INTRODUÇÃO
A mudança do regime político, de um país ou região, é acompanhada de alterações profundas nos sistemas de valores sociais que se repercutem fortemente nos modos de vida das populações. A História ilustra bem essas alterações. Repescando apenas no tempo de modernidade, em 1789, a Revolução Francesa trouxe-nos um texto moderno fundamental: Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão e a transformação de uma monarquia numa república assente nos pilares de liberdade, igualdade, fraternidade. A Revolução Russa, em 1917, instalou uma nova forma de pensar o Estado, o socialismo, assente na nacionalização da propriedade e nos pilares da liberdade e da igualdade. O fim da Segunda Guerra Mundial veio contribuir para a construção da social-democracia europeia, também ela assente nos pilares da liberdade, igualdade e recorrendo à intervenção do Estado na economia; simultaneamente, trouxe-nos um texto fundamental na regulação das relações entre os homens: a Declaração Universal dos Direitos do Homem, aprovada em 1948 na Organização das Nações Unidas. Em Portugal, em 1974, a Revolução de Abril trouxe a democracia. Quarenta e oito anos de ditadura terminaram e as palavras em que assentava, “Deus, Pátria, Autoridade” foram substituídas pelos valores fundamentais da dignidade da pessoa humana, igualdade, liberdade, justiça social e solidariedade (CERDEIRA; CABRITO; MUCHARREIRA, 2019; CERDEIRA; CABRITO; MUCHARREIRA, 2021).
À semelhança do que ocorre com as mudanças de regime, também as mudanças dos governos, mantendo-se, contudo, o regime, trazem alterações que afetam o modo de vida das populações, em resultado das medidas de política que desenvolvem. No que respeita a educação, é um facto incontroverso que existe uma forte relação entre educação e capital cultural, social e económico (LOPES, 2013). São já muitos os cientistas sociais que mostram essa relação, sejam os teóricos do papel da escola na reprodução social (BOURDIEU; PASSERON, 1964; BOURDIEU; PASSERON, 1970), para quem a escola, em simultâneo, pode servir como reprodutora das desigualdades sociais e mantenedora do lugar de classe dos jovens, sendo que os jovens das classes alta e média-alta são mais “bem tratados” pela escola do que os jovens oriundos de estratos sociais menos favorecidos os quais, todavia, recebem da escola os créditos que irão possibilitar o seu processo de ascensão social; sejam os teóricos do papel da educação na formação de capital humano (SCHULTZ, 1961; BECKER, 1964), para quem a escola produz competências que tornam os jovens mais produtivos, aumentando as suas oportunidades no mercado de trabalho bem como o lucro aos seus empregadores, transformando o investimento em educação num capital.
Em consequência, por uma ou outra razão, a educação é um bem que tem vindo a ser objeto de procura crescente por parte dos jovens e promovido pelos Estados que dela dependem para o desenvolvimento e crescimento económicos sendo que, cada governo, no exercício da sua magistratura, tem a sua visão do país para o que legisla nos diversos domínios sociais em conformidade, nomeadamente no domínio educativo, e faz executar essa legislação.
Assim, mantendo-se, todavia, no quadro do regime, cada governo é diferente do que o antecedeu, levando a cabo medidas de política pública em todas as áreas, como sejam a da saúde, da justiça, da segurança, da economia, da educação, sendo essas medidas de política que conferem a cada governo a sua identidade e que irão caracterizar o seu “ciclo” de governação.
No presente artigo pretende-se perceber se as mudanças de ciclo de governação, em Portugal, nos últimos vinte anos, têm sido acompanhadas por alterações significativas no domínio económico e social, sendo que a análise recairá, na dimensão educativa, apenas na educação superior.
Observe-se, em primeiro lugar, quantos governos constitucionais existiram em Portugal, no período, e a origem política dos respetivos chefes de governo que são designados por “primeiro-ministro”.
GOVERNOS CONSTITUCIONAIS DE PORTUGAL, 2000-2022
Nos últimos 20 anos, Portugal conheceu dez (10) governos constitucionais. De acordo com a Constituição da República Portuguesa, de quatro em quatro anos há eleições gerais para a Assembleia da República. Os portugueses maiores de 18 anos, não feridos por qualquer incapacidade, escolhem, através de sufrágio universal e em completa liberdade, os deputados que servirão o país durante a legislatura que, em condições normais, dura quatro anos.
Após a eleição dos deputados, o Presidente da República indigita o futuro primeiro-ministro, que será o chefe do governo e que pertence, em princípio, ao partido mais votado no ato eleitoral. No entanto, caso o partido vencedor não detenha a maioria absoluta dos deputados da Assembleia, nem tenha conseguido fazer acordos com os demais partidos, poderá o Presidente da República indigitar outro primeiro-ministro que dê garantias de governabilidade, isto é, que tenha conseguido acordos com outros partidos que garantam a sua manutenção em funções.
Todavia, em circunstâncias específicas, como a aprovação de uma moção de censura ao governo ou a não aprovação do Orçamento do Estado, o Presidente da República poderá demitir o governo em funções, dissolver a Assembleia da República e convocar eleições gerais antecipadas donde sairá o novo executivo. Assim se justifica que nem todos os governos constitucionais portugueses tenham tido a duração de quatro anos. Observe-se o Quadro 1:
Governo Constitucional | Primeiro-ministro - Partido de pertença | Período de governação/ciclo político |
---|---|---|
XIV Governo Constitucional | António Guterres - Partido Socialista | 1999.10.25 até 2002.04.06 |
XV Governo Constitucional | Durão Barroso – Partido Social Democrata | 2002.04.06 até 2004.07.17 |
XVI Governo Constitucional | Santana Lopes – Partido Social Democrata | 2004.07.17 até 2005.03.12 |
XVII Governo Constitucional | José Sócrates - Partido Socialista | 2005.03.12 até 2009.10.26 |
XVIII Governo Constitucional | José Sócrates - Partido Socialista | 2009.10.26 até 2011.06.20 |
XIX Governo Constitucional | Pedro Passos Coelho - Partido Social Democrata (em coligação com o partido de direita CDS-PP) | 2011.06.20 até 2015.10.30 |
XX Governo Constitucional | Pedro Passos Coelho - Partido Social Democrata (em coligação com o partido de direita CDS-PP) | 2015.10.30 até 2015.11.26 |
XXI Governo Constitucional | António Costa - Partido Socialista (com acordo parlamentar com os partidos à sua esquerda: Partido Comunista Português e Bloco de Esquerda) | 2015-11-26 até 2019-10-26 |
XXII Governo Constitucional | António Costa - Partido Socialista | 2019-10-26 até 2022-04 |
XXIII Governo Constitucional | António Costa - Partido Socialista | 2022-04 até data atual |
Fonte: Governo de Portugal (2022).
Como se pode observar, desde o ano 2000 até 2022, Portugal viveu dez (10) Governos Constitucionais; quatro, liderados por um primeiro-ministro de centro-direita (PSD - Partido Social Democrata que governou em coligação com o partido de direita CDS-PP - Centro Democrático Social- Partido Popular) e seis, por primeiro-ministro de centro-esquerda (PS - Partido Socialista). Em termos de exercício de funções, os governos de centro-direita governaram durante sete (7) anos e os de centro-esquerda durante quatorze anos (14) anos.
CICLOS POLÍTICOS, ECONOMIA E POBREZA
Uma vez que os governos são formados a partir da indigitação de indivíduos que, tendencialmente, terão formas diferentes de ler a realidade económica e os problemas que são necessários resolver assim como sua urgência e prioridade, é natural que as medidas de política por eles tomadas conduzam a resultados diferentes. Assim, foi nossa preocupação tentar perceber se a mudança de governo poderá resultar em mudanças na situação económica e social do país.
Neste sentido, analisou-se a evolução de alguns indicadores de natureza socioeconómica que contribuem para retratar o panorama da pobreza e da distribuição de rendimentos, em Portugal.
A informação estatística do Quadro 2 mostra que quer o índice de Gini quer o Rácio S80/S20 têm variado ao longo das duas últimas décadas, sendo que os dois valores apresentaram uma tendência para aumentar nos períodos 2002-2005 e 2011-2015 (PORDATA, 2022), coincidindo com os períodos de governação de centro-direita e de diminuição do nível de vida dos portugueses. Aliás, a evolução das taxas que medem a pobreza em Portugal são disso testemunho.
Anos | Índice Gini | S80/S20 | Anos | Índice Gini | S80/S20 |
---|---|---|---|---|---|
2000 | 37,8 | 6,5 | 2011 | 34,5 | 5,8 |
2001 | n.d. | 7,3 | 2012 | 34,2 | 6,0 |
2002 | n.d. | 7,4 | 2013 | 34,5 | 6,2 |
2003 | 37,8 | 7,0 | 2014 | 34,0 | 6,0 |
2004 | 38,1 | 7,0 | 2015 | 33,9 | 5,9 |
2005 | 37,7 | 6,7 | 2016 | 33,5 | 5,7 |
2006 | 36,8 | 6,5 | 2017 | 32,1 | 5,2 |
2007 | 35,8 | 6,1 | 2018 | 31,9 | 5,2 |
2008 | 35,4 | 6,0 | 2019 | 31,2 | 5,0 |
2009 | 33,7 | 5,6 | 2020 | 33,0 | 5,7 |
2010 | 34,2 | 5,7 |
Fonte: PORDATA (2022) e INE (2022).
*Segundo o INE – Instituto Nacional de Estatística, o Índice ou Coeficiente de Gini é um indicador de desigualdade na distribuição do rendimento que visa sintetizar num único valor a assimetria dessa distribuição. Assume valores entre 0 (quando todos os indivíduos têm igual rendimento) e 100 (quando todo o rendimento se concentra num único indivíduo).
**Segundo o INE, o Rácio S80/S20 é um indicador de desigualdade na distribuição do rendimento, definido como o rácio entre a proporção do rendimento total recebido pelos 20% da população com maiores rendimentos e a parte do rendimento auferido pelos 20% de menores rendimentos.
Anos | Taxa de risco de pobreza após transferências sociais (%) | Taxa se intensidade da pobreza (%) | Anos | Taxa de risco de pobreza após transferências sociais (%) | Taxa se intensidade de pobreza (%) |
---|---|---|---|---|---|
2000 | 20,0 | 22,0 | 2011 | 17,9 | 24,1 |
2001 | 20,0 | n.d. | 2012 | 18,7 | 27,4 |
2002 | 19,0 | n.d. | 2013 | 19,5 | 30,3 |
2003 | 20,4 | 24,7 | 2014 | 19,5 | 29,0 |
2004 | 19,4 | 26,0 | 2015 | 19,0 | 26,7 |
2005 | 18,5 | 23,5 | 2016 | 18,3 | 27,0 |
2006 | 18,1 | 24,3 | 2017 | 17,3 | 24,5 |
2007 | 18,5 | 23,2 | 2018 | 17,2 | 22,4 |
2008 | 17,9 | 23,6 | 2019 | 16,2 | 24,4 |
2009 | 17,9 | 22,7 | 2020 | 18,4 | 27,1 |
2010 | 18,0 | 23,2 |
Fonte: PORDATA (2022) e INE (2022).
Notas: 1 – Segundo o INE, a Taxa de risco de pobreza após transferências sociais - Proporção da população cujo rendimento equivalente, após transferências sociais, se encontra abaixo da linha de pobreza, isto é, do rendimento fixado como o limiar do risco de pobreza.
2 – Segundo o INE, a Taxa de intensidade da pobreza indica quão distante está o rendimento das pessoas mais pobres do valor fixado para o limiar do risco de pobreza.
À semelhança com o que se verifica com a evolução do Índice de Gini e do Rácio S80/S20, e apesar dos indicadores “taxa de risco de pobreza após transferências sociais” e “taxa de intensidade da pobreza” oscilarem ao longo do período, também estes indicadores aumentaram nos períodos de governação de centro-direita, testemunhando o agravamento da situação dos portugueses durante esses ciclos políticos.
Outros indicadores que lançam luz sobre a evolução da economia do país no período em causa são as taxas de desemprego e de crescimento do Produto Interno Bruto (PIB). Observe-se o quadro seguinte:
A análise dos valores do Quadro 4, leva-nos a conclusões relativamente semelhantes às elaboradas com os anteriores indicadores. Se é certo que tem de se dar atenção ao facto de a crise financeira de 2008 se ter repercutido na atividade económica global, incluindo Portugal, também é verdade que não se pode escamotear o facto de ser nos períodos de governação centro-direita que os valores da taxa de desemprego foram mais elevados e que as taxas de crescimento real do PIB foram mais baixas.
Anos | Taxa de desemprego (%) | Taxa de crescimento real do PIB (taxa de variação, %) |
Anos | Taxa de desemprego (%) |
Taxa de crescimento real do PIB (taxa de variação, %) |
---|---|---|---|---|---|
2000 | 3,9 | 3,82 | 2011 | 13,4 | -1,70 |
2001 | 4,0 | 1,94 | 2012 | 16,5 | -4,06 |
2002 | 5,0 | 0,77 | 2013 | 17,1 | -0,92 |
2003 | 6,3 | -0,93 | 2014 | 14,5 | 0,79 |
2004 | 6,6 | 1,79 | 2015 | 12,9 | 1,79 |
2005 | 7,6 | 0,78 | 2016 | 11,5 | 2,05 |
2006 | 7,6 | 1,63 | 2017 | 9,2 | 3,51 |
2007 | 8,0 | 2,51 | 2018 | 7,2 | 2,85 |
2008 | 7,6 | 0,32 | 2019 | 6.6 | 2,69 |
2009 | 9,4 | -3,12 | 2020 | 7,0 | -8,96 |
2010 | 10,8 | 1,74 | 2021 | 6,6 | 4,9 |
Fonte: PORDATA (2022) e INE (2022).
Os dados acima apresentados mostram bem como os piores desempenhos da economia portuguesa e da situação social dos portugueses ocorreram nos períodos de governação de centro-direita, mesmo dando atenção ao facto de existirem muitos fatores internos e externos que condicionam as economias, independentemente da natureza dos partidos no poder.
A questão que se coloca, de seguida, é se as mudanças de natureza socioeconómica se repercutiram na procura de ensino superior.
CICLOS POLÍTICOS E ENSINO SUPERIOR
PRODUÇÃO DE LEGISLAÇÃO RELATIVA À EDUCAÇÃO SUPERIOR
Durante estas duas décadas de governação, foi produzida vasta legislação sobre a educação superior, que obedece à Lei n.º 46/86 de 14 de outubro, a Lei de Bases do Sistema Educativo, num total de 20 diplomas que se debruçaram sobre as condições de acesso dos candidatos a este subsistema de ensino, sobre os apoios aos estudantes mais carenciados ou legislação estruturante que consolidou o quadro legal do subsistema. Observe-se o Quadro 5:
A contagem dos diplomas presentes no Quadro 5 mostra uma produção bastante assimétrica entre os diversos governos constitucionais, conforme a respetiva matriz partidária. De salientar que o levantamento legislativo realizado incidiu apenas sobre os normativos legais que se consideraram estruturantes para o ensino superior, não evidenciando a totalidade da legislação produzida. No período em análise, durante os sete (7) anos de governos liderados pelo PSD, apenas foram produzidos dois (2) diplomas; pelo contrário, nos quatorze (14) anos de governação socialista foram publicados dezoito (18) diplomas relativos ao ensino superior.
Diplomas Estruturantes | Lei nº 94/2019, de 4 de setembro PS | Primeira alteração à Lei n.º 38/2007, de 16 de agosto, que aprova o regime jurídico da avaliação do ensino superior. |
Decreto-Lei nº 133/2019, de 3 de setembro PS | Aprova o regime jurídico do ensino superior ministrado a distância. | |
Lei nº 62/2007, de 10 de setembro PS | Estabelece o regime jurídico das instituições de ensino superior, regulando designadamente a sua constituição, atribuições e organização, o funcionamento e competência dos seus órgãos e, ainda, a tutela e fiscalização pública do Estado sobre estas, no quadro da sua autonomia. | |
Lei nº 38/2007, de 16 de agosto PS | Aprova o regime jurídico da avaliação da qualidade do ensino superior. | |
Lei nº 37/2003, de 22 de agosto PSD | Define as bases de financiamento do ensino superior. | |
Decreto-Lei nº 369/2007, de 5 de novembro PS | Cria a Agência de Avaliação e Acreditação do Ensino Superior e aprova os respetivos estatutos. | |
Decreto-Lei nº 74/2006, de 24 de março PS | Aprova o regime jurídico dos graus académicos e diplomas do ensino superior. | |
Lei nº 46/86, de 14 de outubro PS | Estabelece o quadro geral do sistema educativo | |
Acesso ao Ensino Superior | Decreto-Lei nº 11/2020, de 2 abril 2020 PS | Altera e republica o Decreto-Lei n.º 296-A/98, de 25 de setembro. |
Decreto-Lei nº 62/2018, de 6 de agosto PS | Altera e republica o estatuto do estudante internacional, publicado pelo Decreto-Lei n.º 36/2014, de 10 de março e alterado pelo Decreto-Lei n.º 113/2014, de 16 de julho. | |
Lei nº 85/2009, de 27 de agosto PS | Estabelece o regime da escolaridade obrigatória para as crianças e jovens que se encontram em idade escolar e consagra a universalidade da educação pré-escolar para as crianças a partir dos 5 anos de idade. | |
Decreto-Lei nº 296-A/98, de 25 de setembro PS | Regime geral de acesso e ingresso no ensino superior. | |
Apoio ao Estudante | Declaração de Retificação nº 696/2021, de 13 de outubro PS | Retifica o Despacho n.º 9276-A/2021 (2.ª série), de 20 de setembro, que aprova o Regulamento de Atribuição de Bolsas de Estudo a Estudantes do Ensino Superior. |
Despacho nº 9276-A/2021, de 20 de setembro PS | Aprova o Regulamento de Atribuição de Bolsas de Estudo a Estudantes do Ensino Superior. | |
Despacho nº 7647/2020, de 4 de agosto PS | Aprova o Regulamento do Programa +Superior para o Ano Letivo de 2020-2021. | |
Despacho nº 1508/2020, de 31 de janeiro PS | Estabelece os valores máximos de preços mensais de alojamento para estudantes que não sejam bolseiros de ação social, a praticar no âmbito dos imóveis integrados no Fundo Nacional de Reabilitação do Edificado. | |
Despacho nº 8584/2017, de 29 de setembro PS | Aprova o Regulamento de Atribuição de Bolsas de Estudo para Frequência do Ensino Superior de Estudantes com incapacidade igual ou superior a 60%. | |
Decreto-Lei nº 309-A/2007, de 7 de setembro PS | Empréstimos, com garantia mútua, a estudantes e bolseiros do Ensino Superior. | |
Despacho nº 13531/2009, de 9 de junho PS | Aprova o Regulamento de Atribuição de Bolsas de Estudo por Mérito a Estudantes de Instituições de Ensino Superior. |
Fonte: Adaptado de DGES (2021).
A informação do Quadro 5 sugere diferente preocupação pela educação superior dos diferentes governos constitucionais, sendo evidente que esta dimensão não terá sido um foco de interesse prioritário para os governos liderados pelo partido de centro-direita.
Um dos diplomas publicados é de fundamental importância, já que preparou a futura adoção do sistema de ECTS que viria permitir a certificação e aceitação dos diplomas de educação superior em cada um dos países constitutivos do Espaço Europeu de Ensino Superior. O outro diploma, a Lei n.º 37/2003 de 22 de agosto, definia as bases de financiamento do ensino superior, preconizando uma participação significativa dos alunos no financiamento do ensino superior público que atingisse o custo real da formação, contrariando quer a tradição de gratuitidade do ensino superior na Europa, quer a situação portuguesa à data, em que a propina paga pelos estudantes era de 348 euros e que, em conformidade com o diploma, passou a poder atingir, no ano letivo de 2003/2004 os 852 euros, valor atualizável anualmente.
No que respeita à governação do Partido Socialista, a produção legislativa sobre o ensino superior é significativa, sendo de destacar diplomas como a Lei n.º 62/2007, de 10 de setembro, que estabelece o regime jurídico das instituições de ensino superior; o Decreto-lei n.º 369/2007 de 5 de novembro, que cria a Agência de Avaliação e Acreditação do Ensino Superior; o Decreto-lei n.º 11/2020, de 2 de abril, que cria novas formas de acesso ao ensino superior ou o Decreto-lei n.º 309-A/2007, de 7 de setembro, que cria os empréstimos com garantia mútua a estudantes e bolseiros do Ensino Superior.
Indiscutivelmente, a produção legislativa relativa ao ensino superior dos governos do Partido Socialista não só foi mais abundante, como atendeu a diversas áreas específicas do subsistema (diplomas estruturantes; diplomas relativos às condições de acesso; diplomas de apoio aos estudantes), evidenciando preocupações bastante diferentes entre os ciclos de governação socialista e de governação social- democrata, muito embora alguns dos diplomas produzidos não correspondam a novas dimensões no quadro educativo, mas correspondam à legislação pontual que regulamenta ou altera legislação anterior.
ALGUNS NÚMEROS SOBRE O ENSINO SUPERIOR
Outra dimensão que pode lançar luz sobre a relação entre a política e o ensino superior é a da procura deste nível de ensino ao longo do período em estudo. No Quadro 6, pode verificar-se como se comportou a procura de ensino superior, nas últimas décadas, medida pelo número anual total de matrículas em todos os anos e o número total daqueles que se matricularam, em cada ano, pela primeira vez.
Quadro 6
- Matriculados no ensino superior, por subsistema de ensino, total e pela 1ª vez
Nº de matriculados no ensino superior | Nº matriculados pela 1º vez | |||||
---|---|---|---|---|---|---|
Total | Publico | Privado | Total | Publico | Privado | |
2000 | 373.745 | 255.008 | 118.737 | 84.746 | 59.074 | 25.672 |
2001 | 387.703 | 273.530 | 114.173 | 93.249 | 65.929 | 27.320 |
2002 | 396.601 | 284.789 | 111.812 | 92.836 | 65.921 | 26.915 |
2003 | 400.831 | 290.532 | 110.299 | 94.446 | 67.640 | 26.806 |
2004 | 395.063 | 288.309 | 106.754 | 89.269 | 64.801 | 24.468 |
2005 | 380.937 | 282.273 | 98.664 | 84.363 | 63.365 | 20.998 |
2006 | 367.312 | 275.521 | 91.791 | 82.720 | 63.691 | 19.029 |
2007 | 366.729 | 275.321 | 91.408 | 95.341 | 70.151 | 25.190 |
2008 | 376.917 | 284.333 | 92.584 | 114.114 | 84.279 | 29.835 |
2009 | 373.002 | 282.438 | 90.564 | 115.372 | 87.988 | 27.384 |
2010 | 383.627 | 293.828 | 89.799 | 122.314 | 94.400 | 27.914 |
2011 | 396.268 | 307.978 | 88.290 | 131.508 | 102.895 | 28.613 |
2012 | 390.273 | 311.574 | 78.699 | 116.576 | 94.481 | 22.095 |
2013 | 371.000 | 303.710 | 67.290 | 106.249 | 89.067 | 17.182 |
2014 | 362.200 | 301.654 | 60.546 | 103.638 | 87.381 | 16.257 |
2015 | 349.658 | 292.359 | 57.299 | 104.255 | 87.325 | 16.930 |
2016 | 356.399 | 297.884 | 58.515 | 112.701 | 93.809 | 18.892 |
2017 | 361.943 | 302.596 | 59.347 | 113.915 | 94.929 | 18.986 |
2018 | 372.753 | 308.489 | 64.264 | 122.811 | 100.493 | 22.318 |
2019 | 385.247 | 316.189 | 69.058 | 126.345 | 102.950 | 23.395 |
2020 | 396.909 | 323.754 | 73.155 | 133.322 | 108.671 | 24.651 |
2021 | 411.995 | 335.139 | 76.856 | 144.528 | 117.758 | 26.770 |
Fonte: PORDATA (2022).
A análise dos valores do quadro evidencia uma relação em geral próxima entre a natureza do governo em cada período e o comportamento da procura, seja no que diz respeito ao número total de matrículas no ensino superior, seja no que dez respeito ao número de estudantes que se candidataram pela primeira vez.
Assim, observa-se que:
entre 2000 e 2002, com um governo centro-esquerda, aumentou o número total de matrículas bem como o número de matrículas pela 1ª vez, resultando esse aumento particularmente da maior procura de ensino superior público;
entre 2002 e 2005, com um governo de centro direita, verifica-se que diminuiu a procura de ensino superior, público e privado, número total de matrículas e inscrições pela primeira vez;
entre 2005 e 2009, com um governo centro-esquerda, diminuiu o número total de matrículas quer no ensino público quer no ensino privado, tendo aumentado, apenas, o número de matriculados pela primeira vez no ensino público; de referir que este período identifica o início da crise financeira global que afetou fortemente Portugal; a procura crescente do ensino superior público no período poderá justificar-se com o facto de ser mais barato frequentar o ensino público do que o ensino privado, assistindo-se a uma polarização da procura neste subsistema de ensino;
entre 2009 e 2011, com um governo de centro-esquerda, aumentou o número total de matrículas bem como o número de matrículas pela 1.ª vez, apesar de a procura total de ensino superior privado ter diminuído;
entre 2011 e 2015, com um governo de centro-direita, assiste-se à maior quebra da procura de ensino superior, nos dois subsistemas de ensino, período que coincide com as políticas de austeridade, levadas a cabo no país, em virtude do pedido de ajuda financeira ao FMI, BCE e UE;
entre 2015-2019, com um governo PS apoiado no Parlamento pelos partidos à sua esquerda (Partido Comunista Português e Bloco de Esquerda) assiste- se a uma recuperação da procura, com o aumento da procura de ensino superior em toda as dimensões;
entre 2019 e 2021, com um governo PS, com um apoio informal por parte dos partidos à esquerda do PS, a tendência mantém-se.
A análise da evolução da procura de ensino superior, total e número de inscritos pela primeira vez, mostra que, tendencialmente, a procura de ensino superior aumentou quando o primeiro-ministro pertencia ao PS e diminuiu nas restantes situações, com primeiros-ministros pertencentes ao PSD. Será pertinente, também, verificar como tem sido o apoio do Estado aos estudantes, particularmente os mais carenciados, em termos de bolsas de estudo. Observe-se o Quadro 7 que indica o número total de bolsistas do ensino superior (público e privado) e o seu peso no número total de matrículas.
Total de matrículas (1) | Total de bolsas atribuídas (2) | Percentagem (2)/(1)x100 * | |
---|---|---|---|
2000 | 373.745 | 56.046 | 15,0 |
2001 | 387.703 | 59.296 | 15,3 |
2002 | 396.601 | 59.643 | 15,0 |
2003 | 400.831 | 57.248 | 14,3 |
2004 | 395.063 | 63.190 | 16,0 |
2005 | 380.937 | 66.008 | 17,3 |
2006 | 367.312 | 68.964 | 18,8 |
2007 | 366.729 | 70.603 | 19,3 |
2008 | 376.917 | 73.493 | 20,0 |
2009 | 373.002 | 73.063 | 19,6 |
2010 | 383.627 | 74.935 | 19,5 |
2011 | 396.268 | 67.850 | 17,1 |
2012 | 390.273 | 56.017 | 14,4 |
2013 | 371.000 | 58.818 | 15,9 |
2014 | 362.200 | 62.312 | 17,5 |
2015 | 349.658 | 69.611 | 19,9 |
2016 | 356.399 | 72.261 | 20,3 |
2017 | 361.943 | 74.586 | 20,6 |
2018 | 372.753 | 74.363 | 19,9 |
2019 | 385.247 | 72.564 | 18,8 |
2020 | 396.909 | 79.249 | 20,0 |
2021 | 411.995 | 81846 | 19,9 |
Fonte: Adaptado de PORDATA (2022).
*Cálculo dos autores
A análise das informações do Quadro 7 vem reforçar conclusões anteriores: a análise da evolução da percentagem de bolseiros do ensino público e privado no número total de matrículas, bem como os valores absolutos, apesar das flutuações conjunturais mostra que, tendencialmente, o apoio social do Estado aos estudantes tem sido superior nos governos liderados pelo Partido Socialista, evidenciando maior preocupação do que os governos liderados por primeiros-ministros do Partido Social Democrata.
Finalmente, observemos, no Quadro 8, a forma como tem evoluído o valor da propina/taxa de frequência que os estudantes têm de pagar para frequentarem uma instituição pública de ensino superior.
Fonte: Cerdeira (2009; 2015).
Fonte: Elaborado por Cerdeira (2022).
- Portugal - Evolução do valor anual das propinas nas instituições no ensino superior público entre os anos de 1993 e 2021
No Quadro 8, pode observar-se, também, a evolução do enquadramento legal da aplicação de propinas no Ensino Superior Público em Portugal.
Como se pode observar, pela análise do Quadro 8, o ensino superior público em Portugal nunca foi gratuito tendo, todavia, sido alterado o seu valor no sentido do custo real da educação em 1992, por iniciativa de um governo de centro- direita. Após várias alterações, a norma que indica a fórmula de cálculo do valor da propina para a frequência do ensino superior público ainda permanece a Lei n.º 37/2003, de 22 de Agosto.
A tabela mostra que o valor da propina tem sido objeto de mudanças por parte de governos de tendências políticas diferentes sendo importante destacar, todavia, que o estabelecimento de uma propina “real” ocorreu em 1992, num ciclo político em que o primeiro-ministro pertencia ao Partido Social Democrata, à semelhança do que ocorreu em 2003, com a Lei de Financiamento do Ensino Superior, Lei n.º 37/2003 de 22 de Agosto. Do exposto, é possível concluir que a medida inicial de política de propinas, que fez dos estudantes um dos atores que financiam o ensino superior público, pode ser alocada a governos de centro-direita. O Gráfico 1 explicita os valores que a propina tem vindo a tomar, desde 1993.
Na análise do gráfico, pode verificar-se que os valores mínimo e máximo da propina variam ao longo de todo o período, já que dependem quer do valor do salário mínimo estabelecido em cada ano (valor mínimo), quer da atualização anual pelo Índice de Preços Consumidor (IPC) (valor máximo). É de salientar, todavia, que nos últimos anos o estabelecimento do valor da propina não segue informalmente a Lei n.º 37/2003, em virtude da diminuição da procura de ensino superior nos anos 2010-2015, em consequência da crise económica e financeira que o país vivenciou. No sentido de repor a procura de ensino superior e de apoiar os estudantes mais carenciados, nos últimos anos com um governo cujo primeiro-ministro pertence ao Partido Socialista, o valor da propina situa-se abaixo do previsto pela legislação, tendo sido fixada uma diminuição desde 2019 do limite máximo do valor das propinas do ensino superior público em cerca de 20%, valor esse reposto pelo Governo às Universidades e Institutos Politécnicos públicos, aquando da fixação do orçamento de 2021 e 2022 (por exemplo, na preparação do orçamento de 2021 foi prevista a dotação de 38.568.347 euros como “Reposição da Redução de Propinas” às Universidades e Institutos Politécnicos Públicos) (PORTUGAL, 2020).
REFLEXÕES FINAIS
O objetivo deste artigo era o de perceber se seria possível estabelecer uma relação entre a procura de ensino superior em Portugal e a natureza política dos governos, em cada momento. Nesse sentido, foi colocada a hipótese de que a procura de ensino superior aumentava em ciclos de governação de centro-esquerda e diminuía em ciclos de governação de centro-direita.
Naturalmente, para explicar a evolução da procura de ensino superior em Portugal, como em qualquer outro lugar, podem ser colocadas inúmeras hipóteses, sendo previsível que cada uma delas se encontra “parcialmente” certa, pois os comportamentos humanos dependem de uma multiplicidade de fatores que não se reduzem, por exemplo, à cultura de uma população, à sua estrutura etária, à sua distribuição geográfica, às suas competências e capacidades, à situação económica do país, às situações de maior ou menor justiça na redistribuição de rendimento ou à natureza política da governação.
Em consequência, estabelecer uma condição de causa-efeito entre a procura de ensino superior e a natureza política da governação seria um abuso científico. Todavia, o exposto permite afirmar que existe, tendencialmente, uma relação forte entre a natureza política da governação e a procura de educação, com essa procura a contrair-se com governações de direita e a expandir com governação de esquerda, a que não será estranho a natureza das medidas de política económica, social, de saúde, educativas, entre outras, características de governos de direita e de esquerda.
De facto, a probabilidade de serem levadas a cabo medidas que contribuem para o bem-estar da população em geral é maior quando os governos assumem compromissos de justiça e de equidade do que nas restantes situações. É isso que mostra o presente artigo, no que respeita ao caso português, nos últimos vinte anos.