INTRODUÇÃO
O presente trabalho se insere em um contexto de franca expansão do debate acerca da revisão do modelo escolar brasileiro, que vem passando principalmente pelo reexame dos objetivos de aprendizagem e conteúdos a serem ofertados aos estudantes e pelo prolongamento do tempo de permanência dos alunos na escola.
A Base Nacional Comum Curricular (BRASIL, 2016) é resultado de uma ampla discussão, que envolve diferentes setores da sociedade, e consiste em uma proposta de sistematização dos conteúdos pedagógicos com o intuito de nortear a reformulação dos currículos escolares, tendo em vista os direitos essenciais de aprendizagem. Essa proposta não é nova e encontra diversas referências históricas que foram formalizadas em documentos tão importantes quanto a própria Constituição Federal de 1988 (BRASIL, 1988) e a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional de 1996 (BRASIL, 1996).
Além deles, o Programa Nacional da Educação 2014/2024 também preconiza a revisão dos currículos rumo ao estabelecimento de uma base nacional comum. O objetivo do estabelecimento dessas bases é promover a equidade por meio da normatização de conteúdos mínimos a que todos tenham acesso em todas as escolas brasileiras.
O processo de revisão das propostas pedagógicas escolares e o estabelecimento de novos currículos, especialmente em disciplinas como a Educação Física, traz consigo a imprescindibilidade de se reverem as condições infraestruturais em que se encontram as escolas. Por um lado, para que os conteúdos propostos guardem o mínimo de aderência e compatibilidade com a realidade material das escolas; por outro lado, para que as escolas, alunos e demais atores sociais reivindiquem condições mínimas exigíveis para a plena consecução dos preditos direitos essenciais de aprendizagem.
Impulsionados pela publicação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional de 1996 (BRASIL, 1996), os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) (BRASIL, 1997, 1998) foram os principais balizadores da uniformização curricular na história da educação básica brasileira, com conteúdos considerados - até a sedimentação da Base Nacional Comum Curricular - a referência oficial de alcance nacional para a seleção dos conteúdos pedagógicos das escolas.
Ainda que os Parâmetros Curriculares Nacionais (BRASIL, 1997, 1998) não constituam currículos mínimos obrigatórios para as escolas brasileiras, eles foram alvo de reconsideração no contexto da elaboração da Base Nacional Comum Curricular (BRASIL, 2016). Assim, seus blocos de conteúdos − “Esportes, jogos, lutas e ginásticas” e “Atividades rítmicas e expressivas e seus respectivos desdobramentos em atividades” − guardam grande convergência com as unidades temáticas propostas na Base Nacional Comum Curricular (BRASIL, 2016). Tais unidades temáticas são: brincadeiras e jogos, esportes, ginásticas, danças, lutas e práticas corporais de aventura.
Nos últimos anos, os avanços teóricos sobre a Educação Física escolar vêm consolidando o entendimento de que seu propósito não se restringe ao desenvolvimento dos aspectos físicos e motores das crianças ou à aprendizagem da técnica desportiva. De maneira mais abrangente, a Educação Física se articula à área das linguagens e compreende as práticas corporais como fenômenos culturais e históricos. Seu objetivo é oferecer aos alunos as condições, habilidades e conhecimentos para que reformulem criticamente sua consciência a respeito dos seus movimentos e desenvolvam a autonomia para a apropriação da cultura corporal de movimento. (BRASIL, 2016)
Além disso, a Educação Física curricular difere das demais práticas de esporte ou atividade física experimentadas em ambiente escolar, na medida em que se integra à proposta pedagógica da escola, constituindo-se em uma disciplina curricular obrigatória, ministrada por profissional legalmente licenciado, durante o turno regular dos alunos.
O impacto das condições infraestruturais escolares sobre o desempenho dos alunos da rede pública brasileira vem sendo objeto de interesse de diversos pesquisadores, cujos recentes estudos apresentaram resultados alarmantes. Oliveira e Soares (2012, p. 28) buscaram identificar os principais determinantes da repetência escolar e identificaram que escolas com melhores níveis de infraestrutura apresentaram menores chances de repetência.
Por sua vez, segundo Soares Neto et al. (2013), 84,5% das escolas brasileiras estão abaixo das condições classificadas como adequadas para a prática pedagógica, ou seja, menos de 15% das escolas estão satisfatoriamente equipadas com bibliotecas, quadras de esportes, laboratórios de informática e ciências e estruturas adaptadas para crianças com necessidades especiais. Segundo os mesmos autores, “a infraestrutura é um dos fatores contextuais passíveis de intervenção que podem trazer melhorias para o sistema educacional” (SOARES NETO et al., 2013, p. 97).
Outra dimensão dessa predita revisão do modelo escolar brasileiro reside na ampliação da jornada escolar de crianças e adolescentes mediante a complementação da carga horária com atividades durante o turno e contraturno. A ampliação do tempo de permanência na escola também não é novidade. Entre avanços e retrocessos, ela tem sido largamente discutida no Brasil há muitos anos e, mais recentemente, vem sendo implementada paulatinamente em iniciativas como o Programa Mais Educação (BRASIL, 2010a).
O Plano Nacional da Educação 2014/2024 (PNE) prevê, como uma meta a ser perseguida nos próximos dez anos, o aumento substantivo da provisão do ensino em tempo integral. A meta número 6 vislumbra o provimento da educação em tempo integral “em, no mínimo, 50% (cinquenta por cento) das escolas públicas, de forma a atender, pelo menos, 25% (vinte e cinco por cento) dos(as) alunos(as) da educação básica” (BRASIL, 2014).
Assim, ainda que a relevância da Educação Física escolar não se esgote no escopo do debate sobre a educação integral, essa última notabiliza um dos argumentos cruciais sobre o valor de se integrar a Educação Física ao programa político- -pedagógico escolar de maneira estruturada e consistente, posto que compreende a relevância da cultura corporal de movimento no enriquecimento da experiência vivencial dos estudantes, favorecendo, em última análise, a sua participação de forma autoral na sociedade (BRASIL, 2016, p. 171).
A ampliação da jornada escolar requer uma revisão estrutural e completa da escola, a qual passará tanto pela revisão das propostas pedagógicas, quanto, como nos interessa argumentar no presente trabalho, pelo repensar sobre o ambiente escolar, que é onde as crianças e jovens passarão a maior parte de seu dia.
Segundo Tenório et al. (2012), entre os motivos que mais contribuem para uma reconhecida baixa participação dos alunos nas aulas de Educação Física, encontram-se os estímulos de ordem ambiental, entendidos como qualidade das “edificações, os espaços de recreio e os equipamentos no recinto escolar” (p. 308). Conforme os autores,
[...] pouco se conhece sobre a realidade do ambiente físico para o desenvolvimento das aulas da Educação Física, existindo assim a necessidade de estudos que avaliem este ambiente em relação à quantidade e qualidade do material para as aulas de Educação Física. (TENÓRIO et al., 2012, p. 308)
Assim, a proposta do presente trabalho consistiu na estruturação de um instrumento de coleta de informações para o monitoramento do ambiente escolar para o ensino e prática da Educação Física no ensino fundamental, tendo como referencial os conteúdos propostos nos Parâmetros Curriculares Nacionais (BRASIL, 1997, 1998).
Os aspectos levantados no instrumento ora proposto limitam-se às condições físicas e materiais de que dispõem as escolas para as aulas de Educação Física, envolvendo instalações (como pátio, quadras, parques, etc.) e material utilizado (quantidade de material disponível nas escolas bem como tipo de equipamento utilizado para o ensino de cada conteúdo e uso de materiais alternativos). Verifica-se, além disso, a opinião dos professores de Educação Física sobre a adequabilidade dos equipamentos de que dispõem as escolas em que trabalham.
Para que qualquer planejamento preciso e objetivo em termos de adequação física dos espaços escolares às novas perspectivas para a escola brasileira seja possível, faz-se conveniente e oportuna a disseminação de avaliações conjunturais da atual realidade escolar. Nesse contexto, diante da escassez de fontes de dados específicos sobre a temática da infraestrutura para a Educação Física, fundamentou-se a pertinência do presente trabalho, que consiste na proposição de um questionário que venha a contribuir, enquanto instrumento de avaliação, para um reconhecimento mais acurado do ambiente físico escolar para o ensino e prática da Educação Física, amparando a tomada de decisões gerenciais, políticas e pedagógicas.
OS Parâmetros Curriculares Nacionais
Lançados entre 1997 e 1998 pela Secretaria de Ensino Fundamental do então Ministério da Educação e do Desporto, os Parâmetros Curriculares Nacionais são documentos que objetivam fornecer orientações pedagógicas para os professores de Educação Física na elaboração de seus currículos e seleção de conteúdos para as aulas de Educação Física, além de incentivar a discussão pedagógica no interior das escolas com vistas à inovação e à adaptação dos conteúdos das aulas às realidades locais. Segundo Darido et al. (2001), sua publicação foi importante na medida em que sistematizou ideias e conhecimentos de alguns autores relevantes da área, antes difusos em suas pesquisas acadêmicas, e trabalhos dos professores da rede escolar de ensino difusos em suas pesquisas acadêmicas, e trabalhos dos professores da rede escolar de ensino.
Os PCN surgiram em um ambiente de recente redemocratização brasileira e estiveram inseridos em um contexto de “novos ordenamentos legais que pretenderam organizar o campo escolar” (VAGO, 1999, p. 37). Em 1996, um ano antes do lançamento do seu primeiro documento, fora instituída a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) – Lei n. 9.394 (BRASIL, 1996), que determina a obrigatoriedade do ensino da Educação Física nas escolas e preconiza que seus conteúdos sejam articulados à proposta pedagógica das escolas.
Naquele ambiente, fazia-se muito presente a discussão sobre o papel da escola no fortalecimento da autonomia e da cidadania dos alunos, da inclusão de grupos marginalizados e do estímulo à sua participação democrática nas mais diferentes esferas da sociedade. Esses conceitos foram determinantes para o embasamento dos princípios fundamentais dos PCN, quais sejam: o princípio da inclusão – que pretende ser promovido por meio da cultura corporal de movimento; e o princípio da diversidade – relacionado à promoção do respeito à individualidade dos alunos e ao seu ritmo de aprendizado. Esse cenário também foi positivo no sentido da proposição de novas prioridades e diretrizes no campo escolar, em que a Educação Física ganha maior espaço e relevância.
Ao buscarem abranger uma gama de conteúdos relativamente vasta, e que visa a sintetizar diferentes abordagens pedagógicas e paradigmas da Educação Física, muitas vezes de naturezas distintas, além de procurarem flexibilizar as recomendações e os conteúdos de maneira a contemplar toda a diversidade existente entre as escolas do país (com relação a porte, localização – urbana/rural, regiões geográficas, etc.), há autores que criticam sua versatilidade como excessiva, considerando suas recomendações demasiadamente superficiais. Além disso, os conteúdos apresentados nos PCN têm caráter propositivo, o que não obriga as escolas a aderirem às suas orientações pedagógicas.
Contudo, apesar da diversidade de opiniões a seu respeito, os PCN têm sido a principal diretriz de escala nacional, proposta pelo governo federal para formulação de currículos e seleção de conteúdos pedagógicos pelos professores. Além disso, o fato de os PCN abrangerem uma ampla gama de atividades e conteúdos contribui para o enriquecimento do nível de refinamento do instrumento proposto, uma vez que, quanto mais detalhado, maior sua capacidade de mapear as mais diferentes atividades desenvolvidas no interior de cada escola contemplada por sua aplicação.
A opção pelos PCN como referencial teórico para o presente trabalho também se justifica sob a perspectiva de que seus conteúdos guardam convergência com as unidades temáticas propostas na Base Nacional Comum Curricular (BRASIL, 2016), o que poderá não apenas facilitar o tratamento e análise quantitativa dos dados a serem coletados, como também amparar o planejamento escolar no momento de transição para a implementação dos conteúdos mínimos estabelecidos pela Base.
Os critérios de seleção dos conteúdos que compuseram os PCN foram baseados em três premissas: a sua relevância social; as características dos alunos (considerando-se as diferentes localidades: urbana ou rural e regiões brasileiras); e as características da própria área da Educação Física (incorporando- se os conhecimentos produzidos pela cultura corporal).
Assim, quanto aos objetivos de aprendizagem para o ensino fundamental, os PCN concebem que, ao final desses anos, os alunos devem ter a oportunidade de participar de atividades de lazer, cultura, esportes, ginásticas, danças e lutas, com finalidades não só de aprendizagem técnica, mas de expressão de sentimentos, de questionamento de seus direitos e reconhecimento de seus talentos e limitações, além de aprofundarem discussões importantes sobre aspectos éticos e sociais da vida cotidiana. Na concepção dos PCN, o processo de ensino e aprendizagem em Educação Física não deve, portanto, restringir-se ao desenvolvimento físico e motor dos estudantes.
Em 1997, foram lançados os parâmetros pertinentes ao primeiro e segundo ciclos do ensino fundamental – que se referem hoje ao 2º e 3º anos e 4º e 5º anos, respectivamente; e, em 1998, publicaram-se os parâmetros relacionados ao terceiro e quarto ciclos, hoje equivalentes ao 6º e 7º anos, e ao 8º e 9º anos. Trata-se de diretrizes orientadas à Educação Física curricular, ou seja, aquelas que integram a proposta pedagógica da escola.
Para o primeiro ciclo do ensino fundamental, quando as crianças ingressaram recentemente na escola, os PCN sugerem que os professores valorizem e explorem durante as aulas os conhecimentos e afinidades prévias daquele grupo, enfatizando sempre que possível o repertório cultural local, além de garantir que elas tenham acesso a experiências que não teriam fora da escola, possibilitando, inclusive, que comecem a assimilar e ressignificar movimentos e atividades que antes executavam de maneira lúdica em convívio fora da escola.
Com relação à infraestrutura e material necessários para a consecução dessas práticas corporais durante o primeiro ciclo do ensino fundamental, o documento afirma que é imprescindível que tenham acesso a determinados espaços e objetos específicos para as aulas de Educação Física:
No primeiro ciclo, é necessário que o aluno tenha acesso aos objetos como bolas, cordas, elásticos, bastões, colchões, alvos, em situações não-competitivas, que garantam espaço e tempo para o trabalho individual. A inclusão de atividades em circuitos de obstáculos é favorável ao desenvolvimento de capacidades e habilidades individuais. (BRASIL, 1997, p. 48)
Quando os alunos frequentam o segundo ciclo do ensino fundamental, ou seja, 4º e 5º anos, espera-se que estejam integrados à rotina escolar e que já tenham desenvolvido melhor habilidades motoras e de sociabilidade. Assim, os conteúdos abordados no primeiro ciclo devem agora ser aprofundados e complexificados. Alguns desses conteúdos são: a participação em diversos jogos, esportes e lutas, o aprendizado de brincadeiras, etc. Deve fazer parte dos conteúdos a criação de regras para brincadeiras, sendo incentivado o desenvolvimento da autonomia, da percepção do próprio corpo, da discussão de regras do jogo e de noções de não discriminação e sociabilidade.
Em relação ao uso do ambiente para as atividades na aula, os PCN sugerem que as turmas sejam subdivididas em grupos menores, para que possam experimentar maior número de atividades simultaneamente, de maneira alternada, com “situações coletivas de toda a classe” (BRASIL, 1997, p. 51).
A partir do segundo ciclo, a perspectiva de ensino dos conteúdos é dividida entre as dimensões conceitual (relacionada a fatos, conceitos e princípios), procedimental (referente a ações práticas ligadas ao movimento) e atitudinal (relacionada com obediência a normas, valores e princípios).
Nos PCN, os conteúdos propostos para o ensino da Educação Física em todo o ensino fundamental estão divididos em três grandes blocos, a saber: Esportes, jogos, lutas e ginásticas; Atividades rítmicas e expressivas; Conhecimentos sobre o corpo.
Com o objetivo de tornar claro e de viabilizar a sua operacionalização nas escolas, os Parâmetros Curriculares Nacionais trazem uma definição de cada um dos conteúdos presentes no bloco “Esportes, jogos, lutas e ginásticas”. Essas definições são realizadas de modo abrangente e flexível, com o intuito de alcançar a diversidade das escolas brasileiras no que tange ao seu porte, localização, nível socioeconômico, etc. No bloco “Conhecimentos sobre o corpo”, devem ser ensinados conteúdos referentes à fisiologia humana, anatomia, biomecânica e bioquímica que permitam aos estudantes conhecer melhor o próprio corpo, bem como julgar criticamente as suas atividades dentro e fora da escola.
Dentro da perspectiva de aprofundamento gradual do grau de exigibilidade das atividades, tanto em nível físico quanto cognitivo e social, no terceiro e quarto ciclos, “os conteúdos de aprendizagem passam a ser apresentados segundo sua categoria conceitual, procedimental e atitudinal” (BRASIL, 1998, p. 15).
Por se tratar da temática central do presente trabalho, destaca-se o item referente à infraestrutura, em que os PCN reconhecem que os espaços para a execução dessas atividades são uma realidade escassa, quando se analisa o país como um todo, e estimulam que eles sejam aproveitados de maneira criativa por parte dos professores de Educação Física.
Também incentivam que, dada a sua incontestável relevância para o pleno exercício das atividades físicas, esportivas e de lazer, os próprios alunos aprendam, desde cedo, a reivindicar espaços para essas práticas:
O lazer e a disponibilidade de espaços para atividades lúdicas e esportivas são necessidades básicas e, por isso, direitos do cidadão. Os alunos podem compreender que os esportes e as demais atividades corporais não devem ser privilégio apenas dos esportistas ou das pessoas em condições de pagar por academias e clubes. Dar valor a essas atividades e reivindicar o acesso a elas para todos é um posicionamento que pode ser adotado a partir dos conhecimentos adquiridos nas aulas de Educação Física. (BRASIL, 1997, p. 25)
Conforme previamente exposto, o presente trabalho utiliza os conteúdos propostos nos PCN como referencial teórico para a elaboração do instrumento de medida. Ele se restringe aos blocos “Esportes, jogos, lutas e ginásticas” e “Atividades rítmicas e expressivas”, uma vez que o bloco “Conhecimentos sobre o corpo” constitui-se de conteúdos teóricos, não sendo estes o objeto de estudo da presente pesquisa, voltada a aferir estruturas físicas e materiais das escolas.
INSTRUMENTO DE MONITORAMENTO E AVALIAÇÃO DO AMBIENTE ESCOLAR PARA O ENSINO E PRÁTICA DA EDUCAÇÃO FÍSICA NO ENSINO FUNDAMENTAL
No Brasil, as principais fontes de dados estatísticos de larga escala a respeito das condições físicas e materiais das escolas para o ensino da Educação Física no ensino fundamental estão disponíveis nas pesquisas: Censo Escolar, Prova Brasil e Pesquisa Nacional de Saúde do Escolar (PeNSE). Cada um desses instrumentos foi concebido com objetivos específicos e as informações que trazem, apesar de relevantes, não são suficientes para se conhecer o nível de estímulo dado pelo ambiente escolar – em termos materiais e infraestruturais – para o ensino e a prática da Educação Física.
O Censo Escolar contém informações sobre a presença de pátio coberto ou descoberto e sobre a existência de parque infantil ou áreas verdes. A Prova Brasil apresenta um item referente às condições das quadras esportivas, além de questões a respeito da existência de atividades extracurriculares esportivas (que não necessariamente estão articuladas à Educação Física curricular) e sobre a presença de eventos esportivos destinados à comunidade externa.
A PeNSE, por sua vez, é amostral e seu questionário de coleta de dados foi baseado em outros estudos internacionais sobre saúde e nos instrumentos utilizados no Global School-based Student Health Survey/Organização Mundial da Saúde (GSHS/OMS), no Youth Risk Behavior Surveillance System/Centers for Disease Control and Prevention (YRBSS/CDC), e visa principalmente a traçar um perfil dos estudantes brasileiros com relação à adoção de hábitos saudáveis e a gerar certa comparabilidade dessas informações em nível internacional.
Conforme mencionado anteriormente, no momento histórico pelo qual a educação brasileira passa, em que os conteúdos pedagógicos e direitos de aprendizagem são amplamente rediscutidos no escopo da Base Nacional Comum Curricular, é premente o reexame dos conteúdos ora ministrados e, especificamente no campo da Educação Física, o reconhecimento dos espaços e infraestruturas disponíveis para a exploração de tais conteúdos pelos professores e para sua apropriação pelos alunos.
Assim, o instrumento proposto neste trabalho tem como objetivo identificar em que medida a infraestrutura e equipamentos das escolas estão articulados aos conteúdos da Educação Física sugeridos pelos Parâmetros Curriculares Nacionais. Assim, o instrumento fora elaborado com base nas categorias e práticas corporais referenciadas nas diretrizes dos PCN, a partir das quais se pergunta quais as práticas corporais exploradas durante as aulas de Educação Física, para posteriormente conhecer qual a infraestrutura, equipamentos e materiais dos quais as escolas dispõem para a realização daquelas atividades.1 Além delas, o instrumento também abarca outras recomendações gerais tratadas transversalmente nos PCN, tais como as referentes à inclusão dos alunos com deficiências físicas nas aulas, o estímulo à manufatura de materiais pelos próprios alunos e professores, entre outras.
Para a consecução de tal objetivo, a pesquisa averiguou os fatores que viabilizaram a estruturação do instrumento proposto. Assim, a partir das recomendações de conteúdos propostos nos PCN, foram levantadas as referências conceituais para a operacionalização do instrumento em itens, que visaram a identificar os principais aspectos da infraestrutura escolar necessários para o ensino e a prática da Educação Física.
A proposição metodológica e operacional do instrumento e a constituição dos itens do questionário foram realizadas com base nos procedimentos teóricos para construção de instrumentos de medida propostos por Pasquali et al. (2010).
Assim, o instrumento proposto se constitui principalmente em: a) um levantamento dos equipamentos necessários para o ensino e prática daqueles conteúdos pedagógicos propostos nos PCN; e b) a consulta da disponibilidade de espaços e equipamentos para a consecução das demais recomendações gerais do documento. A partir desses aspectos, foi criada a seguinte estrutura de fatores, que posteriormente fundamentaram os itens do questionário proposto.
Na primeira coluna listam-se os fatores propriamente ditos. Na segunda coluna é apresentada a sua proveniência. Os fatores foram provenientes de: recomendações específicas dos PCN; suas propostas de conteúdo; discussões com os especialistas no momento da validação teórica do instrumento; e averiguações da autora visando à futura criação de escala a partir dos dados colhidos com a aplicação do instrumento.
As fontes de informações a respeito dos equipamentos necessários para a execução das atividades previstas nos PCN foram extraídas de sites de federações esportivas, sites didáticos de brincadeiras e jogos, além de sites de fornecedores desses equipamentos às escolas na internet. Condições de manutenção dos equipamentos, regularidade e maneira de utilização não são examinadas por meio do referido instrumento.
Finalmente, vale ressaltar que o presente trabalho se debruçou exclusivamente sobre a elaboração do instrumento de avaliação do ambiente escolar para o ensino e prática da Educação Física. A sua aplicação nas escolas para realização de pré-testes e validações estatísticas se dará em fase subsequente, com futuros encaminhamentos desta pesquisa.
Segundo Pasquali et al. (2010), depois de concluídas as fases de concepção teórica e de construção dos itens que compõem o instrumento de medida, faz-se necessária sua análise em termos de conteúdo e sentido, para somente então apresentar-se o instrumento piloto.
De maneira geral, antes de partir para a validação estatística do instrumento piloto, grande parte dos autores recomenda que sejam realizadas a análise teórica (também conhecida como análise de juízes ou validação de face) e a análise semântica do instrumento como parte do seu processo de consolidação. A análise teórica dos itens de um instrumento deve servir para confirmar a hipótese de que os itens formulados representam adequadamente o construto que se busca conhecer.
Para tanto, a opinião de especialistas ou de pessoas que tenham experiência na área pesquisada faz-se relevante. Trata-se de mais uma fase teórica da construção do instrumento, uma vez que essas pessoas a opinarem sobre o instrumento ainda não são uma amostra da população para a qual este fora construído.
A análise teórica realizada no instrumento aqui proposto foi feita em duas principais fases: a primeira delas composta de consultas individuais a três professores de Educação Física com ampla experiência na área educacional escolar. Em cada uma dessas conversas, foi apresentada questão por questão do instrumento e ele em sua totalidade, em conversas não estruturadas. Aproveitou-se para confirmar aspectos teóricos da pesquisa como, por exemplo, se a opção pelos PCN teria sido um referencial adequado, entre outras questões pertinentes.
Na primeira fase de consultas, sugeriu-se a inclusão do esporte da natação no instrumento, ainda que ela não esteja presente nas propostas de conteúdos dos PCN. Ao compreender que esse é um esporte relevante e que carece de equipamentos muito específicos e importantes de serem mapeados, uma vez que dizem muito sobre a infraestrutura escolar, essa sugestão foi incorporada no instrumento final.
A segunda fase de validação teórica foi realizada mediante a consulta a um grupo de quatorze estudantes da pós-graduação do curso de Educação Física da Universidade de Brasília, todos graduados em Educação Física e com experiência na Educação Física escolar. Nessa fase, o instrumento foi apresentado em formato impresso, para que cada um respondesse ao questionário como se representasse uma instituição hipotética ou a própria escola em que trabalham. Nessa oportunidade, marcou-se o tempo médio de resposta ao questionário, que foi de 15 a 20 minutos. Essa informação foi registrada no cabeçalho do instrumento final como sendo útil aos respondentes no futuro.
Após o período de resposta ao questionário propriamente dito, outro conjunto de questões foi apresentado ao grupo, com o objetivo de realizar tanto a sua validação teórica quanto a semântica. Com relação à primeira, foi feita a seguinte questão, por escrito, sendo que havia também um espaço para outros comentários pertinentes: O objetivo primordial do instrumento proposto é identificar em que medida a infraestrutura e os equipamentos das escolas estão articulados aos conteúdos pedagógicos sugeridos pelos PCN. Você acha que esse objetivo é atendido com este instrumento? O que faltou para que o objetivo seja cumprido?
Em suas respostas, todos os consultados, tanto os da primeira fase quanto os da segunda, confirmaram que os itens formulados representam adequadamente o construto que se busca conhecer e que, portanto, o objetivo primordial do instrumento proposto, qual seja, “identificar em que medida a infraestrutura e equipamentos das escolas estão articulados aos conteúdos pedagógicos sugeridos pelos PCN”, é atendido com esse instrumento.
Sugestões de inclusão de outras dimensões não antes avaliadas surgiram na segunda fase da pesquisa, tendo grande parte delas sido incorporada ao instrumento final.2
A análise semântica visa a verificar se os itens são passíveis de serem compreendidos por toda a população à qual o instrumento se destina. Nesse contexto, Pasquali et al. (2010) recomendam que a avaliação da compreensão dos itens seja feita com pequenos grupos do extrato mais alto e dos mais baixos (em termos de habilidade ou sofisticação) para garantir a sua inteligibilidade e evitar eventuais “deselegâncias” no momento da sua formulação.
A metodologia para a validação semântica dos itens foi semelhante à aplicada na análise teórica. Três professores de Educação Física foram consultados individualmente sobre a sua clareza, e 16 por e-mail, sendo que somente três deles responderam, e todos os alunos da pós-graduação da Educação Física da Universidade de Brasília (UnB) que haviam sido interrogados quanto ao conteúdo também o foram em relação a esse quesito.
Nessa fase, diversas sugestões de melhorias foram apresentadas por parte dos consultados, sendo que quase todas foram acatadas, desde que não elevassem a extensão e complexidade do instrumento a níveis que aumentassem consideravelmente o seu tempo de resposta.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O presente trabalho de pesquisa propõe um instrumento de coleta de informações3 que visa a monitorar e avaliar o ambiente escolar para o ensino da Educação Física curricular nas escolas de ensino fundamental brasileiras, com base nas recomendações de conteúdos pedagógicos constantes nos Parâmetros Curriculares Nacionais da Educação Física (BRASIL, 1997, 1998).
Sugestões de outros conteúdos para além dos PCN foram incorporadas ao trabalho durante o seu processo de validação, na perspectiva de aproximar o instrumento proposto ao contexto escolar e de permitir que eventuais desacordos de ordem técnica e teórica sobre PCN fossem relativizados em benefício de tomar-se em conta a realidade concreta das condições materiais que se buscava aferir, viabilizando discussões críticas e propositivas a esse respeito.
A conveniência e a oportunidade deste trabalho se justificam pela ausência de fontes de dados nas pesquisas e instrumentos de larga escala que permitam a geração de estatísticas básicas sobre infraestrutura escolar para a Educação Física no Brasil.
Como encaminhamentos futuros desta pesquisa, pretende-se aplicar o referido instrumento a uma amostra de escolas, visando primeiramente à sua pré-testagem e às suas validações estatísticas e subsequentemente à geração de dados estatísticos que permitam a aferição de conclusões preliminares sobre a conjuntura das escolas brasileiras para o tema.
Segundo Soares Neto et al. (2013, p. 97), na medida em que ressalta as desigualdades existentes entre as escolas brasileiras, uma escala sobre os seus aspectos físicos e materiais pode sustentar a formulação de políticas orientadas a diminuir essas disparidades:
Assim, fica transparente a necessidade de políticas públicas que visem a diminuir as discrepâncias e promover condições escolares mínimas para que a aprendizagem possa ocorrer em um ambiente escolar mais favorável.
Entende-se que o provimento de dados e informações sistematizadas que permitam classificar uma escola situando-a dentro de uma escala específica dividida por exemplo, entre ambiente de elevado estímulo para a prática de determinados conteúdos, ambiente de relativo estímulo para o ensino e prática de determinados conteúdos e ambiente de baixo estímulo para o ensino de determinados conteúdos, etc. − pode ser relevante para permitir às escolas compararem-se com outras de perfis semelhantes, com o intuito de pensar alternativas de maneira propositiva ou de refletir sobre suas abordagens pedagógicas da Educação Física à luz da infraestrutura e dos equipamentos que possuem.
Desse modo, como se procurou defender ao longo deste artigo, neste momento de redirecionamento das metas da educação e de consequente reexame dos conteúdos ministrados e dos espaços e infraestruturas disponíveis para sua plena consecução, faz-se oportuno o estabelecimento de avaliações como a proposta neste trabalho de pesquisa.
Segundo as Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Fundamental de Nove Anos − Resolução CNE/CEB 7/2010 (BRASIL, 2010b), a elaboração do projeto político-pedagógico escolar traduz a proposta educativa da comunidade escolar e deve levar em conta, entre outros fatores, as características e os recursos disponíveis.
As práticas corporais na escola devem ser reconstruídas com base em sua função social e suas possibilidades materiais (BRASIL, 2016, p. 177). Sob essa perspectiva, as práticas derivadas dos esportes são comumente adaptadas às condições espaciais e aos equipamentos disponíveis. Esse processo de adaptação não deve, entretanto, sobrepor-se ao direito de acesso a certas condições mínimas infraestruturais a serem estabelecidas em regulações específicas do Ministério da
Educação e do Conselho Nacional da Educação (Resolução CNE/CEB 7/2010):
Os sistemas de ensino e as escolas assegurarão adequadas condições de trabalho aos seus profissionais e o provimento de outros insumos, de acordo com os padrões mínimos de qualidade referidos no inciso IX do art. 4º da Lei nº 9.394/96 e em normas específicas estabelecidas pelo Conselho Nacional de Educação, com vistas à criação de um ambiente propício à aprendizagem .... (BRASIL, 2010b, p. 7)
Assim, instrumentos de avaliação como o apresentado nesta pesquisa poderão fornecer informações qualificadas aos tomadores de decisão para o estabelecimento, por exemplo, de metas e padrões mínimos exigíveis em termos materiais, tendo por base a realidade mais acurada da infraestrutura presente, garantindo que estes sejam ao mesmo tempo factíveis para os diferentes padrões de escolas, sem que se desconsiderem as infraestruturas existentes e pouco conhecidas pelos que estão no centro do poder.