1 Introdução
Nas primeiras décadas da república, a formação de professores/as era influenciada pelo pensamento católico-cristão conservador, no qual a mulher era considerada uma pecadora que deveria ser “domesticada” e vigiada pelos homens responsáveis por ela. Portanto, as mulheres, principalmente as da elite, tinham dois destinos preestabelecidos: o casamento ou a vida religiosa, que eram determinados pelo pai ou pelo irmão mais velho.
Essa visão de gênero1 estava em acordo com os costumes vitorianos, os quais atribuíam à mulher solteira e sem marido os adjetivos “pecadora”, “prostituta” e “ordinária” e atribuíam à mulher casada e com marido os adjetivos “esposa”, “mãe” e “bondosa”. Essa configuração de comportamento feminino vai contribuir para a entrada das mulheres no magistério, já que este campo profissional se tornará um terceiro destino para as moças da elite e da classe média.
Este processo será influenciado também pela criação dos grupos escolares e pela consolidação das escolas normais como modelo de formação de professores/as para o Ensino Primário no início da primeira república, pois, durante os anos 1930 a 1940, os homens eram minoria no magistério primário. Assim, deixaram o magistério primário por colocações profissionais mais lucrativas, tendo em vista que o país iniciava o processo de industrialização naquele período (ALMEIDA, 2004).
Assim, questionamos se, nas décadas de 1940 e 1950, ainda existia para as mulheres o modelo de formação docente idealizado pelas Escolas Normais, uma vez que, nesses anos, foram instituídas as Leis Orgânicas do Ensino (Reforma Capanema) e a discussão em torno da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN), que foi promulgada em 1961. Desse modo, perguntamos: qual o modelo de professora primária idealizado pela Escola Normal da Paraíba? Esse modelo se apresenta na trajetória docente de Maria Salete van der Poel?
Escolhemos essa docente a partir do contato com as fontes documentais e das leituras sobre ela e seus escritos autobiográficos, nos quais emergiu uma triangulação: inquietação, problematização e mudança de mentalidade, dentro de um dado tempo-espaço em que Maria Salete van der Poel se desloca do lugar de representação da mulher-professora-tia para o de mulher-professora-docente, crítica como protagonista, sujeito histórico, que buscou outra representação de si e de sua perspectiva de gênero no magistério. Assim, este artigo objetiva analisar o modelo de professora primária idealizado pela Escola Normal na Paraíba, considerando a feminização do magistério e a trajetória docente da professora Maria Salete van der Poel2, que exerceu o magistério no Ensino Primário entre 1955 e 1959.
A referida professora nasceu em Campina Grande/Paraíba na metade da década de 1930. Pertencia à aristocracia rural, tendo realizado sua formação escolar primária e secundária - Curso Clássico - na mesma cidade em que nasceu. Fundou, junto com a irmã que possuía formação pela Escola Normal, Eneida Agra, uma escola particular3 no sobrado da família com a finalidade de ganhar dinheiro para sobrevivência, em virtude da morte do pai delas. Vale destacar que a professora Maria Salete Agra não possuía formação pedagógica, no entanto exercia a função docente com os conhecimentos adquiridos no Curso Clássico.
Este estudo, portanto, tem como foco o modelo de professora primária idealizado pela Escola Normal na Paraíba, trazendo elementos biográficos da professora Maria Salete para refletirmos acerca da inserção da mulher nas Escolas Normais e o seu papel como mãe, esposa e professora.
Assim, este artigo debruça-se sobre o processo de feminização do magistério por meio da criação das Escolas Normais. Busca fazer uma reconstituição da trajetória docente de Maria Salete van der Poel no Ensino Primário, considerando tanto suas experiências nesta etapa como a trajetória da Escola Normal na Paraíba. Conclui com as considerações acerca do modelo de professora primária idealizado pela Escola Normal presente na trajetória dessa professora.
2 Metodologia
Este estudo segue as orientações teóricas da Nova História, que, segundo Burke (1992), é a história escrita como uma reação deliberada contra o paradigma tradicional, isso porque, a partir dessa, o que era considerado imutável é encarado como uma construção cultural sujeita a variações, tanto no tempo quanto no espaço. Logo, os historiadores passaram a produzir uma Nova História com enfoque na Cultura - História Cultural - e procuraram trabalhar a partir de novos objetos e novas abordagens utilizadas por outras disciplinas, ampliando também a concepção de documentos e fontes históricas.
Nessa perspectiva, o artigo insere-se nos Estudos da História da Educação, em especial, na História da Profissão e Formação Docente no Brasil, abordando a relação entre Educação e Gênero no campo do magistério, estabelecendo como recorte temporal inicial o ano de 1946, quando a Lei Orgânica do Ensino Primário e Normal foi instituída, até 1961, quando foi aprovada e promulgada a Lei nº 4.024 - LDBEN.
Consideramos como fonte, após realizarmos um levantamento bibliográfico e documental, os documentos oficiais, tais como: decretos-leis nacionais; leis e regulamentos do estado da Paraíba e leis orgânicas de ensino (Reforma Capanema); e relatos autobiográficos contidos no livro de autoria da professora Maria Salete van der Poel: Trajetória de uma militância educacional, publicado em 2007 pela editora universitária da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), que se encontra disponível na Biblioteca Setorial do Centro de Educação da UFPB.
Para analisar esses materiais, utilizamos uma abordagem crítica e realizamos a organização e catalogação das fontes disponíveis, bem como fizemos uma leitura crítica das fontes e materiais bibliográficos encontrados através de fichamentos e estabelecemos categorias ou temáticas com a finalidade de interpretar os dados acerca da Escola Normal na Paraíba, da trajetória docente da professora e do contexto educacional desse estado nos anos 1950.
3 Trajetos e caminhos da docência no Ensino Primário no Brasil
3.1 A Escola Normal e a feminização do magistério: um modelo de formação docente para ensinar e instruir a nação
A função de ensinar no Brasil tem início no período colonial pelos padres jesuítas, que organizaram formas de instruir e catequizar a população que vivia nesse período. Com a expulsão dos jesuítas, o ofício de instruir passou para os professores régios vindos de Portugal. Segundo Villela (2016, p. 97), “[...] os três séculos da época moderna são marcados, no ocidente, por um longo processo de produção de uma nova ‘forma escolar’ em detrimento dos modos antigos de aprendizagem”. A partir disso, ocorrem o processo de laicização da instrução e a transição dos modelos educativos, visto que, antes dessa mudança, o processo de ensino se fazia por impregnação cultural; com a modernidade, esse processo se faz por meio de um sistema de ensino estatal4.
Tais mudanças foram em decorrência da formação dos Estados Nacionais e da finalidade de homogeneizar, controlar e regulamentar a instrução da população das nações. Assim, algumas medidas passaram a ser implementadas na instrução, principalmente a primária, tais como: adoção de um método de ensino específico, definição de conteúdo de ensino, autorização ou proibição de livros, estabelecimento de normas burocráticas a serem seguidas pelas instituições. Essas mudanças aconteceram primeiro em Portugal5, pois no Brasil a organização da instrução elementar foi um processo lento, devido ao fato de essa atividade ser quase restrita à esfera privada, ou seja, sob responsabilidade das famílias.
Foi no início do século XIX que no Brasil se iniciou o controle do Estado sobre a instrução formal e as primeiras iniciativas de organização da instrução pública. Essa toma corpo após a Lei Geral do Ensino de 1827 ser outorgada, com isso, a atividade de instruir também passaria a ser organizada, no entanto, sempre sob a tutela da Igreja, que definia o conjunto de saberes, normas e valores próprios da atividade docente, que se justapõem a um novo corpo de professores, recrutados e vigiados pelas instâncias do poder estatal (VILLELA, 2016).
Segundo Saviani (2019, p. 126):
Essa primeira lei de educação do Brasil independente não deixava de estar em sintonia com o espírito da época. Tratava ela de difundir as luzes garantindo, em todos os povoados, o acesso aos rudimentos do saber que a modernidade considerava indispensáveis para afastar a ignorância. O modesto documento legal [...] contemplava os elementos que vieram a ser consagrados como o conteúdo curricular fundamental da escola primária [...]. Dada a peculiaridade da nova nação, que ainda admitia a Igreja Católica como religião oficial e estava empenhada em conciliar as novas ideias com a tradição, entende-se o acréscimo dos princípios da moral cristã e da doutrina da religião católica no currículo.
Em concordância com o autor, a Lei Geral de Ensino estava de acordo com o pensamento da época moderna - a razão como fonte do conhecimento - e com as ideias da Igreja Católica - princípios da moralidade e da religião -, ou seja, a lei expressou as especificidades da nação brasileira. Estavam presentes também na formação dos professores, principalmente com o Ato Adicional de 1834, no qual transferiu a responsabilidade do Ensino Primário e Secundário para as províncias, como também a formação dos seus quadros docentes para essas etapas de ensino. Em decorrência desse Ato Adicional, aconteceu a criação das Escolas Normais para formar os/as professores/as das escolas primárias, isso porque era preciso docentes diplomados/as e habilitados/as no método mútuo e nos preceitos cristãos católicos para atuarem nas escolas primárias das províncias criadas pela lei de 1827.
No caso da província da Parahyba do Norte, desde abril de 1835 a Assembleia Legislativa começou a discutir e debater a legislação provincial a respeito da instrução pública, visto que tais discussões estavam alinhadas aos ideais modernos que propagavam o pensamento racionalista iluminista, em que a instrução seria o remédio para retirar as nações não civilizadas da escuridão, da ignorância por meio da instrução, que tinha a finalidade de civilizar todas as classes sociais por meio de uma instrução elementar com o intuito da aquisição das noções, práticas e sentimentos gerais, ou seja, uma instrução comum a todos que auxiliasse a criar uma identidade nacional, como afirma Villela (2016).
Desse modo, a legislação nesse período era a materialidade do pensamento pedagógico da época, no qual a Escola Normal tinha um papel importante de formar os professores que propagariam e ensinariam os hábitos intelectuais e morais que constituíam a unidade e a nacionalidade, em virtude de essa instituição ser considerada um local autorizado para a difusão de um tipo de conhecimento que era normatizado e caracterizava o/a novo/a professor/a primário/a. Em outros termos, a Escola Normal estabeleceu e normatizou alguns conteúdos que se constituíram como corpo de saberes da formação e da profissão docente.
Nesse contexto, no qual a instrução passou a ser um instrumento de civilidade, a formação de docentes encontrou conjuntura favorável para desenvolver experiências de institucionalização da atividade docente, tais como: criação da primeira Escola Normal do Brasil em Niterói e, posteriormente, em diversas províncias da nação; definição de um currículo de formação de professores/as com ênfase no método lancasteriano; criação de escolas de/para meninas - destinadas ao ensino de prendas domésticas, práticas religiosas e de leitura rudimentar.
Conforme Villela (2016), a concepção de um currículo diferenciado estava relacionada ao papel que era destinado às mulheres - brancas e da classe média e alta - nessa sociedade de costumes patriarcais e à ideia de que as mulheres tinham pouca capacidade intelectual.
Segundo Louro (2014, p. 29):
[...] as diferentes instituições e práticas sociais são constituídas pelos gêneros (e também os constituem), isso significa que essas instituições e práticas não somente ‘fabricam’ os sujeitos como também são, elas próprias, produzidas (ou engendradas) por representações de gênero [...].
Essa concepção/representação de gênero - feminino - estava baseada nos costumes vitorianos, os quais colocavam a mulher em dois níveis da fronteira social, a do âmbito privado e religioso - mãe, filha e esposa - e do âmbito público - louca, prostituta e solteira, sem marido e sem família. Desse modo, a inserção das mulheres solteiras na Escola Normal e no magistério, aos poucos, foi contribuindo para a desconstrução da imagem da mulher solteira, sedutora e pecadora e construindo uma imagem de mulher santa, religiosa e bondosa que poderia substituir a imagem da mãe na sala de aula.
Ao refletir sobre trajetórias de professoras, Costa, Mota e Santana (2022, p. 11) focalizam estudos que interseccionalizam mulher, história e formação docente e problematizam que a condição docente e os múltiplos significados da identidade profissional de professoras da educação, em específico dos anos iniciais (Ensino Primário), reproduzem o modelo de gênero produzido para as mulheres, no qual a atividade de ensino está “[...] aliada à necessidade de outras atividades remuneradas para suprir o cuidado da casa e dos filhos”.
Nesse sentido, a escola passou a ser um espaço feminino e, primordialmente, lugar de atuação feminina, porque elas passaram a ocupar e a organizar o espaço, tendo em vista que as atividades escolares são marcadas pelo cuidado, vigilância e educação, tarefas atribuídas ao gênero feminino (LOURO, 2014).
Por essa razão, foi criado um curso especial6 na Escola Normal para mulheres/ moças, no qual os homens/rapazes frequentariam em dias alternativos aos dias em que elas frequentassem. Isso aconteceu devido à criação de escolas para moças na metade do século XIX, porém, tanto na escola para meninas como na Escola Normal, o currículo era diferenciado, como já foi mencionado. Por exemplo, na Escola Normal, elas cursavam todas as disciplinas do currículo destinado aos meninos. Com exceção da álgebra e da geometria avançada, era permitido apenas o ensino de geometria elementar. Assim, percebemos que a escola reproduzia as representações de gênero, como afirma Louro (2014, p. 93): “[...] a escola é atravessada pelos gêneros, é impossível pensar sobre a instituição sem que se lance mão das reflexões sobre as construções sociais e culturais de masculino e feminino”. A escola, portanto, atua internamente para distinguir os corpos e os gêneros uns dos outros.
A distinção de gênero no currículo e nas práticas educacionais também se apresentou nas reformas educacionais da Primeira República, principalmente com o advento dos grupos escolares, pois, no final do século XIX, manifestavam-se por parte da “elite ilustrada” discussões e debates em defesa da escola pública e da ampliação da escolarização.
Segundo Saviani (2019), é nesse período em que se começa a pensar sobre a ideia de um sistema nacional de ensino como uma forma de organização prática, constituindo-se numa ampla rede de escolas que englobasse todo o território nacional e se articulasse entre si e todo o sistema, devendo esse seguir normas e objetivos comuns. No entanto, isso só veio a se consolidar, em parte, na segunda metade do século XX.
3.2 Formação e profissão docente: a docência na Paraíba através da trajetória da professora Maria Salete van der Poel no Ensino Primário
A experiência com as Escolas Normais e as novas ideias pedagógicas trouxeram um novo conceito de espaço escolar, novos materiais pedagógicos e uma nova forma organizacional da escola, principalmente o nível primário. No final do século XIX, as Escolas Normais assumiram uma forma mais definida de instituição formadora de professores/as. Como exemplo, podemos citar o caso da Escola Normal da Província da Parahyba do Norte, que foi criada no ano 1883, sendo implementada oficialmente apenas em 1885, com a finalidade de modernizar a prática educativa nas Escolas Primárias, que, por sua vez, concorreria para o progresso da província paraibana (ARAÚJO, 2012).
A Escola Normal na Paraíba tinha uma característica em relação às outras, o 1º grau do Curso Normal era destinado ao sexo feminino, criado pela Lei nº 761/18837. Embora o curso tenha sido criado em 1883, antes já havia no Liceu Provincial uma cadeira de Pedagogia que conferia habilitação ao magistério no 1º grau. Assim, o Curso Normal era frequentado majoritariamente por mulheres/moças, conforme afirma Kulesza (2008).
A referida instituição fazia parte do projeto político-educacional da época, o qual tinha por finalidade preparar a futura professora primária para instruir as moças nos papéis de mãe e esposa, ou seja, escolas destinadas ao gênero feminino oriundo da elite paraibana, visto que a Escola Normal da Paraíba, com a Reforma Souza Bandeira, de 1889, passou a ser Externato Normal Feminino, no qual manteve o Curso Normal com ênfase nas atividades domésticas, dentro dos costumes vitorianos8. Sendo assim, a formação e a profissão docente mantiveram as marcas religiosas e o caráter missionário, porém com novos discursos e novos símbolos, mesmo no início da Primeira República (1889-1930) (LOURO, 2014).
Nesse sentido, a formação de professores e a instrução elementar e secundária, no período acima citado, configuraram-se pelas reformulações implementadas através das reformas educacionais9, as quais modificaram o currículo, tempo de formação, pré-requisitos e criação de disciplinas práticas. Com isso, foram criadas no Brasil e na Paraíba Escolas-Modelo de Ensino Primário anexas à Escola Normal.
Consoante Saviani (2019), a Escola-Modelo foi criada como um órgão de demonstração metodológica, composto por duas classes, uma feminina e outra masculina. Na Paraíba, por exemplo, não se tem registro da criação de Escolas-Modelo para a formação de professores/as. Entretanto, foram criados grupos escolares, tais como: Dr. Thomas Mindello (inaugurado em 1916 na capital do estado da Paraíba) e o Grupo Escolar Solon de Lucena (inaugurado em 1923 na cidade de Campina Grande).
Os grupos escolares foram “[...] criados para reunir em um só prédio de quatro a dez escolas, compreendidas no raio da obrigatoriedade escolar” (SAVIANI, 2019, p. 171). Isso, em virtude do processo de urbanização nas cidades e pela instrução ter se tornado requisito para o trabalho nas áreas urbanas, com o crescimento das atividades econômicas, comerciais e industriais nelas. Por isso, esse modelo escolar se tornou referência e perdurou até a reforma educacional de 1º e 2º grau de 1971, como afirma Souza (2019).
Desse modo, a rede escolar nos estados brasileiros ampliou-se por meio dos grupos escolares, os quais estavam alinhados ao discurso republicano: instruir a nação para alcançar a civilidade. Em decorrência disso, as mulheres são maioria no campo do magistério, principalmente no Ensino Primário, visto que o magistério passou, cada vez mais, a ser uma profissão que atendia à população de baixa renda e a ser desvalorizada na ótica capitalista, fazendo a profissão docente ser desprestigiada, com baixa remuneração, o que levou os homens a abandonarem a carreira do magistério primário em busca de outras profissões mais bem remuneradas (ALMEIDA, 2004). Portanto, até a década de 1930 o Brasil continuava a todo vapor, pois, “[...] quanto mais urbano se torna um país, mais crescem os setores de serviços, [...] então, mais os setores médios ou os aspirantes a tal exigem educação e escolas” (GHIRALDELLI JR., 2015, p. 48).
Nesse ínterim, a partir de 1930, os campos social, econômico e educacional passaram por mudanças significativas em razão da implementação de várias medidas nesses campos, a exemplo da criação do Ministério da Instrução e Saúde Pública10, que se justifica pela demanda educacional que tinha o país. Além dessa, tem-se a Reforma Francisco Campos11, a intensificação da atuação da Associação Brasileira da Educação (ABE), a publicação do Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova (1932), que teve suas ideias incorporadas à Constituição de 1934, e a elaboração de propostas pedagógicas divididas em quatro ideários: liberal, católico, integralista e comunista, que vão se materializar nas duas constituições outorgadas no período do governo de Vargas, a citada anteriormente e, em específico, a Constituição de 193712 (1930-1945).
Foi nesse cenário que a professora Maria Salete van der Poel nasceu e vivenciou suas primeiras experiências escolares e sociais. A referida professora nasceu em Campina Grande, cidade da Paraíba, em 1936, em uma família abastada da alta aristocracia rural da região da Borborema, a família Agra. Vale destacar que os pais da professora eram de classes sociais distintas, conforme os relatos autobiográficos dela: “Nosso pai, ao contrário, pertencia a uma família de classe média [...] filho do comerciante Neco Hortêncio, considerado sério, honesto e respeitado na cidade” (VAN DER POEL, M.; VAN DER POEL, C., 2007, p. 23). Assim, a mãe pertencia à aristocracia e o pai à classe média, pois era filho de comerciante importante da região de Campina Grande.
A professora Maria Salete realizou seus estudos nas escolas particulares de Campina Grande, conforme afirmam M. van der Poel e C. van der Poel (2007, p. 23): “Estudamos, desde crianças, nas melhores escolas particulares de Campina Grande”. Sua mãe sempre foi rigorosa com os estudos dos filhos, conforme relatam M. van der Poel e C. van der Poel (2007, p. 23):
Por causa das ausências do nosso pai, nossa mãe assumiu nossa educação. Sempre teve os maiores cuidados para que todos os filhos estudassem. Dizia sempre: ‘Nesta casa, em primeiro lugar, educação; em segundo, educação; e, em terceiro, também educação’. Os cuidados com as notas eram rigorosos. [...] Controle rigoroso. [...] Foi a nossa melhor e mais exigente professora.
Podemos perceber que a função de educar e ensinar os filhos ficou a cargo da mãe de Maria Salete, que, conforme o relato, era uma mestra metódica e disciplinadora em relação à educação dos filhos. Verifica-se, portanto, que existe nessa relação entre o pai e a mãe da professora uma questão de gênero13, na qual a mulher fica responsável pelas atribuições tidas como femininas (cuidados da casa e da educação dos filhos) e os homens pelas atribuições convencionadas como masculinas (provedor das condições materiais).
Assim, nas escolas particulares, a professora Salete cursou o Primário14 (1942-1945) e o Secundário de 1º ciclo, nomeado de Ginásio15 (1946-1949). E o 2º ciclo, o Curso Clássico16 do Colegial (1950-1952), na Escola Pública Estadual da Prata, pois o Ensino Secundário, a partir da Lei Orgânica (Decreto-Lei nº 4.244), promulgada em 9 de abril de 1942, passou a ser estruturado em dois ciclos: Curso Ginasial (quatro anos) e Curso Colegial dividido em dois cursos paralelos: Clássico e Científico (três anos). De acordo com essa lei, em seu artigo 4º: “No curso clássico, concorrerá para a formação intelectual, além de um maior conhecimento de filosofia, um acentuado estudo das letras antigas; no curso científico, essa formação será marcada por um estudo maior de ciências” (BRASIL, 1942).
Desse modo, o Secundário foi estruturado para atender à sua principal função, que era formar uma sólida cultura geral e elevar a consciência patriótica e humanística nos adolescentes. Visto que o currículo destes cursos enfatizava os conhecimentos humanísticos e das letras, mesmo no Curso Científico, como afirma Romanelli (2014). Assim, os dois ciclos se complementavam e sobressaía neles uma preocupação enciclopédica que vai transparecer no 2º ciclo - Colegial -, por meio da ausência de distinção curricular entre os dois cursos desse ciclo, sendo praticamente as mesmas disciplinas em todas as séries dos cursos.
Conforme Romanelli (2014), a Lei Orgânica do Ensino Secundário refletiu o momento político brasileiro pelo qual passava o país, porém não refletiu o momento econômico, pois não estava adequada à evolução do perfil da demanda social da educação. De acordo com essa autora, existia uma pressão por parte da classe média emergente e de parcelas das camadas populares para que o sistema educacional contemplasse essas com o Ensino Secundário, que passou a ser visto como forma de ascensão social ou uma forma de acrescentar prestígio ao seu status na década de 1940.
Foi nesse momento que foram promulgadas também as Leis Orgânicas do Ensino Primário17 e do Ensino Normal18, que atendiam diretamente ao nível Primário na década de 1940. Com essas duas normas jurídicas, o campo educacional, principalmente o nível primário, começou a adquirir forma escolar mais definida em relação à finalidade, estrutura curricular e formação adequada de professores/as. Essas legislações, portanto, fixaram as diretrizes e bases do Ensino Primário e Normal, além dos tipos de cursos e estabelecimentos em que tais cursos poderiam funcionar.
Dessa forma, o Decreto-Lei (nº 8.530) instituiu os cursos: Formação de regentes de Ensino Primário (1º ciclo - quatro anos); Formação de professores primários (2º ciclo - três anos); os de especialização em Ensino Pré-Primário, Desenho e Artes, Música; e o curso de Administração Escolar. Vale mencionar que todos os cursos poderiam funcionar nos Institutos de Educação, que englobavam ainda a Escola Primária e o Jardim de Infância. Já o primeiro curso, 1º ciclo do Ensino Normal, poderia funcionar nas Escolas Normais Regionais; e o segundo curso, 2º ciclo do Ensino Normal, nas Escolas Normais.
Na Paraíba, o Ensino Normal, a partir de 1946, teve novas diretrizes, visto que foi disciplinado tanto pela Lei Orgânica como pela Lei nº 850, de 6 de dezembro de 1952, a qual organizou o Ensino Normal no estado da Paraíba, que tinha, até esta data, Escolas Normais, Instituto de Educação e Cursos Normais Regionais. Vale destacar que os Cursos Normais Regionais, localizados nas cidades do interior paraibano, funcionavam nos estabelecimentos de ensino particulares, quase todos eles confessionais, ou seja, pertencente às ordens religiosas (PINHEIRO, 2020).
A partir da Lei nº 850/1952, contudo, o Ensino Normal na Paraíba ampliou o tempo de realização do curso de quatro para cinco anos. Foi nesse período que a professora Maria Salete iniciou sua trajetória docente, como mencionam M. van der Poel e C. van der Poel (2007, p. 23):
Ao terminar o clássico, perdemos nosso pai e não pudemos continuar os estudos. Tivemos que lutar pela sobrevivência. Nesse sentido, fundamos, no velho sobrado, a ‘Escolinha da Salete’, que, no ano seguinte, 1956, juntamente com nossa irmã Eneida, mudamos para o ‘Instituto Moderno Nossa Senhora da Salete’, que funcionou até 1972.
Ao verificar o relato, podemos perceber que a professora iniciou sua docência após a morte do pai, fato que demonstra a docência como uma alternativa para as moças/mulheres garantirem seu sustento, pois o magistério havia se tornado uma atividade permitida e indicada para as mulheres, como afirma Carvalho (2020), que associava a mulher às funções domésticas (ensino, cuidados, serviços) e ao lugar da subordinação, visto que elas não poderiam ter autoridade sobre os homens. Assim, a partir do processo de ressignificação da atividade de ensino na década de 1950, o magistério passou a ser representado de um modo novo à medida que se feminilizava e se constituía como a verdadeira carreira das mulheres (LOURO, 2014).
O contexto da morte do pai da professora foi marcado pelo término do Curso Colegial Clássico, ou seja, ela exerceu a docência sem formação pedagógica, fato comum nessa época, visto que na Paraíba a demanda pelo Ensino Primário era grande, porém faltavam professores formados para atender a essa demanda.
Consoante Romanelli (2014), a maioria do pessoal empregado no magistério primário de então estava desqualificada para a função e pertencia a uma faixa etária que excedia o limite posto pela legislação, assim quem já estava exercendo o magistério era impedido pela lei de realizar a qualificação para tal função. Esse fato também acontecia na Paraíba, como podemos perceber na trajetória da professora Maria Salete, que atuou como professora primária em Campina Grande/PB mesmo sem possuir a formação pedagógica, ou seja, o Curso Normal.
Segundo M. van der Poel e C. van der Poel (2007, p. 33):
Estamos no ano de 1956, ano de fundação de ‘Instituto Moderno Nossa Senhora da Salete’. Foi aí que iniciamos nossa prática de professora alfabetizadora com 12 crianças. Éramos adolescentes e nada entendíamos de métodos pedagógicos. Por essa razão, iniciamos a aulas de ler e escrever empregando o mesmo método pelo qual aprendêramos, isto é, o ‘Método ABC’.
No relato acima, percebemos que a professora Maria Salete não tinha formação adequada para desenvolver a atividade docente, visto que empregava os métodos de alfabetização por meio dos quais havia sido alfabetizada, isto é, o método intuitivo/lição das coisas por meio das cartilhas e outros materiais pedagógicos.
[...] ensinávamos as letras do alfabeto, geralmente associadas ao som e à figura. [...] Paulatinamente, as letras se reuniam para formar sílabas e, por último, as palavras. [...] pouco a pouco, fomos adquirindo novos conhecimentos acerca dos métodos ativos e globalizantes, que nos levaram a abandonar, definitivamente, os métodos sintéticos e a adotar o método analítico-sintético a partir da palavra, a qual decompúnhamos em suas famílias fonêmicas (análise), e depois as recompúnhamos para formar novas palavras (síntese). (VAN DER POEL, M.; VAN DER POEL, C., 2007, p. 33).
Conforme o relato da professora, observamos que a concepção teórico-metodológica que estava presente em sua docência era a Pedagogia Nova ou Moderna19, a qual era propagada pelas Escolas Normais mesmo antes da Lei Orgânica de 1946. Essa concepção teórico-metodológica da Pedagogia Nova, que estava alinhada a uma concepção técnica esvaziada da teoria e reflexão crítica, foi reafirmada na Lei nº 8.530/1946, no artigo 14, item A, “Adoção de processos pedagógicos ativos”, e no artigo 16, “Os trabalhos escolares constarão de lições, exercícios e exames”, como também na Lei nº 8.529/1946, no artigo 10, que estabelece que o Ensino Primário Fundamental deverá atentar-se para os interesses naturais da infância, as atividades dos próprios “discípulos”, a realidade do ambiente dos “discípulos”; desenvolver o espírito de cooperação e o sentimento de solidariedade social, tendências e aptidões dos alunos, bem como a fraternidade humana. A prática da professora Salete, portanto, estava ancorada nessa concepção pedagógica, que colocava o/a aluno/a no centro do processo de aprendizagem, por conceber a criança como indivíduo “inocente”, que se desenvolve de forma espontânea por meio da experiência, sem levar em conta os aspectos sociais e culturais.
Em contextos posteriores, a professora Salete irá modificar suas bases teórico-metodológicas, bem como seu pensamento acerca do processo educativo, fortemente influenciada por sua inserção nos movimentos sociais de educação popular dos anos 1960 e pelo pensamento de Paulo Freire20.
5 Considerações finais
Este estudo buscou responder qual o modelo de professora primária idealizado pela Escola Normal da Paraíba e se, na trajetória docente de Maria Salete van der Poel, esse modelo se apresenta. Concluímos que, ao longo dos anos, a mulher sofreu inúmeras interdições no seu discurso, na sua atuação profissional e na sua própria história, mas, a partir de meados do século XIX, as mulheres começaram a figurar no espaço público através dos colégios destinados à educação feminina e depois passaram a frequentar as Escolas Normais, realizando o curso de formação de professora primária, o qual possibilitou às mulheres se profissionalizarem e garantirem seus direitos sociais e políticos como sujeitos de direitos.
A Escola Normal tinha em suas diretrizes os discursos vitorianos, que davam estatuto às mulheres a se inserirem no magistério, visto que um dos fundamentos que haviam sustentado tal ingresso da mulher na profissão docente foi o fato de pertencer ao gênero feminino e possuir características relacionadas ao cuidado e à maternidade, representando a figura de segunda mãe dos/as meninos/as. No período republicano, no entanto, o modelo de formação de professora primária da Escola Normal foi reformulado, principalmente, pelos ideais pedagógicos da Pedagogia Moderna ou Escola Nova, que, no Brasil, misturaram-se ao ideário católico conservador, formando uma Escola Normal que reforçava tanto a docência como a vocação, a missão e o destino como os saberes pedagógicos modernos para a docência no Ensino Primário. Esse modelo de formação de professores/as estabelecido por tal instituição, teve, portanto, uma importante contribuição no processo de feminização do magistério, já que a Escola Normal propagava e difundia o discurso vitoriano de que a mulher tinha os atributos e as habilidades necessárias para serem professoras, sendo o magistério sua missão por vocação.
Desse modo, concluímos que a trajetória docente de Maria Salete van der Poel no Ensino Primário foi permeada pelos fundamentos mencionados anteriormente, visto que, ao ficarem sem condições materiais, a professora e a irmã tiveram como opção para ganhar dinheiro tornarem-se professoras e fundarem uma escola, fato esse que aponta a docência como uma alternativa para as mulheres terem uma profissão e se inserirem na vida pública, saindo da esfera privada e do lar.
Podemos concluir que a professora Maria Salete apresentava o modelo de professora primária propagado nas décadas de 1940 e 1950, por utilizar em suas aulas cartilhas e métodos ativos direcionados para a infância. Apesar de não ter formação pedagógica no âmbito da Escola Normal, sua prática nos revela que ela estava de acordo com o modelo estabelecido pela Escola Normal, logo, ela ensinava as crianças dentro dos saberes da Escola Nova.