1 INTRODUÇÃO
O conceito de regulação educacional requer ser considerado junto das mudanças sociais e, por conseguinte, das reconfigurações no setor produtivo. Assim, rivalizam modos de regulação de acepção burocrática, com aspectos ligados a um Estado mais centralizado, característica de décadas anteriores aos anos 1970, com concepções de regulação pós-burocrática, que despontam nas décadas finais do século XX. Dessa forma, com a mudança de paradigma dos modos de regulação, ainda nos anos 1970, a concepção fundada na produção de resultados vem dominando as políticas educacionais contemporâneas, no sentido de transferir para o setor público cada vez mais a lógica mercantil do setor privado.
A esse cenário, somam-se a regulação por resultados e a governança. Originada de campos de conhecimento distintos, a regulação educacional com ênfase na produção de resultados vem se constituindo em lógica potente, que não deixa de se inscrever no contexto histórico que se desenvolve e avança a partir do século XXI. Ao encontro de uma lógica como essa, soma-se a ideia de governança. Ambas consistem em estratégias contemporâneas para orientar a gestão da educação.
Reis (2013) explicita algumas perspectivas de governança e regulação e conclui que correspondem a conceitos distintos. Que a noção de regulação tem uma dimensão macroeconômica, enquanto a de governança tende a ter uma dimensão setorial. Ao abordar esses conceitos no campo educacional, a autora pondera que ambos têm um caráter sistêmico, são distintos, mas podem ser usados na análise empírica. Entre suas considerações, cabe sublinhar que “[...] a governança está presente na regulação da educação, sendo que a história e o território podem ou não revelar que a um modo de regulação típico corresponde um modelo de governança predominante” (REIS, 2013, p. 115, grifo da autora).
Assim, o presente estudo trata da perspectiva de regulação por resultados que o Banco Mundial (BM) concebe e imprime em seus encaminhamentos para a educação. Para tanto, apreendemos e analisamos argumentos constantes em uma amostra de suas publicações, como forma de evidenciar a concepção da agência sobre essa perspectiva que assume centralidade a partir das mudanças na dinâmica do capital, nas décadas finais do século XX em diante.2 A amostra reúne um conjunto de aspectos oriundo do trabalho com a empiria, envolvendo, mais especificamente, os seguintes relatórios: Education Sector Strategy Update (IBRD; WORLD BANK, 2005); Learning for All: investing in people’s knowledge and skills to promote development - World Bank Group Education Strategy 2020 (IBRD; WORLD BANK, 2011); e Learning: to realize education’s promise - World Development Report (IBRD; WORLD BANK, 2018).
A dimensão teórico-metodológica do estudo está fundamentada no materialismo histórico e, portanto, leva em conta o real. O estudo é movido a partir de material empírico de um organismo econômico com interesse e influência crescentes na educação. Nessa perspectiva, ainda que a investigação tenha recaído em uma amostra documental, o propósito foi a apropriação da matéria, de seus detalhes, rastreando seu nexo interior, conforme fora sugerido por Marx e Engels (2001). Ademais, contamos com subsídios teórico-metodológicos propostos por Evangelista e Shiroma (2019), cuja perspectiva leva em conta o conteúdo e o sentido dos documentos sobre políticas educacionais, seja por afirmação e/ou elisão. Em consonância a essa perspectiva, a concepção de discurso que embasa o presente estudo é a desenvolvida por Norman Fairclough (2016), que considera o discurso como texto, prática discursiva e prática social.
2 NA TRILHA DO DÉTOUR: A EXPOSIÇÃO DE ARGUMENTOS DO BM3
Iniciando a análise, cabe apontar que as mudanças na dinâmica capitalista são, em alguma medida, aludidas no ESSU (IBRD; WORLD BANK, 2005), ao se situar um contexto emergente no qual algumas prioridades permanecem válidas. O ESSU (IBRD; WORLD BANK, 2005) firma uma atualização das recomendações do documento Human Development Network (HDN): Education Sector Strategy (IBRD; WORLD BANK, 1999). Nele, o Organismo Multilateral (OM) em questão focaliza o nível básico de uma educação de qualidade para todos, como uma de suas preocupações centrais, além do desenvolvimento de competências básicas: alfabetização, raciocínio matemático e competências sociais, como é o caso de trabalho em equipe. Nos termos da agência, a atualização do documento vai ao encontro da ampliação de seus objetivos, tendo em vista o propósito de maximizar o impacto da educação no crescimento econômico e na redução da pobreza (IBRD; WORLD BANK, 2005).
Conforme a agência assinala na referida publicação, as reformas nos sistemas educacionais fazem parte da lista de prioridades, e as estratégias para redução da pobreza igualmente constam no rol das preocupações do BM - ao menos a partir das décadas finais do século XX. A ênfase nos resultados figura entre os temas enfatizados no relatório, sob o argumento de maximizar o impacto da educação. As reformas, portanto, convergem para as redefinições da agência quando se trata de levar adiante o seu projeto de educação - e, por que não dizer, seu projeto societário - em escala global.
Essa orientação por resultados, trazida nas formulações da agência em combinação com o argumento da necessidade de reformas educacionais, também evoca a necessidade de enfrentamento de questões como qualidade dos professores, governança e financiamento. Como o ESSU (IBRD; WORLD BANK, 2005) constitui uma atualização de documento datado dos anos de 1990 (IBRD; WORLD BANK, 1999)4, a inclusão de indicadores de resultados educacionais, em documentos estratégicos nacionais, a ênfase em mensurar resultados de aprendizagem, em accountability, e, ainda, a prioridade na igualdade ao acesso à educação e a uma educação de qualidade são elementos que o BM considera genuinamente novos em relação ao relatório anterior. Porém, mais do que sinônimo de inovação, como é o tom impresso em seus encaminhamentos, cabe sublinhar que, no ESSU (IBRD; WORLD BANK, 2005), a orientação por resultados consta como um de seus elementos-chave.
Para o BM, a orientação por resultados envolve mudanças transformadoras e comportamentais que levam tempo e requerem uma evolução na mentalidade - mindset - e nas competências do conjunto da equipe, o que só pode ocorrer gradualmente (IBRD; WORLD BANK, 2005). De outra perspectiva de análise, cabe argumentar que as mudanças e a evolução evocadas no documento aludem às transformações do capital ocorridas a partir da década de 1970, ao avanço do neoliberalismo, à emergência da lógica de New Public Management, da governança e da regulação por resultados. Nesse contexto, Pronko (2014) aponta o processo de liberalização, em que BM e Fundo Monetário Internacional (FMI) tiveram a capacidade de moldar, nos chamados países “em desenvolvimento”, novos arranjos institucionais no interior de cada Estado nacional, no sentido de diminuir o papel do Estado e favorecer as instituições de livre mercado.
Da perspectiva do BM, entretanto, o contexto assinalado é o de economias cada vez mais dinâmicas que requerem, entre outros aspectos, sistemas educacionais mais eficientemente geridos, contando com uma comunidade ativa e o envolvimento do setor privado. Nesse sentido, é possível captar no documento uma ligação estreita entre educação e qualidade por resultados, bem como entre educação e mercado de trabalho. Enquanto atualização de um projeto que corrobora a sociedade de classes, o ESSU (IBRD; WORLD BANK, 2005) destaca a necessidade de competências para além daquelas que a agência considera como básicas, isto é, alfabetização, competências matemáticas e raciocínio - conforme elencadas no relatório Human Development Network (HDN), publicado em 1999.
O realce está, portanto, em um conhecimento necessário para competir em mercados globais e fomentar o crescimento econômico (IBRD; WORLD BANK, 2005). Assim, o texto reforça a premissa da educação como a base para a economia do conhecimento. A educação, por sua vez, está articulada à ideologia da globalização veiculada pelo BM e que é associada às ideias de uma sociedade de rápidas mudanças, o que implica reconfigurações nas políticas educacionais, de modo a atender a demandas emergentes.
Ainda que o conteúdo da atualização proposta no ESSU (IBRD; WORLD BANK, 2005) não se esgote nesse documento, é possível verificar a ênfase à lógica de regulação por resultados construída no discurso e situá-la como uma das demandas emergentes, inscritas no cenário das transformações contemporâneas do capitalismo. Na parte inicial da publicação, há, inclusive, o argumento de que uma abordagem orientada por resultados no setor educacional apenas será bem-sucedida se os países adotarem isso e se os financiadores trabalharem juntos para desenvolver monitoramento e avaliação de sistemas e de dados (IBRD; WORLD BANK, 2005). Para o BM, a assistência que presta à educação evoluiu em relação à oferecida na década de 1990, além de reconhecer a redução da pobreza e o crescimento econômico como desafios paralelos que ainda precisam ser enfrentados por países pobres e em desenvolvimento, desde que reforcem seus sistemas educacionais.
O reforço, conforme sinalizado no documento, enfatiza o amplo uso de avaliações de impacto, como forma de refinar as estratégias defendidas pela agência no que diz respeito à qualidade educacional; há ênfase em medir a aprendizagem e no conceito de accountability, ainda que sua tradução aparente esteja imprecisa. O reforço aos sistemas educacionais, conforme preconizado pela agência, implica considerar a gestão um dos campos de materialização da concepção de regulação por resultados, pois ela recomenda que os sistemas educacionais sejam eficientemente geridos, que haja envolvimento de uma comunidade ativa e mesmo do setor privado. A gestão, inclusive, é cotada para aprimorar a accountability (IBRD; WORLD BANK, 2005).
O reforço aos sistemas educacionais pode ser conectado aos princípios da Nova Gestão Pública, pois ela requer a adesão de ideias e de práticas apresentadas como verdadeiras inovações sob o viés hegemônico. Esse tom benéfico de que o reforço aos sistemas educacionais se reveste, encobre, todavia, o fato de que “[...] a implantação da ‘nova gestão pública’ sinaliza o avanço das ideias de livre mercado como base para o desenvolvimento” (PRONKO, 2014, p. 98, grifo da autora). Na ótica do BM, uma maior orientação para resultados é um dos principais temas estratégicos com objetivo de responder às mudanças recentes, além de ir ao encontro do lema Education for All - ainda considerado neste documento uma prioridade urgente - e dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio - Millennium Development Goals (MDGs).
A ampliação de uma agenda estratégica desse OM é revestida de um discurso que prevê uma ação coletiva entre a agência e instituições parceiras e entre região e país, com a evidente finalidade de assegurar que as recomendações sejam implementadas predominantemente em países periféricos, como é válido reiterar. Entre um conjunto de elementos que indiciam a composição de uma agenda de regulação por resultados no ESSU (IBRD; WORLD BANK, 2005), são listados: a inclusão de indicadores de resultados educacionais em documentos nacionais e estratégicos; a ênfase às iniciativas de avaliações de aprendizagem; o foco nas conexões entre educação e mercado de trabalho; e a igualdade de acesso à educação de qualidade. Tal agenda é parte do projeto do BM para a educação, visto que:
Atribui à educação escolar a responsabilidade pelo crescimento econômico e a redução da pobreza, legitimando o desenvolvimento da escolarização numa perspectiva meritocrática, instrumental e de formação de capital humano para atendimentos às demandas do capital. (DECKER; EVANGELISTA, 2019, p. 4).
A expansão da agenda se encaminha para uma evolução das recomendações no documento Learning for All: investing in people’s knowledge and skills to promote development - IBRD; WORLD BANK Group education strategy 2020 (IBRD; WORLD BANK, 2011), isto é, o LFA é indicativo da virada de estratégia da agência para a educação. Isso não significa que seja a primeira publicação a tratar da aprendizagem como estratégia central assumida pelo BM para uma década, mas sim que nela é possível verificar o deslocamento de análise, passando da educação, de uma forma mais abrangente, para a aprendizagem, de um modo mais focalizado. Aliás, logo no prefácio, argumentos sinalizam esse deslocamento, bem como denotam conexões com a lógica de regulação por resultados.
Inicialmente, a argumentação incide sobre um período de extraordinárias mudanças, caracterizado pelo desejo, de muitas nações, de aumentar a competitividade pela formação de força de trabalho altamente habilidosa. A esse cenário, conforme o tom empregado, são agregados avanços tecnológicos que oferecem possibilidades de uma aprendizagem acelerada e o insistente argumento de fracasso dos sistemas educacionais, o que, segundo o BM, compromete a formação dos jovens com as competências certas para o mercado de trabalho (IBRD; WORLD BANK, 2011).
Para fundamentar a necessidade de se focalizar a aprendizagem, a agência considera seu esforço em termos de volume de investimento no setor educacional, argumentando que houve avanços relativos às matrículas de crianças, à permanência delas nas escolas e à melhora na igualdade de gênero. Assim, por extensão, há o destaque de o quanto o BM teria contribuído substancialmente para o desenvolvimento da educação ao redor do mundo, com o decorrer do tempo. Seu investimento é seguido da expectativa de uma dada performance no ensino, por parte dos professores, e, melhor ainda, se o desempenho puder ser medido, cristalizando um número, um resultado proveniente de um índice.
Como o suporte do BM em relação aos esforços empreendidos no setor não se limitam ao financiamento de projetos e à assistência técnica, ele também abarca as ideias defendidas pela instituição (IBRD; WORLD BANK, 2011), segundo consta no seu rol de argumentos. É na esteira dessas ideias que a agência sinaliza encaminhamentos que elidem e mascaram relações de poder. São encaminhamentos que implicam reformas nos sistemas educacionais, mecanismos de accountability e o alinhamento entre governança, gestão das escolas e professores, a fim do reiterado objetivo de promoção do learning for all.
Como a educação é considerada fundamental, por esse organismo, para o crescimento econômico, ela também constitui investimento estratégico para o desenvolvimento e, consoante a suas próprias afirmações, “não há ferramenta melhor para fazer isso do que a educação” (IBRD; WORLD BANK, 2011, p. 13, tradução nossa)5. Então, para confrontar os desafios de uma sociedade de rápidas mudanças, a agência concebe que já não basta a escolarização ser um objetivo global. A aposta recai, portanto, sobre a aprendizagem, no sentido de destacar que aquilo que os indivíduos aprendem dentro e fora da escola, da pré-escola ao mercado de trabalho, será a condução para o desenvolvimento.
Diferentemente de avaliar se o deslocamento de análise resulta em políticas educacionais melhores ou piores, na direção de alguns subsídios teórico-metodológicos propostos por Evangelista e Shiroma (2019), importa captar como o discurso se consolida a partir de estratagemas anunciados pelo BM em suas publicações. Nesse sentido, a desqualificação dos sistemas educacionais de países periféricos consiste em argumento recorrente que é introduzido e complementado por justificativas, as quais, ao fim e ao cabo, salientam a necessidade de realização de reformas. Nos termos do LFA, especificamente, a estratégia da agência projeta a educação para uma década, buscando atingir o objetivo de aprendizagem para todos de uma forma abrangente, por meio de reformas nos sistemas educacionais, e, ainda, formar um conhecimento em nível global, como uma base forte o suficiente para guiar tais reformas (IBRD; WORLD BANK, 2011).
Na ótica desse sujeito coletivo do setor privado, cuja natureza é financeira, a solução para os problemas educacionais dos países em desenvolvimento reside prioritariamente no setor econômico, na lógica mercantil. Em busca da chamada melhoria da qualidade da educação, o BM organiza seu discurso e atuação tentando produzir consensos acerca de um determinado paradigma de qualidade, constituído pela sua visão de mundo. Ocorre que se trata de uma proposta formulada por economistas para ser executada por educadores. Conforme pondera Torres (1996, p. 138, grifo da autora),
As propostas do BM para a educação são feitas basicamente por economistas dentro da lógica e da análise econômica. A relação custo-benefício e a taxa de retorno constituem as categorias centrais a partir das quais se define a tarefa educativa, as prioridades de investimento (níveis educativos e fatores de produção a considerar), os rendimentos, e a própria qualidade.
Na argumentação da agência, os pontos positivos alcançados com o acesso à educação despertaram a atenção para o desafio de melhorar a qualidade da educação e acelerar a aprendizagem. Entre o conjunto de mudanças do desenvolvimento global constam as Tecnologias da Informação e Comunicação (TIC), que repercutem em mudanças de perfis de emprego, habilidades e competências no mercado de trabalho, ao passo que oferecem possibilidades de acelerar o aprendizado e de melhorar até mesmo a gestão dos sistemas educacionais (IBRD; WORLD BANK, 2011). Para além da ênfase conferida às tecnologias, cabe atentar para a importância atribuída ao crescente papel do setor privado na educação, como meio de também reforçar a governança - que é listada como parte das prioridades do BM.
Sobre a atuação do BM no campo internacional da educação, Pronko (2014) aponta que a parceria público-privado é realçada em conjunto com a flexibilidade, considerada uma das principais vantagens da participação privada em educação, e com a promoção de um contexto regulatório adequado para a educação privada nas economias emergentes, sobretudo a partir do ano 2000. Em relação à flexibilidade, comenta a autora, ela
[...] permite que os prestadores privados de educação se adaptem às necessidades e circunstâncias de cada economia, oferecendo aos governos uma colaboração preciosa para cumprir com as suas obrigações de assegurar educação de qualidade [à] população [...]. (PRONKO, 2014, p. 101).
Entendemos, com isso, que a lógica de regular a educação por resultados traz reforço à ideia de que ela consiste em uma alternativa viável na perspectiva do capital de alinhar agentes, em vista da flexibilidade e de um determinado paradigma de qualidade educacional.
O contexto regulatório adequado, a que se refere a autora em suas análises, permite relacioná-lo com a lógica de regulação por resultados, primeiro porque essa perspectiva se encaixa nos modos de regulação pós-burocráticos, que remetem a uma ruptura de padrões considerados inadequados para a dinâmica do capitalismo contemporâneo e, também, porque essa perspectiva carrega um tom de inovação. Em segundo lugar, é notável um conceito de qualidade apoiado na lógica do privado, da ênfase aos resultados obtidos em testes como o Programme for International Student Assessment (PISA)6, um exame equivalente a um parâmetro para a educação em nível global e que desconsidera níveis socioeconômicos e contextos históricos distintos entre as nações. Em terceiro lugar, é também notável a promessa de que o BM canaliza seus esforços em favor da reforma dos sistemas educacionais e da construção de um conhecimento de alta qualidade que seja a base para as reformas em nível global (IBRD; WORLD BANK, 2011).
Traços da evolução da agenda do BM consoantes à regulação por resultados podem igualmente ser reunidos a partir do World Development Report (WDR) de 2018 (IBRD; WORLD BANK, 2018), documento que focaliza a aprendizagem “para realizar a promessa da educação”, conforme título do próprio texto. Para alcançar a “aprendizagem para todos”, o organismo lança mão de três estratégias: avaliar a aprendizagem para fazer disso um objetivo sério; agir sobre a evidência para fazer as escolas funcionarem para a aprendizagem; e, ainda segundo esse OM, alinhar atores para fazer o sistema todo funcionar para a aprendizagem. Uma incursão no documento, mais precisamente na terceira estratégia anunciada, permite desvelar que a insistência em ter como foco a aprendizagem carrega a ideia de continuamente reorientar a gestão educacional para assegurar resultados.
Consoante a esse relatório, não adianta reformar o currículo escolar se os professores não forem treinados para trabalhá-lo, se não houver mudanças no sistema de avaliação e mesmo da gestão da educação, pois desta é esperada a capacidade para promover mudanças em favor do atingimento da aprendizagem. Para tanto, é enfático o argumento de que desafios técnicos e políticos precisam ser superados. Relativamente aos primeiros, encontramos algumas palavras-chave que compõem a argumentação do BM, quais sejam: management capacity; teacher training; curriculum; examination systems; e teaching.
Já sobre os desafios políticos, embora no próprio relatório seja considerado que eles também compõem o conjunto dos técnicos, constam, para o BM, diversos atores, cujos interesses nem sempre priorizam a questão da aprendizagem, pois, segundo o texto, há disputas de interesses. Nesse grupo, estão inseridos políticos, burocratas, fornecedores privados de serviços educacionais, professores e outros profissionais da educação. Retirada do documento, a Figura 1 é ilustrativa da coerência e do alinhamento dos atores em prol da aprendizagem.
A partir de alguns elementos captados no WDR (IBRD; WORLD BANK, 2018), a ênfase na aprendizagem e na reforma do sistema educativo como justificativa para o alcance da aprendizagem está ancorada na capacidade de reorientar, em outras palavras, de intervir em domínios do campo educacional, como gestão, formação de professores, currículo escolar, sistema de avaliação e ensino, a fim de garantir learning outcomes. Junto aos chamados desafios técnicos e políticos em relação à aprendizagem, situa-se a capacidade de implementar reformas educacionais alinhadas com orientações provenientes de múltiplos sujeitos, isto é, outros organismos internacionais ou parceiros do setor privado de modo geral. No leque de parceiros, figura o Estado e, como bem examinam Shiroma e Zanardini (2020, p. 711), no modelo de “boa governança” no século XXI,
[...] o Estado é chamado a contracenar com o setor privado, com tarefas ligadas ao estabelecimento de normas e padrões, ou seja, restrito a regulamentar, regular, assegurando a legalidade para reprimir e reproduzir as relações necessárias ao modo capitalista de produção e sua perspectiva atual de desenvolvimento sustentável.
A necessidade de garantir resultados de aprendizagem também está vinculada à possibilidade de obter um retorno real nos investimentos realizados pela agência, de modo que, no prefácio do WDR (IBRD; WORLD BANK, 2018), consta a ideia de que “[...] prover educação não é suficiente. O que importa e o que gera um retorno real sobre o investimento é a aprendizagem e as competências. Isto é o que verdadeiramente constrói capital humano” (IBRD; WORLD BANK, 2018, p. 13, tradução nossa)7. De uma perspectiva que leva em conta a luta de classe, contudo, a construção de capital humano diz respeito a “[...] uma noção que os intelectuais da burguesia mundial produziram para explicar o fenômeno da desigualdade entre as nações e entre indivíduos ou grupos sociais, sem desvendar os fundamentos reais que produzem esta desigualdade” (FRIGOTTO, 2009, p. 1).
Dentro do nível de importância sobre o problema da crise da aprendizagem, quatro ingredientes são considerados fundamentais, sendo eles: alunos preparados, ensino eficaz, insumos focados na aprendizagem, além de uma gestão competente e da governança. A gestão, portanto, é um campo de materialização da regulação por resultados e, para tanto, a governança atravessa esse campo. Nela, a lógica de regular por resultados pode se somar às abordagens economicistas que a têm impregnado, de maneira a criar consensos que remetem a problemas educacionais, sobretudo as falhas de administração nesse campo.
A par da construção de capacidade de gestão - management capacity - e dos desafios que se colocam como obstáculos à aprendizagem, consta, na essência, o princípio de concorrência generalizada, característico de uma Nova Gestão Pública embasada na razão neoliberal. Na esteira da crítica de transferir princípios empresariais à educação, Dardot e Laval (2016, p. 150) anotam que, na perspectiva do homem empresarial, “[...] a cultura de empresa e o espírito de empreendimento podem ser aprendidos desde a escola, do mesmo modo que as vantagens do capitalismo sobre qualquer outra organização econômica”. Assim, é possível compreender que, mais do que garantir learning for all, como o documento anuncia, importa assegurar a cultura da empresa no campo educativo.
3 AO FINAL DE UM DÉTOUR: CONSIDERAÇÕES FINAIS
A realização do détour, ou seja, de um desvio, permite-nos apontar alguns pontos que têm corroborado a manutenção da hegemonia burguesa, ao passo que frisamos o lugar da contra-hegemonia para freá-la em alguma medida. O primeiro deles tem a ver com o fortalecimento da hegemonia burguesa por meio de um de seus defensores, que é o BM, cuja organização econômica atua em favor de uma concepção de regulação educacional com foco nos resultados. Nesse processo, as reconfigurações do papel do Estado na sociedade capitalista contemporânea, reformas, parcerias público-privado, governança e demais elementos indicativos do avanço da razão neoliberal podem ser verificados na base de seu referencial de regulação por resultados.
O segundo ponto é a evolução da agenda do Banco ao longo do tempo, atravessando distintos contextos históricos. Na leitura aqui desenvolvida, a agenda desse OM para a educação pública evolui em vista de continuamente garantir a formação de uma força de trabalho consoante às necessidades do capital, entendendo a categoria força de trabalho como “o conjunto das capacidades físicas e mentais que existem na corporeidade, na personalidade viva de um homem e que ele põe em movimento sempre que produz valores de uso de qualquer tipo” (MARX; ENGELS, 2001, p. 242). Para atingir uma força de trabalho condizente com os princípios neoliberais e com a mundialização do capital, a agência vem construindo formulações dentre as quais figura a concepção de regulação por resultados.
Em terceiro lugar, no decorrer do processo de construção de formulações e de consensos, a lógica de regulação educacional por resultados tende a requisitar o Estado, ao passo que, contraditoriamente, repele-o. Requisita-o como uma forma de endossar a ideia de acelerar a aprendizagem e de necessidade da implementação de novos índices e novos testes em consonância com o apelo pela instauração de sistemas de accountability e com a acepção prioritária de responsabilização individual de sujeitos. Repele-o, contudo, em função da defesa de que novos agentes sociais tenham a oportunidade de exercer influência no campo educacional e aqui é possível situar a desregulação, além da multirregulação.
Apesar da variedade de acepções, compreendemos que o conceito de regulação remete a uma lógica em expansão e que assume variadas perspectivas, lógica esta que se liga às reconfigurações do papel do Estado no capitalismo contemporâneo e à governança e que, também, alude a uma agenda em evolução, levada adiante por um OM de grande influência na definição de políticas públicas. Contudo, a expansão dessa lógica não se dá de modo unívoco, haja vista o processo social e histórico do qual ela faz parte, a luta de classe que a atravessa e as determinações que a caracterizam nesse estágio do capitalismo contemporâneo. Temos, então, a contra-hegemonia, a produção do dissenso a partir de investigações de cunho crítico e do papel de entidades científicas da área educacional, que, historicamente, defendem uma perspectiva emancipatória para a educação, na contramão da lógica neoliberal e da produção obcecada de resultados em si mesmos.