os sujeitos3 trazem elementos que interligam seus projetos de pesquisa com sua formação docente, em um movimento dialógico e dialético.
O modelo de educação que temos no Brasil não nos ensina a questionar e refletir para entender determinadas situações da realidade. Ao longo da nossa caminhada formativa, desaprendemos a fazer questionamentos, criar perguntas e formular hipóteses. Por isso a nossa dificuldade em escrever nossas pesquisas, questionando e refletindo sobre nossa realidade, principalmente educacional, lugar em que estamos inseridos. (E3).
[...] compreende-se que nenhuma pesquisa dará conta de toda a realidade, que cada objeto possui sua característica peculiar; desta forma, cabe ao pesquisador educar o seu olhar, que significa aprender a pensar sistematicamente e metodicamente sobre as coisas vistas, há de ser crítico. Isso surge com a dúvida, que argumenta a maneira pela qual as coisas se apresentam. (E8).
A partir da relação estabelecida entre pesquisa e trabalho docente, são evidenciadas bases de uma formação pautada no tecnicismo, em que, para ser professor, basta dar conta do currículo prescrito e executar os planos elaborados por “especialistas”. Tal perspectiva é denunciada por Schon (1983, p. 21), ao afirmar que “a atividade profissional consiste na solução instrumental de um problema feita pela rigorosa aplicação de uma teoria científica ou uma técnica”. O autor chama atenção para a racionalidade técnica ainda presente na atividade docente e nos convida a repensar os fundamentos presentes nos cursos de formação de professores e colocar em movimento o que ele chama de epistemologia da prática. Essa se encontra “[...] implícita nos processos artísticos e intuitivos os quais alguns profissionais trazem em situações de incerteza, instabilidade, excepcionalidade e conflito de valor” (SCHON, 1983, p. 49).
A epistemologia da prática configura-se como uma importante referência que lançou luzes sobre a formação de professores, de modo que a ação e a reflexão sobre esta ganhasse um estatuto epistemológico antes desvalorizado. Contudo, o foco que o autor lança sobre as práticas de modo individualizado foi alvo de críticas que apontavam a necessidade de ampliação do debate, valorizando também a importância do debate em torno do coletivo.
É possível visualizar tal questão na reflexão apresentada por Pimenta (2019), quando apresenta as práticas educativas como objetos de análise crítica, problematizadas a partir da dimensão política e, portanto, coletiva de sua profissão, permitindo o avanço das compreensões acerca das interfaces e contradições que se materializam permanentemente entre escola e sociedade. Dentre essas contradições, é possível identificar, por exemplo, o descompasso entre o discurso de valorização profissional e autonomia dos docentes, confrontados pelas condições precárias de trabalho e por uma visão de docência cada vez mais pautada na reprodução, assim como na formação reduzida a uma abordagem prescritiva e instrumental.
A valorização da dimensão profissional e pessoal é apontada na fala dos mestrandos como oportunidade de superação da racionalidade técnica, tão presente nos contextos educacionais, a partir da sua própria formação e da vivência da pesquisa.
A reflexão, enquanto perspectiva formativa, é um elemento, é um movimento recente no processo de formação de professores, tanto para as universidades quanto para as escolas de educação básica. No entanto, ao longo dos tempos, a formação vem passando por diversas mudanças em nomenclatura, porém na perspectiva de reprodução, tais como: capacitação, treinamento e reciclagem. Neste contexto, faz-se a análise de que os professores não são conduzidos à reflexão de suas práticas, sobretudo da não reflexão da experiência e do saber que já possuem. (E2).
No cenário brasileiro onde predomina a lógica neoliberal, o conhecimento é hierárquico, favorece a fragmentação entre o saber e o fazer. Os reflexos dessa postura política e pedagógica se dão na fragilização da formação e da profissionalização dos docentes, esvaziando-as das condições de leitura crítica da realidade, além de afetar negativamente a autoimagem dos educadores, subalternizada e associada à perspectiva do consumo de conhecimentos produzidos por outros sujeitos. Segundo Pimenta e Lima (2017, p. 194):
A separação entre pesquisadores e professores, fortemente presente na estrutura acadêmica, reproduz, por um lado, o desprestígio cultural, científico, social e ideológico que marca a área de ensino e a profissão docente, entendendo-a como simples técnica que reproduz em sala de aula os conteúdos de ensino.
Conforme exposto pelas autoras, existe uma forte lógica de desprofissionalização da docência nas estruturas acadêmicas, sendo necessário refletir sobre os impactos negativos dessa orientação tecnicista para a formação e a leitura crítica da realidade. Compreendemos que os processos formativos devem favorecer a construção das identidades dos docentes como intelectuais, por meio da problematização e análise das próprias práticas a partir de uma sólida fundamentação teórica educacional na perspectiva da práxis.
A racionalidade técnica, como marca importante das instituições de ensino brasileira, promoveu historicamente um trabalho compartimentalizado. No contexto da formação de professores, por exemplo, registra-se, de um lado, a formação para a pesquisa, em programas de iniciação científica, seguida da pós-graduação stricto sensu; e do outro, a formação para o exercício profissional docente, por meio dos componentes curriculares dos cursos de licenciatura, pautados ora na teoria, ora na prática e, mais recentemente, nos programas de iniciação à docência. O fato é que, tanto em uma perspectiva como na outra, há uma cisão entre teoria e prática, em que a lógica é primeiro aprender, para depois aplicar os conhecimentos, sem a mediação dos processos reflexivos.
A oportunidade de aprender pela pesquisa constitui-se, de acordo com E8, como possibilidade de construção de novos sentidos para a teoria e para as próprias práticas:
[...] essa interconexão existente entre o ensino e a pesquisa nos permite compreender os fenômenos aos quais ainda não percebemos, haja vista que só podemos alterar determinados comportamentos, se nos apropriarmos desses conhecimentos e saberes. Daí a importância de utilizarmos as nossas experiências como mediadoras de conhecimentos, possibilitando a construção do novo de maneira empírica. (E8).
A perspectiva apresentada por E2 indica os movimentos que historicamente vêm sendo vivenciados pelos educadores no contexto brasileiro, profundamente marcados pela dimensão técnica, destituindo os profissionais e as instituições em que trabalham dos processos de construção das propostas educativas, da leitura crítica da realidade, do aprofundamento de conhecimentos sobre o seu próprio trabalho e, por fim, da elaboração de propostas de intervenção na realidade. Pressupõe-se, nesse processo, a figura de um professor passivo e de um modelo de educação de natureza bancária (FREIRE, 1987), relacionados a nomenclaturas conhecidas por todos, como capacitação, treinamento, entre outras. A perspectiva reflexiva segue no caminho oposto, reafirmando a importância dos professores, seus conhecimentos e a necessidade de participação em processos formativos com base problematizadora (FREIRE, 1987). Para Franco (2016, p. 522):
A prática reflexiva é uma capacidade histórica e, portanto, deve ser desenvolvida e atualizada, necessitando para isto de parceiros com diferentes olhares. Os professores não podem, sozinhos, descobrir o caminho deste processo, pois correm o risco de não elaborarem um desenvolvimento em espiral (espirais cíclicas) e permanecerem, corporativamente, reforçando e justificando as próprias referências.
A partir da aproximação entre o pensamento de E2 e Franco (2016), é possível verificar que a lógica da formação de professores, numa perspectiva reflexiva, constitui-se, também, como um movimento de fortalecimento da profissionalidade, do trabalho coletivo.
A E12 traz na escrita do seu diário a necessidade da reflexão como perspectiva formativa, possibilitando um caminhar de problematização das práticas, buscando referências para compreender e transformar sua profissionalização docente.
Toda profissão é fundamentada pelo conhecimento teórico e também pelo saber da experiência que se constrói na reflexão sobre a própria experiência profissional. A experiência se constrói no contexto vivenciado, num movimento reflexivo do que acontece e com a forma que acontece. Experiência esta que se constitui pelas dimensões subjetivas, pessoais, a partir de crenças, percepções, atuações e história de vida. Os saberes profissionais são saberes construídos no exercício da profissão, ou seja, saberes da ação, que são reconfigurados no contexto da própria prática educativa.
Para dimensão formativa reflexiva se constituir no processo formativo, faz-se necessário materializar estratégias que garantam rigor científico metodológico, para formação dos profissionais e sua atuação no seu trabalho e na sociedade, favorecendo uma cultura dialógica, crítica, reflexiva e transformadora. Tal lógica é defendida por Franco (2016, p. 520), quando aborda os movimentos investigativos-formativos realizados junto a professores, afirmando que “[...] o diálogo adquire a perspectiva de problematização da realidade e de crítica. Essa é a dimensão que precisa ser buscada, a superação do empírico pelo concreto, o que se faz pelo diálogo e pela teoria. Esse processo cria sentido e mobiliza para a ação”.
Os processos investigativos e formativos desencadeados a partir do mestrado, o exercício de refletir sobre as práticas, assim como a escrita dos diários, mobilizaram, nos mestrandos, conhecimentos, habilidades e atitudes que permitiram o gradativo reconhecimento de si mesmos como intelectuais críticos e reflexivos. O excerto do diário de E18 anuncia esta compreensão:
Nós compartilhamos os nossos escritos escrevendo dicas simples sobre o processo de escrever (ora, ora, quem diria, eu que cheguei aqui sem norte nenhum sobre escrita acadêmica e agora já estou dando dicas sobre esse assunto, que maravilha, percebo que estou aprendendo muito e por isso estou muito feliz. (E18).
A abordagem pedagógica do processo vivido pelos mestrandos revela uma visão crítica Didática, que reforça a necessidade de diálogo entre teoria e prática, ensino e pesquisa, educação e emancipação, universidade e escola. A formação de professores no contexto de um mestrado profissional deve fortalecer os compromissos com o desenvolvimento de novos conhecimentos sobre a educação construídos a partir da inserção ativa dos professores e das escolas da educação básica neste processo, como sujeitos históricos e como agentes políticos comprometidos com a humanização, a partir da vivência democrática de acesso ao saber historicamente construído pela humanidade.
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao longo do presente estudo, refletimos sobre os limites e as possibilidades da formação vivida por professores da educação básica vinculados ao Mestrado Profissional em Ensino e Formação Docente, ofertado por duas Instituições de Ensino Superior no Ceará - Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (UNILAB) e Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará (IFCE).
Visualizamos, a partir da discussão sobre a Didática, os desafios históricos que se relacionam à formação de professores e que se traduzem nos embates entre diferentes projetos de sociedade, entre a racionalidade técnica e a crítica, entre a formação do técnico e do intelectual.
Identificamos, por meio de dados oficiais disponibilizados pelo governo federal brasileiro, que as exigências de qualificação profissional dos professores têm promovido a expansão da pós-graduação stricto sensu na modalidade profissional. Este espaço lida cotidianamente com o compromisso de romper com a lógica tecnicista que trata de maneira fragmentada a teoria e a prática, o ensino e a pesquisa, naturalizando a concepção reducionista do professor como técnico consumidor de informações.
O ingresso de professores da educação básica nos programas de pós-graduação desafia os coletivos responsáveis pela formação dos mestrandos a pensarem estratégias de superação deste paradigma. O exercício de refletir sobre as próprias práticas, buscando encontrar nos espaços de vivência profissional fenômenos a serem investigados e mais bem compreendidos, configura-se como uma postura formativa emancipatória.
Os escritos produzidos pelos mestrandos anunciaram como principais possibilidades formativas do programa o exercício de leitura crítica da realidade e o reconhecimento de si mesmos como produtores de conhecimentos. Os principais limites se relacionam com as condições materiais e orientações políticas a partir das quais se dá a relação entre formação e trabalho no Brasil contemporâneo, marcadas pela desprofissionalização e pela retomada da racionalidade técnica. Urge transformar o espaço da pós-graduação em espaço de diálogo, de leitura crítica da realidade, sem perder de vista a compreensão dos mestrandos enquanto sujeitos históricos e a necessidade de valorização dos saberes da experiência.