1 INTRODUÇÃO
É importante considerar, para a discussão do tema, que a Constituição Federal (CF) de 1988, ao reconhecer o Brasil como uma República Federativa formada, segundo o art. 1º, pela união indissolúvel dos estados e municípios e do Distrito Federal, eleva os municípios à condição de entes federados (artigos 1º, 18, 29, 39), integrantes da organização político-administrativa do Estado brasileiro, “todos autônomos, nos termos desta Constituição” (Brasil, 1988, art. 18).
Como afirma Araujo (2010, p. 232),
[...] o federalismo tem como pressuposto uma organização territorial e política que vise a garantir, pela via democrática, a repartição de responsabilidades governamentais, ao mesmo tempo em que esteja assegurada a integridade do Estado nacional frente às inúmeras disputas e desigualdades regionais. Portanto, a federação é uma forma de Estado, regida pelo princípio da igualdade política de coletividades regionais desiguais.
A CF define responsabilidades específicas dos entes federados no campo educacional reafirmadas na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN), Lei n. 9.394, de 1996. O art. 8º, § 1º, estabelece que
Caberá à União a coordenação da política nacional de educação, articulando os diferentes níveis e sistemas e exercendo função normativa, redistributiva e supletiva em relação às demais instâncias educacionais (Brasil, 1996, art. 8º).
Os estados devem, segundo o art. 10, “VI – assegurar o ensino fundamental e oferecer, com prioridade, o ensino médio a todos que o demandarem [...]”. E os municípios, conforme o art. 11, incumbir-se-ão de “V – oferecer a educação infantil em creches e pré-escolas, e, com prioridade, o ensino fundamental”. E poderão, como define o parágrafo único do artigo, “[...] se integrar ao sistema estadual de ensino ou compor com ele um sistema único de educação básica” (Brasil, 1996, art. 11).
Nesse sentido, as relações intergovernamentais na educação não se dão mais por processos hierárquicos, sobretudo pela atenção aos campos próprios das competências assinaladas, mediadas e articuladas pelo princípio da colaboração recíproca e dialogal (Cury, 2008).
Diante do exposto, este texto visa discutir as relações intergovernamentais entre o Estado de Mato Grosso do Sul (MS) e alguns de seus municípios, na educação básica, particularmente no que se refere ao processo de transferência dos Anos Iniciais do Ensino Fundamental da Rede Estadual de Ensino de Mato Grosso do Sul para as Redes Municipais de Ensino.
A metodologia compreende análise bibliográfica, fundamentada na literatura sobre o tema; análise documental, por meio de consulta a fontes oficiais do Estado de MS; consulta a jornais publicados de forma on-line; e entrevista4 com representantes da Secretaria de Estado de Educação (SED), do Fórum Estadual de Educação (FEEMS) e da Assembleia Legislativa do Estado de MS (ALE/MS).
A análise define o Estado de MS, uma das 27 unidades federativas do Brasil, como locus da pesquisa, no sentido de apreender uma situação real e as condições objetivas em que as relações intergovernamentais acontecem, no contexto social em que se inserem. Localiza-se na região Centro-Oeste do país, criado a partir da divisão do Estado de Mato Grosso, no governo de Ernesto Geisel (1974-1979), por meio da Lei Complementar n. 31, de 11 de outubro de 1977, e é formado por 79 municípios. Sua população, no censo demográfico 2010, de 2.449.024 pessoas, passou para 2.756.700 pessoas no censo demográfico de 2022, um crescimento de 307.676 pessoas (IBGE, 2022).
Inicia-se pela concepção de política educacional que fundamenta a pesquisa, como política de corte social, levando-se em conta as contradições gerais de determinado contexto histórico. Reconhece que as políticas educacionais formuladas ou reformuladas no âmbito do Estado, compreendido em sentido ampliado, ou seja, que abrange a sociedade política (aparelho governamental) e a sociedade civil (Gramsci, 1984), resultam da correlação de forças sociais, do movimento e de projetos distintos de sociedade, e, portanto, são objeto de demanda da classe trabalhadora na luta pela garantia do direito à educação.
2 TRANSFERÊNCIA DOS ANOS INICIAIS DO ENSINO FUNDAMENTAL PARA AS REDES MUNICIPAIS DE ENSINO
Na primeira gestão do governo Reinaldo Azambuja (2015-2018), do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB), conforme a matéria de 7 de dezembro de 2018, publicada no jornal on-line Campo Grande News, intitulada “Ensino fundamental vai ser desativado gradativamente na rede estadual” (Sanchez, 2018), a então secretária de Estado de Educação esclarece a proposta, de que “o município fique responsável pelas turmas de educação infantil e fundamental 1, conforme prevê a LDB (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional)”. Em suas palavras, conforme expõe a matéria (Sanchez, 2018),
Agora estamos fazendo mais ostensivamente, porque tem um currículo novo que foi aprovado que foi construído, entregue na Assomasul5. A gente quer fazer a formação junto com o município, o Estado tem a responsabilidade das políticas públicas do ensino infantil e das séries iniciais, mas quem operacionaliza é o município. Então é o regime de colaboração entre União, Estado e Município.
É importante assinalar que o regime de colaboração pressupõe o desenvolvimento de trabalho conjunto entre os entes federados, com o intento de sanar ou diminuir os problemas que enfrentam e as diferenças regionais que podem limitar o atendimento do espírito republicano presente na CF de 1988, como analisam Oliveira e Ganzeli (2013).
Na segunda gestão do governo Reinaldo Azambuja, do PSDB, reeleito para o período de 2019 a 2022, a proposta de fechamento de quatro escolas provocou reações e embates (Oliveira, 2019), e a secretária de Estado de Educação, reconduzida ao cargo, explicou que a “revolta” dos pais “não ocorreu por falta de diálogo”. Conforme a matéria (Sanchez, 2019), a secretária afirma que “os diretores foram comunicados e ficaram responsáveis por conversar com os pais. A escola tem um chefe, que é o diretor. Então eles receberam os pais. A gente tem que ter uma certa clareza de que 5 ou 6 pessoas podem fazer um movimento muito grande”.
Apresenta-se, aqui, uma contradição, na medida em que a responsabilidade pela reação dos pais parece ser conferida aos professores, ao mesmo tempo que o fechamento das escolas é atribuído à necessidade de melhorar o “foco nas escolas”. Conforme a matéria (Sanchez, 2019), a secretária afirma que:
Um dos fatores que pesam muito é uma escola não ter foco, tem escola que tem fundamental I, II e ensino médio, EJA, AJA, profissional, e eu acredito que a gente tendo um foco fica mais fácil. Inclusive no estado, se a gente puder ter escola só do 6º ao 9º e uma outra só do ensino médio, a faixa etária, a proposta metodológica são diferentes. Então quanto mais foco tiver, mais fácil é a formação continuada, mais fácil é lidar com a juventude, mas fácil é lidar com o vocabulário.
O representante da SED/MS, em entrevista, explica esse processo, ao relatar que:
[...] o próprio plano prevê um planejamento articulado e a gente já começa a observar alguns indícios ou elementos que levam a acreditar que esse planejamento minimamente também tem acontecido, a exemplo dos últimos dois anos o governo do estado negociando com os governos municipais o redimensionamento da oferta do ensino fundamental entre as redes municipal e estadual, em que o estado repassa ao município demandas de turmas de primeiro ano de ensino fundamental e talvez até de segundo ano de ensino fundamental e o município repassando ao estado as turmas finais da etapa do ensino fundamental, turmas de oitavo e nono ano, que faz mais sentido para o estado, uma vez que sua responsabilidade dentro da garantia da oferta da educação básica, a prioridade do estado é o ensino médio, então ele já trabalha com esse estudante vindo do oitavo e nono ano, já é muito importante para efetivação da formação do estudante ali na etapa do ensino médio (Entrevista A, 2020).
Embora afirme que se trata de um planejamento articulado, nota-se que a decisão foi recebida com apreensão por integrantes das secretarias municipais de educação. Exemplifica-se com os dados da entrevista realizada com o representante do FEEMS ao responder que:
No ano passado houve uma reclamação geral, tanto que eu estava presente numa reunião da UNDIME [União dos Dirigentes Municipais de Educação] e no Fórum [Fórum Estadual de Educação] em relação à transferência desses alunos e destes anos somente do 1º ano do Ensino Fundamental e segundo ano. Qual é a palavra mais leve? De uma forma que o município tinha que assumir o papel dele e que o estado não ficaria mais com aqueles anos iniciais, então isso foi passado de uma forma que muitos municípios não estavam preparados [...].
Gerou um conflito entre esses entes federativos, por mais que soubéssemos que é obrigação do município e que ia chegar um período e que essa fase de anos [iniciais], em que os municípios teriam que assumir o seu papel na educação infantil e nos anos iniciais [do Ensino Fundamental] (Entrevista B, 2020).
De fato, esse tema foi ponto de pauta da reunião ordinária do FEEMS, realizada em 12 de abril de 2019, “Impactos da transferência dos anos iniciais do Estado para os municípios”. De acordo com o registro da reunião, foram levantados questionamentos, entre outros, referentes à situação dos professores concursados e o transporte escolar. Enfatizou-se que “[...] essa passagem deveria ser de forma progressiva, uma vez que os municípios precisarão abrir salas e criar espaço para atender essas demandas”. O registro conclui: “Entende-se que é preciso um bom planejamento para os municípios se organizarem” (FEEMS, 2019, p. 2).
Pode-se dizer que essa conclusão corresponde ao que define a LDBEN, no art. 10, ou seja, que os estados deverão se incumbir, entre outros, de: “I – definir, com os Municípios, formas de colaboração na oferta do ensino fundamental [...]”, no entanto, “[...] devem assegurar a distribuição proporcional das responsabilidades, de acordo com a população a ser atendida e os recursos financeiros disponíveis em cada uma dessas esferas do Poder Público” (Brasil, 1996, art. 10).
O representante da ALE/MS confirma, em entrevista, que a política do Estado de MS para a educação básica, no período, tem sido de transferir gradativamente, para as redes municipais, os anos iniciais do Ensino Fundamental. Afirma que “inclusive recentemente esta transferência se deu também com a cedência dos prédios escolares”. Acentua, porém, que “não se percebe uma orientação para a efetivação de iniciativas de colaboração e cooperação com as redes municipais” . Especifica em seu relato que “Em alguns municípios, principalmente em distritos, zona rural e áreas indígenas, há apenas o compartilhamento de instalações físicas para oferta do Ensino Médio pelo Estado” (Entrevista C, 2019).
3 MUNICIPALIZAÇÃO DE ESCOLAS
Observa-se, com relação à política educacional em curso, que o governo estadual, via Secretaria de Estado de Educação, passou a negociar com cada município, como se apreende no Termo de Acordo de Cooperação para Municipalização da Escola Estadual Professora Hilda de Souza Ferreira, que entre si celebram o Estado de Mato Grosso do Sul, por intermédio da Secretaria de Estado de Educação (SED/MS), e o Município de Campo Grande, MS, em 13 de janeiro de 2020 (Mato Grosso do Sul, 2020a).
O Extrato do Acordo foi publicado no Diário Oficial do Estado, nos seguintes termos:
Extrato do Termo de Acordo de Cooperação N. 04/SED/2020.
Processo n: 29/054.776/2020.
Partes: Estado de Mato Grosso do Sul, por intermédio da Secretaria de Estado de Educação – CNPJ/MFN. 02.585.924/0001-22, denominada CEDENTE, e o Município de CAMPO GRANDE/MS, CNPJ/MF N. 03.501.509/0001- 06, denominado Cessionário.
Amparo Legal: Lei Federal n. 8.666/1993 e alterações posteriores no que couber, Lei Federal n. 9.394/1996, Decreto Estadual n. 11.261/2003, Decreto 12.207/2006, Plano Estadual de Mato Grosso do Sul (Lei Estadual 4.621/2014) e alterações posteriores, no que couber.
Objeto: O presente Termo de Cooperação para Municipalização da Escola Estadual Professora Hilda de Souza Ferreira para a Secretaria Municipal de Educação do Município de Campo Grande/MS. Para uso exclusivo da Rede Municipal de Ensino para ampliação de vaga da Educação Infantil e Educação Básica, conforme preconiza Lei Federal n. 9394/96.
Vigência: 24 meses a partir da data da assinatura.
Assinatura: 13/01/2020.
MARIA CECILIA AMENDOLA DA MOTTA – CPF/MF [...] Secretária de Estado de Educação
CEDENTE MARCOS MARCELLO TRAD – CPF/MF [...] Prefeito do Município de Campo Grande/MS – CESSIONÁRIO (Mato Grosso do Sul, 2020a, p. 5).
Apesar de se tratar de um Extrato do Termo de Acordo de Cooperação, com poucas informações sobre os critérios definidos entre as partes, atenta-se para a responsabilidade assumida pelo município, pela oferta educativa de estudantes dos anos iniciais do Ensino Fundamental, oriundos da Rede Estadual de Ensino, compreendendo-se essa oferta como “[...] formas de provisão e atendimento às diferentes etapas da educação básica” (Adrião, 2014, p. 264).
Chama atenção o prazo de vigência definido no Termo de Acordo de Cooperação, ou seja, 24 (vinte e quatro meses), a contar da data de assinatura. Mesmo que seja prorrogado, mediante consenso entre os entes federados, se encerrado, o município terá de providenciar as condições para a oferta educativa, uma vez que, com a municipalização, ele é o responsável pelos estudantes que foram incorporados à Rede Municipal de Ensino.
No processo de municipalização de escolas, outro ponto a ser questionado refere-se às condições de trabalho docente e de outros profissionais da educação (concursados ou contratados), que deverão atuar nas escolas municipalizadas. A resposta do entrevistado, referindo-se ao acordo com o Município de Campo Grande, esclarece que “São professores do município, se tivesse um professor que atua no estado e no município, ele poderia ficar porque ele já era do município também, então ele poderia ficar [...]” (Entrevista B, 2020).
E acrescenta sobre a escola municipalizada:
Os professores, coordenadores, diretores, todos são do município, efetivos ou contratados. O que ficou do estado foi a estrutura e muitos dos materiais que já tinham lá, estrutura de carteiras, mesas, sala do diretor, ar-condicionado, isso permaneceu na escola, dentro desse processo de parceria (Entrevista B, 2020).
Este relato reforça a responsabilidade do município com os estudantes, expressa no Decreto n. 14.128, de 28 de janeiro de 2020, que “Dispõe sobre a municipalização das Escolas Estaduais Nicolau Fragelli, Professor Carlos Henrique Schrader, Advogado Demosthenes Martins e Professora Hilda de Souza Ferreira e dá outras providências”, conforme delineado a seguir.
MARCOS MARCELLO TRAD, Prefeito de Campo Grande, capital do Estado de Mato Grosso do Sul, no uso das atribuições que lhe confere o inciso VI do art. 67 da Lei Orgânica do Município [...].
CONSIDERANDO que o disposto no § 4º do art. 211 da Constituição Federal de 1988 determina à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios definirem formas de colaboração, de modo a assegurar a universalização do ensino obrigatório;
CONSIDERANDO o fortalecimento da autonomia do Poder Municipal e o controle das atividades escolares por parte das comunidades locais, conferidos pela Lei n. 4.507, de 17 de agosto de 2007, que institui o Sistema Municipal de Ensino, no município de Campo Grande – MS, e a Lei n. 3.438, de 13 de janeiro de 1998, que cria o Conselho Municipal de Educação/CME de Campo Grande – MS;
CONSIDERANDO que os extratos dos Termos de Acordo de Cooperação n. 1/ SED/2020, n. 2/SED/2020, n. 3/SED/2020 e n. 4/SED/2020, firmados entre o Estado de Mato Grosso do Sul, por intermédio da Secretaria de Estado de Educação, e o Município de Campo Grande – MS, municipalizam, respectivamente, as unidades escolares relacionadas no anexo único a este Decreto, para uso da Rede Municipal de Ensino/ REME de Campo Grande – MS, e amplia as vagas para a educação básica, nas etapas da educação infantil e do ensino fundamental, conforme preconiza a Lei n. 9.394/96.
DECRETA: Art. 1º Ficam municipalizadas as Escolas Estaduais Nicolau Fragelli, Professor Carlos Henrique Schrader, Advogado Demosthenes Martins e Professora Hilda de Souza Ferreira, que se incorporarão ao Sistema Municipal de Ensino e integrarão a Rede Municipal de Ensino/REME.
Art. 2º As unidades escolares passarão a ser identificadas, respectivamente, por Escolas Municipais, com o mesmo nome de identidade, conforme anexo único a este Decreto.
Art. 3º Este Decreto entra em vigor a partir da data de sua publicação. (Campo Grande, 2020).
Como se verifica, o decreto corrobora que as quatro unidades escolares do Estado de Mato Grosso do Sul foram incorporadas à Rede Municipal de Ensino de Campo Grande. Das quatro escolas, a Escola Municipal Professora Hilda de Souza Ferreira passou a se constituir em tempo integral (Göedert, 2023).
Outro ponto a ser mencionado refere-se ao Decreto n. 15.498, de 19 de agosto de 2020, que determina:
Art. 1º As unidades escolares da Rede Estadual de Ensino de Mato Grosso do Sul, abaixo nominadas, a partir de 1º de fevereiro de 2020, ficam integradas conforme especificação constante dos incisos deste artigo:
I – a Escola Estadual Cel. Antônio Trindade fica integrada à Escola Estadual Cândido Mariano, ambas no Município de Aquidauana-MS;
II- a Escola Estadual Hilda Bergo Duarte fica integrada à Escola Estadual Profª Eufrosina Pinto, ambas no Município de Glória de Dourados-MS;
III – a Escola Estadual Leopoldo Dalmolin fica integrada à Escola Estadual Prof. José Juarez Ribeiro de Oliveira, ambas no Município de Itaquiraí-MS;
IV – Escola Estadual Paulo Freire fica integrada à Escola Estadual 8 de Maio, ambas em Iguatemi-MS (Mato Grosso do Sul, 2020b).
A integração de escolas implica, de fato, o fechamento de quatro unidades escolares estaduais, em diferentes municípios (Aquidauana, Glória de Dourados, Itaquiraí e Iguatemi) do interior do estado.
O encerramento de atividades em outras escolas da Rede Estadual de Ensino foi efetivado por meio do Decreto n. 15.499, de 19 de agosto de 2020 (Mato Grosso do Sul, 2020c). Chama atenção a justificativa apresentada, que se pauta na municipalização de escolas de Campo Grande, conforme exposto:
Considerando que as Escolas Estaduais Nicolau Fragelli, Prof. Carlos Henrique Schrader, Adv. Demó sthenes Martins e Prof.a Hilda de Souza Ferreira, localizadas no Município de Campo Grande/MS, foram municipalizadas e integradas à Rede Municipal de Ensino de Campo Grande, conforme o Decreto Municipal n. 14.128, de 28 de janeiro de 2020, publicado no DIOGRANDE n. 5.816, de 29 de janeiro de 2020, página 2, por força do contido nos Termos de Acordo de Cooperação n. 1/ SED/2020, n. 2/SED/2020, n. 3/SED/2020 e n. 4/SED/2020, firmados pelo Estado de Mato Grosso do Sul, por intermédio da Secretaria de Estado de Educação, e o Município de Campo Grande/MS.
De acordo com o decreto,
Art. 1º Ficam encerradas as atividades escolares nas Escolas da Rede Estadual de Ensino identificadas no Anexo I deste Decreto, com efeitos a partir da data que especifica.
Art. 2º O Acervo Escolar das Escolas identificadas no Anexo I deste normativo fica integrado às escolas recebedoras, conforme especificações constantes do Anexo II deste Decreto (Mato Grosso do Sul, 2020c).
Além das quatro escolas em Campo Grande, foram encerradas as atividades em escolas situadas em outros municípios (Aquidauana, Bandeirantes, Deodápolis, Ponta Porã, Dourados, Mundo Novo), como se observa no quadro a seguir.
Nomes das Escolas | Encerradas nos Municípios | Efeitos |
---|---|---|
Escola Estadual Advogado Demosthenes Martins | Campo Grande, MS | 1º de fevereiro de 2020 |
Escola Estadual Edwirges Coelho Derzi | Deodápolis, MS | 1º de fevereiro de 2020 |
Escola Estadual João Ribeiro Guimarães | Bandeirantes, MS | 9 de julho de 2019 |
Escola Estadual Lions Club de Ponta Porã | Ponta Porã, MS | 1º de fevereiro de 2020 |
Escola Estadual Nicolau Fragelli | Campo Grande, MS | 1º de fevereiro de 2020 |
Escola Estadual Prof. Carlos Henrique Schrader | Campo Grande, MS | 1º de fevereiro de 2020 |
Escola Estadual Prof. Luiz Mongelli | Aquidauana, MS | 1º de fevereiro de 2020 |
Escola Estadual Profa. Hilda de Souza Ferreira | Campo Grande, MS | 1º de fevereiro de 2020 |
Escola Estadual Profa. Terezinha dos Santos Mendonça | Mundo Novo, MS | 1º de fevereiro de 2020 |
Escola Estadual Rotary Dr. Nelson de Araújo | Dourados, MS | 1º de fevereiro de 2020 |
Fonte: Mato Grosso do Sul (2020c).
Registra-se que o acervo escolar das 10 escolas da Rede Estadual de Ensino foi integrado a outras unidades escolares, listadas no Anexo II do Decreto, nos seguintes termos:
Art. 1º Ficam encerradas as atividades escolares nas Escolas da Rede Estadual de Ensino identificadas no Anexo I deste Decreto;
Art. 2o O Acervo Escolar das Escolas identificadas no Anexo I deste normativo fica integrado às escolas recebedoras, conforme especificações constantes do Anexo II deste Decreto.
Art. 3º Compete às escolas recebedoras dos acervos escolares:
I – zelar e organizar o acervo de documentos escolares;
II – assegurar, nos documentos escolares a serem expedidos pela escola, o cumprimento das informações corretas acerca da identidade e da vida escolar dos estudantes, bem como dos atos escolares que legitimam a ocorrência do processo de ensino e de aprendizagem;
III – responsabilizar-se pela expedição de Guias de Transferências, Histó ricos Escolares, Declarações de Conclusã o de série/ano, Certificados ou Diplomas de Conclusã o de Curso, com as especificações pró prias, em conformidade com a legislaç ã o que dispõ e sobre a organizaç ão escolar das escolas da Rede Estadual de Ensino de Mato Grosso do Sul.
Art. 4º A Secretaria de Estado de Educaç ã o deve prover as Escolas recebedoras dos acervos escolares com recursos materiais e servidores necessá rios ao seu funcionamento, em conformidade com as normas do Sistema Estadual de Ensino.
Art. 5º Este Decreto entra em vigor na data de sua publicaç ã o.
Campo Grande, 19 de agosto de 2020 (Mato Grosso do Sul, 2020c).
Uma das escolas em que as atividades foram encerradas na Rede Estadual de Ensino, a Escola Estadual Rotary Dr. Nelson de Araújo, localizada no Município de Dourados, também foi municipalizada.
O processo de municipalização da escola provocou embates que mobilizaram diferentes segmentos da sociedade, registrados em diversos jornais do município. De acordo com o Jornal Dourados Agora, antes de o acordo ser oficializado, “[...] a proposta gerou protestos por parte dos pais dos alunos. Eles não desejavam a mudança de gestão, sob o medo de ter a qualidade de ensino prejudicada. Cerca de 300 crianças estudam na unidade, do pré ao 5º ano” (Araújo, 2020).
A matéria acentua que:
Na época, os pais temiam que os impasses financeiros enfrentados pela gestão municipal, que provocaram até escalonamento de salários dos servidores, pudessem comprometer a qualidade do aprendizado das crianças. A decisão de municipalizar a escola faz parte do projeto educacional desenvolvido pela gestão do governador Reinaldo Azambuja (PSDB), desde o mandato anterior. Unidades em várias cidades do Estado já foram atingidas pela estratégia, que prevê o reordenamento de alunos e a otimização dos custos da pasta (Araújo, 2020).
O impasse chegou à Câmara de Vereadores de Dourados, sendo que os 19 vereadores solicitaram ao Governo do Estado de Mato Grosso do Sul que a Escola Estadual Rotary Doutor Nelson de Araújo não fosse municipalizada, conforme notícia publicada no site da Câmara (19 Vereadores [...], 2019).
No documento encaminhado, os vereadores enfatizam que:
Com 51 anos de serviços prestados, a Escola é referência. Atualmente com 296 alunos que estudam do 1° ano ao 5° ano, a instituição desde que passou a participar das avaliações de larga escala, aplicadas pelo MEC, vem apresentando resultados crescentes, ultrapassando a meta estabelecida para 2021 e ocupando o lugar de destaque no Estado com a nota do IDEB de 7,4 (2015), a segunda melhor, além de alcançar excelentes resultados nas avaliações internas, como no desempenho, no monitoramento realizado pela própria Secretaria, alcançando 97 pontos. [...] historicamente, todos os anos a procura por vagas é o dobro das oferecidas. Isso se deve também a qualidade do quadro de funcionários altamente comprometidos, bem como atuam efetivamente com participação dos pais (APM) [Associação de Pais e Mestres] fazendo da escola um modelo para a educação pública, explicam os vereadores (19 Vereadores [...], 2019).
O texto, segundo a noticia, afirma
[...] que o prédio escolar, seus equipamentos e acervo, apresentam boas condições de funcionamento, não faltam materiais para os alunos ou para os professores e que a escola é bem organizada e conservada, apesar do pouco espaço. Eles ressaltam que o prédio não precisa de reformas urgentes, de manutenção na rede elétrica, hidráulica, ou seja, não exige grandes investimentos por parte do Estado (19 Vereadores [...], 2019).
A matéria do Jornal Progresso informa sobre uma reunião realizada com o secretário municipal de Educação e sobre o seu depoimento, que acentua a necessidade de que “[...] cedam os educadores concursados, de forma que o ônus (remuneração) continue sendo paga [sic] pelo Estado”. A matéria acrescenta que, conforme o secretário, “[...] caso o Governo não ceda os professores, caberá a [sic] prefeitura estudar uma possibilidade de remanejar educadores de outras escolas para a Nelson de Araújo, como também contratar profissionais. ‘Isso teremos que estudar com o financeiro’, admitiu” (Verão, 2019).
A medida deixou servidores temerosos, é o que descreve o jornal Dourados News, o qual expõe que, conforme relatos obtidos, os profissionais que ali atuam serão distribuídos para outras unidades de ensino, e destaca a afirmação de uma servidora: “‘Eu não sei o que eles vão fazer com a gente. Vamos ficar pulando de escola para escola, mas e depois?’” (Araújo, 2019).
O jornal Dourados News registra o depoimento de outra servidora e mãe de um aluno:
‘[...] Hoje a gente tem consciência do estado que a Prefeitura se encontra. Os salários não estão sendo pagos de acordo. Como ela vai assumir mais uma escola?’ Uma escola com porte de cinco salas atender 300 crianças significa que ela atende muito. O que vai se fazer, vai municipalizar? Como vai fazer isso? O que vai ser feito com esses alunos? Se você dissesse que a escola não tivesse aluno, se ela não tivesse tudo o que ela contempla, ok. Mas essa não é a realidade. O fato é que, não é uma questão dos pais batendo o pé, é pelos nossos filhos. É a educação das nossas crianças. Nós pagamos impostos, e, diga-se de passagem, altíssimos, para que? [sic] O Estado deveria representar o povo, mas com isso eles não estão cumprindo esse papel. É arbitrário o que está acontecendo (Araújo, 2019).
A matéria finaliza com a comunicação da SED/MS, que em nota expõe:
Desde 2015, a Rede Estadual de Ensino (REE) passa por um processo de reordenamento, motivado pela diminuição do total de estudantes matriculados nos últimos dez anos: entre 2010 e 2019 esse número atingiu o quantitativo de 51.956 estudantes a menos em todas as etapas ofertadas pela REE, e um aumento de 5 escolas, passando de 362 para 367 unidades. O reordenamento consiste na realocação de turmas de escolas com poucos estudantes, ou, em localidades onde o quantitativo de profissionais seja insuficiente para a manutenção do atendimento nos três turnos (matutino, vespertino e noturno), para outras unidades com a infraestrutura necessária para receber a nova demanda. Em 2020, o processo de reordenamento da Rede Estadual de Ensino será realizado, em regime de colaboração, com os municípios. Este processo segue em curso e todas as medidas serão anunciadas pela Secretaria de Estado de Educação (SED) no dia 29 de novembro, durante o lançamento da Matrícula Digital 2020 [...] (Araújo, 2019, grifo nosso).
O registro, com certo detalhe, das reportagens dos jornais do Município de Dourados mostrou os conflitos desencadeados no processo de municipalização da escola e evidenciou as dificuldades financeiras, naquele momento, para arcar com despesas na área de educação e, provavelmente, com outros serviços públicos sob sua responsabilidade. A desigualdade de condições financeiras, técnicas e políticas, “Na sua versão mais problemática, desestimula a cooperação entre os entes, podendo levar até à competição entre eles”, como assinala Abrucio (2010, p. 47).
Apesar dos embates, com manifestações de segmentos da sociedade civil e da sociedade política, o acordo de cooperação entre Governo do Estado de MS e o Município de Dourados, para municipalização da Escola Rotary Nelson de Araújo, foi oficializado, e a unidade de ensino foi integrada à Rede Municipal de Dourados.
Termo de Acordo de Cooperação N. 11/SED/2020. Processo n: 29/002.409/2020. Partes: Estado de Mato Grosso do Sul, por intermédio da Secretaria de Estado de Educaç ã o – CNPJ/MFN. 02.585.924/0001-22, denominada CEDENTE, e o Município de Dourados – MS, CNPJ/MF N. 03.155.926/0001-44, denominada CESSIONÁ RIO. Amparo Legal: Lei Federal n. 8.666/1993, Lei Federal n. 9.394/1996, Lei Estadual n. 11.261/2003, Decreto n. 12.207/2006, Plano Estadual de Educaç ã o. Objeto: Municipalização da Escola Estadual Rotary Dr. Nelson de Araú jo. Vigência: a partir da data da assinatura até 24 meses. Assinatura: 17/1/2020. MARIA CECILIA AMENDOLA DA MOTTA – CPF/MF N. 724.551.958-72 Secretária de Estado de Educaç ã o – CEDENTE DELIA GODOY RAZUK – CPF/MF N. 480.715.441-91. Prefeita Municipal de Dourados -MS./ MS – CESSIONÁ RIA (Mato Grosso do Sul, 2020d, p. 13).
Outro ponto que vale trazer para a discussão, no âmbito das relações intergovernamentais, refere-se ao fechamento de salas de aula de 8º e 9º anos na Rede Municipal de Ensino de Campo Grande, MS, e a transferência de estudantes para a Rede Estadual de Ensino. Matéria publicada no jornal Campo Grande News, intitulada “Professores fazem abaixo-assinado contra fechamento de salas em escola municipal”, informa que o documento, com mais de 1.500 assinaturas, foi entregue na Secretaria Municipal de Educação (SEMED).
A matéria se refere ao depoimento de um professor e representante dos docentes no sindicato (Olliver, 2022):
‘Uma questão que estamos nos questionando muito é isso chegar no final do ano. É um impacto para essa comunidade e um impacto para nós. Então há um mês pra gente fechar o ano a gente está aí nessa situação, nesse impasse. E não é por falta de demanda. Nossas turmas são cheias de demanda com 35 a 40 alunos. Para nós professores é ruim, aqueles que fizeram o processo seletivo vão perder vagas e os concursados vão ter suas horas quebradas. Então é ruim para toda comunidade escolar’.
Mais um depoimento importante é o da presidente de um residencial, onde a escola está localizada, ao mostrar a realidade das pessoas que vivem em regiões periféricas da cidade (Olliver, 2022):
‘O que está acontecendo é que a minha comunidade, fomos pegos de surpresa. Essas crianças que vão perder a vaga na escola, muitas vezes a mãe sai de madrugada para trabalhar e deixa o filho responsável por levar o mais novo na escola. Muitos estudam no mesmo lugar por isso. Aqui em Campo Grande temos uma grande dificuldade de transporte, como vamos colocar esses estudantes, se já temos que levar trabalhador e os alunos que já usam o ônibus? Os alunos vão para as Moreninhas, Teotônio e Itamaracá’, pontuou [...]. ‘Muitas são mães solo. Esses meninos que vão para essas escolas longe, como vai ser? Isso é dar crédito para a rua adotar o filho dos outros. Essa decisão tem que ser tomada pelos pais, pela comunidade e professores. Eles não podem ir lá na periferia e tomar a decisão por nós. Colocamos eles lá para sentar-se com a comunidade e conversar’.
Observa-se que essa realidade não se dissocia dos limites estruturais da sociedade brasileira, “[...] marcados por uma tradição histórica, cujo ethos patrimonial não foi totalmente superado, onde a desigualdade social se faz presente num modelo societário desigual e combinado” (Dourado, 2010, p. 680).
A SEMED, por sua vez, conforme a matéria, informa que a Escola Municipal Dr. Plínio Barbosa atende, todos os anos, aproximadamente 2 mil alunos da educação infantil, a partir do grupo 4 (alunos que completam 4 anos até 31 de março), ao 9° ano do ensino fundamental, e, com a mudança, “[...] a unidade escolar vai abrir 12 turmas do ensino fundamental I – sendo um grupo 4, seis de 1º ano, quatro de 2º ano e uma de 3º ano – nos períodos matutino e vespertino”. A mudança está sendo comunicada aos responsáveis pelos alunos e aos professores (Olliver, 2022).
Os dados apresentados indicam que os acordos entre o Estado de MS com os municípios expõem ações fragmentadas e não levaram em consideração o diálogo com as comunidades educativas, o impacto na vida dos professores, a distância entre as escolas e os domicílios, a dinâmica familiar dos estudantes, entendendo-se que o regime de colaboração, argumento utilizado pela SED/MS, implica a organização de mecanismos cooperativos que compreendem, segundo Rabelo e Castro (2015), três dispositivos, intervenção, negociação e compartilhamento. Assim,
Colaboração, nesse formato, passa a incorporar os sentidos para além da execução, assume a forma de práticas de participação na criação, de interposição decisória nos destinos das políticas e nas suas formas de materialização e de tomada de posição concreta na sua execução nas unidades governamentais (Rabelo; Castro, 2015, p. 447).
A transferência dos anos iniciais do Ensino Fundamental, sem as condições objetivas, poderá se configurar um processo de desconcentração, compreendido como “[...] transferência de competências de um ente federado para outro, resultando na manutenção de ações pontuais e focalizadas de apoio técnico e financeiro, em detrimento de ampla política de planejamento, financiamento e gestão da educação básica”, como afirma Dourado (2007, p. 937).
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Buscou-se, neste artigo, discutir a política em curso de transferência dos anos iniciais do Ensino Fundamental da Rede Estadual para as Redes Municipais de Ensino de Mato Grosso do Sul, por meio de consulta aos documentos oficiais, de reportagens publicadas em jornais on-line e de entrevistas.
A discussão mostrou os embates e as disputas que permearam o processo, no contexto da correlação de forças sociais, que resultaram em acordos de cooperação formalizados entre o Estado de MS, via SED/MS, para municipalização de algumas escolas. Esses acordos evidenciam critérios pouco claros e insuficientes, que não correspondem, à primeira vista, ao modelo cooperativo, ou federalismo intraestatal, cuja ênfase é o entrelaçamento entre os níveis de governo, utilizando os termos de Araujo (2013).
A descentralização pressupõe autonomia dos municípios no âmbito do poder local e de suas competências e atribuições relativas ao campo educacional. Portanto, as contradições presentes no processo de municipalização de escolas, coordenado pela SED/MS, no período, indicam que ele mantém mais semelhança com processos de “[...] desconcentração da administração da educação” (Lima, 2015, p. 21) do que com processos de descentralização democrática.
Vale lembrar que a educação foi reconhecida como direito de todos e dever do Estado pela Constituição Federal de 1988, além de ser o primeiro direto social assegurado, conforme o art. 6º da Constituição (Brasil, 1988, art. 6º).
Compreende-se que, embora os sistemas de ensino tenham liberdade de organização, nos termos da LDBEN (Brasil, 1996, art. 8º, § 2º), e que seja legítimo o governo do estado, eleito pelo voto da população, formular políticas educacionais para a educação básica, tais medidas devem resultar, desde a sua origem, de procedimentos democráticos, como o diálogo e a cooperação recíproca com os municípios, tendo em vista garantir o direito à educação.