1 Apresentação
Como a educação é atravessada pelos conceitos de corpo e gênero? Ou como a educação atravessa os corpos? A resposta a essas questões são amplas já que a educação é um processo social que se delineia a partir das relações que se estabelecem entre os indivíduos no decurso de suas vidas materiais. É ao longo de aprendizagens sociais sobre ser, sentir e fazer, enquanto sujeitos em um determinado contexto, que a educação se inscreve, constrói ou pode desconstruir, sentidos e significados do feminino, do masculino e seus atravessamentos. Revelar nas tramas dos conceitos de corpo e de gênero as linhas educativas dos modos de aprender a estar no mundo como corpo generificado move a iniciativa de reunir pesquisadores de áreas, recortes teóricos e metodológicos distintos para refletir em oito artigos sobre a educação do corpo, a educação do gênero nesse dossiê, intitulado Educação do corpo e do gênero: histórias, discursos e práticas.
Partimos do pressuposto segundo o qual a dispersão do corpo no interior das Ciências Humanas e Sociais (ANDRIEU, 1993) permite uma miríade de abordagens teórico-metodológicas que tentam, sem cessar, dar conta da polissemia da existência incorporada. O presente dossiê traz à tona essa experiência multifacetada, pensando-a a partir dos processos sociohistóricos por meio dos quais o sujeito opera sobre si, enquanto corpo, variadas técnicas com vistas a se inserir numa dada cultura (MAUSS, 2003). A esse fenômeno chamamos de educação, seja ela formal ou informal, escolar ou não-escolar.
Inscrita no corpo, a educação altera e produz sensibilidades (CORBIN, 1987), adestra gestos e posturas, organiza espaços e tempos (VIGARELLO, 2018), bem como racionaliza e instrumentaliza o corpo (GLEYSE, 2018). Ela pode também proporcionar ao indivíduo organizar o conhecimento do mundo a partir do sentir mesmo, isto é, de uma estesiologia (NÓBREGA, 2018). A educação, nesse sentido, está profundamente imbricada com a fabricação social do corpo na estesia da vida cotidiana (LE BRETON, 2016), a qual, evidentemente, não está desvinculada das operações de generificação da corporeidade. Ser homem ou mulher implica ocupar uma posição na ordem do discurso, na referência ao sexo enquanto norma/prática regulatória produtora dos corpos por ela controlada (BUTLER, 2019). A construção das identidades reflete diretamente no e sobre o corpo (FOUCAULT, 2009). São formas de poder responsáveis por atribuir sentido aquilo que historicamente foi legado à condição de estranhamento. O corpo torna-se aquilo que a identidade sonha, deseja, se constrói.
À maneira foucaultiana, diagnosticamos a emergência dessas experiências - compreendidas enquanto “alguma coisa da qual saímos transformados” (FOUCAULT, 2001, p. 860) - de ser corpo generificado, por meio da conjunção de histórias, discursos e práticas. Os artigos que compõem o presente dossiê testemunham esse entrelaçamento, numa escansão histórica cujo arquivo abarca experiências vividas de fins do século XIX aos nossos dias, imagens de um “corpo educado” (LOURO, 2010), abordado a partir de diferentes olhares disciplinares.
Pomos em tela, assim, os seguintes temas: a generificação das punições escolares em instituições francesas; as pedagogias feministas em grupos de humanização do parto em Belém/PA; uma abordagem filosófica sobre educação sexual; discursos sobre a assim chamada “ideologia de gênero” em municípios paraibanos; processos de subjetivação de homens docentes; compreensões sobre o corpo na formação docente; a maternidade no Ceará oitocentista; igualdade entre os gêneros na educação francesa; práticas de masturbação e as pedagogias em torno do prazer em uma instituição socioeducativa de Salvador/BA. Também tivemos a satisfação de incluir no dossiê a tradução de um texto inédito de Judith Butler no Brasil. Nessa ocasião, a filósofa estadunidense estuda a análise de Luce Irigaray sobre certos aspectos da fenomenologia de Merleau-Ponty. Portanto, de modo arbitrariamente heterogêneo, entra em cena o próprio corpo em seus jogos políticos, no “circuito dos afetos” (SAFATLE, 2016) sem o qual organizar-se socialmente seria impossível, dada a economia libidinal do vínculo societal das democracias contemporâneas.
Por fim, ressaltamos que o presente dossiê é manifestação de intensas parcerias internacionais entre pesquisadores(as) e grupos de pesquisa de Instituições de Ensino Superior brasileiras e francesas ao longo dos últimos anos, fruto de acordo de cooperação celebrado entre o IFRN, a UFRN e a Universidade de Montpellier. Mais recentemente, integra-se a essa iniciativa a Universidade do Estado do Pará, através do PROCAD-Amazônia do qual os Programas de Pós-Graduação em Educação da UFRN e da UEPA fazem parte. Espera-se contribuir, com a presente iniciativa, na difusão dos investimentos em torno das múltiplas maneiras de dizer, ver e sentir o corpo.