1 Introdução
O presente artigo constitui-se em um recorte de um projeto de pesquisa mais amplo financiado pelo CNPq e denominado Corpo, Gênero e Sexualidade na Educação Profissional: cenários epistemológicos e subjetivos (LIMA NETO, 2018).1 O objeto de estudo é o Programa Mulheres Mil (PMM), uma política pública nacional, instituída pela Portaria nº 1.015, de 21 de julho de 2011 (BRASIL, 2011). Seu escopo é a formação profissional de mulheres em situação de vulnerabilidade social, como também a elevação da escolaridade das participantes através da integração da modalidade de Educação de Jovens e Adultos (EJA) ao Ensino Fundamental e/ou Médio. Assumimos como objetivo geral analisar o perfil socioeconômico das candidatas inscritas nos cursos do PMM do Campus Canguaretama do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Norte (IFRN), do ano de 2016 ao de 2019. Como objetivos específicos, propomo-nos conhecer o contexto histórico de formação e consolidação do PMM; compreender a relação entre o PMM enquanto política pública e a EJA no contexto da Educação Profissional; e, por fim, refletir introdutoriamente acerca das relações entre gênero e vulnerabilidade, a partir do perfil das estudantes.
Conhecer o perfil das candidatas ao Programa Mulheres Mil no Campus Canguaretama contribui para a efetividade da política pública, já que os gestores poderão planejar ofertas conforme as demandas do público-alvo. Ao centrar-se justamente sobre tais demandas, este estudo diferencia-se de outras pesquisas sobre o PMM, como veremos posteriormente, contribuindo para um novo olhar sobre o problema em questão. Ademais, a pertinência da contribuição ora apresentada também reside na necessidade de expandir as investigações com recorte de gênero na modalidade da Educação Profissional (EP), ainda escassas, conforme apontam os estados da arte levados a cabo por Lima Neto, Cavalcanti e Gleyse (2018), Souza e Lima Neto (2019) e Santos Junior e Cavalcante (2020).
Estudar uma política pública para a formação profissional das mulheres exigiu-nos, evidentemente, um diálogo, mesmo que propedêutico, com a complexidade das relações de gênero no interior do capitalismo. Entendemos o gênero como “um elemento constitutivo de relações sociais baseadas nas diferenças percebidas entre os sexos” e “uma forma primária de dar significado às relações de poder” (SCOTT, 1995, p. 86). Na sociedade ocidental, particularmente a partir da industrialização do século XIX e com a emergência da família burguesa, designaram-se às mulheres o espaço doméstico e as responsabilidades a ele inerentes, quais sejam, limpeza, preparo da alimentação, criação e educação dos filhos. Segundo Safiotti (1987), esse processo foi profundamente assinalado por uma tentativa de naturalização, numa tentativa de associação entre o corpo feminino, a maternidade e o lar. Na verdade, essa estratégia ideológica servia à “divisão capitalista do trabalho, que encontra uma de suas expressões mais nítidas na organização da família nuclear” (FEDERICI, 2019, p. 77).
Assim, ao historicizar as relações de gênero, não podemos deixar de afirmar que a nossa análise se vincula, ainda, a uma abordagem interseccional. Nessa ótica, as distintas formas de opressão, provenientes das articulações entre gênero e raça, por exemplo, interagem e produzem variados agenciamentos subjetivos e, por isso, múltiplas experiências de vulnerabilidade entre as mulheres (BIROLI, 2018a; HIRATA, 2014). Tal perspectiva está indissociavelmente conectada à discussão em torno da divisão sexual do trabalho enquanto “lócus importante da produção do gênero” (BIROLI, 2018a, p. 23, grifo do autor), nos quais capitalismo e patriarcado se encontram e operam, dispondo as mulheres em diversas posições sociais. Todas elas, porém, são atravessadas pelos trabalhos doméstico e de reprodução não remunerados (FEDERICI, 2019).
Na dimensão metodológica, podemos caracterizar a presente iniciativa enquanto pesquisa descritiva, haja vista que seu objetivo é estudar as características de um grupo. Conforme Gil (2008, p. 28), além de observar, registrar, analisar e correlacionar “fatos ou fenômenos [...] sem manipulá-los”, a pesquisa descritiva “procura descobrir, com precisão possível, a frequência com que um fenômeno ocorre, sua relação e conexão com outros, sua natureza e características”. Além disso, considerando a base empírica, optamos pelo estudo de caso como método de investigação. Esta pesquisa tem como aporte documental as normas legais que norteiam o PMM e os dados coletados no processo de seleção dos cursos no Campus Canguaretama do IFRN.2 A análise socioeconômica gerou dados numéricos, cuja análise se deu com base na abordagem qualitativa. O estudo de caso qualitativo em educação tem como foco a análise situada e em profundidade de um fenômeno, desenvolvida, geralmente, em três fases: exploratória, coleta de dados e análise sistemática de dados. Na fase exploratória faz-se a definição do foco de estudo e/ou unidade de análise. Na segunda etapa, a problemática da pesquisa guia os métodos de coleta de dados. E por último realiza-se análise dos dados pautada nas características específicas da situação estudada e do arcabouço teórico (ANDRÉ, 2013).
Isso posto, indicamos doravante a organização deste artigo. Na primeira seção, apresentamos a EJA enquanto oferta da Educação Profissional e Tecnológica (EPT), correlacionando tal oferta ao PMM. Em seguida, descrevemos o contexto histórico de formação e consolidação do Programa. Posteriormente, realizamos a análise da política pública em questão no contexto institucional do Campus Canguaretama. Por fim, apontamos as considerações finais.
2 Educação de Jovens e Adultos, Educação Profissional e Programa Mulheres Mil: possíveis interseções
A EJA é uma modalidade de ensino destinada àqueles cujo acesso aos estudos ou à sua continuidade na Educação Básica foi negado, na idade própria, conforme o art. 37 da Lei de Diretrizes e Bases (LDB) da Educação Nacional (BRASIL, 1996). A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD)3 aponta que, em 2018, 831 e 833 mil pessoas estavam matriculadas, respectivamente, na EJA do Ensino Fundamental e do Ensino Médio, sendo as mulheres 48,6% e 54,9% desse público, respectivamente. Em relação à faixa etária, no Ensino Fundamental, 48,5% dos estudantes (de ambos os sexos) tinham até 24 anos de idade, 22,5% tinham de 25 a 39 anos e 29%, 40 anos ou mais. No Ensino Médio, para essas mesmas faixas etárias, os números foram respectivamente 52%, 32,3 % e 15,6% (INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA, 2019).
Historicamente, a educação de adultos foi associada pejorativamente às pessoas supostamente portadoras de pouco conhecimento ou inteligência. Na verdade, essa retórica preconceituosa revela as profundas desigualdades sociais brasileiras, atravessadas por clivagens de raça, classe ou origem que, por sua vez, retroalimentam o preconceito dirigido aos sujeitos da EJA. Essa situação, logicamente, confronta-se à educação como direito, conforme promulgou a Constituição Federal há mais de vinte anos (MACHADO, 2016). Não é à toa que, mais recentemente, Machado e Alves (2020, p. 209) se referirão à presença de jovens e adultos no Ensino Médio como “um direito ainda em tese”.
Em 2007, Miguel Arroyo publicou um balanço sobre o público em questão na nona edição do Fórum Mineiro de EJA. A primeira constatação foi a de que os jovens e adultos estão mais demarcados, segregados e estigmatizados (ARROYO, 2007). Encontram-se cada vez mais vulneráveis, ávidos de políticas públicas específicas. São caracterizados pela insegurança, sobrevivendo do trabalho informal, “condenados ao que poderíamos chamar de um estado de permanente vulnerabilidade nas formas viver. Viver significa para eles ter o que comer, ter um salário, ter uns trocados” (ARROYO, 2007, p. 4). Nessa mesma perspectiva, Pereira (2015, p. 2) argumenta ser essa parcela da população composta por “todos aqueles que não lograram êxito na educação básica quando criança e adolescente e, consequentemente, tiveram uma inserção no mundo social e do trabalho fragilizada”.
A vulnerabilidade à qual aludimos anteriormente adquire outros contornos no caso das mulheres. Não obstante as modificações das últimas décadas relativamente às suas vidas, inclusive nos arranjos familiares e padrões da divisão sexual do trabalho, esses dois últimos fatores “continuam a implicar, nas suas formas correntes, maior vulnerabilidade para as mulheres, em especial as mais pobres” (BIROLI, 2018a, p. 34-35). Isso significa, por exemplo, que mesmo tendo mais acesso à educação quando comparadas aos homens, as questões relativas ao trabalho doméstico não remunerado alteram a disponibilidade de tempo e de energia das mulheres.
Essa realidade incide sobre sua escolarização e vida profissional, conforme aponta Biroli (2018a), referendando-se em dados estatísticos do Retrato das Desigualdades de Gênero e Raça, produzido pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (2014). Nota-se, nesse contexto, a importância da EJA articulada à formação do trabalhador, notadamente para as mulheres. Quando a modalidade é integrada à Educação Profissional, possibilita a inclusão no mundo do trabalho de um público excluído dos bancos escolares, frequentemente exposto a uma vida precária.
A capacitação dos sujeitos da EJA para o trabalho, contudo, está relacionada a uma demanda do neoliberalismo, como veremos a seguir. Desde a década de 1990, organismos internacionais como o Banco Mundial (BIRD), o Fundo Monetário Internacional (FMI), a Organização Mundial do Comércio (OMC) e a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) propõem a adoção de políticas neoliberais na educação, capazes de atender às necessidades do mercado. Essas organizações agiram de modo difuso com outros agentes, e apesar disso, diziam-se (e dizem-se!) agir por “vias técnicas” (devido às “avaliações” e “comparações” por elas empreendidas), apresentando-se não raro como portadoras das “melhores intenções ‘éticas’” (LAVAL, 2019, p. 19, grifo do autor).
O neoliberalismo impõe às instituições educativas os princípios e métodos da administração da empresa capitalista (PARO, 1999). Todavia, educação escolar e capitalismo são campos com objetivos antagônicos. O sistema capitalista visa à eficiência, o controle do trabalho alheio, assim como a dominação do trabalhador para a produção de bens. Transforma, dessa maneira, o trabalho em um fim em si mesmo - isto é, o sujeito trabalha apenas para viver.
Já a escola, sobretudo na Educação Profissional, tem por objetivo a formação humana integral dos cidadãos, comprometida com o amplo desenvolvimento das suas capacidades físicas e intelectuais (FRIGOTTO; ARAÚJO, 2015). Essa instituição participa da divisão social do trabalho, sendo o local de mediação no qual o homem se apropria da herança cultural, ou seja, do “saber” historicamente produzido. Conforme Paro (1999), para dar conta de todo esse “saber”, a escola priorizaria o que é mais relevante para a formação dos indivíduos. Na prática, porém, observa-se a preparação voltada quase unicamente para o mercado, desprezando a função social de qualificar os sujeitos para perceber a alienação do próprio trabalho (PARO, 1999).
Nessa ambiência, é importante notar que a aprovação da LDB está vinculada ao ideário neoliberal. De acordo com Machado (2016), após 20 anos de promulgação dessa legislação, a EJA teve presença constante na agenda educacional brasileira. Houve a implementação de políticas educacionais de inclusão que integraram as modalidades de EJA e EP, como: Programa Nacional de Inclusão de Jovens - PROJOVEM (BRASIL, 2005),4 Programa Nacional de Integração da Educação Profissional com a Educação básica na modalidade de Educação de Jovens e Adultos - PROEJA (BRASIL, 2006)5 e Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego - PRONATEC (BRASIL, 2011a).6
Segundo Oliveira e Scopel (2016), essa nova configuração, fruto de lutas dos militantes da EJA, foi determinante para uma compreensão distinta acerca da modalidade. Alterou-se a ideia que a associava tão somente à alfabetização, circunscrevendo-a, além disso, ao contexto do Ensino Fundamental. Emergia, assim, “a possibilidade de oferta nacional da modalidade no ensino médio de forma integrada à educação profissional, o que contribuiu para ampliar o conceito da EJA” (OLIVEIRA; SCOPEL, 2016, p. 14).
Nesse contexto, nos anos de 2006 a 2014, Machado (2018) observou um aumento de 110% no número de matrículas de jovens e adultos na educação profissional de nível médio (alunos com 25 anos ou mais). Apesar do significativo crescimento, essa autora adverte que a EJA socialmente “ainda é vista como uma forma aligeirada e compensatória de escolarização, não apenas pelos políticos, gestores, mas ainda por educadores e educandos” (MACHADO, 2018, p. 11).
Apesar do aumento das oportunidades educacionais para as camadas desfavorecidas, para Ramos (2015), a integração das modalidades não garante a socialização do conhecimento, tampouco o acesso aos níveis mais elevados de ensino. Inversamente,
[...] a democratização da oferta de educação profissional tem se materializado em planos de governo que, ao democratizarem o acesso de jovens e adultos das camadas desfavorecidas à formação profissional, o fazem por meio de oportunidades fragmentadas e precárias, desarticulada com a formação geral de nível básico ou articulada precariamente. (RAMOS, 2015, p. 11).
Sabe-se que, no espectro das ofertas da EP, aquela mais acessível é a qualificação profissional, composta por diversos cursos cujo escopo é preparar o indivíduo para uma profissão, sem, todavia, aumentar seu nível de escolaridade. Não há uma legislação específica que regulamente tais cursos, no entanto, como parte do PRONATEC, o Ministério da Educação organizou uma lista de Cursos de Formação Inicial e Continuada (FIC), estabelecendo a carga horária e a escolaridade mínima exigida. De acordo com Ramos (2015, p. 9),
Os cursos de FIC devem ter, no mínimo, 160h e caracterizam-se pela ausência de diálogo com a educação básica, pela formação aligeirada com certificação parcial dentro de uma área do conhecimento, pelo ensino de saberes que, de modo geral, poderiam ser apreendidos no próprio processo de trabalho, pela formação sem aprofundamento teórico para o trabalho simples e pela baixa escolaridade como pré-requisito.
Realizamos essa caracterização ampla acerca da EJA na EP a fim de podermos reportamo-nos mais apropriadamente ao objeto deste estudo. O PMM também possui, segundo assinalamos precedentemente, um viés neoliberal. Consoante Mantovani (2015), políticas como o Programa Mulheres Mil, voltadas para a educação profissional, objetivam a inserção dos sujeitos no mercado de trabalho e no consumo. De acordo com essa autora,
Além de inseri-los no consumo, entende-se a educação como uma forma de evitar que estes indivíduos se tornem um problema social para o Estado. Essa produtividade necessária, que pretende ser realizada por meio da educação profissional, pretende retirar estes excluídos da tutela do Estado tornando-os minimamente produtivos, a fim de controlar a miséria extrema. (MANTOVANI, 2015, p. 54).
Nessa perspectiva, Trindade (2017) confirma a inserção do PMM no ideário neoliberal. Nele, as beneficiárias devem buscar sua própria formação e sustento, sendo o programa uma estratégia de “economização do social” ou de “empreendedorismo”, cujos efeitos seriam a diminuição da vulnerabilidade experimentada pelas mulheres através da melhoria material. A proposta também contribuiria para o “desenvolvimento econômico do país”. Essa tática, destarte, “vai ao encontro dos pressupostos neoliberais, para a reprodução do capital, sob a forma de cursos de capacitação para o aperfeiçoamento do capital humano e geração de renda” (TRINDADE, 2017, p. 95).
Tal posicionamento é corroborado por numerosos autores, como Federici (2019) e Laval (2019), ao argumentarem que, desde as décadas de 1960 e 1970, a reestruturação do capital provocou o nascimento de uma nova ideologia. Os trabalhadores passam a ser vistos, doravante, como microempresários, autônomos, responsáveis por seu autoinvestimento. Todavia, essa mercantilização de todas as dimensões da vida apresenta limites ao próprio capitalismo, haja vista que ele tem necessidade, para sobreviver, de zonas não monetarizadas, tais como o trabalho doméstico não remunerado exercido pelas mulheres (FEDERICI, 2019).
A EJA é formada por sujeitos inseridos de forma precária no mundo laboral, geralmente sobrevivendo da informalidade. No caso das mulheres, soma-se a essa realidade o serviço não pago realizado em casa e as relações de poder próprias do patriarcado, criando o que Biroli (2018a) chamou de “vulnerabilidades relativas”, as quais variam segundo marcadores sociais específicos, elencados anteriormente. Nesse cenário, o PMM surge como uma possibilidade de integração entre a EJA e a Educação Profissional, já que acolhe sujeitos jovens e adultos visando à qualificação profissional básica, por meio dos cursos FIC. Desde suas origens o Programa tem por finalidade a inserção no mundo do trabalho, como veremos a seguir.
3 O contexto histórico de formação do Programa Mulheres Mil
A formação e consolidação do PMM se deu em três momentos. Tem-se primeiramente o projeto-piloto Avaliação e Reconhecimento de Aprendizagem Prévia (ARAP), considerado o embrião do programa e fruto da cooperação internacional entre Brasil e Canadá. Com o sucesso dessa iniciativa, houve a criação do Projeto Mulheres Mil, implementado em 13 estados das regiões Nordeste e Norte. Posteriormente, foi efetuada a transformação do projeto em política pública nacional, denominado de Programa Nacional Mulheres Mil.
O projeto-piloto ARAP foi executado nos anos de 2005 e 2006 em cinco Centros Federais de Educação Tecnológica - CEFET (BRASIL, 2008)7 do Nordeste e Norte do Brasil, através da cooperação com o Niagara College, instituição canadense. A implementação ocorreu na cidade de Natal/RN, na área de turismo, com o apoio dos CEFET de Salvador, Manaus, Belém e Fortaleza. Os resultados positivos do projeto-piloto renderam a expansão da iniciativa para 13 estados.
De 2007 a 2011, instituiu-se o Projeto Mulheres Mil, cujo objetivo principal consistiu em “promover a inclusão social e econômica de mulheres desfavorecidas no Nordeste e Norte do Brasil, permitindo-lhes melhorar o seu potencial de mão de obra, suas vidas e as vidas de suas famílias e comunidades” (MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO, 2007, p. 1). A empreitada manteve a cooperação entre Canadá e Brasil, representados nacionalmente pela Associação das Faculdades Comunitárias Canadenses (ACCC) e pela Secretaria de Educação Profissional e Tecnológica do Ministério da Educação (SETEC/MEC), respectivamente. Regionalmente, no Brasil, a representação se deu pela Rede Norte e Nordeste de Educação Tecnológica (REDENET) e, em âmbito institucional, pelos CEFET do Nordeste e Norte.
O Projeto foi estruturado fundamentando-se em políticas públicas articuladoras de temáticas como promoção de gênero, equidade e diversidade étnica. Para elaboração da proposta, também foram consideradas as prioridades do Plano Plurianual de 2004-2007 (BRASIL, 2004), lançado no segundo ano do governo de Luís Inácio Lula da Silva. Um dos objetivos desse planejamento era a inclusão social e redução das desigualdades, nas quais incluem-se as relativas à etnia/raça e ao gênero.
Na organização do Programa, foram igualmente levadas em conta as Metas de Desenvolvimento do Milênio da Organização das Nações Unidas (2000), tais como: inclusão e redução das desigualdades sociais; crescimento econômico ambientalmente sustentável, enfatizando o emprego e a geração de renda e reduzindo as desigualdades regionais; e promoção e expansão da “cidadania”, além do fortalecimento da democracia. Em 21 de julho de 2011, com a Portaria nº 1.015, o Projeto tornou-se uma política pública nacional (BRASIL, 2011) associada às ações do Plano Brasil Sem Miséria (BRASIL, 2011b),8 ao Plano Plurianual 2012-2015 e ao III Plano Nacional de Políticas para Mulheres (BRASIL, 2014).
Face a essas variadas contribuições, o Programa Mulheres Mil estruturou-se em três eixos - Educação, Cidadania e Desenvolvimento Sustentável -, visando à formação profissional e tecnológica de mulheres em situação de vulnerabilidade social (BRASIL, 2011c). Para alcançar tal objetivo, pautou-se nas seguintes diretrizes: possibilitar o acesso à educação; contribuir para a redução de desigualdades sociais e econômicas de mulheres; promover a inclusão social; defender a igualdade de gênero; e combater a violência contra a mulher.
A formação profissional e tecnológica poderia ser ofertada nas modalidades de Formação Inicial e Continuada (FIC), com carga horária mínima de 160 horas, e de Educação Profissional Técnica de Nível Médio, obedecendo à legislação desse nível de ensino. Isso porque o PMM também intencionava elevar a escolaridade de seu público. Para tanto, os cursos e projetos poderiam ser articulados aos Ensinos Fundamental e/ou Médio, de forma integrada ou concomitante. Independentemente da modalidade ofertada, importava considerar sempre as características das mulheres atendidas, a fim de promover o acesso à educação, à equidade e à igualdade de gênero, e o combate à violência contra a mulher.
No decorrer do processo de formação e consolidação do PMM, houve mudanças na metodologia, como também na concepção do público-alvo. No primeiro momento, isto é, no projeto-piloto, as mulheres atendidas foram caracterizadas como “marginalizadas”, ao passo que no segundo momento - a saber, no Projeto -, foram descritas como “desfavorecidas”. Quando da transformação em política pública nacional, amplia-se a abrangência dessas adjetivações, com o emprego da terminologia “em situação de vulnerabilidade social”. Trata-se de mulheres com idade
[...] a partir de 16 anos, chefes de família, em situação de extrema pobreza, cadastradas ou em processo de cadastramento no CadÚnico, com as seguintes características: em vulnerabilidade e risco social, vítimas de violência física, psicológica, sexual, patrimonial e moral, com escolaridade baixa ou defasada […] (BRASIL, 2014, p. 6).
A mudança terminológica demonstra o reconhecimento de múltiplos fatores, não necessariamente condicionados à ausência ou precariedade no acesso à renda, que afetam o pleno exercício da cidadania das mulheres. A partir de então, tem-se clareza sobre a existência de aspectos relacionados também às fragilidades de vínculos afetivos e relacionais, bem como à desigualdade de acesso a bens e serviços públicos (CARMO; GUIZARDI, 2018), posição próxima àquela sustentada por Biroli (2018a) ao se referir às “vulnerabilidades relativas”. Ou seja, não obstante as distinções nas formas de caracterização, nos três momentos o foco está na inserção de mulheres de alguma forma excluídas e/ou marginalizadas, tanto por questões econômicas - o que nos aponta uma ligação mais forte com as categorias de classe ou renda - quanto sociais - evidenciando cruzamentos com um recorte etnicorracial, por exemplo.
4 O Programa Mulheres Mil no Campus Canguaretama do IFRN: Contextualização do Programa
O Campus Canguaretama foi inaugurado em 2013 como parte da terceira fase de expansão da Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica - RFEPCT (BRASIL, 2013). A unidade se localiza no município de Canguaretama, o 16º mais populoso do estado do Rio Grande do Norte, distante 65 quilômetros da capital. Com 30.916 habitantes, possui uma área de 245,529 km², com uma taxa de urbanização de 65,45% (INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA, 2010).
O Programa Mulheres Mil foi implementado no Campus em 2015, conforme o Edital nº 06/2015 (INSTITUTO FEDERAL DE EDUCAÇÃO, CIÊNCIA E TECNOLOGIA DO RIO GRANDE DO NORTE, 2015), publicado conjuntamente pela Pró-reitoria de Extensão (PROEX) e pela Diretoria de Gestão das Atividades Estudantis (DIGAE). Em nossa pesquisa, tivemos acesso aos questionários socioeconômicos dos anos de 2016 a 2019, um dos instrumentos de seleção do programa, por meio da PROEX. Tais dados permitiram conhecer os sujeitos de uma política pública cuja meta é capacitar profissionalmente mulheres em situação de vulnerabilidade social.
Nos quatro anos de oferta do PMM no Campus Canguaretama foram ofertados, respectivamente, os seguintes cursos: Agricultura Familiar, Reciclador e Operadora de Computador, que tiveram respectivamente 49, 39 e 175 inscrições.9 As aulas aconteciam três vezes por semana nas dependências do campus e as participantes possuíam o direito à Bolsa Formação do Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego - PRONATEC (BRASIL, 2011a).10 De acordo com o Guia Metodológico (BRASIL, 2012), as capacitações devem refletir o perfil econômico da região, uma forma de facilitar a futura inserção no mundo do trabalho. A inserção profissional não se restringe ao trabalho formal, mas poderá ser realizada através do empreendedorismo social, da economia solidária e/ou cooperativismo.
Conforme pontuaram Azevedo, Alves e Maia (2019), como desdobramento do curso de Agricultura Familiar, foi proposto um sistema de Incubadora de Tecnologias de Produção dentro do Campus, o qual gerou a realização de feiras com produtos originados da horta e do artesanato local na própria instituição. Posteriormente, com a parceria da Prefeitura Municipal, foram adquiridas barracas de feira e uma faixa sinalizadora. Além dessa iniciativa, a capacitação promoveu a possibilidade de inserção no Programa de Aquisição de Alimentos - PAA (BRASIL, 2003)11 e no Programa Nacional de Alimentação Escolar - PNAE (BRASIL, 2009).12
Na próxima seção, deter-nos-emos na apresentação do perfil das candidatas matriculadas, bem como numa análise crítica dos dados construídos.
4.2 Perfil socioeconômico e educativo das candidatas
O objetivo da pesquisa foi identificar o perfil socioeconômico e educativo das candidatas inscritas nos cursos do Programa Mulheres Mil do Campus Canguaretama. O processo seletivo em si e os critérios de seleção, em certa medida, delineiam o perfil das candidatas, inserindo-as no contexto de “vulnerabilidade” relativa ao qual aludimos anteriormente.
Sobre a seleção, o edital de 2016 indica que ela se dará por meio de avaliação socioeconômica, “atendendo prioritariamente, mas não nesta ordem, mulheres com menor grau de escolaridade, oriundas da rede pública de educação básica, únicas ou principais mantenedoras de sua família ou com renda familiar per capita de até 1,5 salários-mínimos” (INSTITUTO FEDERAL DE EDUCAÇÃO, CIÊNCIA E TECNOLOGIA DO RIO GRANDE DO NORTE, 2016, p. 3). É perceptível a importância da avaliação socioeconômica, realizada por meio do questionário, preenchido no ato de inscrição. Com base nesse documento legal, é possível conhecer os sujeitos atendidos no PMM, assim como reconhecer as conexões de alguns aspectos de suas vidas com o espectro social brasileiro.
Com relação à faixa etária, no ano de 2016, 42,8% das inscrições foram de jovens entre 15 a 19 anos. Nos demais anos há um equilíbrio nas inscrições de candidatas entre 20 e 39 anos de idade (Tabela 1). Salientamos que a idade mínima para participar do curso de Agricultura Familiar era 16 anos, e nos demais cursos foi aumentada para 18 anos. Apenas uma minoria tem mais de 45 anos, reforçando a característica da juvenilização do público da EJA, como apontam as pesquisas sobre a área (MACHADO, ALVES, 2020).
Idade | 2016 | 2017 | 2018 | 2019 | ||||
---|---|---|---|---|---|---|---|---|
Nº | % | Nº | % | Nº | % | Nº | % | |
15 a 19 anos | 21 | 42,8 | 5 | 12,8 | 8 | 10,5 | 7 | 7 |
20 a 24 anos | 6 | 12,2 | 8 | 20,5 | 17 | 22,3 | 25 | 25,5 |
25 a 29 anos | 5 | 10,2 | 8 | 20,5 | 14 | 18,4 | 21 | 21,2 |
30 a 34 anos | 9 | 18,3 | 8 | 20,5 | 12 | 15,7 | 18 | 18,1 |
35 a 39 anos | 2 | 4 | 4 | 10,2 | 13 | 17,1 | 12 | 12,1 |
40 a 44 anos | 3 | 6,1 | 1 | 2,5 | 7 | 9,2 | 9 | 9 |
45 a 49 anos | 1 | 2 | 2 | 5,1 | 3 | 3,9 | 2 | 2 |
50 a 54 anos | 2 | 4 | 1 | 2,5 | 2 | 2,6 | 3 | 3 |
55 a 59 anos | 0 | 0 | 1 | 2,5 | 0 | 0 | 2 | 2 |
60 anos ou mais | 0 | 0 | 1 | 2,5 | 0 | 0 | 0 | 0 |
Total | 49 | 100 | 39 | 100 | 76 | 100 | 99 | 100 |
Fonte: Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Norte (2019).
Quanto à escolaridade (Tabela 2), os editais elencam como critério o Ensino Fundamental incompleto. A análise dos questionários demonstra que, para o curso de Agricultura Familiar, a maioria das inscritas (79,5%) havia concluído o Ensino Médio. No curso de Recicladora, observa-se a predominância de candidatas com o mínimo da escolaridade exigida (56,4%).
Já no curso de Operadora de Computador, no ano de 2018, há quase uma similaridade entre as que possuem Ensino Fundamental (51,2%) e as portadoras do diploma do Ensino Médio (47,3%). Em 2019, 70,6% das candidatas já haviam finalizado ou estavam cursando a última etapa da Educação Básica. Apesar de os cursos serem voltados para mulheres com menor grau de escolaridade, observa-se, de todo modo, a presença de inscritas com o Ensino Superior completo.
Esse dado revela que não obstante o acesso das mulheres ao Ensino Superior - e, por conseguinte, a continuidade de sua escolarização - reflita décadas de lutas do movimento feminista e seja, indiscutivelmente, uma vitória, ele não garante o acesso e permanência no mercado de trabalho, e tampouco interfere diretamente nos estereótipos de gênero associados às profissões (SANTOS JÚNIOR; CAVALCANTE, 2020). Malgrado sejam portadoras de diploma de nível superior, algumas mulheres se matricularam no PMM do Campus Canguaretama por motivos que, certamente, exigem outra investigação.
Escolaridade | 2016 | 2017 | 2018 | 2019 | ||||
---|---|---|---|---|---|---|---|---|
Nº | % | Nº | % | Nº | % | Nº | % | |
Fundamental incompleto | 6 | 12,2 | 22 | 56,4 | 29 | 38,1 | 21 | 21,2 |
Fundamental completo | 3 | 6,1 | 6 | 15,3 | 10 | 13,1 | 4 | 4 |
Ensino Médio incompleto | 20 | 40,8 | 6 | 15,3 | 13 | 17,1 | 13 | 13,1 |
Ensino Médio completo | 19 | 38,7 | 5 | 12,8 | 23 | 30,2 | 57 | 57,5 |
Ensino Superior incompleto | 0 | 0 | 0 | 0 | 0 | 0 | 1 | 1 |
Ensino Superior completo | 1 | 2 | 0 | 0 | 1 | 1,3 | 3 | 3 |
Total | 49 | 100 | 39 | 100 | 76 | 100 | 99 | 100 |
Fonte: Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Norte (2019).
Ao somarmos os dados referentes aos Ensinos Fundamental e Médio incompletos, verificamos que 53%, 71,1%, 55,2% e 34,3% (referentes respectivamente aos anos de 2016, 2017, 2018 e 2019) são de mulheres cuja trajetória na Educação Básica foi interrompida. Estamos diante, portanto, do público-alvo da modalidade EJA. Em 2018, a PNAD constatou que mais da metade dos jovens e adultos acima de 25 anos de idade (52,6%) não concluíram a educação escolar básica, sendo o Nordeste a região na qual esse dado atinge o maior índice no país: 61,1% (INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA, 2019).
As informações concernentes ao estado civil (Tabela 3) devem ser comparadas às da faixa etária. Dessa forma, explica-se o fato de 53% das inscritas na seleção de 2016 serem solteiras e sem filhos, por se tratarem de jovens entre 15 e 19 anos (Tabela 1). “Além de terem menos filhos, as mulheres tornam-se mães mais tarde”, diz Biroli (2018b, p. 108). Progressivamente, houve um aumento da população economicamente ativa (PEA) feminina nas últimas décadas do século XX (BRUSCHINI; LOMBARDI, 2002). Essa estatística está em consonância com um movimento que se iniciou há aproximadamente cinquenta anos, com o acesso a anticoncepcionais e ao mercado de trabalho. Em 2014, a PEA feminina ultrapassou a marca de 40% (INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA, 2015). Nesse contexto, continua Biroli (2018b, p. 108), “em 2015, as faixas etárias de 20 a 24 e 25 a 29 passaram a ter o mesmo peso, com 25,4% e 24,45% respectivamente, e cresceu o percentual dos bebês nascidos de mulheres entre 30 e 39 anos”.
Somando o número de solteiras e comparando com a soma das que estavam em um relacionamento (casamento/união estável), notamos que, nos anos de 2016 e 2019, mais de 65% das candidatas eram solteiras. Já em 2017 e em 2018, 53,6% e 48,5%, respectivamente, estavam em um relacionamento. Aparentemente, o estado civil não interferiria na busca de qualificação profissional, no entanto, sabe-se que os principais motivos alegados para a interrupção dos estudos foram o casamento e os filhos, fazendo com que a maternidade se torne fator de vulnerabilidade para as mulheres (BIROLI, 2018b).
Situação | 2016 | 2017 | 2018 | 2019 | ||||
---|---|---|---|---|---|---|---|---|
Nº | % | Nº | % | Nº | % | Nº | % | |
Solteira sem filhos | 26 | 53 | 2 | 5,1 | 13 | 17,1 | 20 | 20,2 |
Solteira com filhos | 6 | 12,2 | 14 | 35,8 | 23 | 30,2 | 46 | 46,4 |
Casada sem filhos | 1 | 2,1 | 2 | 5,1 | 2 | 2,6 | 2 | 2 |
Casada com filhos | 7 | 14,2 | 6 | 15,3 | 17 | 22,3 | 16 | 16,1 |
União estável sem filhos | 2 | 4 | 1 | 2,5 | 3 | 3,9 | 3 | 3 |
União estável com filhos | 6 | 12,1 | 12 | 30,7 | 15 | 19,7 | 10 | 10,1 |
Separada/Divorciada | 1 | 2,1 | 2 | 5,1 | 3 | 3,9 | 1 | 1 |
Viúva | 0 | 0 | 0 | 0 | 0 | 0 | 1 | 1 |
Total | 49 | 100 | 39 | 100 | 76 | 100 | 99 | 100 |
Fonte: Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Norte (2019).
Na presente investigação, o casamento e a maternidade foram as principais razões para interromper o percurso escolar. Não podemos esquecer que, nesse âmbito, o matrimônio é uma instituição diretamente atuante na manutenção da divisão sexual do trabalho. O cuidado feminino com os filhos e com o lar permite aos homens casados o ingresso no trabalho remunerado. Ademais, ao contrário do que acontece em outras experiências laborais, as atividades desempenhadas pelas mulheres não podem ser assumidas por máquinas. Nessa direção, pergunta-se Federici (2021, p. 112):
Como podemos mecanizar as tarefas de banhar, acariciar, consolar, vestir e alimentar uma criança, prestar serviços sexuais ou ajudar aquelas pessoas enfermas ou idosas que não são autossuficientes? Qual máquina poderia incorporar as habilidades e os afetos necessários para essas tarefas? [...] Anda que pudéssemos pagar por esses dispositivos, devemos nos perguntar a que custo emocional os introduziríamos em casa para substituir o trabalho vivo.
O labor reprodutivo, destarte, continua desmonetarizado, embora constitua a maior parte do trabalho no mundo. Essa realidade nos remete à exigência de politizar as relações familiares e a esfera doméstica, situando tais dimensões no bojo da história e não da natureza (BIROLI, 2018b). Conforme o PNAD, entre as motivações para não prosseguir os estudos ou a qualificação, 27,9 % das mulheres alegaram o trabalho ou a procura por ele enquanto causa fundamental, seguido da necessidade de realizar afazeres domésticos e cuidado de pessoas, com 23,3% de respostas (INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA, 2019).
Outros estudos demonstraram justificativas similares. Elas nos exigem lembrar que “entre as camadas mais pobres da população, a maternidade não costuma ser uma atividade em tempo integral e, quando o é, traz as marcas do desemprego e da precariedade” (BIROLI, 2018b, p. 107). As autoras Narvaz, Sant’Anna e Tesseler (2013), por exemplo, entrevistaram 100 estudantes da EJA do município de Alegrete/RS e constataram serem as responsabilidades familiares advindas do casamento e da maternidade uma das razões cruciais da evasão feminina.
Ao analisar as relações entre a EJA e o processo de construção da autonomia das mulheres no Campus Teresina Zona Sul do Instituto Federal do Piauí, Leal (2018) concluiu estarem diretamente relacionadas às questões de gênero as motivações para as mulheres abandonarem a escola. Nesse contexto, esse estudo apontou fatores como a falta de apoio do marido, dos(as) filhos (as) e dos(as) patrões/patroas, bem como a violência física e psicológica.
No cenário do PMM, se em um primeiro momento a maternidade é um determinante para a interrupção dos estudos, numa segunda fase, ao longo da vida, as mulheres que têm a oportunidade retornam aos bancos escolares. Em 2017, mais de 80% das candidatas possuíam filhos e em 2018 e 2019, mais de 70% (Tabela 3). Normalmente, nas camadas economicamente mais desfavorecidas e na ausência de equipamentos públicos como creches, esse fenômeno se deve a relações de solidariedade que podem ou não ser monetarizadas, isto é, outras mulheres cuidam das crianças enquanto as mães se escolarizam (BIROLI, 2018b).
Conforme o processo seletivo do PMM no Campus Canguaretama, são atendidas prioritariamente mulheres com renda familiar per capita de até 1,5 salários-mínimos. Nas seleções de 2016 e 2017, mais da metade das inscritas - 61,2% e 51,2%, respectivamente - possuíam renda familiar de até 1 salário-mínimo. Nos anos seguintes, 2018 e 2019, a demanda foi formada por mulheres com renda familiar igual ou inferior a 1/2 salário-mínimo (Tabela 4). Essa renda sugere a existência de famílias numerosas, nas quais poucos integrantes contribuem no rendimento. Os números confirmam também os dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (2010), segundo os quais 50,7% da população do município de Canguaretama vivem com rendimento nominal mensal per capita de até 1/2 salário-mínimo.
Quantidade (salário-mínimo) | 2016 | 2017 | 2018 | 2019 | ||||
---|---|---|---|---|---|---|---|---|
Nº | % | Nº | % | Nº | % | Nº | % | |
Até 1/2 (meio) | 19 | 38,7 | 18 | 46,1 | 41 | 53,9 | 62 | 62,6 |
Até 01 (um) | 30 | 61,2 | 20 | 51,2 | 33 | 43,4 | 35 | 35,3 |
Até 02 (dois) | 0 | 0 | 1 | 2,5 | 1 | 1,3 | 2 | 2 |
Até 03 (três) ou mais | 0 | 0 | 0 | 0 | 1 | 1,3 | 0 | 0 |
Total | 49 | 100 | 39 | 100 | 76 | 100 | 99 | 100 |
Fonte: Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Norte (2019).
No âmbito do rendimento, faz-se mister salientar que, em 2014, o Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS) e o Ministério da Educação (MEC) integraram o PMM ao Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego no âmbito do Plano Brasil Sem Miséria (PRONATEC/BSM). Esse fato ampliou a oferta de qualificação profissional às mulheres mais pobres, em especial às beneficiárias do Programa Bolsa Família (BRASIL, 2014). Os dados demonstraram que mais de 70% das candidatas inscritas em todos os processos seletivos analisados receberam algum tipo de benefício social, sendo predominantes as beneficiárias do Bolsa Família, cuja renda familiar era composta tão somente pelo valor concedido por esse programa.
Os resultados anteriormente apresentados são compatíveis com outras pesquisas recentes no âmbito da RFEPCT. Mesmo tendo objetivos diversos, tais estudos apresentaram dados igualmente pertinentes sobre o perfil socioeconômico das mulheres em suas relações com a vulnerabilidade, remetendo-nos a uma certa “feminização da pobreza” (GOREN, 2013) ou a um “matriarcado da miséria” (CARNEIRO, 2011).
Ferreira (2017), por exemplo, estudou o processo de escolarização de 11 mulheres na Educação Profissional no Campus Vitória do Instituto Federal do Espírito Santo. O grupo era formado por egressas do PMM que deram continuidade à formação no PROEJA. Suas idades situavam-se entre 26 e 55 anos, e suas rendas mensais variavam de 2 a 4 salários-mínimos. Entre os desafios para retornar à escola, as mulheres alegaram a falta de base para acompanhar as aulas, o cansaço físico e a dificuldade em conciliar o trabalho doméstico e de cuidados, assim como outros trabalhos (remunerado e informal), com o ritmo de estudo. Além disso, duas entrevistadas disseram terem sido “induzidas a não mais frequentar o curso devido à forte oposição dos maridos” (FERREIRA, 2017, p. 139).
Heckler (2017) relacionou a EJA e o PMM no Campus Sapiranga do Instituto Federal Sul-rio-grandense. O estudo desvelou uma variação na faixa etária das estudantes - dos 16 aos 71 anos -, sendo a média de idade de 38,3 anos. Com relação à trajetória escolar, tratava-se de mulheres com a escolaridade entre o 2º ano do Ensino Fundamental e o Ensino Superior incompleto. Essa autora observou, ademais, que as participantes apresentavam em comum o fato de estarem fora do espaço escolar e da educação formal por diversos motivos, mas notadamente devido ao trabalho, ao casamento e à gravidez precoce.
Já Trindade (2017) analisou um questionário aplicado a 100 mulheres selecionadas para participar do PMM no Campus São Borja do Instituto Federal Farroupilha. O estudo constatou que a maior parte (35%) possuía entre 30 e 40 anos, seguida das mulheres com idade entre 40 e 50 anos (29%), as com mais de 50 anos (20%) e o grupo mais jovem, entre 18 e 30 anos, em menor número (16%). Em relação ao estado civil, 67% possuíam um relacionamento estável - 47% eram casadas e 20% com união estável -, 15% eram solteiras, 13%, separadas/divorciadas e 5% eram viúvas. Em relação à maternidade, 93% eram mães.
Os dados concernentes à escolaridade demonstraram a existência de 84% fora das salas de aula, tendo 38% delas abandonado o Ensino Fundamental e 33% concluído essa etapa. O Ensino Médio foi inconcluso por 24% dos sujeitos, e outros 5% completaram-no. Sobre a renda familiar mensal, a investigação constatou que 63% das mulheres viviam com menos de um salário-mínimo, 29% com um e 8% com dois. Os baixos rendimentos mensais justificam, como diz Trindade (2017), o elevado número de beneficiárias de programas sociais (85%), como o Bolsa Família.
Rocha (2017), por sua vez, entrevistou 15 egressas do programa nos Campi Caicó, Currais Novos e Santa Cruz do Instituto Federal do Rio Grande do Norte. As mulheres encontravam-se na faixa etária entre 20 e 60 anos de idade. Quanto ao estado civil, 6 eram solteiras, 7 casadas, 1 em união estável e 1 viúva. Relativamente ao rendimento, 3 viviam com renda inferior a um salário-mínimo, 8 com até dois e 4 com entre dois a quatro salários-mínimos.
Santos e Oliveira (2019), por fim, estudaram o Programa no Campus Lagarto do Instituto Federal de Sergipe. Com uso de dois questionários institucionais, esses autores analisaram respostas das 25 egressas do curso de Auxiliar de Arquivo. O grupo era formado por mulheres de faixa etária diversificada, sendo a maioria entre 25 e 39 anos de idade. Destas, 11 eram solteiras e 15 tinham filhos. Com relação ao rendimento familiar, 17 viviam com renda entre meio e um salário-mínimo e 4 afirmaram viver com menos de meio salário-mínimo. Aquelas cujos estudos foram interrompidos apontaram como principais razões o casamento e/ou filhos.
É perceptível que uma parte das pesquisas analisa o PMM através de entrevistas e questionários de egressas (FERREIRA, 2017; ROCHA, 2017; SANTOS, OLIVEIRA, 2019), e a outra parcela investiga as participantes com o curso em andamento (HECKLER, 2017; TRINDADE, 2017). Cada estudo representa as especificidades do Programa em âmbito regional e local. Dentre as similaridades com a presente pesquisa, destacamos a presença marcante das implicações da divisão sexual do trabalho nas escolhas das mulheres.
Observou-se que o casamento e a maternidade foram fatores decisivos na trajetória escolar. A “naturalização” do papel da mulher como responsável pela casa e pelos filhos dificulta, ou até impede, a continuidade dos estudos das mulheres em situação de vulnerabilidade. Consequentemente, dificulta-se a inserção no mercado de trabalho. Daí a importância de políticas públicas como o PMM, apesar das limitações impostas pelo caráter neoliberal.
5 Considerações finais
O Programa Mulheres Mil foi concebido após duas experiências exitosas, o Projeto-piloto ARAP (2005-2006) e o Projeto Mulheres Mil (2007-2011). Com um viés neoliberal, trata-se de uma política pública focalizada, que atende mulheres em situação de vulnerabilidade social, e visa à inserção no mercado de trabalho e no consumo. Com a capacitação profissional, as mulheres tornam-se responsáveis por gerenciar seu trabalho e sua renda, desresponsabilizando o Estado (MANTOVANI, 2015; TRINDADE, 2017).
Além da capacitação profissional, o Programa, por meio de convênios e parcerias com instituições estaduais e municipais, pode promover a elevação da escolaridade ao integrar o Ensino Fundamental e Médio à Educação de Jovens e Adultos. Os sujeitos da EJA possuem perfil socioeconômico delineado, marcado pela participação precária no mundo do trabalho (ARROYO, 2007). Por atender “grupos de mulheres que foram excluídas e marginalizadas do processo educacional” (INSTITUTO FEDERAL DE EDUCAÇÃO, CIÊNCIA E TECNOLOGIA DO RIO GRANDE DO NORTE, 2016, p. 1) e capacitar para o trabalho mulheres jovens e adultas, consideramos, em nossa análise, que o PMM atende o público-alvo da EJA.
Com o intuito de conhecer o perfil socioeconômico e educativo das candidatas do PMM no Campus Canguaretama/IFRN, analisamos os dados de 263 inscrições dos processos seletivos dos cursos de Agricultura familiar, Recicladora e Operadora de Computador, nos anos de 2016 a 2019. Notamos que mais de 50% das inscritas possuía mais de 25 anos de idade, referentes aos anos de 2017, 2018 e 2019 (Tabela 1). Além disso, excetuando-se o ano de 2019, a maioria não concluiu a Educação Básica (Tabela 2). Percebemos, contudo, a presença de candidatas com a escolaridade superior às exigências do edital, o que revela a necessidade de outras políticas públicas de formação profissional para as mulheres.
Com relação ao estado civil, constatou-se a presença majoritária de inscritas com filhos, tanto mulheres em relacionamentos (casamento/união estável), como solteiras (Tabela 3). A maternidade e o casamento foram o principal motivo alegado para interrupção dos estudos. Com relação à renda familiar, os dados revelaram que mais de 90% das candidatas vivem com até 1 salário-mínimo (Tabela 4), e a renda, em 70% dos casos, é proveniente unicamente de benefícios sociais, principalmente o Bolsa Família. Os resultados mostraram-se compatíveis com outros estudos (FERREIRA, 2017; HECKLER, 2017; ROCHA, 2017; SANTOS, OLIVEIRA, 2019; TRINDADE, 2017).
O perfil socioeconômico e educativo das candidatas demonstrou que mulheres jovens e adultas, de baixa renda, cujos estudos foram interrompidos, frequentemente, por causa do casamento e da maternidade, possuem interesse na qualificação profissional. Elas percebem o PMM como uma oportunidade de inserção no mercado de trabalho.
No entanto, ressaltamos que as capacitações oferecidas no Campus Canguaretama, assim como em outros campi, se configuram como oportunidades aligeiradas, em cursos FIC. Será que os conhecimentos básicos fornecidos pelo formato FIC garantem a formação crítica “sobre” e “para” o mundo do trabalho, conforme postula a proposta pedagógica da Educação Profissional e Tecnológica? Eis uma questão a ser respondida com novos estudos.
Do modo como o PMM atualmente está estruturado, o direito das mulheres em vulnerabilidade à educação é comprometido duplamente. Essa degradação é, evidentemente, efetivada por estruturas interligadas no interior do neoliberalismo infiltrado na esfera educativa. De um lado, a cidadania dessas mulheres é deteriorada pela divisão sexual do trabalho em seu poder de limitar o acesso a oportunidades de estudos, de exercício profissional e de autonomia em geral (BIROLI, 2018a); de outro, por um modo de tratar a Educação de Jovens e Adultos de maneira inapropriada ou, no mínimo, insuficiente de um ponto de vista das políticas públicas.
O Programa Mulheres Mil, certamente, é um instrumento de significativa potência de transformação social. Contudo, ao articular-se ao Ensino Médio como programa governamental - e, enquanto tal, o PMM é marcado por “descontinuidades administrativas, pedagógicas e financeiras”, habituais quando se trata da educação dos trabalhadores -, despreza-se a necessidade de encarar a EJA enquanto direito a ser garantido pelo Estado (MACHADO; ALVES, 2020, p. 233). Ignora-se concomitantemente, por fim, o imperativo democrático de reconstruir a vida cotidiana na direção de um desmantelamento das hierarquias de gênero.