1 INTRODUÇÃO
O presente artigo tem como objetivo analisar elementos subjacentes ao discurso das políticas promovidas pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) para a agenda global da educação superior, destacando suas implicações para a região da América Latina e do Caribe (AL&C).
A discussão parte de quatro pressupostos básicos. O primeiro considera que a definição de uma política educacional, como de qualquer outra política pública, é uma construção histórica que ocorre mediante a negociação de interesses e visões de mundo expressas por diferentes grupos. Em consequência, deve ser aprendida no contexto da totalidade, materialidade e correlação das forças sociais que a produziram (EVANGELISTA; SHIROMA, 2019).
O segundo é que as recomendações dos organismos multilaterais como Banco Mundial (BM), Fundo Monetário Internacional (FMI), Organização Mundial do Comércio (OMC) e OCDE concebem um padrão dependente de educação superior, orientador de reformas neoliberais que buscam concebê-la como mercadoria, em oposição direta à sua concepção como bem público e direito social/universal. Em razão disso, o projeto de educação superior desses organismos “[...] para os países periféricos do capital é caracterizado pelo aprofundamento da privatização, pela desnacionalização da educação, pela consolidação de um novo mercado educativo global, na busca de rentabilidade para o capital” (REIS, 2018, p. 3).
O terceiro explicita que, à semelhança do que ocorre com os outros organismos internacionais, a OCDE produz e circula documentos sobre a educação superior, cujo discurso revela que as políticas desta agência multilateral se orientam pelo paradigma do mercado, e não pelo paradigma da demanda da sociedade. Na prática, “[...] esse discurso representa um movimento em direção à criação de novas cadeias de produção de valor, cujos vaticinadores são representados pelos novos ‘profetas’ da educação neoliberal” (FREITAS; COELHO, 2019, p. 1).
E o último, e não menos importante, reconhece que o exame de condicionantes sociais, históricos, culturais e políticos permite entender que, ao longo do tempo, as mudanças ocorridas nas políticas de educação superior da AL&C fazem parte de uma totalidade, a qual precisa ser compreendida à luz das contradições que as constituem. As diretrizes emanadas dos documentos da OCDE têm influenciado significativamente a definição dessas políticas, ao mesmo tempo que geram contradições que contribuem para ofuscar as fronteiras entre o público e o privado, que se destinam a atender, respectivamente, aos interesses coletivos e àqueles de natureza particular (LEHER, 2013).
A metodologia conjugou pesquisa bibliográfica e análise documental, o que possibilitou mapear o estado do conhecimento acerca dos desdobramentos das políticas da OCDE sobre a educação superior na AL&C, em termos mais amplos, e, no Brasil, de forma mais específica. A análise de documentos buscou apreender elementos subjacentes ao seu discurso que, anunciados ou velados, mostram-se estruturantes de suas políticas, visando entender como se articulam ou revelam contradições com o projeto de educação determinado pelo modo de produção capitalista. Para tanto, compartilhou a premissa de que os documentos são dotados de sentidos à medida que “[...] expressam e resultam de uma combinação de intencionalidades, valores e discursos; são constituídos pelo e constituintes do momento histórico” (EVANGELISTA; SHIROMA, 2019, p. 102).
Estruturalmente, o artigo está organizado em três partes. A primeira destaca as orientações políticas dos documentos dos organismos internacionais para a agenda global da educação superior. A segunda problematiza as proposições subjacentes aos documentos da OCDE para o campo da educação superior, reconhecendo que sua definição ocorre na perspectiva do viés mercadológico, tendo assumido esse campo na sociedade globalizada. A terceira discute as implicações das orientações da OCDE para a educação superior, considerando que isso ocorre em uma sociedade fortemente orientada por uma visão economicista. Para tanto, aprofunda a discussão em uma dupla perspectiva: uma que destaca a centralidade assumida pelas diretrizes deste organismo internacional para a educação superior, no contexto mais amplo da AL&C, e outra que focaliza o tema no Brasil, enfatizando a convergência dessas mesmas diretrizes para a tendência histórica em restringir o público e estimular o privado neste nível educacional.
2 DIRETRIZES POLÍTICAS DOS ORGANISMOS INTERNACIONAIS PARA AGENDA GLOBAL DA EDUCAÇÃO SUPERIOR
No contexto da globalização, o alinhamento dos governos nacionais com as políticas neoliberais tem sido uma tendência em várias partes do mundo para atender às recomendações dos organismos financeiros internacionais para a educação. Em seu conjunto, esses organismos - em especial BM, FMI, OMC e OCDE - têm formulado e propalado políticas de grande impacto para o setor, sendo que, particularmente, no que tange à educação superior, têm passado a defender:
A redução do montante de investimentos em educação superior; o estímulo prioritário e, em certos casos, exclusivo ao ensino de base; a transformação [da educação] superior e do ensino a distância em objeto comercial; a regulação dos sistemas educativos em conformidade com princípios consolidados no âmbito da Organização Mundial do Comércio (OMC). (DIAS, 2018, p. 29, inserção nossa).
Além dos organismos internacionais mencionados, também a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) assume papel relevante na educação superior, ao defender a importância do financiamento público.4 Todavia, como assevera Trindade (2000), ainda que divergências existam no tocante às diretrizes dos documentos produzidos pela Unesco e pelo BM sobre a educação superior, os fundamentos deles são os mesmos, merecendo destaque: (i) ênfase na adaptação dos países e indivíduos a uma sociedade que passa por constantes e velozes transformações; (ii) concepção de educação à luz da teoria do capital humano, como principal alternativa para garantir o processo de qualificação dos trabalhadores.
No plano ideológico, a globalização da economia vem naturalizando a conexão entre os mercados e os sistemas de educação. A economia globalizada serve-se de organizações multilaterais, tais como OCDE, FMI, BM, OMC e outros, como seus tentáculos para disseminar a ideologia e as práticas que lhe assegurem a hegemonia global. (DIAS SOBRINHO, 2018, p. 291).
As propostas formuladas pelos diversos organismos internacionais circulam em espaços regionais, nacionais e mundiais, fazendo com que suas diretrizes induzam os Estados nacionais a promoverem reformas políticas, econômicas e socioculturais, que acabam impactando fortemente os vários níveis dos seus sistemas educacionais. De acordo com Boneti (2018), embora seus documentos enfatizem a intenção de contribuir com o desenvolvimento dos países, na realidade, veiculam um discurso interessado em construir e disseminar mecanismos que atendam às demandas da lógica da expansão do capitalismo global. Em consequência, esses organismos acabam assumindo o papel de interlocutores da política macroeconômica com a educacional, relação estruturada a partir de um viés utilitarista, que imprime sentido neoliberal às reformas empreendidas nos vários países. Neste contexto,
[...] a vulgarização do ‘vocabulário da reforma’ pode ser considerada uma estratégia de legitimação eficaz na medida em que consegue ‘colonizar’ o discurso, o pensamento educacional e se espalhar no cotidiano como demanda imprescindível da ‘modernidade’. (SHIROMA; CAMPOS; GARCIA, 2005, p. 429).
Além disso, tendem a difundir o que denominam boas práticas desenvolvidas em diferentes sistemas educacionais, sob o argumento de que tais práticas impactam na melhoria da qualidade dos governos nacionais e dos seus respectivos sistemas.
Do ponto vista histórico, desde a década de 1980, é possível identificar o interesse da atuação dos organismos multilaterais na educação superior com um duplo propósito: propalar um discurso de crises cíclicas na universidade e justificar reformas nesta instituição, partindo da premissa de que isso deveria acontecer em articulação com as demandas do mercado.
Desde então, os documentos dos organismos internacionais têm evidenciado elementos para a defesa da concepção de educação superior como mercadoria, em contraposição à concepção de educação superior como bem público, fato que exige uma leitura crítica do que propõem para os países periféricos. Nesta direção, Evangelista (2012) sustenta a necessidade do exame atento desses documentos, bem como daqueles dos aparelhos de Estados e de outros atores que transitam pelo campo educacional, visto que expressam não somente determinada visão de mundo e de homem, mas também “[...] diretrizes para educação [e] articulam interesses, projetam políticas, produzem intervenções sociais” (EVANGELISTA, 2012, p. 52, inserção nossa).
3 PROPOSIÇÕES SUBJACENTES AOS DOCUMENTOS DA OCDE PARA A EDUCAÇÃO SUPERIOR
A OCDE foi criada em 1961, sucedendo a Organização para a Cooperação Econômica Europeia (OECE) que, com sede em Paris, iniciou suas atividades em 28 de julho de 1948, para fazer a gestão do Plano Marshall (European Recovery Program), que tinha como finalidade prestar ajuda econômica dos Estados Unidos da América aos países da Europa Ocidental, de maneira a apoiar sua reconstrução, após serem devastados pela II Guerra Mundial (1939-1945).
Após lançar, em 1987, as bases para a defesa da necessidade de reformas na universidade, de forma articulada aos ditames do mercado, na década de 1990, a OCDE ampliou sua atuação no campo educacional, alcançando não apenas a dimensão pedagógica, mas também outras, como as relacionadas ao poder nacional e global. Nas décadas seguintes, a OCDE intensificou a definição de ações e políticas fundadas no discurso do crescimento econômico e do estímulo à competitividade, em uma sociedade mundializada, como elementos-chave para a reprodução do capital. Em consequência, passou a difundir claramente sua concepção de educação junto aos países-membros e parceiros, influenciando e interferindo em suas políticas educacionais. Para justificar sua atuação, a OCDE (HÉNARD; MITTTTERLE, 2010) assume como missão primordial
[...] promover o crescimento econômico mais forte, mais saudável, mais justo, melhorando o emprego e o aumento dos padrões de vida [...] identificando os desafios econômicos, sociais e ambientais importantes para os governos e desenvolvimento de políticas que promovam o bem-estar das pessoas em todo o mundo. (p. 2).
Como signatária da economia de mercado livre e divulgando essa missão, a OCDE tem influenciado a política educacional da AL&C. No caso do Brasil, desde o início da década de 2000, passou a manter relações de cooperação com esta agência multilateral5 na condição de país não membro, tendo sido objeto de avaliação de suas potencialidades e políticas públicas nas edições de 2001, 2005, 2006, 2009, 2013 e 2015 da série Estudos Econômicos - OCDE. Particularmente, na última edição mencionada, dentre outras recomendações feitas ao governo brasileiro, destaca-se o aumento gradual da idade de aposentadoria.
Em mais longo prazo, será necessário um melhor direcionamento dos benefícios sociais. Uma reforma do sistema previdenciário do Brasil, que custa mais de 10% do PIB e cujos gastos estão aumentando rapidamente, seria um ingrediente essencial para uma reforma sustentável. [...] ajuste fiscal em conformidade com os objetivos de médio prazo, incluindo uma estabilização da dívida bruta. (OCDE, 2015, p. 11-12).
Em maio de 2007, os laços institucionais entre a OCDE e o Brasil foram ampliados à medida que o país passou a ser considerado como parceiro-chave, juntamente à África do Sul, China, Índia e Indonésia, condição que assegurou sua participação em órgãos técnicos, grupos de trabalho e seminários realizados com a finalidade de compartilhar informações.
Por meio do Decreto n. 10.109, de 7 de novembro de 2019, foi promulgado o Acordo de Cooperação entre o Brasil e OCDE, firmado em Paris, em 2015, que declara que a cooperação entre os dois parceiros já vinha sendo realizada abrangendo política macroeconômica e outros temas, como
[...] reformas estruturais, comércio, investimento, agricultura, meio ambiente, educação, tributação, ciência, tecnologia e inovação, estatística, combate à corrupção, política de desenvolvimento, conduta empresarial, governança corporativa, créditos à exportação e competitividade. (BRASIL, 2019, p. 2).
Com uma expressiva estrutura financiada pelos seus países-membros, que contribuem conforme seu próprio potencial econômico, a OCDE contava, em 2020, com quase 200 órgãos e cerca de 250 instrumentos legais diversos - acordos, decisões, recomendações, declarações e entendimentos. Em 2022, a Organização era formada por 38 países da América do Norte e do Sul, Europa e Ásia-Pacífico.6
Os países mais recentes a aderir à OCDE foram a Colômbia, em abril de 2020, e a Costa Rica, em maio de 2021. Em 25 de janeiro de 2022, o Conselho decidiu dar o primeiro passo nas discussões de adesão com seis países candidatos à adesão à OCDE - Argentina, Brasil, Bulgária, Croácia, Peru e Romênia. Os roteiros de adesão do Brasil, Bulgária, Croácia, Peru e Romênia foram adotados na reunião do Conselho a nível ministerial de 10 de junho de 2022. Estão em curso as conversações sobre os próximos passos com a Argentina. (OECD, 2022, p. 1).
A OCDE busca maneiras variadas de ampliar sua atuação político-ideológica com a finalidade de consolidar a hegemonia de suas políticas junto aos governos dos países-membros e parceiros. Para tanto, capta dados e informações dos países, produz análises que resultam em reconstrução de censos e compartilhamento dos resultados, bem como realiza reuniões sistemáticas e avaliação in loco nesses países, contando com participação de representantes do poder público e do empresariado. Além disso,
[...] emite relatórios com comparações e recomendações que preconizam a padronização de políticas econômicas e sociais para o país [e] acompanha a implementação de tais recomendações e pratica constrangimento político quando não são executadas. (PEREIRA, 2016, p. 101-102).
A educação mundial é examinada pela OCDE por meio de um sistema de indicadores que tem por finalidade avaliar, medir e monitorar a equidade, a eficácia e a eficiência dos sistemas dos vários países. O levantamento faz parte de um relatório - Education at a Glance OCDE indicators, considerado o documento de referência sobre a situação da educação, em uma perspectiva internacional. Trata-se da “[...]fonte oficial de informações sobre a situação da educação no mundo, que fornece dados comparativos da estrutura, do financiamento e do desempenho de sistemas educacionais em países membros e parceiros” (PALAVEZZINI; ALVES, 2020, p. 260), apresentando os resultados a partir de três tipos de indicadores.
Os indicadores de produto analisam as características daqueles que saem do sistema, como seu nível educacional. Indicadores de resultados examinam o efeito direto da produção dos sistemas educacionais, como o emprego e a renda como vantagens de cursar a educação superior. Os indicadores de impacto analisam o efeito indireto de longo prazo dos resultados, como conhecimento e habilidades adquiridas, contribuições para o crescimento econômico e bem-estar, coesão social e equidade. (OECD, 2019, p. 14, grifos do autor).
Com publicação anual desde 1997, o Education at a Glance promove a comparabilidade entre países participantes (membros e parceiros). No caso do Brasil, as informações acerca da realidade educacional do país são enviadas pelo governo federal, resultando em análises feitas pela organização, que são acompanhadas e validadas pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP), por meio de sua Diretoria de Estatísticas Educacionais (DEED).
O Brasil colabora com dados desde a primeira edição [...]. Já o Panorama da Educação é uma publicação nacional, construída a partir do olhar dos técnicos do Inep sobre os destaques que a OCDE faz no EaG. É produzido desde 2013 (INEP, 2020, p. 1).
Ao divulgar, de maneira comparativa e global, os resultados dos sistemas educacionais, os documentos da OCDE sustentam que esta estratégia é de particular interesse para os formuladores de políticas educacionais dos países-membros e participantes. Reconhecem que, mais do que nunca, a educação superior tem assumido vital importância para o projeto político das nações. Em particular, a universidade tem papel crucial no cenário mundial devido à sua relevância “[...] no fortalecimento das economias nacionais e nos seus processos de desenvolvimento tecnológico e científico” (ALMEIDA; FREITAS; RODRIGUES, 2020, p. 234).
Os documentos produzidos pela OCDE resultam de determinações históricas que demandam sua apreensão no movimento das contradições que as constituem, visto que se referem, em última análise, às relações sociais neles traduzidas. Nesta lógica, estes deixam subjacentes elementos que buscam levar os países a perseguir entendimentos comuns em torno das recomendações educacionais que trazem, o que contribui para exercer pressões políticas e impor visões hegemônicas aos países-membros e parceiros. Concretamente, revelam um esforço da agência para a construção de redes de consenso mundial e visão hegemônica.
O exercício “normal” da hegemonia, [...] caracteriza-se pela combinação da força e do consenso, que se equilibram de modo variável, sem que a força suplante em muito o consenso, mas, ao contrário, tentando fazer com que a força pareça apoiada no consenso da maioria, expressos pelos chamados órgãos de opinião pública - jornais, associações -, os quais, por isso, em certas situações são multiplicados. (GRAMSCI, 2007, p. 95).
4 IMPLICAÇÕES DAS ORIENTAÇÕES DA OCDE PARA A EDUCAÇÃO SUPERIOR LATINO-AMERICANA E CARIBENHA
Para os países latino-americanos e caribenhos, o projeto neoliberal começou a se mostrar uma realidade a partir do conjunto de recomendações definidas no Consenso de Washington que, ao serem assumidas pelos países periféricos, levar-lhes-iam a empreender esforços com o objetivo de promover significativas modificações em suas bases econômicas, políticas e sociais. Em decorrência da liberalização econômica dessas recomendações, desde a década de 1990, o movimento global de privatização da educação tem sido impulsionado por estratégias estatais que vêm se mostrando alinhadas aos interesses de diversos organismos internacionais, como FMI, BM, Unesco, OMC e OCDE. Quando se trata da educação superior, o projeto definido por esses organismos
[...] para os países periféricos do capital é caracterizado pelo aprofundamento da privatização, pela desnacionalização da educação, pela consolidação de um novo mercado educativo global, na busca de rentabilidade para o capital. (REIS, 2018, p. 3).
Nas últimas seis décadas, a educação superior latino-americana e caribenha vem passando por um conjunto de transformações, sendo uma das mais expressivas delas a ampliação da taxa bruta de matrícula nos países da região, visto que, em 1960, o número de estudantes era em torno de 1,5 milhão, aumentando, em 2013, para cerca de 21 milhões (UNESCO, 2015). Essa ampliação ocorreu, paralelamente, a uma maior diversificação institucional e a outros fatores, como
[...] incremento da participação do setor privado na prestação dos serviços educacionais, incluindo a oferta transnacional; a redução progressiva do investimento público no setor, sendo as universidades públicas cada vez mais impelidas a buscar novas fontes de financiamento. (THIENGO; ALMEIDA; BIANCHETTI, 2019, p. 271).
Todavia, tais transformações precisam ser compreendidas considerando as múltiplas determinações - políticas, econômicas e ideológicas - que as constituem, bem como a correlação de forças entre as classes sociais, que desenvolvem um projeto de educação intimamente articulado a um projeto de sociedade.
Toda relação de hegemonia é necessariamente uma relação pedagógica que se verifica não apenas no interior de uma nação, entre as diversas forças que compõem, mas em todo o campo internacional e mundial, entre conjuntos de civilizações nacionais e continentais. (GRAMSCI, 2007, p. 399).
Neste nível de entendimento, como qualquer outra política educacional, aquelas definidas para a educação superior dos países latino-americanos e caribenhos revelam-se contraditórias, uma vez que, ao mesmo tempo que podem frear o desenvolvimento das potencialidades humanas, também podem contribuir, em alguma medida, para fazer avançar o desenvolvimento dos indivíduos em suas várias dimensões. Sendo assim, somente serão essencialmente apreendidas se analisadas na perspectiva da historicidade, visto que sua gênese e seu desenvolvimento vão assumindo diferentes características, dependendo do contexto social e da particularidade histórica em que são formuladas e desenvolvidas.
A comparação feita pela OCDE entre os sistemas de educação superior dos países-membros e parceiros revela contradições e a pertinência de críticas às métricas adotadas no processo, o que pode ser ilustrado com o caso emblemático do Chile. Embora tenha aumentado os investimentos no setor, este país convive com o dualismo de sua decisão governamental ter contribuído para ampliar o nível de acesso, mas não “[...] diretamente para que as universidades desenvolvam suas atividades de pesquisa [...] as universidades chilenas não têm o mesmo nível de recursos para competir com as melhores universidades de outros países da [..] OCDE”. (THIENGO; ALMEIDA; BIANCHETTI, 2019, p. 265).
Nas últimas três décadas, desafios diversos foram intensificados na educação superior da AL&C, tais como responsabilidade social, qualidade, inovação, financiamento, internacionalização, globalização/regionalização, políticas para combate às desigualdades, desenvolvimento sustentável, formação de professores/investigadores e diversificação de formas de acesso (GUADILLA, 2010). No tocante ao acesso, considerando o volume total de matrículas dos estudantes, o porte dos sistemas de educação superior da região vem se transformando significativamente no período. Todavia, isto tem ocorrido contando, via de regra, com a prevalência da esfera privada, fenômeno que mantém alinhamento com o discurso de privatização da OCDE e de outras agências multilaterais. Thiengo, Almeida e Bianchetti (2019) sistematizam a seguinte análise sobre o fenômeno:
De acordo com dados da Unesco (2015), Brasil, México e Argentina são os países que possuem os maiores sistemas de educação superior na região. Venezuela, Colômbia, Peru, Chile e Cuba possuem entre 800 mil e dois milhões de matrículas, aproximadamente, e podem ser considerados medianos. Contudo, o tamanho dos sistemas não se relaciona proporcionalmente com a capacidade de atendimento de cada Estado-nação. Se considerarmos a taxa bruta de matrícula, o Chile e a Argentina, com respectivamente 87% e 80%, são os países que apresentam a melhor razão entre o número total de estudantes e a população correspondente na faixa etária prevista (18-24 anos). Brasil e Chile também estão entre os países com maior expansão do setor privado, chegando a mais de 70% no Brasil e a cerca de 80% no Chile. Em direção oposta, estão Uruguai, Bolívia, Argentina e Panamá, onde a participação do setor privado é inferior a 30%. (p. 272-273).
Ainda que oscilem entre os países da AL&C, as taxas brutas de acesso à educação superior - resultantes da relação entre a quantidade de estudantes matriculados, em qualquer idade, e a população total que efetivamente se encontra na faixa etária para cursá-la - revelam sua concentração, na grande maioria deles, no setor privado. Uma das principais justificativas para isto é a instalação de políticas neoliberais que tiveram, dentre suas características básicas, a privatização de alguns serviços do Estado e a intensificação da abertura do mercado para o investimento estrangeiro, o que alcançou este nível educacional. Cada país da região tem alcançado sua taxa bruta enfrentando desafios diversos, como a redução de investimentos públicos nas IES e a indução para a captação de recursos oriundos do setor privado, ações estimuladas pelas políticas neoliberais, como aquelas propaladas pela OCDE.
Embora tenha apresentado um aumento exponencial do número de estudantes na educação superior nas últimas três décadas, a região da AL&C continua a se defrontar com o desafio de ampliar, em níveis crescentes, a taxa bruta de matrículas.
Como revelam os dados, entre 2000 e 2020, a taxa bruta de acesso à educação superior na AL&C mais que dobrou, porém é imprescindível não perder de vista que sua composição resulta de níveis de acesso bastante distintos entre os países, tendo em vista as características, diferenças e especificidades dos seus respectivos sistemas universitários. Neste contexto, o caso do Brasil é emblemático à medida que, ao longo do tempo, tem evidenciado uma das mais baixas taxas entre os países da região.
O quadro a seguir sintetiza dados que ajudam na compreensão do tamanho dos sistemas de educação superior dos países da AL&C, considerando o nível de massificação/universalização que têm alcançado e que revela a grande participação do setor privado.
Alto (55% ou mais) | Uruguai Porto Rico | Chile Cuba | Argentina Venezuela | ||||
---|---|---|---|---|---|---|---|
Médio-alto (46% a 55%) | |||||||
Nível de massificação/universalização | Médio (36% a 45%) | Panamá | Bolívia Paraguai | Equador | Colômbia | ||
Médio-baixo (26% a 35%) | Peru | Brasil México |
|||||
Baixo 25% ou menos | Costa Rica El Salvador Honduras | Guatemala | |||||
Pequeno (0 a 150 mil) |
Médio-pequeno (150 mil a 500 mil) | Médio (500 mil a 1 milhão) | Médio-grande (1 milhão a 2 milhões) | Grande (mais de 2 milhões) | |||
Tamanho do sistema |
Fonte: Rueda (2022, p. 89), com base em BRUNNER (2014, p. 68).
Com um sistema de educação superior classificado por BRUNNER (2014) como grande e por Guadilla (2010) como megassistema, o Brasil contava, em 2020, com 8.680.354 matrículas de estudantes, sendo 6.724.002 delas, correspondente a 77,5% do total, ofertadas por IES privadas, enquanto 1.956.352 (22,5%) estavam no setor público.
Em 2001, o setor público da educação superior brasileira contava com 939.225 matrículas (31,0%), enquanto o segmento privado era responsável por 2.091.529, equivalente a 69,0% do total (3.030.754). Neste cenário, apesar dos esforços empreendidos pelo Estado e da pressão de grupos organizados da sociedade civil, entre 2001 e 2009, a taxa de escolarização bruta passou de 15,1% para 26,7%, e a líquida, de 8,9% para 14,4% (INEP, 2012), mostrando que o país continuava com o grande desafio de ampliar as taxas de acesso à educação superior. Ainda que reconhecidos determinados avanços, em 2010 a taxa bruta continuava extremamente baixa em comparação àquelas reveladas por outros países de diferentes regiões do mundo.
Enquanto, em diversos países, as taxas de escolarização bruta, em geral, são maiores que 50%, chegando a, por exemplo, 52% no Chile, 64% no Uruguai, 56% na França, e 82% nos Estados Unidos, no Brasil era de apenas 25% em 2008. Em relação aos próprios objetivos estabelecidos pelo Plano Nacional de Educação, o Brasil ainda está muito aquém da meta da taxa de escolarização líquida de 30% para a educação superior em 2010. Na média geral do país, a taxa estava próxima a 15%, em 2010. (BERTOLIN, 2011, p. 483).
Com efeito, no Brasil, a educação superior ainda é bastante elitista, considerando que em 2020 a taxa bruta de acesso era de 37,4%, enquanto a taxa líquida chegava a 21,4%, mantendo o país distante de um processo de massificação ou de universalização do acesso. Neste contexto, a taxa líquida ajustada - relativa a todos aqueles indivíduos que frequentam ou que já concluíram um curso de graduação na referida faixa - alcançou 25,5% (INEP, 2022).
Todavia, ainda que historicamente, o Brasil venha se configurando como um país latino-americano com as mais baixas taxas de acesso à educação superior, o Relatório Education at a Glance, produzido pela OECD em 2018, faz recomendações que não mostram sintonia com políticas e estratégias governamentais que contribuam para reverter a situação e, portanto, combater o elitismo traduzido nas taxas em questão. Um exame detalhado do documento permite identificar "[...] a recomendação do deslocamento dos investimentos financeiros para os níveis básico e fundamental, bem como para a defesa do ensino técnico" (PALAVEZZINI; ALVES, 2020, p. 266). Tal recomendação permite inferir que os dados fornecidos pelo Brasil e interpretados por esta agência multilateral não têm levado em conta as especificidades associadas ao desafio que representa a ampliação do acesso à educação superior, no país, de maneira que os investimentos não se limitem à formação de profissionais que revelem aptidão para ingressão no mercado.
De acordo com o Censo da Educação Superior de 2020 (INEP, 2022), do total de 2.457 IES existentes no país, 2.153 eram de natureza privada (87,6%), enquanto o setor público respondia por 304 (12,4%), distribuídas em 118 federais (4,8%), 129 estaduais (5,3%) e 57 municipais (2,3%).
O gráfico a seguir apresenta dados que ajudam na compreensão de como a política de educação superior brasileira tem estimulado a expansão do setor privado, em detrimento da expansão do público, postura intensificada e consoante com as recomendações da OCDE.
Este gráfico expõe dados que atestam como a hegemonia do setor privado vem se mantendo sobre o público na série histórica nele apresentada, realidade que tem se mostrado na constituição e no funcionamento do sistema brasileiro de educação superior do país. Ao divulgar os dados do Censo da educação superior de 2020, o próprio poder público expõe dados que atestam esta realidade.
Em 2020, quase 3,8 milhões de alunos ingressaram em cursos de graduação. Desse total, 86% em instituições privadas [...];
A rede privada continua com a expansão do número de ingressantes. Em 2019/2020, há uma variação positiva de 5,3%;
No período compreendido entre 2010 e 2020, a rede privada cresce 89,8%. A rede pública aumentou 10,7% no mesmo período [...];
O número de matriculados na rede privada em 2020 continua o ritmo de crescimento;
Em relação a 2019, o número de matrículas na rede pública [em 2020] é -6,0% menor, enquanto a rede privada no mesmo período registrou um crescimento de 3,1%;
Quando se comparam os anos de 2010 e 2020, observa-se um aumento no número de matrículas de 42,0% na rede privada e de 19,1% na rede pública. (INEP, 2022, p. 20-22).
Do ponto de vista da organização acadêmica, de um total de 2.457 IES existentes no Brasil, em 2020, um expressivo número delas - 1.892 (77%) - funciona como faculdade, sendo a maioria de natureza privada (1.752), enquanto 140 são públicas. Por sua vez, os centros universitários são hegemonicamente privados (96,2%), sendo os outros públicos (3,8%). Todos os 40 institutos federais de educação, ciência e tecnologia (IF), bem como os centros federais de educação tecnológica (CEFET), são públicos. No caso das 203 universidades que atuam no país, 112 são públicas, e as demais (91) são vinculadas ao setor privado, números que correspondem, respectivamente, a 55,2% e 44,8% do total. “As 203 universidades existentes no Brasil equivalem a 8,1% do total de IES. Por outro lado, 54,3% das matrículas de graduação estão concentradas nas universidades” (INEP, 2022, p. 12).
De maneira geral, os organismos internacionais, como a OCDE, defendem, em seus documentos, a diversificação e diferenciação do sistema de educação superior como marca caraterística a ser assegurada pelos países periféricos, o que vem se materializando com bastante intensidade no Brasil. Nesse sentido, a autonomia que a legislação educacional concedeu às universidades e aos centros universitários para criar novos cursos tem estimulado a expansão da rede privada, uma vez que, historicamente, a demanda existente na educação superior brasileira ainda não tem conseguido ser atendida satisfatoriamente pelo segmento público. Associada a esta questão, no contexto da globalização, há a expectativa do lucro que a oferta de educação superior pode proporcionar,
[...] ainda que as instituições de natureza privada possam conviver com iniciativas de caráter filantrópico e comunitário, sem fins lucrativos e parte delas esteja procurando assentar seu trabalho em propostas de caráter mais acadêmico. (SOUSA, 2013, p. 47).
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
As reflexões empreendidas apoiaram-se em argumentos convergentes para corroborar o pressuposto de que as orientações e prescrições de políticas educacionais protagonizadas pelos organismos internacionais vêm induzindo reformas neoliberais nos sistemas mundiais e nacionais de educação. Neste contexto, destaca-se a atuação da OCDE, cujas diretrizes e recomendações têm interferido significativamente na educação superior da AL&C, disseminando a concepção de educação superior como mercadoria.
As recomendações da OCDE têm influenciado a implementação das políticas e práticas institucionais no campo da educação superior na AL&C, revelando que isso ocorre de maneira articulada à transposição dos princípios do mundo da economia para esse campo. Os documentos expressam intenções e diretrizes que contribuem para defender a construção de um mercado transnacionalizado para a educação superior.
Como nos documentos dos demais organismos internacionais, aqueles produzidos pela OCDE emanam diretrizes com o intuito de consolidar determinadas propostas de educação superior para os países da periferia capitalista, alcançando seus objetivos por um conjunto de reformas sugeridas para a realidade latino-americana e caribenha. Esta orientação política tem repercutido, também, fortemente no cenário brasileiro, buscando transformar a educação superior do país em alvo de interesses mercadológicos, em oposição frontal à concepção de educação superior como um bem público e direito universal/social. A defesa de uma ou de outra dessas concepções é construída diante dos embates presentes no interior das IES e nos diversos espaços nos quais são formuladas as políticas para o setor, revelando uma correlação de forças em disputa.
O discurso apresentado nos documentos da OCDE traz consequências diversas para a educação mundial e nacional, contribuindo para que, concebida como mercadoria, a educação superior fique sujeita às disposições, aos controles e às sanções de sua comercialização em nível internacional. Nessa lógica, ela passa a ser encarada como algo comercializado, qualquer outro serviço ou mercadoria, sujeitando-se aos princípios do mundo da economia.
Por fim, nunca é demais lembrar que aqueles que são contrários à concepção de educação superior como bem público são persistentes e possuem grande poder, notadamente de natureza econômica e política. Além disso,
[...] dispõem de meios para manipular aqueles indivíduos e aquelas organizações que não sejam capazes de guardar o respeito à defesa dos interesses das populações de seus Estados membros e que preferem submeter-se ao poder de quem dispõe de dinheiro e controla o poder político. (DIAS, 2018, p. 86).
Diante do compromisso em investir, cada vez mais, na defesa dessa concepção, o debate aponta para a necessidade de os Estados nacionais da AL&C assumirem papel preponderante na formulação de políticas que, em sua essência, criem e garantam condições para o seu acesso como um direito social/universal, em prol do desenvolvimento social, cultural e econômico dos países da região.
Vale a pena ressaltar o pensamento de Antonio Gramsci quando retoma o princípio marxista da totalidade para que possamos compreender a necessidade de elaboração de políticas para a educação superior que sejam pensadas para além dos interesses do mercado capitalista. Nesse contexto histórico que estamos vivenciando nesta terceira década do terceiro milênio, até a concepção de práxis e a categoria de intelectual orgânico ganharam outro significado. Nas recomendações propostas pelos organismos multilaterais, a educação superior está sendo tomada como uma ciência particular, a qual, segundo a teoria gramsciana, vai produzir verdades parciais que devem ser reapropriadas no âmbito da totalidade de uma investigação operada pela filosofia das práxis.
Não se trata de focar apenas o aparente nexo linear entre a produção do conhecimento no âmbito das políticas educacionais propostas e as tomadas de decisão no campo prático, mas de levar em conta a forma como Gramsci amplia também as relações pedagógicas como práticas hegemônicas. Assim, tanto o que se chama de “análise das políticas educacionais” como a “análise para as políticas educacionais” podem se identificar, ideologicamente, corroborando um mesmo projeto civilizacional ou hegemônico. Por outro lado, também pode ocorrer que intelectuais considerados de “esquerda”, quando estudam estas políticas, sejam cooptados para atuarem em projetos conservadores, envolvendo-se em “análises para as políticas de educação superior” comprometidas com estratégias de acumulação do capital, o que, infelizmente, não é raro na América Latina e no Caribe.