INTRODUÇÃO
Este artigo resulta de pesquisa qualitativa, de cunho exploratório, apoiada em levantamento de informações em fontes primárias e em entrevistas com mães de estudantes que se encontravam matriculados em escolas irlandesas, localizadas em Dublin, na etapa obrigatória. O trabalho contou ainda com aporte da literatura sobre o tema investigado.
Segundo o Dicionário de Sociologia Moderna (1970), organizado por Theodorson e Theodorson, os estudos exploratórios cumprem a função de ampliar o grau de informação sobre determinado objeto, permitindo ao pesquisador elaborar, com mais qualidade, hipóteses para o desenvolvimento de investigação futura e escolher os mais adequados procedimentos metodológicos. Além disso, pesquisas exploratórias auxiliam os pesquisadores a entender melhor o fenômeno estudado, quando se identifica ausência de informações suficientes sobre o tema. Para Polit, Beck e Hungler (2004), esse tipo de estudo permite elaborar descrições mais detalhadas dos fenômenos, etapa necessária ao desenvolvimento da pesquisa sobre temas pouco conhecidos.
Tratou-se, pois, de uma aproximação sistemática ao objeto investigado com vistas a fornecer elementos para a composição de um quadro de referência teórico-metodológica a respeito dos modelos de financiamento público a escolas de educação obrigatória geridas privadamente.
Este tema atrela-se a estudos anteriormente desenvolvidos (suprimido, 2014, 2017) a respeito de programas de subsídio público à oferta educacional privada2, os quais, na última década, recebem o apoio de movimentos organizados e de corporações, inclusive em âmbito mundial, alicerçados na defesa da primazia da escolha das famílias pela escola de seus filhos, sobre sua oferta estatal e na desqualificação da oferta educacional pelo Estado (EDWARDS JUNIOR; HALL, 2017; suprimido, 2014).
Trata-se de movimentos de “advocacy ” pró escolha parental (choice)3, como o National School Choice Week nos EUA, potencializados por fundações privadas e partidos políticos conservadores que passam a disputar a agenda educacional em diferentes contextos, inclusive no Brasil (KLEES et al, 2012; PATRINOS; BARRERA-OSORIO; GUÁQUETA, 2009; ADRIÃO; 2009, 2017). Tais orientações, entendidas por parte da literatura como formas de privatização da oferta educativa (entre tantos, Apple, 2003 e Scott, 2009 para os EUA, Lubienski e Yoon, 2017 - Canadá; Adrião, 2009 e 2017; Freitas, 2015; Domiciano; 2012- Brasil), assentam-se na substituição da oferta educacional estatal pela ampliação de programas de escolha parental financiados por fundos públicos.
No entanto, o modelo de oferta educacional irlandês, embora figure como referência de sistema educacional alicerçado na “escolha parental” (FOX, BUCHANAN; 2008), é pouco tratado pela literatura em geral.
O Gráfico 1 indica a proporção com que o tema da escolha de escolas foi tratado no conjunto dos trabalhos inventariados em pesquisa junto ao Web of Science4, para o período de 1990-2015. O inventario considerou os artigos em periódicos relacionados à educação obrigatória localizados por meio do descritor CHOICE presente em seus títulos ou resumos, sendo condição para a inclusão no levantamento bibliográfico, a existência desse último.
Do total de artigos encontrados com o descritor, 193 associavam-se ao campo EDUCATION ou EDUCATIONAL RESEARCH; desses, 70 se referiam à educação em sua etapa obrigatória, cf. gráfico 1, mas apenas dois analisavam a situação da Irlanda: Lynch e Moran (2006) e Buchanan e Fox (2008).
Lynch e Moran (2006) problematizam estudos que não consideram sincronicamente as políticas de escolha da escola com a ampliação do discurso neoliberal e o crescimento do mercado global da educação. Complementarmente, para os autores, as escolas têm identidades e são identificadas em função da classe social que as frequenta, de modo que escolas que tradicionalmente atendam grupos de baixa renda, dificilmente alteram essa identidade, mesmo se alterados o grupo social que as frequenta e suas taxas de desempenho acadêmico. O contrário também se verifica: escolas que foram pagas, ao se tornarem gratuitas ainda atraíam estudantes de classe média. Reconhecem, entretanto, que não havia por parte do Estado, incentivos que associassem o ‘direito de escolha’ a estratégias de competição entre escolas, mas alertam para tendências de crescimento do setor privado com fins de lucro, incentivado pelo repasse de fundos públicos, especialmente no nível secundário, etapa não retratada neste artigo.
Em posição diametralmente oposta encontrou-se o artigo de Buchanan e Fox (2008), no qual se analisa o sistema irlandês em diálogo com o modelo de charter school estadunidense. Para os autores, a 'escolha' e a 'liberdade', medidas pela capacidade dos pais de selecionarem as escolas de seus filhos, estão profundamente enraizadas no ethos nacional dos Estados Unidos. Entretanto, se os pais americanos ricos sempre exercitaram a escolha da escola, o mesmo não ocorre com os estudantes de minorias e de baixa renda, os quais, muitas vezes, ficam limitados a frequentar escolas de pior qualidade. O texto sobre a natureza da escolha da escola pautou-se em pesquisa conduzida junto a uma amostra intencional de escolas primárias irlandesas. Os autores examinam cinco aspectos do sistema nacional irlandês de ensino primário, que poderiam fornecer modelos para educadores americanos, cuja visão muitas vezes para nas fronteiras dos Estados Unidos: lei da educação, mecanismos de escolha da escola, estrutura curricular nacional, o papel da avaliação, e o papel dos pais e educadores na criação de novas escolas.
Em outro trabalho, os mesmos autores informam que o compromisso da Irlanda com a escolha da escola expressa-se tanto em políticas de admissão à escola, inclusive por não se pautar na matrícula georreferenciada, quanto na possibilidade de as famílias optarem por escolas com distintas orientações - confessionais, focadas na língua irlandesa (gaélica), multiconfessionais ou, ainda, pela educação domiciliar (FOX; BUCHANAN; 2008).
Por matrícula georreferenciada entendem-se os procedimentos que atrelam a escola de destino a áreas geograficamente definidas, em geral, em função do local de residência do estudante. Na maioria dos casos, o atendimento associa-se à distribuição dos fundos públicos resultantes de impostos. Esse procedimento foi identificado em pesquisa realizada nos estados norte-americanos de Maryland e Georgia, dado serem os Estados Unidos que disseminam trabalhos (ARCHBALD, 2004) e movimentos da sociedade civil defensores do fim do georreferenciamento e da introdução de programas de escolha da escola como mecanismo para que famílias pobres rompam ciclos de desigualdade na oferta educacional, instituídos pela obrigatoriedade de matricular os filhos nas escolas dos bairros em que moram.
O texto se organiza em três partes: informações sobre a organização da educação obrigatória na Irlanda, com destaque para as formas praticadas pelas escolas para a matrícula dos estudantes; análise das entrevistas coletadas e indicações finais.
As informações foram coletadas entre 2016-2018, por meio de pesquisa documental em sítios oficiais do Department of Education and Skills (DES) e demais órgãos governamentais e em notícias divulgadas em jornais irlandeses. Complementarmente coletou-se, por meio de entrevistas semiestruturadas gravadas ou registradas5, o depoimento de cinco mães de estudantes matriculados em escolas primárias ou pós primrias distribuídas pela região metropolitana de Dublin.
NOTAS SOBRE A ORGANIZAÇÃO DO SISTEMA EDUCACIONAL IRLANDÊS
Na Irlanda, a escolha da escola pelos pais é um direito definido constitucionalmente, no Artigo 42:
1. O estado reconhece a família como educador primário e natural da criança e garante e respeita o direito inalienável e dever dos pais para fornecer, de acordo com seus meios, a educação religiosa e moral, intelectual, física e social de seus filhos. 2 Pais devem ser livres para fornecer essa educação em suas casas, em escolas privadas ou em escolas reconhecidas ou estabelecidas pelo Estado. 3 1° O estado não obriga os pais a violarem sua consciência pela preferência legal no envio de seus filhos para escolas estabelecidas pelo Estado, ou a qualquer tipo específico de escola designado pelo Estado. 2° o Estado, no entanto, como guardião do bem comum, exige que as crianças recebem uma mínima educação, moral, intelectual e social. 4 - o estado deve fornecer educação primária de graça e envidar esforços para completar e dar auxílio razoável para iniciativa educacional particular e, quando o bem público o exigir, fornecer outros equipamentos escolares ou instituições, considerando, no entanto, os direitos dos pais, especialmente em matéria de formação religiosa e moral. 6 (Constitution of Ireland - tradução livre do autor)
O texto constitucional, além de garantir a primazia da decisão da família sobre a educação dos filhos, garante que o Estado não poderá violar a consciência e as preferências das famílias exigindo que seus filhos frequentem escolas estatais. Ainda que assegure às novas gerações o acesso a um mínimo de educação, este poderá ocorrer em casa, em instituições públicas ou privadas.
A Constituição caracteriza como ‘escolas nacionais’ todas as instituições financiadas pelo estado, ainda que de propriedade e gestão privada. No caso das confessionais, a imensa maioria, o Artigo 42 ressalta o direito à liberdade religiosa dos estudantes.
Na Irlanda, é função do Ministério da Educação determinar a política educacional nacional e definir um currículo mínimo; autorizar o funcionamento e financiar escolas reconhecidas, monitorar e avaliar a qualidade, a eficiência e a eficácia de todas as escolas e dos setores que arrendem terras ou edifícios com o propósito de estabelecer uma escola. Segundo o documento Education Act de 1998, cabe ainda ao Departamento de Educação e Ciência da Irlanda (DES), órgão do Ministério da Educação, pagar diretamente os salários de todos os professores das escolas subvencionadas, aprovar pedidos para o estabelecimento de novas escolas primárias, contribuir para os custos das instalações escolares e inspecionar periodicamente as unidades escolares. (Ireland, Education Act, 1998). Ao Ministro da Educação cabe, em concordância com o Ministro das Finanças, determinar anualmente os critérios pelos quais qualquer classe ou classes de escolas ou centros reconhecidos para a educação serão financiados com verbas destinadas pelo Oireachtas. (Ireland, Education Act, 1998)
O Parlamento Nacional (Oireachtas) é composto pelo presidente e duas casas legislativas: Dáil Éireann (Câmara dos Deputados) e Seanad Éireann (Senado), cujas funções e poderes derivam da Constituição da Irlanda, promulgada em 1 de julho de 1937. As Câmaras do Oireachtas situam-se em Leinster House/Dublin e são responsáveis por normatizar a educação no país7.
De acordo com pesquisa em documentos oficiais, em 2017, a educação básica organizava-se em quatro níveis: pré-escola (crianças entre 3 e 4 anos sem frequência obrigatória); seis anos de educação primária obrigatória (crianças entre 4 a 12/13 anos de idade); escola secundária composta, por dois ciclos (Junior e Senior), sendo que apenas o primeiro ciclo é obrigatório. A partir do segundo ciclo do secundário diferenciam-se as trajetórias escolares. A oferta escolar, ainda que gratuita, deriva de provedores privados subsidiados pelo poder público (Ireland, Education Act, 1998).
Regulada por Lei Nacional, as escolas nacionais subvencionadas são impedidas de cobrar mensalidades ou taxas, salvo como contribuição voluntária. Em 2016, a subvenção mensal por aluno nas escolas primárias correspondeu a € 1708. Além desse subsidio per capita e do pagamento de professores, o Estado repassa recursos para a manutenção das escolas e para a aquisição de livros e material escolar; nesse caso, entre 15 e 21 Euros por aluno. Escolas que atendiam estudantes considerados vulneráveis economicamente ou com necessidades educativas especiais recebiam complementação no valor per capita. Já as escolas privadas não recebem nenhum tipo de subsídio.
Dados da OCDE, publicados em 2017, indicavam que a Irlanda gastava9 por aluno abaixo da média internacional, ocupando a 19ª posição dentre os países que integram o levantamento da organização. No caso da educação primária, os dados mantinham o país na 19ª posição desde 2013. De acordo com o relatório, a média de gasto público por aluno/ano na educação primária equivalia a €6.464, sendo que a média dos países da OCDE foi €7.233; no ensino secundário o valor anual praticado pelo governo irlandês consistiu em cerca de €8.200, enquanto a média encontrava-se entre €8.300. Ainda de acordo com a mesma Organização, na Irlanda, 97% dos fundos públicos para o ensino primário eram destinados a escolas “públicas”, ou seja, as escolas nacionais, enquanto na média da OCDE esse repasse equivalia a 93%. No ensino secundário, a Irlanda destinou 93% dos fundos públicos para escolas públicas/nacionais, equiparando-se à média praticada pelos países da OCDE. (OCDE, 2017, Table B3.1.a)
ADMISSÃO DE ALUNOS: INDAGANDO SOBRE COMO SE ESCOLHE A ESCOLA
Em relação ao tipo de mantenedora, o DES classifica as escolas primárias nacionais, como confessional, inter-confessional e multi-confessional podendo ofertar o ensino em inglês ou irlandês (gaélico)10.
Por confessional entende-se a escola vinculada a uma única comunidade religiosa e que oferece educação religiosa de acordo com as tradições, práticas e crenças dessa comunidade religiosa especifica. Escolas interconfessionais correspondem às escolas que se encontram sob tutela de mais de uma comunidade religiosa. Já as escolas multiconfessionais, no contexto irlandês, são aquelas que não fornecem educação religiosa como parte de seu currículo e escolas que fornecem educação sobre religiões diferentes por período determinado e em função das solicitações dos pais. Tais escolas podem funcionar sob distintos ethos institucionais, neste contexto, entendidos como o conjunto de valores que propagam11.
A Tabela apresenta, em período selecionado, o total de escolas primarias nacionais irlandesas por ethos institucional.
Ethos institucional | Total de escolas -2012 | Total de escolas - 2017 |
---|---|---|
Católica | 2.884 | 2.794 |
Irlandesa | 180 | 175 |
Multiconfessional | 73 | 106 |
Presbiteriana | 14 | 15 |
Interconfessional | 8 | 18 |
Mulçumana | 2 | 2 |
Metodista | 1 | 1 |
Judaica | 1 | 1 |
Quaker | 1 | 1 |
Outras | 1 | 2 |
Total | 3.165 | 3.115 |
Fonte: As autoras, com base em Darmody, Smyth e McCoy (2012), p.2 e Tickner (2017), p.8.
A primeira informação a destacar refere-se à proporção de escolas primárias católicas em relação às demais: 89%, em 2017. Destaca-se ainda a diminuição, no período, no número total de escolas em funcionamento (50 a menos), ao mesmo tempo em que se observa o crescimento de escolas multi e interconfessionais e a diminuição no número de escolas católicas e irlandesas.
Considerando o que no país se caracteriza como ethos institucional, O' Mahony (2008), em survey para Conferência Episcopal de 2008, assinalava que a concentração da matrícula na escola católica associava-se, na maioria das vezes, à falta de opção enfrentada pelos pais, tendo em vista o fato de que, na proximidade da residência, a única escola disponível é a católica. Para o autor, esta é a razão para que, em muitos casos, pais não-católicos enviem seus filhos para uma escola com essa denominação. Ainda assim, a maioria dos participantes no estudo afirmou que a escola frequentada pelo filho correspondia à primeira escolha, pois a distância de casa foi considerada fator determinante para a escolha. Por outro lado, o mesmo estudo indicou que, enquanto 37% escolheriam uma escola da mesma religião, 10% escolheriam uma escola laica e, dentre esses, aqueles oriundos de outros Estados-membros da União Europeia foram 3,8 vezes mais propensos a escolher uma escola não religiosa em comparação com os seus homólogos irlandeses.
Darmody, Smyth e McCoy (2012) confirmam que a matrícula nas escolas primárias se dão em função da proximidade da casa, em geral em escola paroquial local, na qual crianças que tenham irmãos ou pais como ex-alunos são priorizadas. Já para Cohen-Zada e Sander (2007), alguns pais podem enviar seus filhos para escolas confessionais com vistas a preservar a identidade religiosa da família, enquanto outros procurariam escolas que não promovessem um sistema de fé específico. Para esses autores, estudos desenvolvidos nos EUA mostraram que tanto a religião, quanto a religiosidade impulsionam a demanda para escolas privadas, sejam essas católicas, protestantes ou mesmo não confessionais (COHEN-ZADA, SANDER; 2007).
No caso irlandês,
"A maior diversidade étnica e cultural entre a população de estudantes na Irlanda contribuiu para uma demanda crescente de escolas multi-confessionais. O movimento The Educate Together na República da Irlanda é uma resposta à vontade de alguns pais de oferta de um novo tipo de escola, centrada em um ambiente inclusivo, e no respeito ao aluno. Este setor tem se expandido rapidamente desde que foi criado em 1978. Agora existem 60 escolas em 19 condados”. (Darmody, Smyth e McCoy, 2012, p. 3 - Tradução livre das autoras)12.
Formalmente, as políticas de admissão às escolas na etapa obrigatória devem cumprir o disposto na seção 7 do Equal Status Act 2000, segundo o qual os pais podem apelar às instâncias superiores caso a escola se recuse a matricular uma criança. Entretanto, geralmente, as escolas confessionais dão prioridade a seus correligionários, como indica a literatura consultada e as entrevistas realizadas, apresentadas no próximo item. Tal perspectiva é ainda confirmada por documento divulgado pela OCDE, segundo o qual
Se puderem escolher a escola para seu filho, é mais provável que os pais considerem mais importantes critérios como ´ambiente escolar´ e ‘boa reputação’ da escola do que ‘alta realização acadêmica’ (OECD 2013, p.128- tradução livre).
Já Lubienski e Lee (2016) consideram que "pais" não são uma categoria monolítica, pois alguns escolhem as escolas com base na qualidade acadêmica, enquanto outros tendem a enfatizar os custos em termos de proximidade, taxa de matrícula ou transporte, por exemplo. Entendem que são poucas as informações a respeito de como os pais praticam suas preferências escolares e sobre como as escolas respondem a essas práticas, inclusive no que tange a recursos financeiros. Indicam a necessidade de estudos que considerem as relações espaciais, articuladas a obstáculos físicos e sociais, por exemplo.
Em diálogo com as problematizações assinaladas pela literatura, as entrevistas realizadas neste estudo buscaram ampliar informações sobre dois aspectos: os critérios adotados pelas famílias para a escolha da escola de seus filhos e filhas e o tipo de contrapartida exigido pelas escolas escolhidas para admissão dos estudantes.
COMO SE ESCOLHEM AS ESCOLAS: DIÁLOGO COM MÃES RESIDENTES NA REGIÃO DE DUBLIN.
Segundo informações governamentais, Dublin é a capital da República da Irlanda desde sua proclamação em 1949, depois de fortes e sangrentos enfrentamentos com o governo inglês durante a luta por sua soberania, esta autoproclamada em 1937. Desde então, a Irlanda tornou-se uma democracia parlamentar.
O governo divide-se entre os governos central e as autoridades locais, neste caso exercido por Conselhos Municipais eleitos que se articulam a representantes governamentais nomeados pelo Governo Central. As competências dos Conselhos Municipais incluem planejamento, infraestrutura de transporte, serviços sanitários, segurança pública (principalmente bombeiros) e fornecimento de bibliotecas públicas. Já a educação está diretamente vinculada ao Ministerio de Educação e Desenvolvimento, parte integrante do governo central.
Em Dublin, existem quatro autoridades locais, nomeadamente Dublin City Council, Fingal County Council, South Dublin County Council and Dun Laoghaire Rathdown County Council. As escolas escolhidas pelas entrevistadas encontram-se em Dublin City Council, Dun Laoghaire Rathdown e South Dublin County Council, condição que ilustra variação regional.
A seleção das entrevistadas levou em consideração três critérios: filhos matriculados em escolas na etapa obrigatória; residirem em diferentes distritos de Dublin e frequentarem escolas com diferentes ethos institucionais. Além disso, deveriam manifestar interesse em colaborar com a pesquisa, expresso em consentimento formalmente firmado.
A escolha dessas pessoas decorreu de contatos efetuados pela pesquisadora residente em grupos de mães e local de trabalho, uma vez que as escolas, inicialmente acionadas, não nos permitiram contatar as famílias. Frise-se, ainda, que o inquérito não se referia ao perfil das famílias uma vez que tratou de “introduzir, no escopo das investigações desenvolvidas, também a percepção dos usuários sobre a escola escolhida” (suprimido).
Entrevistaram-se cinco mulheres, todas com ensino superior completo, cujas respostas a respeito das sete escolas escolhidas para seus filhos e filhas estão organizadas no Quadro 1.
Escola | Estudante/Gênero | Critério para a escolha | Tipo de Escola | Formas de contribuição | Razões para escolher outra escola | Exigências da escola para matrícula |
---|---|---|---|---|---|---|
A | 1 menina no primário | Proximidade e existência de vagas | Pública/Católica Para meninas |
Taxas para lanche; Compra de uniforme (obrigatório); Material escolar |
Laica Mista |
Morar no bairro |
B | 2 meninas na mesma escola | Proximidade; Mista; Reputação excelente |
Católica, Pública Mista |
Contribuição voluntária de taxa no começo do ano; Participação em atividades comunitárias para arrecadar fundos para a biblioteca (feiras de livro etc.); Participação em atividades religiosas. |
Educate together (escola multicultural) |
Certificado de batismo Residir na localidade da escola- catchment area |
C | 1 menina no primário | Proximidade de casa | Pública e Laica Para meninas |
Contribuição voluntária; Taxas lanche; Compra de uniforme e material escolar |
Mista Católica |
Proximidade da casa |
D | 1 menino no secundário | Indicação de familiar professora | Pública e católica Para meninos |
Contribuição voluntária; Taxas lanche; Compra de uniforme e material escolar |
Mista e católica | Mudaram de bairro para garantir a matrícula na escola desejada. |
E | 1 menina no primário | Gratuita, mista, proximidade de casa e boa reputação | Pública/ Católica/ mista |
Não mencionou nada | Escolheria escola pública, mista e laica e perto de casa | Declaração de interesse quando bebê, declaração de aceite do ethos |
F | 1 menina primeiro ciclo do secundário | Privada (paga), perto da casa, mista, laica e boa reputação. | Privada/ internacional, mista e laica | Paga mensalidade, matrícula e materiais escolares. | Escolheria escola pública, mista e laica e perto de casa | Declaração de interesse pagamento taxa. |
G | Uma criança (Não especificado) |
Proximidade | Escola mista; multiconfessional e língua gaélica como segundo idioma | Taxas para lanche e compra de uniforme | Escola católica | Pré-matrícula da criança ainda bebê |
Fonte: autoras, com base nas entrevistas concedidas entre 2017 e 2018.
As entrevistas versaram sobre sete diferentes tipos de escolas: seis públicas e uma particular. No primeiro bloco, duas eram multiconfessionais e quatro católicas. Quatro eram mistas (três públicas/católicas e particular), duas femininas e uma para meninos. A escola particular, além de laica era internacional e uma das escolas públicas oferecia o ensino em gaélico.
Um primeiro aspecto a considerar, a partir dos depoimentos, refere-se à matrícula em escolas próximas à residência como critério recorrente e como decorrência de exigências das escolas, o que levou uma das famílias a mudar de bairro e outras a lamentarem a inexistência de escolas laicas e ou mistas nos bairros em que residem.
Sobre o ethos escolar, interessa destacar que a insatisfação com a escola atual não se atrelou ao grau de escolaridade das crianças, mas à impossibilidade de escolher o tipo de escola desejado. Em todos os casos, a escola frequentada, mesmo quando paga, não atendia às expectativas das famílias. Especialmente no que tange à religião, expressa na demanda por escolas laicas ou multiconfessionais dentre os que se encontram em escolas católicas. Também no que concerne à segregação por gênero, há um apelo por escolas mistas. A esses critérios agrega-se a gratuidade e a proximidade da residência. Interessa frisar que a escolha por escolas de boa reputação acadêmica foi identificada em três respostas para a opção pela escola atual, mas não aparece como requisito para a escola desejada.
Elemento ainda a considerar diz respeito às exigências das escolas para a matrícula. Destas se destacam a pré-matrícula do futuro estudante ainda em bebê, como mecanismo para “reserva de vaga” e a entrega de atestado de batismo para matrícula a uma das escolas católicas.
Todas as entrevistadas consideram que as escolas públicas exigem o pagamento de alguma contrapartida, seja por exigir a compra de uniformes obrigatórios e tidos como caros, lanches ou livros e materiais escolares complementares, seja por cobrar contribuição em dinheiro, ainda que de forma voluntária.
INDICAÇÕES EM FORMA DE SÍNTESE
O primeiro aspecto a considerar é que estudos a respeito de sistemas de ensino estruturados a partir do provimento privado, apresentam-se como elemento importante para a composição de um quadro de análise sobre políticas educacionais e sobre proposições de políticas assentadas na escolha de escolas com subsídio público. Isso porque, vêm-se ampliando medidas dessa natureza para novos contextos, com o estímulo de diversos think tanks nacionais e internacionais. A exemplo, cita-se a recente declaração de Bill Gates à imprensa americana que 15% dos US$ 1,7 bilhão destinados à educação pela Fundação Gates serão destinados ao financiamento de escolas charter para estudantes com necessidades especiais (BALINGIT, 2017). No Brasil assiste-se à proposição de programas de introdução de voucher para merenda e transporte como em São Paulo, a generalização de programas de “bolsas” para frequência à educação infantil implantados em dezenas de municípios paulistas (DOMICIANO, 2012; BORGHI et al; 2014; OLIVEIRA, 2018) ou ainda de programas de transferência da gestão de escolas públicas para organizações privadas.
Concordando com Lynch e Moran (2006), considera-se que a ampliação de políticas dessa natureza potencializa estratégias para que a oferta da educação básica se transforme em oportunidade de expansão de “mercados educacionais”, tendendo a conformar tradicionais formatos de educação comunitária, cooperativa, ou mesmo confessional a modelos de oferta educativa orientada por esses mercados.
Um segundo aspecto, decorrente do estudo do sistema de educação irlandesa, diz respeito ao sentido atribuído, por aquela sociedade, à escola pública: instituições educacionais reguladas e financiadas pelo poder público, mas cuja propriedade ou filiação é de natureza privada. Ainda que o tema não seja passível de desenvolvimento no escopo deste artigo, é certo que um sistema educacional no qual inexista, por definição legal, escola estatal e que a etapa de escolaridade obrigatória tenha a frequência gratuita assegurada, parece constituir-se em relevante objeto de investigação a medida em que suscita indagações sobre se sistemas educativos organizados com essas bases (pública não estatal) favorece ou dificulta a oferta educativa por organizações com fins de lucro.
Em relação à amplitude do modelo de escolha, as entrevistas indicam que, contrariamente ao apresentado por Fox e Buchanan (2008), as matrículas na região de Dublin são georreferenciadas e associadas a determinado catchment area.
Indicam também que a escolha da escola se associa a fatores como a religião proclamada e a disponibilidade de vagas, condições que geram diferenças no acesso à escola e no tipo de escola disponível e em relativa competição entre as famílias percebidas na antecipação de reservas de vagas para futuros estudantes, enquanto esses são ainda bebês.
Tais diferenciações expressam-se nas estratégias de escolha das famílias e na seleção velada de estudantes praticada por escolas, mesmo em condições onde o georreferenciamento não é o principal mecanismo para a matrícula, como o caso irlandês. Lubienski (2000) considera que a escolha das escolas porta uma preocupação das famílias com a competitividade futura de seus filhos no seletivo sistema educacional. Essa diferenciação pode ser percebida nas estratégias familiares pela busca de uma escola melhor, como a mudança de residência ou a matrícula em escola privada.
Alguns depoimentos confirmam tendência identificada por Darmody, Smyth eMcCoy (2012), segundo a qual o movimento Educate Together expressa o desejo de famílias por escolas mais inclusivas, respondendo ao crescimento da diversidade cultural e étnica no pais. Trata-se de escolas multiconfessionais e mistas não dirigidas por entidades religiosas ou a essas vinculadas. Nessa mesma direção, em maio de 2018, o ministro da educação em exercício anuncia um processo de consulta a pais de algumas localidades a respeito de suas preferências pelo tipo de escola oferecido13.
Registra-se que as diferenças no padrão educacional, decorrentes da diversidade no ethos e de diferenças na localização das escolas, tende a ser minimizado pela manutenção de exigências comuns para o pagamento dos professores e de um currículo nacionalmente definido. Ainda assim, o convite ao aprofundamento desses temas continua em pauta.
Por fim, indica-se que se aproximar, na forma de estudo, de campos empíricos diversos, como o caso irlandês, sublinha a importância das singularidades no estudo das políticas educacionais, favorecendo que, além das contradições próprias do campo da política - passíveis de percepção quando de estudos empíricos (FREY, 2000) -, tendências globais, como a privatização, possam ter suas consequências compreendidas em diálogo com as condições objetivas e historicamente construídas em cada contexto.