1 ENTRE AS GRADES E AS PAREDES DA PRISÃO
O sistema penal2 oprime quem já foi o opressor, e todo opressor já foi oprimido. Segundo Bueno (2007, p. 9),
[...] as injustiças e opressões do seu interior nada mais são do que a expressão mais escarrada das injustiças e opressões às quais é exposta a parcela mais miserável da população brasileira (que ‘coincidentemente’, superlota as nossas cadeias, presídios e penitenciárias).
Nesse sentido, os privados de liberdade:
[...] são, com certeza, produtos da segregação e do desajuste social, da miséria e das drogas, do egoísmo e da perda de valores humanitários. Pela condição de presos, seus lugares na pirâmide social são reduzidos à categoria de ‘marginais’, ‘bandidos’, duplamente excluídos, massacrados e odiados. (ONOFRE, 2007, p. 12, grifo do autor).
A autora não descreve as ações que o detento cometeu no intuito de nos sensibilizar, mas para que possamos compreender que: “[...] as prisões caracterizam ‘teias de relações sociais’ que promovem violência e despersonalização dos indivíduos” (ONOFRE, 2007, p. 13, grifo do autor).
Onofre (2007) explica ainda que, ao chegar à prisão, o privado de liberdade deve se despir de toda a concepção de si mesmo, de toda a sua vivência; por consequência, será destituído de seu referencial, desvinculando-se de todos os seus pertences pessoais, roupas e documentos.
Portanto, o sinal de pertencimento a uma sociedade não existe mais, de maneira que foi retirado dele, quando substitui a sua roupa pelo uniforme da instituição. Além disso, a sua identificação não será mais pelo nome, mas por um número. Nesse momento, inicia-se a perda de suas identificações anteriores, para assumir os parâmetros ditados pelas regras institucionais. Ao adentrar a prisão, esse detento é submetido às regras institucionais do local, que ditam como deve ou não se comportar e seus direitos e deveres. É necessário que ele se adapte à rotina do presídio para que tenha uma boa convivência, porém os detentos são cooptados a seguirem outra regra, chamada de “teste de obediência”, que, segundo Onofre (2007), é o processo de admissão, conhecido como teste de boas-vindas. Onofre (2007) também relata que o novato é cooptado a participar de um grupo, de modo a receber as noções claras da situação.
O detento, então, conhece as regras estabelecidas, assim como prescrições, proibições e conduta do internado, conforme o sistema carcerário no Brasil.3 De acordo com Onofre (2007), muitos dos privados de liberdade são forçados a entrar em facções ou grupos nos presídios para sobreviverem ao período estabelecido até cumprirem as suas penas. Há casos em que, mesmo após saírem da prisão, continuam obedecendo aos comandos das facções. Esse modelo estabelecido no interior das prisões constitui-se em um dos fatores que dificultam a ressocialização do recluso, entre os vários motivos que o inibem de procurar a educação entre as grades.
Neste sentido, questionamos quais as políticas de educação que amparam, subsidiam ou mesmo garantem o direito social de se educar quando na situação de privação da liberdade e possibilidades de caminhos de ressocialização.
2 POLÍTICAS DE EDUCAÇÃO PARA OS PRIVADOS DE LIBERDADE
Parte-se da legitimidade de que a Constituição Federal de 1988 garante, em seu capítulo II - Dos Direitos Sociais, em seu Art. 6º, que:
São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição. (s.p.).
Além disso, como é sabido que os direitos dos privados de liberdade estão mantidos independentemente das ações que caracterizaram o crime, entendemos que a política de educação no cárcere também está amparada pelas diversas Diretrizes e Resoluções, conforme o levantamento feito por Julião (2016): nas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação de Jovens e Adultos4 em situação de privação de liberdade; nas Resoluções do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP), n. 3, de 2011 (BRASI, 2011a), e do Conselho Nacional de Educação (CNE), n. 2, de 2010 (BRASIL, 2010a); no Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania (PRONASCI), Lei n. 12.433/2011 (BRASIL, 2011b), que dispõe sobre a remição de parte do tempo de execução da pena por estudo ou por trabalho; no Decreto Presidencial n. 7.626/2011 (BRASIL, 2011c), que institui o Plano Estratégico de Educação no Âmbito do Sistema Prisional (PEESP); na Resolução n. 9, de 2011 (BRASIL, 2011d), que determina previsão de módulos educativos, laborais, de esporte e de lazer na construção de novas unidades penais; na Lei n. 13.163, de 9 de setembro de 2015 (BRASIL, 2015), que institui o Ensino Médio nas penitenciárias; e, por último, nos documentos aprovados pelas Conferências Nacionais de Educação Básica (BRASIL, 2008) e de Educação (BRASIL, 2010b) e no Plano Nacional de Educação (MEC, 2019).
Para Julião (2016), a Educação de Jovens e Adultos (EJA) nos presídios não é um benefício para os privados de liberdade, mas um direito previsto em lei, conforme determina a Constituição Federal de 1988, garantia consolidada pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação (BRASIL, 1996) e pela Lei de Execução Penal (LEP) (BRASIL, 1984), a qual preconiza que é dever do Estado prestar assistência ao preso, com o intuito de prevenir o crime e orientar o retorno desse condenado à convivência em sociedade. Isso vai ao encontro dos objetivos da execução dessa pena, que consiste em proporcionar ao condenado a harmônica integração social.
A LEP (1984), na seção V, especifica:
Art. 17 - A assistência educacional compreenderá a instrução escolar e a formação profissional do preso e do internado. Art. 18 - O ensino de primeiro grau será obrigatório, integrando-se no sistema escolar da unidade federativa. Art. 19 - O ensino profissional será ministrado em nível de iniciação ou de aperfeiçoamento técnico. Parágrafo Único - A mulher condenada terá ensino profissional adequado à sua condição. Art. 20 - As atividades educacionais podem ser objeto de convênio com entidades públicas ou particulares, que instalem escolas ou ofereçam cursos especializados. Art. 21 - Em atendimento às condições locais, dotar-se-á cada estabelecimento de uma biblioteca, para uso de todas as categorias de reclusos, provido de livros instrutivos, recreativos e didáticos. (s.p.).
A modalidade de Educação de Jovens e Adultos está amparada pelas Diretrizes Nacionais para a Educação de Jovens e Adultos em situação de privação de liberdade, bem como na Resolução CNPCP, n. 3, de 2009 (BRASIL, 2009), em particular o Art. 5º, que prevê que as autoridades responsáveis pelos estabelecimentos penais devem propiciar espaços físicos adequados às atividades educacionais (salas de aula, bibliotecas, laboratórios etc.), integrar as práticas educativas às rotinas da unidade prisional e difundir informações incentivando a participação dos(as) presos(as) e internados(as). Além disso, ela também está mencionada na Resolução CNE/CEB n. 2, de 19 de maio de 2010 (BRASIL, 2010a), que dispõe sobre as Diretrizes Nacionais, especificando a oferta de EJA em situação de privação de liberdade nos estabelecimentos penais.
O Decreto n. 7.626, de 24 de novembro de 2011, institui o PEESP, que contempla os estabelecimentos penais (Art. 1º), ofertando a modalidade de EJA, a Educação Profissional e Tecnológica e a Educação Superior (Art. 2.º), destacando-se, entre suas diretrizes: “I - promoção da reintegração social da pessoa em privação de liberdade por meio da educação” (Art. 3.º).
Com a apresentação desses textos jurídicos, entendemos que a ressocialização ou a reinserção do privado de liberdade é amparada por lei e deve, por meio dos planos estaduais, ser colocada em prática, por conta do compromisso firmado com os Ministérios da Educação e da Justiça.
3 A ESCOLA COMO ESPAÇO DE RESSOCIALIZAÇÃO: UM CAMINHO PARA A LIBERDADE
O sistema prisional brasileiro está fadado a uma crise5 , bastando se observarem relatos dessa falência pelos meios de comunicação, com imagens de presos revoltados, fugas em massa e celas superlotadas. Esse cenário pode ser verificado por meio do último Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (MINISTÉRIO DA JUSTIÇA, 2017), o qual demonstrou que o sistema prisional, de julho a dezembro de 2019, apresentou deficit de 312.925 vagas, sendo que existem 755.274 privados de liberdade nos presídios. O levantamento também mostrou que 16,53% deles estudam, de modo que a educação está presente desde a alfabetização até o Ensino Superior.
A Lei de Execução Penal de 1984, em seu Art. 88, diz que:
O condenado será alojado em cela individual que conterá dormitório, aparelho sanitário e lavatório. Parágrafo único. São requisitos básicos da unidade celular: a) salubridade do ambiente pela concorrência dos fatores de aeração, insolação e condicionamento térmico adequado à existência humana; b) área mínima de 6,00m2 (seis metros quadrados). (p. 18).
Os direitos dos privados de liberdade são compreendidos, por uma parcela da sociedade, como regalias. Segundo essa lógica, tomar banho, alimentar-se bem, dormir e até receber visitas não poderiam acontecer, pois o contato com o mundo exterior deveria ser banido. Assim:
[...] as pessoas creem que o processo penal termina com a condenação e não é verdade, as pessoas creem que a pena termina com a saída do cárcere, e que não é verdade; as pessoas creem que o cárcere perpétuo seja a única pena perpétua; e não é verdade: A pena, se não mesmo sempre, nove vezes em dez, não termina nunca. Quem em pecado está é perdido, Cristo perdoa, mas os homens não. (CARNELUTTI, 1995, p. 91).
Sendo assim, os presídios tornam-se depósitos de pessoas, onde os direitos mínimos dos presos são ignorados como forma de punição, não havendo, por parte do poder público, empenho para mudar essa realidade. Dessa forma, “[...] o ambiente prisional é contraditório, a começar por sua arquitetura, que separa, esconde, afasta o condenado da sociedade, punindo-o e vigiando-o, enquanto fala de educação e reinserção social” (ONOFRE, 2007, p. 24). O modo de pensar de muitos governantes também assimila a ideia de que o sujeito aprisionado está preso e deve pagar da pior forma possível, mesmo que ele tenha sido julgado, recolhido e esteja cumprindo o crime cometido. Nesse sentido, não basta estar preso, deve-se sofrer na prisão; logo:
O problema carcerário nunca ocupou, basicamente, a pauta de preocupações administrativas do governo. O tema vem à tona normalmente, em situações de crises agudas, ou seja, quando existe alguma rebelião, quando movimentos não governamentais trazem a público as mazelas existentes no cárcere, enfim, não é uma preocupação constante dos governos a manutenção de sistemas carcerários que cumpram a finalidade para as quais foram construídos. (GRECO, 2017, p. 231).
Nessa perspectiva, a falência do sistema penitenciário passa pelo controle ineficiente daqueles que deveriam zelar por um sistema que, na teoria, pudesse manter os detentos nos presídios. Greco (2017, p. 231) aponta alguns fatores que exercem influência sobre a crise das prisões, sendo eles:
a) A ausência de compromisso por parte do Estado no que diz respeito ao problema carcerário, o tema muitas vezes vem à tona em momentos de crises agudas; b) Controle ineficiente por parte daqueles que deveriam atuar/fiscalizar o sistema penitenciário; c) Superlotação carcerária que é um mal que corrói o sistema penitenciário, o movimento de lei e ordem, a cultura da prisão como resolução dos problemas; d) Ausência de programas destinados à ressocialização dos condenados é um fator que também contribui para a falência prisional, assim como os outros fatores.
O autor ainda elenca a ausência de recursos mínimos para a manutenção da saúde e o despreparo dos funcionários que exercem suas funções no sistema prisional. Nesse mesmo sentido, Bueno (2007, p. 09) afirma “que as estruturas são autoritárias, desumanas e repressoras”.
Então, quando se fala de direitos e garantias previstos pela Constituição Federal, deparamo-nos com a situação do sistema prisional e com as mazelas políticas e sociais e começamos a questionar se a ressocialização do privado de liberdade torna-se algo distante de se concretizar, sendo necessário o desenvolvimento de uma política séria de enfrentamento a todas essas situações, em que a sociedade civil possa exigir da classe política um posicionamento em referência às políticas públicas efetivas e de qualidade, com vistas a investir na educação, com foco na ressocialização do privado de liberdade.
Essa ressocialização é apresentada como processo de reinserção do privado de liberdade ao convívio social e aqui vamos apresentar como os dois pilares: trabalho e educação. Ambos os pilares propõem levar o privado de liberdade ao convívio social.
Os pilares da ressocialização remetem ao primeiro pilar, que é o trabalho. Frigotto (2009, p. 72) discute que
[...] é através dele que o ser humano produz a si mesmo, produz a resposta às necessidades básicas, imperativas, como ser da natureza (mundo da necessidade), mas também e não separadamente às necessidades sociais, intelectuais, culturais, lúdicas, estéticas, artísticas e afetivas (mundo da liberdade).
A fala de Frigotto vem ao encontro do sentido do trabalho como emancipador, porque, por meio dele, pode-se tirar o seu sustento financeiro e sucessivamente desfrutar dos benefícios que o trabalho proporciona. Esse tempo que o privado de liberdade passa apreendendo uma profissão e/ou trabalhando em um ofício no sistema penal o capacita para o mercado de trabalho. Esse cidadão terá condições de trabalhar garantindo sua produtividade e rentabilidade após o retorno à sociedade, conforme a Lei n. 12.433, de 2011 (BRASIL, 2011), que alterou a Lei de Execução Penal, Lei n. 7.210, de 1984, para dispor sobre a remição de parte do tempo de execução da pena por estudo ou por trabalho.
A educação para o privado de liberdade é vista como um caminho para a ressocialização, como uma oportunidade de retorno à sociedade, garantindo a remição de parte do tempo de execução da sua pena por meio dos estudos. Sobre a remição de pena, Silva (2021, p. 25) nos diz que:
A educação tem um grande impacto na vida dos apenados, pois eles têm a oportunidade de adquirir conhecimentos, melhorar suas atitudes e comportamento ainda estando preso. E depois de libertos, ela pode contribuir para dar a oportunidade às pessoas egressas da prisão, de colocarem as aprendizagens educativas vividas no cárcere em prática cotidianas, vivendo em sociedade.
Essa ressocialização prevista em lei6 chega até os professores de uma forma complexa, exigindo, muitas vezes, uma resposta imediata ou soluções rápidas que resolvam a situação educacional dos carcerários, cabendo a eles a busca de formações continuadas que lhes deem condições concretas de trabalho, uma vez que estão lidando com uma camada da sociedade que as instituições educacionais superiores não os prepararam para vivenciar. Pensar em uma ressocialização na qual a escola é vista como um caminho para a liberdade é colocar todo o peso de uma educação que não alcançou êxito quando esse privado de liberdade estava fora das grades da prisão nas “mãos” de uma educação prisional, a qual, por lei, estabelece que a assistência educacional é direito do privado em liberdade.
O fato de ser oferecido esse direito não garante que o apenado saia ressocializado para o convívio em sociedade, por inúmeros fatores já discutidos neste trabalho, mas não ofertá-lo é desacreditar que a educação não seja capaz de fazer com que o privado de liberdade não possa mudar suas atitudes e retornar à sociedade. Segundo Lourenço e Onofre, (2011, p. 268), é necessário que haja foco na “[...] elaboração e implantação de políticas públicas voltadas para a educação escolar no espaço de privação de liberdade, como garantia de possibilidade de resgate de vida digna ao cidadão aprisionado”. Isso significa que a educação ainda é um dos caminhos para se chegar à ressocialização do privado de liberdade, pois é na escola que se busca o papel humanizador de trazer de volta esse cidadão que, em algum momento de sua vida, não conseguiu prosseguir com seus estudos ou não teve as mesmas oportunidades que as outras pessoas tiveram. É necessário humanizar-se e, para isso, lembramo-nos da fala de Paulo Freire (1987, p. 16): “Humanização e desumanização, dentro da história, num contexto real, concreto, objetivo, são possibilidades dos homens como seres inconclusos e conscientes de sua inconclusão”.
Levar o privado de liberdade a refletir e reavaliar suas condições como cidadão que cometeu erros e que pode sair de uma situação marginal77, no sentido de “nas margens de um curso de água”, que precisa ser revitalizado para amenizar seu impacto urbano, ambiental e social. Segundo Silva (2021, p. 30), “A sala de aula é um dos possíveis ambientes que o preso tem para enxergar os caminhos que ele pode trilhar além das grades, em que os professores podem despertar nos seus estudantes sonhos possíveis de serem realizados aqui fora”.
4 O PROFESSOR E OS DESAFIOS DE SE EDUCAR NA CONTEMPORANEIDADE
A função de professor neste mundo vive em constante transformação, sendo necessário compreender sua dinâmica e complexidade, visto que, por meio das tecnologias digitais, os estudantes são bombardeados de informações a todo instante, inclusive com disseminação de fake news (notícias falsas). Tal situação provoca uma séria preocupação por parte dos docentes, perante o cotidiano da escola, fazendo-os buscar ressignificações de suas práticas no sentido de colaborar em movimentos de reflexão para o enfrentamento desse outro tempo com criticidade. Para Pischetola, (2016, p. 120), “O desenvolvimento profissional prevê, então, uma reflexão sobre os novos conhecimentos a serem adquiridos e sobre a mediação entre os novos instrumentos e a formação dos estudantes”.
Segundo a autora (2016), a formação é o momento principal para contextualizar, porém não se trata apenas de técnicas, mas de metodologias de ensino-aprendizagem que incluam a autonomia e a criatividade do docente, ou seja, trata-se de um resgate do perfil intelectual de cada professor e do capital social existente na escola. Pischetola (2016, p. 138) ainda diz que a “tecnologia não substitui a ação do docente, nem necessariamente a torna mais interessante ou motivadora”. A tecnologia tem de ser vista como aliada do professor, um recurso educacional que colabora com o fazer pedagógico, ampliando as possibilidades de o professor ensinar e de o estudante aprender.
Para Tardif (2013, p. 552):
Situando-se no centro de múltiplos desafios econômicos, sociais e culturais tanto individuais quanto coletivos, o ensino nas escolas encontra-se em nossos dias confrontado, por todos os lados, a pressões significativas, para se transformar e se adaptar imerso como se encontra num ambiente social que se tornou complexo e instável em quase todas suas dimensões.
Esse pensamento afirma que as escolas se encontram, atualmente, confrontadas por todos os lados, com pressões significativas, mostrando imposições, transformações e adaptações, muitas trazidas pelas tecnologias digitais. Pensamos no professor vivenciando tudo isso em um ambiente social complexo e instável, ou seja, que não é seguro, e esse profissional se vê acuado sem saber como lidar com todas as mudanças que, de certa forma, forçam-no a analisar para que direção está indo. Nesse contexto, cabe ao professor um momento de reflexão, de parada, aquele instante de respiração e de inspiração, que Schön (2000) vai nos dizer se tratar da reflexão sobre a ação, isto é, o ato de refletir o que foi bom e o que pode ser melhorado.
Dessa forma, refletir sobre a prática significa pensar sobre o que se faz e, essencialmente, pensar o que se faz enquanto se está fazendo, principalmente nesse ambiente social que se tornou complexo e instável para o professor. A formação docente na contemporaneidade se torna um grande desafio, pois a escola se torna o centro de múltiplos obstáculos econômicos, sociais e culturais, tanto individuais quanto coletivos, parafraseando Tardif (2013). Assim, “[...] a reflexão acerca da prática é aconselhável. Caso contrário corremos o risco de robotizar nossas ações, tornando os atos mecânicos, automáticos, recaindo em uma rotina” (WALDOW, 2009, p. 142).
O primeiro passo para a mudança é reconhecer a existência de um problema (NÓVOA, 2017). E qual seria o problema? Seria da formação? Como ocorre a formação desses profissionais da educação? Será que ela prepara o professor para todas as mudanças que estão ocorrendo em nossa sociedade? Será que todo professor quer mudar? Por que ele sofre as “pressões significativas para se transformar e se adaptar imerso”? (p. 6).
Nóvoa (2017) diz que vivemos tempos de grande incerteza e de profunda mudança na educação. Os sinais do futuro estão claros e só não vê quem não quer ver. Isso quer dizer que a escola, tal como se organizou desde meados do século XIX, tem os dias contados. Já não é novidade para muitos professores que a forma de lecionar está mudando, principalmente com o advento das tecnologias e da presença das diversas mídias digitais8 na escola. O professor já não é mais o detentor do conhecimento e nem os estudantes são vasos vazios a serem preenchidos, como discutem as palavras de Freire (1996). Hoje, o educando já chega à escola com um saber prévio, não como uma tábula rasa, sem informação, apenas esperando o professor depositar o conhecimento, pois o estudante que aprendia dessa maneira ficou no século passado, fazendo com que o professor precise acompanhar as mudanças que estão surgindo.
Sendo o estudante pertencente à sociedade em que vive, é necessário que os professores fiquem atentos a esses representantes da sociedade, que levam para o ambiente escolar uma bagagem de conhecimentos que não foram ensinados na escola e que não devem ser excluídos, mas valorizados. Sobre isso, “Não há saber mais ou saber menos, há saberes diferentes” (FREIRE, 1987, p. 68).
Sendo a escola o espaço que abriga esses sujeitos, é certo que as mudanças que ocorreram fora da escola passem a coexistir nela. É necessário ao professor coragem para desconstruir as velhas práticas e para se empenhar na construção de práticas pedagógicas que configurem as mudanças necessárias para alcançar a aprendizagem desse estudante. Por causa disso, é imprescindível que ocorra o diálogo entre os saberes do professor e do seu estudante. Nóvoa diz:
Trabalhar no sentido da diversificação dos modelos e das práticas de formação instituindo novas relações dos professores com o saber pedagógico e científico. A formação passa pela experimentação, pela inovação, pelo ensaio de novos modos de trabalho pedagógico. E, por uma reflexão crítica sobre a sua utilização. A formação passa por processos de investigação, diretamente articulados com as práticas educativas. (NÓVOA, 1995, p. 28).
Trazendo essa discussão para o sistema prisional, o professor que leciona nos presídios tem o perfil diferenciado dos outros profissionais da educação. Assim, suas práticas precisam ser pautadas nas especificidades dos estudantes, trabalhando os valores éticos, humanos e solidários, levando o privado de liberdade a refletir sobre suas condições de encarcerado e seu retorno ao convívio da sociedade.
5 MAIS DESAFIOS AOS PROFESSORES QUANDO NO ESPAÇO PRISIONAL
Trabalhar com a diferença é um exercício de aprendizagem, de estabelecimento de relações, de formação contínua. Neste sentido, problematizamos o quanto estamos dispostos, como educadores, de ressignificarmos nossos saberes, experiências, vivências, concepções para aprender e ensinar em contextos de currículos abertos, vivos, complexos e diversos que emergem na EJA e com os privados de liberdade.
É na minha disponibilidade permanente à vida a que me entrego de corpo inteiro, pensar crítico, emoção, curiosidade, desejo, que vou aprendendo a ser eu mesmo em minha relação com o contrário de mim. E quanto mais me dou à experiência de lidar sem medo, sem preconceito, com as diferenças, tanto melhor me conheço e construo meu perfil. (FREIRE, 1996, p. 152).
Conforme Fagundes e Campos (2011, p. 65), “O professor que reflete sobre a sua prática, que pensa, analisa, critica e (re) elabora adquire uma postura crítica reflexiva em seu contexto educativo”. Concordamos com Fagundes e Campos que o professor que está inserido em um sistema carcerário deve conhecer o seu entorno para saber quais atividades desenvolver com seus estudantes, conhecer a vivência do privado de liberdade para questionar e problematizar como, por que e o que ensinar em uma cela de estudos que fica em um presídio.
No Brasil, não temos um currículo voltado às especificidades de cada sistema prisional brasileiro. Na maioria das vezes, adota-se o modelo educativo de educação formal, que é bem distante da realidade prisional. Para Silva (2010, p. 150):
O currículo tem significados que vão muito além daqueles aos quais as teorias tradicionais nos confinaram. O currículo é lugar, espaço, território. O currículo é relação de poder. O currículo é trajetória, viagem, percurso. O currículo é autobiografia, nossa vida, curriculum vitae: no currículo se forja nossa identidade. O currículo é texto, discurso, documento. O currículo é documento de identidade.
O que temos, então, são adaptações ao currículo, ações buscando um olhar voltado à inclusão, à ressocialização dos privados de liberdade e às suas vozes, que ainda são poucas. Onofre (2007, p. 2) afirma que “Há uma contradição muito grande entre o que a educação se propõe na vida do estudante interno e a estrutura do sistema carcerário, que se baseia na repressão, obediência”.
Mesmo com todas as mazelas sobre a educação prisional, o papel da escola e do professor é de resistência, é ir ao encontro do resgate desse detento que vê na educação um caminho de transformação, ressocialização e condução ao convívio em sociedade. Logo:
Não há como negar a eficácia do papel da educação escolar no resgate da liberdade do aprisionado. A educação é um direito que assegura a condição de ser humano, pois a partir dela se constroem o laço de pertencimento à sociedade, à palavra, à tradição, à linguagem, à transmissão e à recriação da cultura, essenciais para a condição humana. (ONOFRE, 2015, p. 14).
Para o detento, a conexão com o mundo exterior é a sala de estudos, onde aprende, expõe seus pensamentos e tem voz. Nesse momento único, ele é chamado pelo nome, reconhecido como uma pessoa, e não apenas identificado por meio de um número. Então, a figura do professor é a mais próxima que tem, sendo também a única forma de saber o que está acontecendo no mundo exterior.
Segundo Onofre (2007, p. 107):
A escola não precisa funcionar nos mesmos moldes da dinâmica prisional, podendo, então, desempenhar um papel primordial no resgate na condição de cidadão, sendo o professor sujeito importante no estabelecimento de vínculos que o detento perdeu ao se afastar da sociedade.
São muitos os desafios dos professores no espaço prisional, desde a adaptação inicial, quando ele chega a um ambiente diferente do habitual, em um contexto prisional, já com uma cultura carcerária própria. Segundo Onofre (2013, p. 61), “A existência de uma cultura própria da prisão torna a escola um espaço singular, e o seu cotidiano nem sempre permite apreender os significados vividos naquele espaço-tempo”. Adaptar-se a esse espaço nem sempre é algo natural, pois, desde a chegada à prisão e de todo o ritual que se estabelece até esse professor chegar à sala de aula com a insegurança dos primeiros dias de trabalho, tudo é diferente do que o professor possa ter vivenciado em sua docência, por estar em um ambiente carcerário. A carga emocional nos presídios é muito forte, e o professor ficará uma boa parte do tempo em um sistema prisional, respirando as mesmas regras de conduta de qualquer outro funcionário.
Outro desafio enfrentado é o medo de rebeliões por causa das superlotações, por fuga de presos e por fragilidades dos agentes penitenciários. Em se tratando de superlotação, informações sobre os privados de liberdade mostram que, em 2018, no Brasil, havia uma taxa de 166% de presos vivendo nos presídios, mostrando que são 729.949 presos em espaços para 437.912 pessoas. Já em relação à fuga de presos, foram 23.518 fugas ao todo em 2018. Os dados são fornecidos pelo Sistema Prisional de Números9 elaborado pelo Conselho Nacional do Ministério Público.
O docente que pretende trabalhar no sistema prisional deve buscar conhecer a realidade da prisão e os direitos dos presidiários, mantendo-se, conforme ressalta Freire (1996, p. 39), em “formação permanente”, sendo fundamental o momento da reflexão crítica sobre sua prática, pois pode fazer todo o diferencial. Nesse sentido:
Por isso é que a formação permanente dos professores, o momento fundamental é o da reflexão crítica sobre a prática. É pensando criticamente a prática de hoje ou de ontem que se pode melhorar a próxima prática. O próprio discurso teórico, necessário à reflexão crítica, tem que ser de tal modo concreto que quase se confunda com a prática. (FREIRE, 1996, p. 39).
O contato do professor com esse estudante é visto aqui como um processo de ensino-aprendizagem, que leva o docente à reflexão da sua prática, no sentido de se adaptar, buscar e conhecer para transformar a realidade na qual o estudante está inserido. Nesse caso, sobre o sistema prisional, Freire (1996, p. 15) diz, ainda, que “a importância do papel do educador, o mérito da paz com que viva a certeza de que faz parte de sua tarefa docente, não se reduz apenas a ensinar os conteúdos, mas também ensinar a pensar certo”. Pensar certo é levar o estudante a refletir sobre suas ações e sobre como transformá-las por meio da educação.
A reflexão desse docente deve acontecer em seu dia a dia, na prática, mas também na formação continuada entre seus pares, por isso a importância de preparar o professor para a realidade vivenciada nos presídios, principalmente quando se pensa nas particularidades encontradas no interior das prisões, em uma formação que contemple a sua prática pedagógica e nos saberes necessários para sua atividade profissional, com todo o apoio necessário para desenvolver o seu trabalho.
Segundo Onofre e Menotti (2016, p. 157):
O professor que atua na escola do sistema prisional necessita de formação específica em EJA, além de formação continuada que contribua na superação dos dilemas vivenciados na prisão, para realizar sua tarefa docente em prol de uma educação emancipadora, que se propõe a procurar a emersão das consciências, objetivando a inserção crítica do sujeito na realidade.
O professor responsável por mediar e orientar a aprendizagem do apenado no Presídio Federal se depara com as diversas realidades vivenciadas pelo privado fora e dentro do próprio sistema carcerário, necessitando, assim, de uma formação norteadora que o faça transitar entre o propósito de uma educação que visa à liberdade e à autonomia dos sujeitos e, subsequentemente, aos valores institucionais que estão postos ao sistema prisional. Essa dualidade que o professor enfrenta diante da educação prisional corrobora Duarte (2013, p. 2), quando ele diz que:
O próprio ambiente tende a cristalizar a atuação dos professores, que muitas vezes, despreparados ou sem uma formação complementar que os norteie em sua prática tendem a dois caminhos distintos; - ou se alienam juntamente com o sistema, enrijece sua prática e se entrega ao comodismo, ou cria possibilidades de atuar de modo criativo e inovador nesse ambiente repleto de limitações políticas, administrativos e de segurança.
Um dos grandes desafios do professor, comprometido com seus alunos privados de liberdade, é o de buscar compreender as especificidades de cada um deles, seus interesses, suas preocupações e suas necessidades, para poder promover espaços de reinvenção de aprendizagens em contextos bastante precários e limitados de diferentes subsídios, ou seja, espaços de esperança a uma próxima ressocialização com qualidade.
6 ALGUMAS CONSIDERAÇÕES
As leis brasileiras pontuam ao privado de liberdade direitos e deveres, entre eles, o direito à saúde, ao trabalho, ao lazer e à educação. Compreendemos que este último deveria focar na ressocialização, no sentido de esperançar o apenado a ter um convívio social com qualidade e digno. Para além do papel, tais leis necessitam ser postas em prática, amparando e subsidiando o privado no enfrentamento de outras e diferentes convivências a surgirem.
Muitos são os desafios enfrentados pelos professores que desenvolvem este trabalho docente: refletir sobre sua prática constantemente, buscar adaptações dos currículos próximos às diferentes realidades, valorizando aspectos da inclusão, da autonomia e formar-se e formar o outro em espaços de trocas e de diálogos. Considerar que os privados de liberdade também são representantes e pertencentes da sociedade em que estamos inseridos é indispensável.
Mesmo o direito à educação não ser garantia da ressocialização, sua oferta pode abrir espaço para lutas, transgressões e debates contra uma perspectiva autoritária e excludente de desvalorização do privado de liberdade como ser humano, muito mais do que um simples número. Podemos investir em um tipo de resistência educativa no sentido de resgatar tal detento para fazê-lo compreender que ele é, acima de tudo, uma pessoa com suas identidades, interesses, experiências e necessidades e que têm o direito de existir e de viver de maneira digna.
A partir dessas reflexões, entendemos que a educação prisional requer um exercício permanente de lidar com as diferenças. Neste sentido, nós, como educadores, podemos somar nesse processo quando mostramos disponibilidade à vida, quando acreditamos em uma proposta de ensinar e aprender de corpo inteiro. Isto significa que, ao mesmo que afetamos, somos afetados. Entendemos que ressignificar práticas, saberes, experiências é uma possibilidade de educar-se e educar o outro que é diferente de mim e de você. Isto tudo requer coragem e ousadia para desconstruir práticas excludentes e para iniciar outras mais dialógicas que contemplem a riqueza da diversidade dos seres humanos.