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Revista da FAEEBA: Educação e Contemporaneidade

Print version ISSN 0104-7043On-line version ISSN 2358-0194

Revista da FAEEBA: Educação e Contemporaneidade vol.32 no.72 Salvador  2023  Epub May 06, 2024

https://doi.org/10.21879/faeeba2358-0194.2023.v32.n72.p50-69 

Corpos, gêneros e sexualidades

ESCOLARIZAÇÃO DE MULHERES TRANS E TRAVESTIS: VIOLêNCIAS E EfEITOS DE VíNCULOS DE AMIZADE

SCHOOLING Of TRANS AND TRANSVESTITE WOMEN: VIOLENCE AND THE EffECTS Of fRIENDSHIp BONDS

ESCOLARIZACIÓN DE MUJERES TRANS Y TRAVESTIS: LA VIOLENCIA Y LOS EfECTOS DE LOS VíNCULOS DE AMISTAD

1Universidade Estadual de Feira de Santana

2Universidade Estadual de Campinas


RESUMO

As disputas em torno de quem pode estabelecer sobre o gênero uma verdade estão presentes nos variados espaços sociais, e a escola é um deles. Para travestis e mulheres trans, ela é um ambiente de difícil permanência, com muitos e variados episódios de violência por parte de colegas e pela condescendência de docentes e gestores(as). Entretanto, é lá também que muitas conhecem pares e rincipalmente, os efeitos dos vínculos desenvolvidos na escola na escolarização desse grupo. Esses vínculos fornecem reconhecimento e proteção, com efeitos no presente e no futuro escolar. Não garantem trajetórias lineares e eliminam violências, mas as amenizam, diminuem a solidão e ampliam as estratégias de enfrentamento, tornando a escola menos hostil.

Palavras-chave: Travestis e mulheres trans; Trajetória escolar; Vínculos de amizade.

ABSTRACT

The disputes over who can establish a truth about gender are present in various social spaces, and school is one of them. For transvestites and transgender women, school is an environment of difficult permanence, with many and varied episodes of violence by classmates and by the condescension of teachers and administrators. However, it is at school that many of them meet peers and begin to understand about themselves, especially from the bonds of friendship they have built. In this article, based on the experiences of six transvestites and transgender women, we discuss the violence faced, the influence of support from school professionals and, especially, the effects of the bonds developed at school on the schooling of this group. These bonds provide recognition and protection, with effects on the present and future schooling. They do not guarantee linear trajectories and eliminate violence, but they soften it, reduce loneliness and broaden coping strategies, making school less hostile.

Keywords Transvestites and trans women; School trajectory; Friendship bonds.

RESUMEN

Las disputas sobre quién puede establecer una verdad sobre el género están presentes en diversos espacios sociales, y la escuela es uno de ellos. Para travestis y transexuales, es un ambiente de difícil permanencia, con muchos y variados episodios de violencia por parte de compañeros de clase y por la condescendencia de profesores y directivos. Sin embargo, también es allí donde muchas conocen a sus pares y comienzan a entenderse a sí mismas, a partir, sobre todo, de los lazos de amistad construidos. En este artículo, basado en las experiencias de seis travestis y mujeres transexuales, discutimos la violencia enfrentada, la influencia del apoyo de los profesionales de la escuela y, especialmente, los efectos de los vínculos desarrollados en la escuela en la escolarización de este grupo. Estos vínculos proporcionan reconocimiento y protección, con efectos en la escolarización presente y futura. No garantizan trayectorias lineares ni eliminan la violencia, pero la suavizan, reducen la soledad y amplían las estrategias de enfrentamiento, tornando la escuela menos hostil.

Palabras clave Travestis y mujeres trans; Trayectoria escolar; Vínculos de amistad.

1 Introdução1

Estudantes travestis e mulheres transexuais não raro descrevem o ambiente escolar como mais um espaço de exclusão social (PERES, 2009; SANTOS, 2010; CRUZ, 2011; BENTO, 2011; SALES, 2012; LIMA, 2013; SOUZA; BERNARDO, 2014; SOUZA et al., 2015; SILVA, 2016; ACOSTA, 2016, 2019; ALEXANDRE, 2020; PEREIRA, 2020). Muitas dessas pesquisas apontam para violências no interior das escolas produzidas por agentes escolares, colegas, docentes e gestores(as), a partir de técnicas e métodos que operacionalizam o exercício do poder de impor uma verdade sobre o gênero e a sexualidade, centradas em normativas pautadas no binarismo de gênero, na cisgeneridade e na heterossexualidade compulsória. Esses estudos trazem em comum o entendimento de que o conjunto dessas violências produz efeitos negativos sobre a trajetória escolar dessas estudantes, culminando muitas vezes com trajetórias escolares não lineares e até interrompidas.

Entretanto, pesquisas também indicam que, cientes da legitimidade e importância simbólica e material da formação escolar, travestis e mulheres trans desenvolvem estratégias para se manterem na escola e concluírem a educação básica (BARROS, 2014; ANDRADE, 2015; PEREIRA; PELÚCIO, 2022). Em meio a narrativas de episódios de violência e da sensação de exclusão que experienciam ao longo dessa trajetória, há resistências e alianças, sendo os vínculos de amizade um elemento importante para a permanência na escola.

Neste texto, propomos uma reflexão complementar aos conhecimentos já compartilhados pelas pesquisas desenvolvidas acerca desse público e de sua escolarização, mostrando as disputas em torno de uma imposição de verdade sobre o gênero e a sexualidade e a possibilidade de existirem fora dessa imposição. Ao ouvir as experiências de seis travestis e mulheres trans2, teve-se como ponto de partida olhar para o cenário ainda existente de discriminação e violência nas escolas para essa população, mas também para episódios de acolhimento e defesa delas. O objetivo foi, então, discutir como a construção e manutenção ou não de vínculos de amizade na escola e de apoios de profissionais da instituição pode influenciar na trajetória escolar de travestis e mulheres trans, no sentido de auxiliar na produção de trajetórias menos entrecortadas, interrompidas ou mesmo amenizar os efeitos negativos das experiências de violência contra elas no ambiente escolar.

Os vínculos de amizade estão contidos no conjunto de vínculos sociais. De acordo com Serge Paugam (2019), os vínculos são responsáveis por oferecer dois elementos que promovem existência social a cada sujeito: 1) a proteção, que constitui os suportes com que cada sujeito pode contar; e 2) o reconhecimento, que confere sua valoração social. O autor divide esses vínculos em quatro tipos: a) “vínculo de filiação”, entre pais e filhos; b) “vínculo de participação eletiva”, como entre casais e amigos; c) “vínculo de participação orgânica”, entre membros do trabalho; e d) “vínculo de cidadania”, entre membros de mesma comunidade política (PAUGAM, 2019). A partir desse conjunto, os vínculos a serem analisados neste Corpos, gêneros e sexualidades são aqueles desenvolvidos por elas enquanto estudantes na escola, sendo “vínculos de participação eletiva”, neste caso, entre elas e amigas ou amigos. Para melhor relacionar o vínculo em questão à definição dos agentes da análise, ele será denominado aqui como “vínculo de amizade”.

Este Corpos, gêneros e sexualidades descreve conflitos e episódios violentos por que passaram na escola, para então mostrar situações de acolhimento promovidas pelos vínculos de amizade e por profissionais da escola, analisando seus efeitos sobre os percursos escolares dessa população.

Para melhor apresentar os resultados e discussões, além desta introdução, o texto foi organizado com uma seção de apresentação metodológica, duas seções de discussão dos dados e as considerações finais. As seções de discussão seguem um fluxo entre violências e acolhimentos. A primeira mostra as diversas situações violentas e as disputas de gênero na escola e a influência que essas violências tiveram em suas trajetórias, seja nas sensações que tinham enquanto estavam no ambiente escolar, seja no peso que sentiram ter para suas frequências escolares ou não. E a segunda traz os episódios de acolhimento, a disputa pela afirmação de gênero apesar das tentativas de ajustamento, os apoios institucionais e os vínculos de amizade formados e a influência desses vínculos em seus percursos escolares, na permanência e/ou no retorno à escola.

2 METODOLOGIA

2.1 Escopo geral

As situações e episódios a serem analisados constituem um recorte de pesquisa de doutorado acerca da escolarização de travestis e mulheres trans e se centrará apenas em trechos de experiências narradas por elas a partir dos anos finais do ensino fundamental e no ensino médio, tendo em vista que é nessa fase, pré-adolescência e adolescência, que se concentrou a maior quantidade de ofensivas contra elas e as mais dolorosas, segundo contaram. Estudos, como os de Marcos Benedetti (2005), Wilson Peres (2009; 2010), Luma Andrade (2015), Caio Pedra (2020) e levantamentos da Antra (2022), mostram ser justamente a partir dos treze anos que os conflitos na família e na escola costumam se acentuar, idade em que, em uma contagem linear relacionando idade e anos de escolarização, tem-se o oitavo ano do ensino fundamental.

Todas elas têm uma formação escolar considerada exitosa frente ao grupo de travestis e mulheres transexuais. Cinco possuíam ao menos o ensino médio completo e a sexta possuía o ensino médio incompleto, tendo concluído até o segundo ano deste nível. As participantes foram selecionadas a partir desse recorte, no intuito de constituir um grupo muito particular entre essa população, já que a escolaridade média, estimada por pesquisas elaboradas por instituições não governamentais, como a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA, 2018; 2022) e o Instituto AfroReggae (2013; 2015), é de que a maioria desta população possui apenas o ensino fundamental, com a grande maioria entre estas tendo saído da escola com o ensino fundamental incompleto. A intenção de estabelecer essa seleção foi feita para mostrar como, apesar de a literatura apontar a escola como um meio social em que elas seriam excluídas e tendo essa população uma baixa escolaridade, elas construíram trajetórias que culminaram com esse êxito escolar. O Quadro 1, abaixo, mostra os níveis de escolaridade das participantes:

Quadro 1 Apresentação das travestis e mulheres trans participantes da pesquisa e sua formação escolar 

NOME * FORMAÇÃO
Sarah Ensino médio incompleto (concluiu até o 2º ano)
Kelly Ensino médio completo
Nina Ensino superior incompleto (em andamento)
Dara Ensino superior completo
Vilma Ensino superior completo
Janaína Ensino médio completo (ensino superior interrompido)

Fonte: elaboração para a pesquisa.

* Os nomes para representá-las são fictícios e foram escolhidos por elas.

Antes de avançar para as análises, seguirse-á uma breve apresentação delas, para além de sua idade e escolaridade, para que se possa compreender melhor quem elas são quando do exame das situações por que passaram.

2.2 Apresentando as estudantes

2.2.1 Sarah

Sarah, à época da entrevista, em 2020, tinha 54 anos e possuía o ensino médio incompleto, tendo concluído até o segundo ano. Seu percurso escolar foi atravessado por muitas mudanças de escola, já que, a partir de seus treze anos, Sarah iniciou o processo de saída da casa de sua família de origem. Segundo ela, isso não se deveu a conflitos, mas para se prevenir e prevenir sua família do que vizinhos podiam falar sobre ela. Morava em uma cidade muito pequena e já percebia olhares e conversas entre pessoas da cidade sobre sua sexualidade e gênero. Além disso, nesse período, na escola, as primeiras violências de gênero se iniciaram, na forma de xingamentos. Sua frequência escolar foi se fragmentando, de forma escondida de sua família. Isso também poderia ser alvo de conversas entre vizinhos. Segundo conta, mesmo com as mudanças constantes de cidade, mantinha-se na escola, matriculando-se em novas unidades escolares nas cidades por onde morava.

Passou por xingamentos e situações vexatórias em muitas escolas na adolescência. Quando começou a adquirir uma performance mais feminina, os conflitos na escola acentuaram-se. Afirmou nunca ter sido defendida por docentes ou gestores(as), quando desses episódios de violência. Não fez amizades nas escolas e decidiu sair da trajetória de formação escolar após concluir o segundo ano do ensino médio, quando estava ainda mais feminina e os conflitos tinham também aumentado.

2.2.2 Kelly

Na época da primeira entrevista, em 2019, Kelly tinha 40 anos e possuía o ensino médio completo. Sua trajetória escolar foi marcada por muitas intermitências desde a infância, com vários períodos de interrupções nos estudos, mais ou menos longos, e muitas situações de violências. Intermitências agravadas pelas constantes mudanças de bairro e até de cidade, após o falecimento de sua mãe, ainda na infância.

Foi sempre uma criança afeminada e acredita que isso contribuiu para que já desde a infância colegas a violentassem, com xingamentos, ameaças e até mesmo agressões físicas. Na adolescência, essas violências se agravaram na escola e episódios de agressão física foram se tornando mais frequentes. Não tinha amizades e sentia-se isolada. Também não se recordou de docentes ou gestores(as) que a tivessem defendido ou mesmo interferido nas agressões que sofreu.

Na segunda etapa do ensino fundamental, privou-se de ir ao banheiro, tinha medo de agressões. Saiu da escola diversas vezes ao longo da segunda etapa do ensino fundamental e ficou longe da escola por vários anos, após ter saído no sétimo ano3. Retornou e concluiu a educação básica em turmas de Educação de Jovens e Adultos (EJA), no período noturno, quando desenvolveu amizades com colegas que a ajudaram a entrar, sair e a permanecer na escola.

2.2.3 Nina

Nina tinha 33 anos na época em que foi entrevistada, em 2020, e cursava Pedagogia. Sua trajetória escolar foi atravessada por muitas saídas e retornos à escola, sobretudo a partir da pré-adolescência. Na infância, não teve conflitos na escola ligados ao gênero ou à sexualidade. Foi a partir do sexto ano que narrou esses conflitos.

Afirmou ter sido sempre muito afeminada e que, conforme crescia, isso ia tornando-se mais evidente. Ao longo do sexto ano, passou a ser muito insultada e ridicularizada por colegas. Apesar de ter colegas próximos, eles não enfrentavam seus abusadores e nem a defendiam. Docentes e gestores(as) também não. No sétimo ano, esses episódios tornaram-se mais constantes e foi deixando de ir à escola. Trocou de escola algumas vezes, mas as situações se repetiam. Começou a sentir medo de ser agredida, mesmo nos dias em que isso não acontecia. Sentindo-se atormentada, saiu da escola sem concluir o sétimo ano.

Após cinco anos afastada da escola, fez um curso de aceleração e concluiu o ensino fundamental. Matriculou-se em uma escola para cursar o ensino médio e foi nesse retorno que viveu um dos momentos mais dolorosos em sua escolarização e que a fez sair novamente. Um dia, sentada em sua sala de aula, foi interpelada por um colega cisgênero, de outra turma, que entrou em sua sala, a xingou e a ameaçou. A professora ficou inerte, sequer repreendeu o garoto. Nina sentiu-se menosprezada e envergonhada. Saiu da escola.

Anos depois, foi convidada por uma amiga travesti para voltar a estudar em uma escola em que algumas travestis estariam estudando. Matriculou-se e sentiu que o ambiente era diferente. A gestão escolar recebeu bem as travestis e disponibilizou-se a construir um ambiente escolar que as respeitasse. Mas, com muitos compromissos de trabalho, não conseguiu conciliar e saiu novamente da escola. A conclusão do ensino médio aconteceu anos depois, a partir do Enem.

2.2.4 Dara

Dara, na época em que foi entrevistada, em 2019, tinha 32 anos, era pedagoga e tinha o título de especialista. Na infância, ao longo da primeira etapa do ensino fundamental, passou por alguns episódios violentos, mas todos os que destacou eram interdições dirigidas por professoras, que insistiam que ela deveria se comportar como um menino e brincar apenas no grupo dos meninos.

A partir da segunda etapa do ensino fundamental, quando disse estar com o jeito ainda mais afeminado, as violências se acentuaram. Além de xingada, passou a ser agredida fisicamente. Começou a reagir a essas violências de forma também fisicamente violenta. Tornou-se agressiva.

Mudou de escola algumas vezes, por questões familiares. Em uma dessas mudanças, decidiu que seria mais introspectiva, evitando envolver-se com colegas para não demonstrar seu jeito afeminado. Mas isso não impediu as violências. Após esse período, aproximou-se de outras duas alunas, que hoje identifica como travestis. Sua autoestima melhorou, deixou de ser introvertida e sentiu que havia encontrado nelas um suporte para, ao menos, minimizar as agressões que sofria.

Além dos problemas na escola, começou a lidar com problemas financeiros na família. Aos xingamentos relacionados ao gênero, somaram-se xingamentos relativos a sua condição social. Com dificuldades, Dara e sua família mudaram-se de bairro e ela saiu da escola. Começou a trabalhar para auxiliar nas despesas e não se matriculou mais.

A conclusão do ensino médio viria cinco anos depois, quando já se considerava “empoderada” e se conhecendo melhor. Após concluir o ensino médio, ingressou no curso de Pedagogia e depois cursou uma especialização na mesma área.

2.2.5 Vilma

Com 26 anos à época, em 2020, possuía o ensino superior completo na área de Artes e estava cursando Direito. Seu percurso escolar foi marcado por muitas mudanças de escola. Ao longo da infância e de parte da adolescência estudou em escolas privadas e, a partir do nono ano, foi para escolas públicas.

Passou por violências de gênero desde a infância, quando essas violências se materializavam a partir de xingamentos. O ensino médio foi, porém, a fase escolar mais difícil para Vilma, com um acúmulo de situações violentas. Afirmou nunca ter tido a interferência de docentes ou gestores(as). Com medo de utilizar o banheiro masculino, ficava toda a manhã na escola sem ir ao banheiro e sem beber água.

Apesar dessas situações, enquanto esteve na escola, sobretudo no ensino médio, fez também amizades, principalmente com pessoas com as quais começou a se identificar mais, como as que, hoje, classifica como travestis e transexuais. Com elas iniciou uma melhor compreensão de si, sobretudo quanto às possibilidades de gênero e de sexualidades.

Sem apoio institucional, sofrendo xingamentos diários e sem poder ir ao banheiro, saiu da escola no segundo ano do ensino médio. Concluiu a educação básica via Enem. Ingressou em um curso superior da área de Artes e depois em Direito.

2.2.6 Janaína

Na época da primeira entrevista, em 2019, Janaína tinha 24 anos, possuía o ensino médio completo e havia trancado sua matrícula no curso de Ciências Contábeis, por não ter se identificado com a área. Sua trajetória escolar teve poucas intercorrências em comparação com as demais participantes.

Para Janaína, sua escolarização pode ser classificada como “tranquila”. Segundo acredita, isso se deve à percepção que as pessoas tiveram dela nas diferentes fases de sua vida: na infância, a teriam reconhecido como um menino cisgênero e heterossexual, no início e em meados da adolescência, como um menino cisgênero gay e, após essa fase, como trans. Para ela, um menino cisgênero gay sofre menos violências por parte da sociedade em comparação com pessoas transgênero. Até meados do ensino médio, afirmou ter passado por xingamentos, mas sem maiores desdobramentos. Após isso, no processo de começar a se compreender como alguém do gênero feminino, é que as violências verbais por parte de colegas se intensificaram, mas, nesse momento, também já teria encontrado pares que a apoiavam e defendiam na escola.

Destacou em sua trajetória escolar uma amiga, reconhecida por ela ora como travesti, ora como mulher trans. Essa amiga era muito popular e combativa em relação aos preconceitos e violências que experienciavam, e costumava defender Janaína. Logo que a conheceu, integrou-se ao grupo de estudantes do círculo de amizades dessa amiga. Com esse grupo, e especialmente com sua amiga, sentia-se mais segura. Além de protegê-la, essas amizades davam a ela uma sensação de “empoderar-se”. Com esse grupo, chegava e saía da escola. Tinha medo do trajeto, mas não de sofrer alguma violência na escola. Concluiu o ensino médio sem ter se recordado de nenhum episódio de violência que a tivesse marcado.

3 Disputas de gênero e escalada de violências na escola

Todas as travestis e mulheres trans ouvidas na pesquisa relataram ter experimentado, ao longo de sua escolarização, momentos em que foram utilizados contra elas ao menos um dos recursos de violência proferidos por colegas: insultos, xingamentos, episódios vexatórios e violências psicológicas, ou, ainda, posturas de descaso, invisibilização, descrédito ou acusações por parte de docentes e gestores(as). Além disso, foi constante em suas narrativas experiências de solidão e sensação de exclusão entre colegas. Algumas relataram também violências físicas. Esses episódios contribuíram para tornar o ambiente escolar de difícil permanência. No entanto, as entrevistadas não os tomam como fatores determinantes para suas saídas da escola, e sim como condicionantes importantes nesse processo.

De forma geral, todas afirmaram tentar se afastar das situações ou pessoas que as agrediam, sem reagir ativamente. Nos anos finais do ensino fundamental, por volta do oitavo e nono anos, ou no ensino médio, as agressões contra elas foram aumentando. Colegas as xingavam, algumas foram agredidas fisicamente, e docentes e gestores(as) por vezes tentavam “corrigi-las”, tentando ajustar seus comportamentos ao que acreditavam ser adequado ao gênero que atribuíam a elas, a partir da noção que confunde gênero, performance, desejo e sexualidade. Nesse período, ampliaram-se as quantidades de episódios violentos e diversificações de violências dirigidas a elas, bem como a necessidade de respostas a essas violências. Por isso, foi sobre esse período escolar que as análises se concentraram.

Entre as participantes, Janaína foi a única a concluir a educação básica com uma trajetória linear, sem interrupções, nem mesmo momentâneas. Isso pode estar relacionado ao fato de que apenas no ensino médio, sobretudo no último ano, é que ela passa a se reconhecer e a reivindicar publicamente o reconhecimento do gênero feminino. Para as outras cinco participantes, foi a partir desse reconhecimento que as violências se intensificaram.

As agressões que Janaína experienciou ao longo do ensino médio foram constantes, mas se circunscreveram a xingamentos e chacotas, sem que ela se sentisse ameaçada fisicamente ou mesmo impelida a não mais frequentar a escola devido àquelas violências: “Passei por violências várias vezes... várias pessoas gritando: ‘ah! olha o viado!’, várias ‘churrias’4 mesmo. [...] lembro várias, mas não uma que me marcou muito.” (JANAÍNA).

Para ela, essa não intensificação de episódios violentos deve-se a uma amizade que fez na escola com outra estudante trans ou travesti (em sua fala ela a descreve oscilando entre ambas as categorias), justamente no período em que os ataques contra ela começaram a se intensificar. Essa amiga já estudava há anos na escola e sempre a defendia. O vínculo de amizade mostrou-se eficaz para protegê-la, influenciando em sua experiência na escola, nas relações com colegas. Essa amizade e seus efeitos na escolarização de Janaína serão abordados na seção seguinte.

A reivindicação de reconhecimento público do gênero feminino foi, para Vilma, também o período de maior “liberdade”, até então, em relação ao gênero, por poder se narrar, mas foi usado como motivo pelos colegas para a ampliação das violências contra ela. Ao longo do final do ensino fundamental e início do ensino médio, colegas da escola a chamavam por nomes femininos, eram apelidos jocosos e até um determinado nome criado flexionando seu nome de registro, numa tentativa de ridicularizá-la. Um dia, ela disse que, cansada das chacotas, resolveu que, então, assumiria o tal nome feminino. Pensou:

“Bom... já que eu me identifico dessa forma [como feminina], ok! Não é problema ser chamada assim!”. E eu passo a me narrar como “fulana de tal”. E, aí, a sociedade me rejeita, né?!, que a gente é mulherzinha só enquanto eles querem rir, enquanto querem nos deslegitimar, violentar. Mas quando a gente assume esse lugar: “então eu sou mulher e meu nome é esse!”, aí, rola esse processo de deslegitimação. (VILMA).

Nessa disputa em torno das definições de gênero travada entre Vilma e os colegas que tinham o intuito de agredi-la, percebe-se o jogo de poder para disputar o espaço de estabelecimento de verdade, saber quem pode definir os limites para os gêneros. Os agressores, que antes a ridicularizavam com a pecha de “mulherzinha”, passaram a renegar essa condição feminina, quando ela começou a reivindicar publicamente essa identidade. Seu gênero entrou, então, em um limbo, não era suficientemente masculino, mas também não poderia ser feminino, se aquilo tanto a agradava.

Ao assumir o nome feminino, Vilma foi deslegitimada pelos mesmos colegas que zombavam dela. Começou a ser cada vez mais xingada e a perseguição a ela no banheiro aumentou. “Não podia ir ao banheiro feminino, porque o segurança me tirava e as próprias coleguinhas me expulsavam.” (VILMA), e não se sentia bem em ir ao banheiro masculino, porque, “além da violência simbólica de não ser um lugar que me pertence, porque está ferindo minha identidade de gênero, tinha a questão da violência.”, como contou. As colegas não a apoiavam e a gestão da escola não ofereceu proteção para que ela pudesse utilizar o banheiro. Contrariamente, cerceou seu uso a partir da interdição do segurança. Vilma passou a utilizar o banheiro masculino apenas quando estritamente necessário.

Ao narrar-se como feminina na escola, Kelly também contou ter experimentado as mais contundentes violências no ambiente escolar. Em uma de suas lembranças, destacou a experiência de solidão:

Lembro que no ano seguinte em que comecei a me narrar como feminina no colégio, eu perdi muitos amigos. Até então, quando eu era uma criança afeminada, era: “Ah! Você é isso!”, eu dizia: “Não sou isso! O que é isso?”. Mas quando comecei a me entender e aceitar, todo mundo se afastou de mim. Preferiam que eu fosse alguém que não me aceitasse. Uma hipocrisia! Todo mundo sabia de tudo! (KELLY).

Assim como Vilma, ao reivindicar o gênero feminino, Kelly foi deslegitimada pelos colegas. Em sua experiência, até mesmo aqueles que, se não tinham com ela vínculos de amizade, mas eram próximos, afastaram-se. Daqueles que a agrediam, recebeu ainda mais agressões. A escola tornou-se um lugar de muito medo e de privações:

No ginásio5, é um “salve-se quem puder, né?!” [risos]. Então, muitas vezes, eu tinha medo de ir para o colégio, com medo de apanhar. Sofri [violência física] várias vezes! Dentro da escola e nos arredores. E a escola tinha a posição de mudar muita coisa e não mudava! Não me ajudava! Às vezes, tinha professor que via e não fazia nada. E isso me incomodava muito!

[...]

Eu não queria estar no banheiro dos homens, queria estar no banheiro das mulheres. [...] No dos homens, tinha muito preconceito, eu tinha medo de apanhar. No das mulheres, muitas vezes, elas se incomodavam. Às vezes, eu nem ia para o banheiro. Ficava segurando a aula toda, as 4h de aula. (KELLY).

Nesse exercício de colocá-la na seara do “ridículo”, do “zombável”, aqueles que a agrediam impunham sua verdade sobre o gênero que atribuíam a Kelly. E quando ela disputa ativamente esse espaço do feminino, é excluída até mesmo por quem antes era próximo dela. Institucionalmente também não teve apoio. Passar constantemente por situações violentas, ter medo de apanhar, abster-se de ir ao banheiro e sentir-se sozinha contribuíram para que a escola se tornasse para Kelly um lugar não atrativo e pesaram para uma de suas saídas da escola: “Eu nunca esqueço que desisti de estudar no sétimo ano. [...] Não dava mais. Ninguém queria encostar perto de mim. Quase ninguém falava comigo. [...] Eu tive que sair. A escola não era atrativa.” (KELLY).

Também sentindo-se sozinha, Nina, refletiu sobre a importância de desenvolver amizades para poder continuar na escola, apesar das violências cotidianas: “Eu sempre fui a única nas escolas onde adentrei. Quando você tem alguém, você ganha uma força, mas quando você está isolada, sozinha... é difícil. Eu preferi me preservar e sair. Eu sabia que na hora certa eu ia terminar.” (NINA). Além da solidão, as violências pelas quais passava nesse período escolar impuseram a ela um estado de alerta constante e, assim como na experiência de Kelly, transformaram a escola em um lugar de medo:

Naquela época do sexto e sétimo anos, eu sofria xingamentos diariamente. Dos meus colegas de turma, de colegas de outras turmas. E tinha a omissão de professores e da gestão.

[...]

Eu vivia um temor diário de sofrer violência, pensando que eu poderia sofrer violência a qualquer momento, a qualquer instante, de qualquer pessoa, que eu não teria feito absolutamente nada.” (NINA).

Além da falta de amizades, não havia para Nina qualquer apoio institucional. Apesar dessas condições, nesse período escolar, não houve um episódio em definitivo que tenha determinado para ela a escola como lugar impossível, mas um acúmulo de situações vexatórias que tornavam a escola muito difícil. Sua primeira saída da escola deu-se no sétimo ano, lentamente, deixando de frequentar as aulas aos poucos: “Comecei a ficar pelo caminho. Não ia mais para a escola. Meus pais trabalhavam, não tinham como me monitorar.” (NINA).

Em outro momento de sua vida, após ter concluído o ensino fundamental via curso supletivo privado, retornou para a escola a fim de concluir o ensino médio. Mas, novamente, o ambiente escolar se mostrou hostil. Desta vez, Nina recordou-se de um episódio mais definidor para sua segunda saída da escola:

eu estava cansada de toda aquela situação, sabe?! Eu não tinha paz para estudar! Mesmo quando não acontecia nada, o cérebro e a cabeça ficavam aguardando que acontecesse alguma coisa. Eu tinha muito medo! Não era medo de apanhar, mas tinha muito medo da chacota em público. Eu não fiquei [na escola] por conta da violência. Lembro que quando tomei essa decisão [de sair], tinha pouco tempo na escola, uns três meses. Lembro que um colega me desrespeitou na sala de aula. E a professora fingiu que não era com ela. Ele falou uma coisa assim pejorativa, algo como: “ah! Seu viado! Tem que morrer!”, coisas assim. Algo desse nível. E, aí, as pessoas olharam para mim, eu achei algo tão grotesco. Foi nesse dia que tomei a decisão. Fiquei envergonhada. E a omissão daquela professora, acho que foi o pior! (NINA).

Nina vinha de uma trajetória escolar de reiteradas agressões verbais na escola. Essas agressões já tinham contribuído para que ela saísse da escola antes. Dessa vez, no ensino médio, o aluno que gritou com Nina, além de constrangê-la, tentou intimidá-la, e afirmou que sua existência não era aceitável: “tem que morrer!”. Remeteu-a à abjeção a que travestis e pessoas trans são submetidas socialmente. Esses corpos que não se circunscrevem ao “imperativo heterossexual” (BUTLER, 2010), que limita não apenas o campo do desejo e das práticas sexuais, mas a própria determinação do sexo e de seus discursos e do gênero atribuído ao sexo, são tomados, então, como “corpos abjetos” (BUTLER, 2010). Na abjeção, não somente corpo, sexo e gênero são abjetos, mas “é sua própria humanidade que se torna questionada” (BUTLER, 2019, p. 205). Quando o aluno a xinga e a ameaça, remete sua humanidade à suspeição.

Apesar da ameaça, Nina afirma ter saído da escola, não por medo do que esse aluno poderia fazer com ela, mas pelo constrangimento, pelos olhares que recebeu e pela falta de ação por parte da professora. Em seu relato, além da completa inércia da professora, nenhum ou nenhuma outra colega interviu na situação. Constrangida, Nina não retornou mais a essa escola.

Assim como Kelly e Nina, Sarah também não desenvolveu amizades que a defendessem e nem teve apoio de profissionais. Em seu depoimento, narrou a dor de passar por violências na escola, reconhecendo os insultos e a falta de apoio da equipe escolar como uma complacência para a exclusão de travestis e transexuais da escola. Para ela, encarar os insultos como brincadeiras, como fazem os(as) docentes, é uma forma de tentar fazer com que aquelas pessoas entendam que vão ter que conviver com os insultos se quiserem permanecer ali. Ou seja, se ousam disputar outras existências possíveis para o gênero, haverá consequências negativas. E essa é uma opção difícil:

Eu tinha a pretensão de me formar, mas, quando eu fui adquirindo esses traços mais femininos, a escola começou a se fechar. Quando a escola começa a se fechar, não tem como resistir! Se não tem hoje, imagina naquela época, trinta anos atrás, quarenta anos atrás?! Então, a primeira ideia é abandonar a escola.

[...] Lembro que... o último período [em que estava estudando], eu ia para a escola e ficava na rua, não chegava na escola, para não sofrer violência na escola, e nem contava para minha mãe que não estava indo para a escola. (SARAH).

Para ela, alunos(as) e docentes dividem a responsabilidade por tantos relatos de violências que se perpetuam contra travestis e transexuais nas escolas. Indagada sobre quem apontaria como responsáveis pela saída tão expressiva dessa população das escolas, ela afirmou:

Dos alunos da escola, com a complacência dos professores. Dos professores virem a situação e não reclamarem. [...] De acharem que é tudo natural, que é brincadeira de criança, que não é violência e que tudo não passa de brincadeira e que vai passar. E não passa! Não passa! A violência, quando ela é presente, ela vai te aniquilando de uma forma... vai fazendo você ficar cada vez mais pressionada em um certo espaço, até que você explode dali. Qual a primeira opção que uma travesti tem? Sair daquele lugar em que estão te oprimindo. [...] Quando a escola te oprime de tal forma, que não tem ajuda, não tem um diretor que ajude, nem os professores, tampouco a equipe pedagógica da escola... eu vou sair da escola, que é a forma mais fácil de me livrar daquilo que está me fazendo sofrer todo dia. E é isso que acontece! Acontecia ontem, acontece hoje e vai acontecer futuramente, infelizmente, né?! (SARAH).

Assim, com Nina, Sarah destaca a falta de apoio institucional como fator importante para a condição de difícil permanência para travestis e trans nas escolas. Sua fala expõe, ainda, o que Rogério Junqueira (2009) teorizou ao definir a “pedagogia do insulto” como produtora de “evasão” escolar. E o que Anderson Ferrari (2010) percebeu, em seus estudos sobre estudantes homossexuais, de como as políticas de normatização da sexualidade, em franca operacionalização na escola, os vulnerabiliza nas relações naquele espaço e fora dele. Para este autor, “a discriminação na escola contribui para um duplo prejuízo: perturba a construção positiva de suas identidades e também a aquisição de conhecimentos” (FERRARI, 2010, p. 419). Também para Berenice Bento (2011), essas violências e a falta de ação e, por vezes, o endosso por parte de docentes promovem o que ela classifica como uma “expulsão” de estudantes trans e travestis das escolas.

Sarah afirmou ter passado por xingamentos, mas ter saído da escola logo que os episódios começaram a se intensificar, a partir do desenvolvimento do que ela chamou de “adquirir traços mais femininos”. Vale ressaltar que Sarah mudou de cidade diversas vezes ao longo dos anos finais do ensino fundamental e no ensino médio, isso pode tê-la “protegido” de passar por essa intensidade de eventos violentos, pois não costumava permanecer muito tempo em uma mesma escola. Na pesquisa elaborada por Pereira e Pelúcio (2022, p. 98), uma das estudantes travestis participante disse ter sido beneficiada por essa circunstância nas relações com colegas das escolas por onde passou. Seu pai precisava mudar-se constantemente por motivos de trabalho e ela e sua mãe o acompanhavam. Para ela, isso a ajudou a permanecer na escola: “o lado bom era que quando as pessoas me conheciam e poderiam praticar bullying, me chamar de gay, eu já estava me mudando novamente”. Para os autores “a impermanência se tornou para ela uma estratégia de blindagem.” (PEREIRA; PELÚCIO, 2022, p. 98). Se essa impermanência pode ter sido recurso de “proteção”, pode também ter prejudicado o desenvolvimento de vínculos de amizade nas escolas. Sarah não mencionou ter desenvolvido amizades nas escolas onde estudou. E, tal como nas trajetórias de Kelly e de Nina, a sensação de isolamento e de não poder contar sequer com a proteção da equipe de docentes e com a gestão escolar para coibir as violências por que passava, contribuiu para que Sarah fosse gradativamente parando de frequentar as aulas, até sair da escola.

Já Dara, que também sentiu a intensificação dos episódios de violência conforme os anos iam avançando, teve como estratégia reagir de forma violenta fisicamente a agressões físicas e a algumas verbais na escola. Em alguns casos, contou ter reagido de forma ainda mais violenta que seus agressores, para passar a impressão de que não se podia agredi-la, que a reação seria desproporcional. Isso passou a render a ela certa “segurança”:

tinha uma coisa boa, porque eles me xingavam, mas, quando tinha corredor polonês, eles não me batiam, não tocavam o dedo em mim. Não me faziam nada [...]. Porque eles tinham medo da maneira como eu reagia. Então, toda vez que alguém vinha me agredir, eu reagia três vezes pior. (DARA).

Dara não relatou ter tido o apoio de professores(as) ou da gestão escolar para intervir ou punir os meninos que a atacavam, mas relata ter sido incentivada por alguns(mas) docentes a reagir com violência: “[Docentes] mandavam eu mudar, falavam: “você tem que mudar! Fale mais grosso!”. [...] Tinha professor que nem ligava e tinha outros que mandavam eu dar murro, devolver.” (DARA).

Quando esses(as) docentes ordenam que ela mude, que adéque sua performance de gênero ao que se espera socialmente para o sexo cunhado em seu nascimento, se esquivam da responsabilidade educativa diante das diferenças. Em sua história, docentes oscilavam entre a culpabilização da vítima ou em deixar sob sua própria responsabilidade reagir para resolver um problema dito como dela, e não de uma sociedade que normatiza o gênero. Na medida em que é ela que não “harmoniza” gênero e sexo, também é ela a responsável por lidar com os problemas por ela causados.

Quando estudantes que não correspondem às normativas sexuais ou de gênero têm como resposta dos professores que devem “mudar seu modo de ser”, ou têm imposta uma postura imperativa de masculinidade: incitando que devem “falar grosso”, ou, no limite, “darem um murro”, só resta entender que é preciso resolver os “seus problemas” por conta própria, seja recorrendo à violência, seja ao isolamento. Andrade (RECIIS, 2019) também narrou ter passado por essas “ordens” por parte dos docentes, e sua reação foi silenciar para continuar existindo naquele espaço. Dara passou a fazer isso quando mudou de escola e foi para o oitavo ano.

Assim como Kelly, Nina e Sarah, Dara conheceu a solidão na escola, mas sua solidão teria sido “produzida” por ela mesma, como estratégia para evitar conflitos. Decidida a adotar uma nova postura: séria e calada, não interagiria com colegas. Uma estratégia para que sua voz e gestual afeminados, como afirmou ter, não fossem percebidos. Na pesquisa de Britzman (1996), com adolescentes gays, esse comportamento também apareceu, relevando o sentimento de angústia que muitos tinham ao tentar conviver com outras pessoas tentando esconder a homossexualidade. A partir dessa decisão, Dara mudou seu comportamento: “Nessa escola eu ficava calada, não falava com ninguém, ficava de cara feia. Eu lembro que fiquei quase um ano nessa sala sem falar com ninguém. As pessoas perguntavam se eu tinha algum problema. Quando tinha trabalho de equipe, eu sempre pedia para fazer só” (DARA). A estratégia a manteve protegida por algum tempo das violências diretas que já tinha sofrido em outras escolas. Mas essa estratégia a privou também da criação de vínculos com colegas. Para ela, naquele momento, a escola não seria um local de interação e sociabilidades.

Entretanto, a relativa “segurança” dessa estratégia não impediu que, com o passar do tempo, colegas a violentassem. Quando ia ao banheiro, masculino, os meninos passaram a mostrar-lhes o pênis. Ela contou sobre um desses momentos:

Uma vez, eu estava sentada no pátio, tinha um menino [...] dando “psiu, psiu”, quando eu olhei e perguntei “é comigo?”, ele apontou para a porta do banheiro. Quando eu olhei, o outro estava com o pênis para fora. Ele devia ter uns dezessete, dezoito anos, era bem maior que eu. Eu balancei a cabeça [em aceno negativo]. Aí, eu falei com a diretora. Ela me disse: “você está pensando que isso aqui é prostíbulo? Você vai querer dizer a mim que os meninos estão mostrando o pênis a você?! Ou é você que está se oferecendo?” (DARA).

Esse episódio chama a atenção especialmente por, ao menos, três aspectos: 1) a estratégia criada pelos meninos para demonstrar poder e ridicularizá-la, com a certeza da impunidade; 2) a falta de uma atitude pedagógica coerente por parte da diretora; e 3) a relação feita pela diretora entre a travestilidade e a prostituição. Pelo relato, os meninos mostram-na o pênis ao lerem em seu corpo algum indício de transgressão à heterossexualidade. Com a certeza de que aquela atitude imputaria-lhe um sentimento de constrangimento e não lhes renderia qualquer punição.

Pelo desfecho, percebe-se que o plano dá certo, contando com a anuência da gestão escolar para ter sucesso. A diretora, ao ser comunicada por Dara sobre o ocorrido, furtase a punir os agressores, invertendo a lógica da acusação, tornando a vítima culpada. Para tal, a gestora mobiliza uma estrutura de pensamento coletivo, evocando uma pecha que incorre sobre as travestis: de “prostitutas”, e um estigma que incorre às próprias prostitutas, sejam travestis ou não, de que o sexo as define e as torna objetivamente sexo, fazendo com que suas interações sociais sejam vistas para tão somente esse fim. O que evoca também o sexo como um tabu. Como afirma Adriana Sales (2018), a pessoa travesti deixa de ser “pessoa” e passa a ser uma “profissão”, onde se ouve “travesti”, traduz-se “prostituta”. Essa também foi a percepção encontrada por Julieta Vartabedian (2018, p. 75) ao entrevistar travestis que atuavam na prostituição na cidade do Rio de Janeiro. Uma de suas entrevistadas, que iniciara há pouco tempo a atividade, afirmou: “toda travesti atravessa a prostituição, mesmo que seja uma médica. Ela sempre será tratada como uma prostituta”. E outra, de sessenta anos, que já não atuava mais, disse: “O brasileiro não está habituado com travesti fora das ruas. [...] Travesti é para a rua, para a prostituição. [...] Preconceito e hipocrisia.” (VARTABEDIAN, 2018, p. 75).

Partindo do estabelecimento de uma moral sexual que torna imorais as prostitutas e duplamente imorais as travestis, pela prostituição e pela transgressão de gênero e de sexualidade, a diretora decide constranger Dara, utilizando-se de seu poder de autoridade para, naquele momento, cercear a performance da aluna e tentar ajustar sua conduta. Dara ainda se manteve na escola, mas, quando sua família passou a sofrer com problemas financeiros e ela passou a conviver na escola com violências que mesclavam seu gênero e sua condição social, decide que é hora de sair da escola:

quando minha mãe perde o emprego, eu já estava cansada de estar brigando com as pessoas por causa do meu jeito afeminado, eu estava cansada de minha mãe trabalhar no shopping e às vezes o salário atrasar... [...] e aí teve um momento que a gente estava sem dinheiro, e a gente estava morando de aluguel com minha mãe. Então, a gente teve que catar reciclagem. Quando as pessoas me viram, já no ensino médio, de reciclagem na mão, ficavam me apelidando. E isso foi doloroso. Aí, eu parei de estudar. (DARA).

Todas as participantes narraram episódios de violência na escola, algumas, momentos recordados como bastante dolorosos e condicionantes para suas saídas do ambiente escolar, violências proferidas por colegas e admitidas por docentes. Por outro lado, para a maioria delas, a escola foi também local de momentos positivos. Foi na escola que começaram a se compreender como alguém do gênero feminino e lá desenvolveram fortes vínculos de amizade, como Kelly, Dara, Vilma e Janaína. Apesar das violências, encontraram vazão às dúvidas que tinham sobre si. Para estas, foi na escola que puderam desenvolver vínculos de amizade que as reconheciam e protegiam, ainda que isso não tenha garantido totalmente a interrupção das violências e nem tenha sido, para elas, garantidores da permanência na trajetória escolar mais linear.

4 Na escola também se acolhe: apoio de profissionais, vínculos de amizade e existência possível

Nas experiências escolares das participantes, poder contar com profissionais que acolhessem minimamente suas demandas e, sobretudo, com amizades com outras(os) estudantes foi fator condicionante para uma escolarização com períodos de maior integração social, maior autoestima e permanência menos hostil. Nem todas relataram episódios de acolhimento, mas a maioria delas sim. Para estas, o apoio institucional e os vínculos de amizade produziram efeitos positivos em sua escolarização.

A ausência de vínculos de amizade contribui para saídas mais prematuras da escola. Nina e Sarah foram as duas participantes que mais descreveram a escola como local de isolamento e sem referências de amizade. Desenvolveram esse vínculo fora da escola, mas nas unidades escolares não se recordaram dele. Nina foi quem mais precocemente saiu da escola e não retornou para concluir a educação básica e Sarah, quem teve a trajetória menos linear e sem concluir o ensino médio. Ambas também não narraram a intervenção de nenhum(a) profissional da escola quando eram agredidas. Suas memórias não revisitaram momentos de acolhimento, nem vínculos de amizade ao longo dos anos finais da segunda etapa do ensino fundamental e no ensino médio.

Sarah não descreveu nenhum vínculo de amizade e saiu da escola quando as violências contra ela e a sensação de isolamento se intensificaram. Nina, apesar de dizer que era popular na escola no início do ensino fundamental II, não tinha amizades que a defendessem ou a consolassem quando desses episódios: “eu era popular [Risos]. Mas eles [amigos] não eram gays, não sabiam o que eu sofria! [...] não eram pessoas que me defendiam, ou que entendiam que precisavam me defender. [...] Também não lembro se houve essa questão do consolo [Risos]. [...] Não sei se por medo...” (NINA).

Para Nina, seus amigos da escola não entendiam seu sofrimento ou tinham medo de serem alvo de violências, caso a defendessem. Levanta ainda a hipótese de que, não sendo homossexuais, não tinham a dimensão de seu sofrimento para tentar intervir. A maioria das participantes que descrevem vínculos de amizade na escola rememora a proteção próxima de alguma amiga que hoje identificam como mulher trans ou travesti, como a amiga de Janaína, as amigas de Dara e algumas do grupo de amizades de Kelly, mas houve a narração de amizades também com pessoas que elas identificaram como cisgêneras, sobretudo meninas, como algumas amigas de Dara, de Vilma, de Janaína e de Kelly.

Embora sem amizades na escola, foi Nina, entre as participantes da pesquisa, que teve a melhor experiência de apoio institucional. Em sua última tentativa de retomar os estudos via escola, matriculou-se em uma que não havia estudado antes, após ter sido convidada por amigas travestis e mulheres trans, que deram a ela a notícia de que havia uma escola que, como afirma, “respeitava as travestis”:

Eu fui para esse colégio e me surpreendi de verdade: “Nossa! Como é natural a inserção do meu segmento aqui nesse colégio! Não tem agonia, não tem frescura, não tem cuidado, não tem nada!”. Até os alunos... até a churria no intervalo... foi um processo transformador. Eu lembro de estar sentada com vários alunos perturbados, com as travestis, com as alunas cisgêneras e, simplesmente, a gente dando churria um no outro, com uma brincadeira saudável, de perturbação de colégio. Eu sentada, pensava: “isso é possível mesmo?!”. Era muito interessante de ver. E é isso, a gente não busca tratamento especial, a gente só quer respeito com a nossa identidade! E esse colégio deu isso para a gente. O nome social na caderneta, que nem existia! [...] Mas era uma época em que tudo era na sensibilidade. Então, esse colégio foi um colégio diferenciado na tratativa, nos encaminhamentos das nossas demandas e na naturalidade a qual éramos tratadas. (NINA).

A narrativa de Nina dá conta de um ambiente em que sua existência era possível, em que havia respeito até mesmo a um dos aspectos mais problemáticos da permanência de travestis e trans nas escolas: o nome social, que, à época, sequer era legalizado na Bahia6, mas foi disponibilizado pela gestão da escola.

Sua experiência mostra que a equipe de profissionais da escola acolheu as demandas das travestis e mulheres trans, promovendo um ambiente que respeitava suas identidades e favorecia o desenvolvimento de um ambiente possível entre demais agentes da escola, como entre os(as) colegas. Nina ficou pouco tempo nessa escola por circunstâncias laborais, não conseguiu conciliar os estudos com o trabalho e saiu. Não narrou a construção de vínculos de amizade especificamente nessa escola, mas já os tinha de relações fora do ambiente escolar, que continuaram dentro dela. Apesar de não ter concluído a educação básica nessa escola, Nina sentiu-se respeitada e legitimada. Concluiu anos depois, via Enem.

Vilma também concluiu a educação básica via Enem. Após sair da escola no segundo ano do ensino médio, não retornou mais a nenhuma unidade escolar. Mas, no final do ensino fundamental e no ensino médio, Vilma construiu vínculos de amizade importantes para seu autoconhecimento. Foi a partir do nono ano que ela passou a compreender mais sobre si mesma, conversando com amigas que conheceu na escola: “eu conheci a comunidade LGBT de fato e a gente criou redes de afetos clandestinos e políticas de sobrevivência mesmo naquele espaço, que, na verdade, era um tensionamento de toda a LGBTfobia” (VILMA).

Ao chegar no nono ano, Vilma afirma que passou a “maturar essas ideias de identidade de gênero”, a conhecer pessoas travestis e a se reconhecer como pertencente a essa comunidade. A partir dos vínculos de amizade criados com colegas, passou a perceber que algumas de “suas questões”, “não eram impossíveis como as pessoas diziam” (VILMA).

Foi nesse período escolar que Vilma passou a se perceber como alguém que transicionava as fronteiras impostas para os gêneros e passou a reivindicar o direito de existir enquanto alguém do gênero feminino. Para ela, as amizades não garantiram que a escola fosse um local livre de violências e nem mesmo que ela pudesse se manter até concluir a educação básica, mas encontrou nos vínculos de amizade reconhecimento de si, conforto afetivo e a possibilidade de existir de maneira menos dolorosa naquele período na escola.

Dara passou por experiência semelhante. As amizades que fez na escola também a tiraram da solidão e fizeram com que a experiência escolar naquele período fosse mais prazerosa. Após mudar de escola mais uma vez, já no oitavo ano, percebendo que a estratégia anterior, de não se envolver com colegas e de ficar o tempo todo quieta e isolada na classe, para não perceberem seu “jeito afeminado”, não adiantava, passou a se enturmar com “as duas estudantes mais afeminadas da escola” (DARA). A partir da criação desse vínculo, mudou seu comportamento e percebeu que a dinâmica escolar também se alterou para ela:

Eu saí daquele lugar da mudez e comecei a me maquiar, a me ver enquanto mulher mesmo, a ir com calcinha apertada. Eu saía de casa com uma roupa, uma calça e no caminho eu já botava outra. A cortar minha camisa da escola num modelo mais feminino. Uma colega conseguiu uma outra camisa para eu poder ir para casa, então, na escola eu usava outra. E, aí, os meninos começaram a perceber que a partir do momento que eu ia me assumindo, ia combatendo a violência, melhorou! (DARA).

Com a criação desse vínculo de amizade, com as amigas que compartilhavam das mesmas transgressões às normativas sexuais e de gênero, Dara construiu uma rede segura para viver e reivindicar publicamente o reconhecimento de seu gênero. Ao adotar roupas e maquiagens, que para ela expressavam o gênero feminino, e ao contar com a segurança de sua rede de amizades, percebeu uma mudança no comportamento de seus agressores. Os insultos não cessaram, mas diminuíram e melhoraram as formas de lidar com eles, possuindo apoio na rede construída.

Essa rede fez com que ela completasse, ainda que momentaneamente, o quebra-cabeça dos jogos de poder em torno da disputa pelo gênero e sexualidade. Nesse momento, foi materializado em sua trajetória, o que Foucault (2017) denominou como “jogo de poder e prazer”, em que, o prazer emanado da demonstração do poder de cerceá-la, é experimentado por ela, quando afirma e demonstra seu gênero feminino. Seria o “poder que se afirma no prazer de mostrar-se, de escandalizar ou de resistir” (FOUCAULT, 2017, p. 50).

Janaína também construiu vínculos de amizade que a ajudaram a resistir e a ter segurança para enfrentar as violências pelas quais passava na escola. Sua rede de proteção foi construída no ensino médio. Assim como Vilma, Janaína passou a conviver na escola com pessoas trans e travestis, as quais, afirmou, nunca havia visto tão de perto. Foi no ensino médio que conheceu uma amiga travesti, que também passava por situações de violência, e que passou a defendê-la: “ela sempre ia para cima das pessoas” (JANAÍNA).

Essa amiga conhecia muitas pessoas na escola, pois já era do bairro e estudava naquela escola há anos. Isso teria facilitado a formação de um grupo grande de estudantes, inclusive alguns(as) colegas cisgêneros(as), espalhados(as) pela escola, que também a defendiam, embora não com tanto destaque quanto sua amiga travesti/trans. Na narrativa de Janaína, apenas essa amiga ganhou evidência, atuando em sua defesa: “vinham as pessoas e faziam ‘churrias’, sabe?! Ficavam naquela brincadeirinha, naquilo dizendo que é viado, enfim... então, tinha que ter uma pessoa para me defender, que era essa trans, que sempre me defendia mesmo”. Em outro momento ela afirma:

Eu sempre fui muito medrosa [...] e lá, ou em qualquer outra escola, tem sempre vários grupos, inclusive aqueles grupos ruins, que a gente sabe que faz coisa errada. Então, eu ficava com medo de sair e eles quererem procurar coisa comigo. [...] Aí, eu sempre saía com ela [a amiga] ou com algum grupo de amigas, sempre junto, porque eu tinha muito medo mesmo.

[...]

Eu tinha medo da “churria”, dos gritos que eu passava. [...] E, aí, você vê que... imagine: você está dentro de um local que era para ser..., para existir respeito, independentemente de qualquer coisa, e você precisar de outra pessoa para te defender de violências?! Isso para mim é muito forte. (JANAÍNA).

Janaína afirma que não teve apoio institucional e questiona o papel da escola na promoção de um ambiente seguro para ela. Entretanto, não menciona se havia o conhecimento de docentes e gestores(as) quanto às violências sofridas por ela e sua amiga. Parece pouco provável que nenhum(a) profissional da escola tenha presenciado algum dos episódios, mas Janaína não afirma a intervenção de nenhum(a) quando as situações aconteciam.

Na trajetória de Janaína, apesar de não haver percalços envolvendo episódios de violência tão complexos quanto o das demais participantes, percebe-se a centralidade do papel de seus vínculos de amizade para a possibilidade de ter um ensino médio mais linear, em um espaço menos hostil. Ela foi a única que concluiu a educação básica sem ter saído da escola em nenhum momento.

Kelly também construiu vínculos de amizade na escola e fez deles sua rede de segurança. Foi a partir deles que voltou a estudar: “voltei, porque vi vários amigos meus voltando. Pessoas iguais a mim. E uma incentivava a outra naquela época: ‘vamos estudar!’. Eu fui.” (KELLY). Nesse período, tinha muito medo do ambiente escolar: “lembro que, às vezes, vinham aqueles alunos e me gritavam: ‘viado!’. Eu morria de medo.” (KELLY). Mas os vínculos de amizade rendiam a ela uma sensação de segurança:

quando eu voltei para a escola, lá no nono ano, para ir para o colégio, eu ia junto com alguns gays, algumas lésbicas, duas travestis [...]. A gente ia e voltava junto. Todos tinham saído da escola e tinham voltado. Então, virou uma turminha. Um esperava o outro para poder ir para a escola. A gente ia, a turma toda junta, porque a gente tinha medo de ir só e sofrer violência.

[...]

Formamos uma rede de proteção. Então, quando um saía mais cedo, mandava avisar ao outro. [...] Às vezes, nem ia [embora], ficava do lado de fora esperando. A gente se protegia. (KELLY).

Seu retorno à escola teve como estratégia principal a formação de uma rede de proteção. Os vínculos de amizade foram fundamentais, tanto para incentivá-la a voltar a estudar quanto para que ela pudesse se manter na escola com menos medo das violências que passava e pudesse se deslocar no bairro para ir e voltar da escola em segurança. Assim como Janaína, Kelly não mencionou nenhum tipo de apoio institucional, concluiu o ensino médio com forte influência das amizades.

As redes de proteção fornecidas pelos vínculos de amizade foram importantes na trajetória de todas as que se mantiveram na escola em períodos pelos quais passavam por muitas violências lá. As amizades ofereceram a elas a possibilidade de se compreenderem e de existirem fora das predefinições de gênero, de reivindicarem, mesmo que por um período restrito, o reconhecimento de si. Suas redes as mobilizaram para retornar ou permanecer na escola de modo menos hostil. Não foram sempre capazes de fornecer toda a proteção necessária para uma trajetória linear na escolarização, mas deram uma existência menos limitada e a sensação, ainda que momentânea, de acolhimento, o qual precisaram muitas vezes ao longo do percurso. Frequentar a escola com apoio de vínculos de amizade tornou-se mais fácil para todas as que tiveram essas experiências.

5 Considerações finais

A escola se apresentou para as participantes como um local de difícil permanência. Todas relataram insultos, xingamentos e algumas até violência física proferidas, sobretudo, por colegas e a falta de apoio por parte da equipe pedagógica. Quando essas variadas violências eram motivadas pela discriminação de gênero ou quando a presunção de uma sexualidade divergente da heterossexual se acentuavam, foi preciso criar estratégias para se manter no ambiente escolar. Algumas relataram reagir com violência, numa tentativa de intimidar e minimizar as violências pelas quais passavam, outras não. Mas todas sentiam a necessidade de criar laços que tornassem a escola um lugar menos hostil e de interações mais agradáveis, mesmo aquelas que afirmaram não terem construído essas relações.

Assim como já mapeado nos estudos de Benedetti (2005), Andrade (2015) e de Pedra (2020), todas as seis participantes desta pesquisa afirmaram ter sofrido a maioria das violências ou ter saído da escola na adolescência. A literatura aponta como possibilidade para esse dado, o fato de que é nessa fase da vida que se acentuam as mudanças corporais e aumentam-se os sinais da reivindicação pública de reconhecimento do gênero feminino por elas, quando proporcionalmente se aumentam também as violências (PERES, 2009, 2010). Foi nessa fase da vida que as participantes lembraram-se dos mais marcantes episódios de violência no espaço escolar. Aquelas que saíram da escola, o fizeram, no ensino médio ou, ao menos, na segunda etapa do ensino fundamental.

Para as cinco participantes que saíram da escola, a decisão de sair teve definidores diferentes, mas estiveram sempre presentes, como alguns dos condicionantes, as constantes violências no espaço escolar. Essas violências tiveram um crescente aumento na quantidade de episódios e táticas utilizadas pelos agressores ou na intensidade com que aconteciam. Ao reivindicar publicamente o reconhecimento de seu gênero, uma “identidade feminina”, utilizando-se de signos associados à imagem feminina, como roupas, adereços e o gestual, as participantes ficaram mais suscetíveis aos discursos e às práticas de normatização do gênero e da sexualidade.

A construção de vínculos de amizade foi elemento importante para a compreensão de si e de questões envolvendo o gênero e para a manutenção ou retomada dos estudos no ambiente escolar, formando uma espécie de rede de proteção. As pessoas que compunham essas redes as reconheciam quanto ao gênero e se predispunham a confortá-las ou a defendê-las das agressões pelas quais passavam.

As participantes que já reivindicavam o reconhecimento público de seu gênero e não criaram vínculos de amizade na escola na adolescência tiveram maiores dificuldades em se manterem na escola e reconheceram que, com eles, teria sido menos difícil estar em um ambiente que sentiam que as repelia. Aquelas que desenvolveram esses vínculos na escola, formando redes de apoio e segurança, apesar dos episódios de violências, relataram também momentos de alegria e de comunhão com colegas.

Nas suas trajetórias, experiências positivas na escola, que facilitaram sua convivência no ambiente escolar e proporcionaram momentos de menor precariedade em relação ao gênero, estiveram também associadas à possibilidade de existirem institucionalmente no feminino. Isso aconteceu quando docentes e gestoras acataram suas demandas e passaram a respeitar, por exemplo, o nome com o qual solicitavam serem identificadas, mesmo antes de existir uma legislação regulamentando tal prerrogativa. Ao contrário, quando isso foi dificultado ou combatido institucionalmente, como em episódios de deslegitimação de suas queixas, ou impossibilidade de utilização do banheiro feminino, por exemplo, a experiência escolar tornou-se mais precarizada.

A criação dos vínculos de amizade proporcionou locais mais seguros e confortáveis para experienciarem o gênero. O reconhecimento afetivo e por similitude que esses vínculos forneceram para elas, juntamente com a proteção de não estarem sozinhas e poderem escapar ou se defender mais facilmente de situações de violência, influenciaram na possibilidade de permanecerem de maneira menos precária no ambiente escolar.

Nos cenários em que houve respeito de suas demandas por parte da gestão escolar e de docentes, juntamente com o desenvolvimento de um ambiente em que suas existências femininas eram possíveis e com vínculos de amizade, a permanência na trajetória escolar foi uma experiência possível e “restauradora”.

1A pesquisa foi submetida à apreciação do Comitê de Ética em Pesquisas (CEP) e respeitou os aspectos éticos da pesquisa com seres humanos aprovados pelo colegiado.

2Para defini-las como travestis ou mulheres trans, considerou-se a autoidentificação fornecida por elas no período das entrevistas.

3À época em que estudaram o ensino fundamental os anos escolares eram nomeados como séries, mas neste Corpos, gêneros e sexualidades optamos por fazer a conversão e adotar a nomenclatura atual, dada a partir da aprovação da Lei nº 11.274/06, que dispôs sobre o ensino fundamental de nove anos.

4Zombarias em tom estridente.

5Refere-se à segunda etapa do ensino fundamental.

6Nina passou por essa escola em 2012, somente em novembro de 2013 surgiu na Bahia um instrumento legal que dispunha sobre a adoção do nome social nos sistemas de ensino da Bahia, a Resolução CEE nº 120/2013. No âmbito nacional, os instrumentos legais surgiram ainda mais tarde: o Decreto nº 8.727/2016, que dispunha sobre a utilização do nome social na administração pública federal direta, autárquica e fundacional; e, especificamente para a educação, a Resolução CNE/CP nº 1/2018, proveniente do Parecer CNE/CP nº 14/2017.

REFERÊNCIAS

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Recebido: 31 de Agosto de 2023; Aceito: 10 de Outubro de 2023

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Doutora em Educação (UNICAMP), Mestra na área Multidisciplinar de Ciências Humanas e Sociais (UEFS), Especialista em Educação (Currículo, Didática e Avaliação) (UNEB), Licenciada em Pedagogia (UNIFACS) e em Letras Vernáculas (UEFS). Integra os Grupos de Pesquisas: “Corpo e Educação”, da UNICAMP, e “Desenvolvimento Humano e Processos Educativos” (DEHPE), da UEFS. Doutora em Educação (UNICAMP), Mestra na área Multidisciplinar de Ciências Humanas e Sociais (UEFS), Especialista em Educação (Currículo, Didática e Avaliação) (UNEB), Licenciada em Pedagogia (UNIFACS) e em Letras Vernáculas (UEFS). Integra os Grupos de Pesquisas: “Corpo e Educação”, da UNICAMP, e “Desenvolvimento Humano e Processos Educativos” (DEHPE), da UEFS.

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É professora associada (livre docente) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Possui graduação em Educação Física pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (1995), mestrado em Educação pela Universidade Federal de Minas Gerais (1998) e doutorado em Educação pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (2005). Na Unicamp, é professora na Faculdade de Educação Física e no Programa de Pós-graduação em Educação. Foi coordenadora do Serviço de Apoio ao Estudante (SAE) (2017-2021) e coordenadora do GTT Gênero do Colégio Brasileiro de Ciências do Esporte (20152017). Tutora do Programa de Educação Tutorial (PET) - Educação Física. Tem experiência na área de educação, educação física e esporte, com ênfase em gênero e sexualidade. Integra o Grupo de Pesquisa Corpo e Educação, vinculado à Faculdade de Educação Física, e o Grupo de Pesquisa Focus, da Faculdade de Educação. E-mail: altmann@unicamp.br

Corpos, gêneros e sexualidades revisado por Tatiane Almeida Ferreira

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