SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.32 issue72“MASCULINITY CRISIS”: RHETORIC OF THE ANTI-GENDER OFFENSIVE AND STATE ANTIFEMINISM“INDIGENOUS PLACE IS WHERE SHE WANTS!”: A STUDY WITH UNIVERSITY INDIGENOUS WOMEN author indexsubject indexarticles search
Home Pagealphabetic serial listing  

Services on Demand

Journal

Article

Share


Revista da FAEEBA: Educação e Contemporaneidade

Print version ISSN 0104-7043On-line version ISSN 2358-0194

Revista da FAEEBA: Educação e Contemporaneidade vol.32 no.72 Salvador  2023  Epub May 06, 2024

https://doi.org/10.21879/faeeba2358-0194.2023.v32.n72.p116-129 

Corpos, gêneros e sexualidades

O CONCEITO DE GÊNERO NO PENSAMENTO ANTIFEMINISTA BRASILEIRO CONTEMPORÂNEO

THE CONCEPT OF GENDER IN CONTEMPORARY BRAZILIAN ANTIFEMINIST THOUGHT

EL CONCEPTO DE GÉNERO EN EL PENSAMIENTO ANTIFEMINISTA BRASILEÑO CONTEMPORÁNEO

1Universidade Federal do Paraná


RESUMO

Este Corpos, gêneros e sexualidades pretende analisar como o conceito de “gênero” é compreendido no pensamento antifeminista brasileiro contemporâneo e explorar seus possíveis efeitos para o campo da educação. Inserido no campo de estudos feministas e pós-estruturalistas, este Corpos, gêneros e sexualidades discute o antifeminismo a partir do exposto no livro Feminismo: perversão e subversão, de Ana Caroline Campagnolo (2019). Três pensadoras feministas destacam-se na narrativa antifeminista no que se refere à discussão do conceito de “gênero”: Mary Wollstonecraft, Simone de Beauvoir e Judith Butler. Ao analisar a forma como este conceito é assimilado por Campagnolo (2019), conclui-se que a narrativa antifeminista delega à natureza um papel fundamental na diferenciação entre “feminino” e “masculino”, e nega o “gênero” enquanto conceito.

Palavras-chave Antifeminismo; Gênero; Feminismo

ABSTRACT

This article intends to analyze how the concept of “gender” is understood in contemporary Brazilian anti-feminist thought and explore its possible effects for the field of education. Starting from feminist and poststructuralist studies, this article discusses antifeminism from the book Feminismo: perversão e subversão, by Ana Caroline Campagnolo (2019). Three feminist thinkers stand out in the anti-feminist narrative with regard to the discussion of the concept of “gender”: Mary Wollstonecraft, Simone de Beauvoir and Judith Butler. When analyzing how this concept is assimilated by Campagnolo (2019), it is concluded that the antifeminist narrative delegates to nature a fundamental role in the differentiation between “feminine” and “masculine”, denying “gender” as a concept.

Keywords Antifeminism; Gender; Feminism

RESUMEN

Este artículo tiene como objetivo analizar cómo se comprende el concepto de “género” en el pensamiento antifeminista contemporáneo brasileño y explorar sus posibles efectos en el campo de la educación. Inmerso en el campo de los estudios feministas y posestructuralistas, este artículo discute el antifeminismo basándose en lo expuesto en el libro “Feminismo: perversión y subversión” de Ana Caroline Campagnolo (2019). Tres pensadoras feministas destacan en la narrativa antifeminista en lo que respecta a la discusión del concepto de “género”: Mary Wollstonecraft, Simone de Beauvoir y Judith Butler. Al analizar cómo este concepto es asimilado por Campagnolo (2019), se concluye que la narrativa antifeminista asigna un papel fundamental a la naturaleza en la diferenciación entre “femenino” y “masculino” y niega el “género” como concepto.

Palabras clave Antifeminismo; Género; Feminismo

O pensamento antifeminista brasileiro contemporâneo

O antifeminismo brasileiro contemporâneo conquistou visibilidade crescente desde 2018, quando foi realizado o 1º Congresso Antifeminista do Brasil, na igreja de Sant’Ana, no Rio de Janeiro. Contudo, podemos dizer que as pautas antifeministas vinham ganhando notoriedade a partir de alguns anos antes desse período. A defesa da “família” e as narrativas contra a “ideologia de gênero” cresceram durante a década de 2010, alimentando um pânico moral (RUBIN, 2018) que viria a influenciar consideravelmente as eleições de 2018 e de 2022.1 A própria candidatura e posterior eleição de mulheres autodeclaradas antifeministas, como Ana Caroline Campagnolo (eleita Deputada Estadual por Santa Catarina nos dois pleitos) e Chris Tonietto (eleita Deputada Federal pelo Rio de Janeiro nos dois pleitos), são exemplos da visibilidade que pautas antifeministas atingiram.

Mulheres feministas sempre encontraram resistências às suas pautas e embora ao longo da história os homens tenham sido os opositores mais ferrenhos ao feminismo, não podemos dizer que a existência de mulheres antifeministas seja uma exclusividade do nosso presente.2 No universo conservador e bolsonarista3, observamos uma produção teórica antifeminista liderada por mulheres, com o lançamento de livros específicos sobre esse tema. Ana Caroline Campagnolo certamente é um nome de destaque neste meio, tendo lançado em 2019 o livro Feminismo: perversão e subversão, e em 2021, o Guia de Bolso contra mentiras feministas, livro organizado por ela e que conta com Corpos, gêneros e sexualidadess de diferentes colaboradoras(es)4, incluindo a já citada deputada Chris Tonietto.

A produção teórica antifeminista interessa ao campo da educação, pois esta área tem se configurado como espaço de disputa pelas narrativas conservadoras que circulam na atualidade. O que está em jogo é a concepção que fundamenta a escola enquanto um espaço de sociabilidade e de exercício da democracia. Sendo assim, este Corpos, gêneros e sexualidades tem o objetivo de explorar como o conceito de “gênero” é compreendido pelas narrativas antifeministas e, mais especificamente, problematizar a defesa antifeminista de que existe uma natureza que determina como meninos e meninas são. Há uma insistência na necessidade de valorizar, através da educação, as supostas características inatas em cada gênero (masculino e feminino, apenas) para que a sociedade funcione bem e em equilíbrio. Por isso, a posição feminista em defesa de uma educação igualitária, através da escola pública, laica e mista, é alvo do antifeminismo, na medida em que questiona essa natureza.

A questão da “natureza” é debatida por feministas desde seus primeiros questionamentos. Afinal, seriam a natureza, a força física, os hormônios, ou a cultura, a educação e as instituições sociais, que estariam determinando o comportamento masculino de dominação em relação às mulheres? Homens são naturalmente mais agressivos e competitivos, e mulheres são dóceis e cuidadoras ou os indivíduos aprenderam a se comportar dessa forma? Tais questões representam o embate “natureza versus cultura”, que foi o pano de fundo de diferentes estudos e debates feministas e, por consequência, antifeministas, ao longo do século XX, embora já estivessem presentes no pensamento de Mary Wollstonecraft, no século XVIII. Os estudos feministas pós-estruturalistas esgarçaram esse debate quando questionaram os contornos daquilo que era tomado como “natureza” e como “cultura”. Entendendo que natureza e cultura não eram dois campos nitidamente distintos, nem opostos, essa vertente teórica colocou os discursos e as relações de poder como protagonistas na construção das diferenças sexuais.

Para apresentar as transformações pelas quais o conceito de “gênero” passou ao longo dos anos no pensamento feminista e, sobretudo, como antifeministas compreendem o uso desse conceito, três feministas amplamente citadas no livro Feminismo: perversão e subversão foram selecionadas. Os escritos de Mary Wollstonecraft, Simone de Beauvoir e Judith Butler são utilizados na narrativa antifeminista relacionada ao tema “gênero”, embora estas autoras não sejam as únicas feministas citadas nas fontes analisadas. Veremos, portanto, uma perspectiva que compreende sexo e gênero como essência, outra que relaciona sexo com natureza e gênero com cultura, e, por fim, a que compreende sexo e gênero como produtos dos discursos, embutidos em relações de poder e constituídos performaticamente. Assumindo a posição teórica que parte do pós -estruturalismo, a produção de Judith Butler sobre as questões que envolvem o gênero é central nesse texto. Para este Corpos, gêneros e sexualidades, apenas o livro Feminismo: perversão e subversão, de Ana Caroline Campagnolo (2019), será utilizado para representar o pensamento antifeminista brasileiro contemporâneo, pois é nesta obra que o tema proposto é desenvolvido.

O gênero através da natureza, da cultura e dos discursos

Ao longo da história do pensamento feminista, a forma como o sexo e o gênero foram interpretados variou ao longo do tempo e a depender da perspectiva teórica assumida. Mesmo dentro de determinado corpo teórico - humanismo, materialismo, pós-estruturalismo, por exemplo - as leituras que feministas fizeram sobre “sexo” e “gênero” não são tão fielmente delimitadas por suas correntes de pensamento, pois há críticas e deslocamentos que são próprios ao debate teórico. Ainda assim, algumas generalizações podem ser feitas, com intuito de compreender as mudanças na teoria feminista, tanto com relação aos problemas, quanto com relação aos objetos de pesquisa.

Na narrativa antifeminista brasileira contemporânea, essas distinções não existem, pois divergências e debates teóricos são compreendidos como contradições. O antifeminismo pressupõe que há uma linha contínua, da primeira à última feminista, todas teriam os mesmos objetivos. Por isso, as narrativas misturam teorias e criam pontos de continuidade para tentar conferir algum sentido à ideia de que, desde os primórdios, as feministas estariam lutando pelo fim de toda e qualquer diferença entre os gêneros, o que recentemente veio a ser chamado de “ideologia de gênero”. Nesse sentido, feministas não estariam interessadas “apenas” na igualdade jurídica, política ou na emancipação das mulheres, mas sim em destruir a “feminilidade”, a “família” e o cristianismo, através da suposta implementação da “ideologia de gênero”.

Para compreender melhor essas questões, comecemos com as primeiras teorizações feministas, iniciadas no século XVIII e XIX, nas quais “sexo” e “gênero” apareciam como sinônimos. A compreensão do que é o “gênero”, sob uma perspectiva humanista, é definida da seguinte forma por Butler (2017, p. 32, grifos da autora):

O que é a metafísica da substância, e como ela informa o pensamento sobre as categorias de sexo? Em primeiro lugar, as concepções humanistas do sujeito tendem a presumir uma pessoa substantiva, portadora de vários atributos essenciais e não essenciais. A posição feminista humanista compreenderia o gênero como um atributo da pessoa, caracterizada essencialmente como uma substância ou um “núcleo” de gênero preestabelecido, denominado pessoa, que denota uma capacidade universal de razão, moral, deliberação moral ou linguagem.

Nessa perspectiva, há uma pressuposição de continuidade entre sexo e gênero, pois ambos seriam qualidades essenciais dos seres humanos. A mulher é o seu gênero e isso significa que todas as mulheres teriam certas predisposições naturais a pensar, sentir e agir de determinada forma. A categoria “mulher”, nessa perspectiva, é definida a partir da sua condição biológica.

Os questionamentos das primeiras feministas, ainda que estivessem ancorados em uma perspectiva do sexo e do gênero como essência, já começavam a criar fissuras nesse pensamento. Para Mary Wollstonecraft, a inferioridade física das mulheres era fator determinante na sua condição de subordinação, “certo grau de superioridade física [dos homens] não pode, portanto, ser negado” (WOLLSTONECRAFT, 2016, s/n). Mesmo atribuindo um peso relevante à natureza, a escritora questiona até que ponto a situação em que as mulheres se encontravam no século XVIII era causada pela sua condição de “ser mulher”. “Não contentes com tal preeminência natural, os homens se empenham em nos afundar ainda mais, apenas para converter-nos em objetos de atração momentânea” (WOLLSTONECRAFT, 2016, s/n).

A cultura ainda não era o eixo central da análise sobre a submissão das mulheres, como seria para as feministas da segunda onda, mas a educação já aparecia como ponto central. “Deixem-nos, então, atingir a perfeição física, permitindo que façamos os mesmos exercícios que os meninos não apenas durante a infância, mas também na juventude; assim, poderemos saber até onde vai a natural superioridade do homem” (WOLLSTONECRAFT, 2016, s/n). Wollstonecraft parece querer colocar a natureza à prova, questionando até que ponto ela seria tão determinante assim na “inferioridade” das mulheres. Mais do que uma consequência da natureza feminina, Wollstonecraft apontava como fatores responsáveis pela dependência das mulheres em relação aos homens o enclausuramento feminino no lar e a restrição ao acesso a direitos básicos, como a educação. Sobre a contribuição da escritora ao pensamento feminista, Maria Lygia Quartim de Moraes (2016, s/n) afirma que:

A força do argumento de Mary está no fato de que ela não nega a inferioridade intelectual das mulheres de seu tempo, mas atribui a exclusiva responsabilidade disso aos preconceitos e limites sociais enfrentados por suas contemporâneas. As mulheres de seu meio eram educadas para o casamento e para serem sustentadas pelo marido. Segundo o modelo dominante, a beleza era o principal atributo, e a grande virtude da mulher estava em ser a guardiã do lar. No entanto, uma vez casadas, perdiam toda e qualquer autonomia, ficando à mercê da autoridade masculina. Ora, diz ela, assim as potencialidades da mulher permanecem reprimidas e, quando uma mulher quer se comportar como um ser humano, é logo tachada de masculina.

O primeiro capítulo do livro Feminismo: perversão e subversão, de Ana Caroline Campagnolo (2019), aborda as primeiras reivindicações das mulheres por igualdade e emancipação, momento que a autora chama de “protofeminismo”. Dentre os temas discutidos pela antifeminista, destacam-se a educação e a obra de Mary Wollstonecraft. Seus argumentos e sua vida são criticados ao mesmo tempo em que são utilizados para apontar supostas contradições no pensamento feminista. Isso acontece com as afirmações de Wollstonecraft sobre a superioridade física dos homens e sobre a crítica que a escritora faz à futilidade feminina. O raciocínio é construído sobre a tentativa de revelar que a primeira feminista estaria “reconhecendo” que as mulheres são inferiores fisicamente (e por consequência afirma-se que essa inferioridade é determinante em seu papel social) e são fúteis por natureza, duas premissas básicas do antifeminismo. Esse argumento é a base para a defesa de princípios ou projetos para uma educação que “respeite” a natureza.

A condição biológica das mulheres, esse “dado” da natureza, é interpretado de maneiras distintas por Wollstonecraft e pela narrativa antifeminista. Se para Wollstonecraft, como exposto anteriormente, a superioridade física dos homens foi utilizada por eles para submeter as mulheres aos seus desejos, para Campagnolo, essa mesma superioridade foi utilizada para protegê-las.

No início da civilização humana, a fraqueza feminina era ainda mais desesperadora do que é hoje. Praticamente sem nenhuma tecnologia, munidos apenas de pedaços de paus e pedras afiadas, os seres humanos precisavam comer, aquecer-se e sobreviver aos ataques de feras selvagens. Os homens dominavam as mulheres porque sempre foram fisicamente mais fortes e ágeis. Valendo-se de sua condição superior, os homens poderiam atirar crianças e mulheres para as garras dos carnívoros famintos. Ou, se quisessem preservar a espécie humana, atirar somente as mulheres que já amamentaram algumas crias e podiam ser dispensadas. Pelo contrário, os homens enfrentavam as feras e mantinham as fêmeas seguras em alguma caverna com fogo e alimento. (CAMPAGNOLO, 2019, p. 111).

Julgando a superioridade física masculina atestada em milênios, é de admirar que os homens não tenham feito na vida real o que as lendárias amazonas só puderam fazer na mitologia. Eles poderiam ter escravizado as mulheres nos trabalhos mais indignos e vazios de sentido (...). Do contrário, historicamente, observando a fraqueza e as dificuldades femininas, os homens buscaram abrandar a angústia das mulheres. Percebendo que as mulheres tinham um domínio (principalmente físico) limitado sobre a vastidão do mundo, os homens lhes criaram um mundo menor onde tudo está a seu alcance e a sua disposição: o lar. (CAMPAGNOLO, 2019, p. 133).

Apenas pela leitura do texto de Campagnolo não conseguimos saber se há algum tipo de pesquisa que possa embasar as generalizações da autora (pois não há referências), além da sua própria lógica. Em outras palavras, o raciocínio da antifeminista supõe que os homens são mais fortes, logo, poderiam ter escravizado mulheres e crianças, mas preferiram encontrar cavernas para protegê-las, na Pré-História, e criar um mundinho em miniatura para que elas não se frustrassem em não conseguir lidar com o mundo real, na Modernidade. Temos a impressão de que as mulheres são tomadas também como seres de capacidade intelectual inferior, não apenas pelo conteúdo (aquelas mulheres eram inferiores, por isso precisavam de cavernas e mundinhos em miniaturas), mas pela própria forma do argumento (pois essa explicação parece subestimar a capacidade intelectual das leitoras).

Crenças como estas estão ancoradas em um determinismo biológico, que conflita não apenas com a variedade de arranjos de gênero que foram observadas por estudos antropológicos ao longo do século XX, mas também com a história, pois a maneira como as diferenças sexuais são compreendidas mudam ao longo do tempo. As primeiras críticas feministas ao determinismo biológico que colocava as mulheres em uma condição de submissão aos homens foram construídas a partir da diferenciação entre sexo (algo da biologia, da natureza) e gênero (algo da cultura). Nesse sentido, nas décadas de 1970 e 1980, teóricas feministas desenvolveram melhor a noção de que os “papéis de gênero” não eram determinados pelo “sexo biológico” (PAULSON, 2002). Essa premissa possibilitou a compreensão de que o gênero não necessariamente deveria refletir o sexo ou ser restrito por ele.

Concebida originalmente para questionar a formulação de que a biologia é o destino, a distinção entre sexo e gênero atende à tese de que, por mais que o sexo pareça intratável em termos biológicos, o gênero é culturalmente construído: consequentemente, não é nem o resultado causal do sexo nem tampouco tão aparentemente fixo quanto o sexo. (BUTLER, 2017, p. 25).

Nessa perspectiva teórica, a cultura aparecia como responsável pela construção das diferenças e das desigualdades de gênero, enquanto a natureza ainda era percebida como algo dado, imutável. Essas teorizações marcaram a chamada segunda onda feminista, que, ao colocar a cultura sob análise, questionaram as origens e a universalidade da opressão feminina.

Essa é a fase do movimento feminista mais citada na narrativa antifeminista. Campagnolo afirma que algumas análises antifeministas, como as da americana Phyllis Schlafly (2015, apud, CAMPAGNOLO, 2019), consideram que o feminismo assumiu definitivamente seu caráter de “perversão sexual” a partir desse período, a década de 1960. Entretanto, Campagnolo (2019, p. 138) discorda dessas interpretações:

Embora a divisão entre “boa onda” e “má onda” feminista tenha sido assumida por quase todos os críticos, parece-me evidente que nenhuma mulher de boa índole teve destaque na liderança do movimento desde que ele surgiu. Do protofeminismo, Olympe [de Gouges] era facilmente confundida com uma dançarina noturna e Mary [Wollstonecraft] queria ter um relacionamento poliamoroso com Henry Fuseli. Elizabeth Stanton, famosa na primeira onda, tinha uma visão obscura do casamento e abandonou cedo a formação e fé cristã que teve. [...] Ou seja, o feminismo já nasceu com as más pretensões que só foram explicitadas tardiamente. [...] O protofeminismo de Wollstonecraft já dava os primeiros passos em direção à ideologia de gênero e tinha em sua musa um exemplo de desregramento sexual ainda no século XVIII.

Na concepção da autora, as feministas da segunda onda apenas deixariam explícito as intenções do movimento, que estavam lá desde as “protofeministas”. No capítulo em que apresenta essa “fase” do movimento, Campagnolo (2019, p. 139) afirma:

Apresento, a partir de agora, os principais nomes que confirmam o caráter sexualmente revolucionário das pautas feministas: a abortista e eugenista Margaret Sanger, a controversa Simone de Beauvoir, a incansável depreciadora das donas de casa, Betty Friedan, e Kate Millet, grande defensora de uma política sexual revolucionária.

Apesar de apresentar nomes escolhidos como representantes da segunda onda, a teoria feminista não é o centro das análises de Campagnolo, pois o foco está em provar que nas obras de todas essas mulheres haviam objetivos escusos, perversos, anticristãos, expressos na chamada “ideologia de gênero”. O conceito de gênero é tomado como uma ferramenta estritamente política e revolucionária, retirado dos contextos teóricos em que foram produzidos. Sabemos que a teoria feminista sempre teve estreita relação com o movimento, com a política, com a vida prática das mulheres. A própria ideia de que “o pessoal é político” traz isso (BUTLER, 2019). Porém, para o antifeminismo, a teoria orientou (e continuaria a orientar) a prática, assim como um ditador orienta seus súditos através do controle ideológico. É como se as teóricas feministas fossem as “cabeças” articuladoras desse grande plano contra a família. Por isso é difícil separar o que a narrativa antifeminista entende por sexo e gênero da ideia de que há um plano de destruição em curso.

Campagnolo (2019) categoriza Beauvoir como pertencente à segunda onda e Butler como pertencente à terceira onda feminista. Mas as contribuições teóricas dessas duas autoras são consideradas continuidades, e, ainda que a concepção que cada uma delas tenha elaborado sobre o gênero seja substancialmente diferente, essas divergências são ignoradas. Veremos primeiro como a autora compreende Beauvoir.

Para Campagnolo (2019), O segundo sexo (1949) é a obra inaugural da segunda onda feminista. A obra e a vida de Beauvoir são citadas com bastante frequência pela autora, que não poupa adjetivos negativos à filósofa e à sua relação com o também filósofo Jean-Paul Sartre. O livro Feminismo: perversão e subversão dedica 16 páginas apenas para contar a biografia do casal, na qual a vida sexual da autora e seus romances são analisados em detalhes.5 Sobre a obra de Beauvoir, O segundo sexo, Campagnolo (2019, p. 163) apresenta em 5 páginas uma espécie de resumo, que é intercalado com interpretações suas.

Simone abre seu primeiro volume de O segundo sexo listando a divisão sexual de várias espécies do reino animal e, com certo sadismo que não consegue esconder, ressalta aquelas em que os machos são mais descartáveis. É aquele discurso habitual das feministas, sempre tentando convencer a humanidade de que seu sexo é indispensável, e o dos homens, não apenas dispensável, mas também detestável.

Campagnolo também utiliza trechos da própria obra de Beauvoir para ressaltar o que ela avalia que são contradições, confissões, provas de que a autora “admite” algo que a antifeminista considera que é contrário ao feminismo. O trecho abaixo, que é um recorte da obra de Beauvoir, é um exemplo, a continuação do argumento de Campagnolo, exposta na sequência, também traz pontos importantes para observarmos:

A mulher é mais fraca que o homem; ela possui menos força muscular, menos glóbulos vermelhos, menos capacidade respiratória, corre menos depressa, ergue pesos menos pesados, não há quase nenhum esporte em que possa competir com ele; não pode enfrentar um macho na luta. A essa fragilidade acrescentam-se a instabilidade, a falta de controle e a fragilidade de que falamos: são fatos. Seu domínio sobre o mundo é portanto mais estrito; ela tem menos firmeza e menos perseverança em projetos, os quais é também menos capaz de executar. Isso significa que sua vida individual é menos rica que a do homem. Em verdade, esses fatos não poderiam ser negados, mas não têm sentido em si. (BEAUVOIR, 2016, p. 62, apud, CAMPAGNOLO, 2019, p. 163 e 164).

Da biologia, ela parte para uma análise histórica e sociológica da condição feminina. Desde que a obra de Simone de Beauvoir entrou em circulação, tem sido recorrente a acusação de que os homens se consideram o padrão em relação ao qual todos os outros seres humanos - ou seja, as mulheres - devem se basear. Para a autora, o “sujeito” é sempre masculino e fundindo ao conceito universal, enquanto a mulher representa “o outro”, a mulher está fora das normas universalizantes, condenada à imanência. As mulheres teriam estado sempre em condições secundárias.

Daí parte sua teoria da corporificação: o corpo masculino é um instrumento de liberdade ostensiva, basicamente por que não se impõe. A mulher, por sua vez, está sempre restrita ao seu corpo feminino, limitada e afetada por ele: na puberdade, na menstruação, na gravidez, na menopausa, etc. Simone e seu amante, Sartre, tinham problemas pessoais e íntimos em aceitar a passagem dos anos e a chegada da velhice. Em suas cartas e biografia, essa dificuldade era evidente. (CAMPAGNOLO, 2019, p. 164).

Alguns pontos são relevantes na forma como Campagnolo apresenta Beauvoir nos trechos acima. Seja utilizando as palavras da autora, como no primeiro trecho, ou não, a mesma “técnica” pode ser observada. Campagnolo recorta partes do texto, retira do contexto, não apresenta o argumento completo e adiciona a sua “interpretação” ou algum comentário que irá gerar repulsa na(o) leitora(o). No primeiro trecho, que é um recorte do texto de Beauvoir, a última frase sugere que a filósofa questiona os “fatos” sobre a inferioridade da mulher quando ela afirma que eles não têm “sentido em si”. Na leitura do texto original de Beauvoir (2016), podemos observar que o argumento construído é de fato o oposto ao apresentado por Campagnolo (2019), pois a filósofa está questionando as bases da construção da “inferioridade” feminina. Vejamos a continuação do texto original de Beauvoir (2016, pp. 62 e 63):

Em verdade, esses fatos não poderiam ser negados mas não têm sentido em si. Desde que aceitamos uma perspectiva humana, definindo o corpo a partir da existência, a biologia tornase uma ciência abstrata; no momento em que o dado fisiológico (inferioridade muscular) assume uma significação, esta surge desde logo como dependente de todo um contexto; a “fraqueza” só se revela como tal à luz dos fins que o homem se propõe, dos instrumentos de que dispõe, das leis que se impõem.

Da mesma forma, no segundo trecho citado por Campagnolo, após uma série de afirmações que não têm muita conexão entre si, a antifeminista faz um “gancho” entre as discussões sobre o corpo feminino em Beauvoir e o suposto “problema” da autora e seu “amante” com a “chegada da velhice”. Campagnolo (2019, p. 164) chega a citar um trecho em que Beauvoir discorre sobre a velhice, para confirmar a afirmação anterior. Mas novamente, fazendo a leitura do texto original de Beauvoir (2016, p. 223), percebemos que a discussão proposta é outra, pois o trecho recortado pela antifeminista está inserido em uma discussão sobre como a passagem do tempo é sentida de forma diferente por homens e mulheres.

Não podemos afirmar se estes “equívocos” na interpretação que Campagnolo faz do texto de Beauvoir são parte de uma “técnica” de escrita, que pretende esvaziar as discussões propostas, ou se eles são frutos de uma limitação teórica ou de interpretação de texto da antifeminista. De qualquer forma, sobre a obra teórica de Beauvoir, estes são os trechos mais significativos.

Para pensarmos sobre o deslocamento na questão da constituição do gênero que Beauvoir propõe, alguns trechos da narrativa antifeminista são elucidativos. Há a questão da “inferioridade” biológica, que de fato é tema discutido por Beauvoir, embora, como observamos, de forma diferente à apresentada por Campagnolo. Há ainda o seguinte trecho, em que Campagnolo (2019, p. 166) afirma:

Ao depreciar o corpo, ao odiar a maternidade, ao recriminar o curso biológico, Simone acaba com qualquer valor feminino. Quando pergunta ‘o que é uma mulher?’, ela nega a profundidade do sexo biológico na feminilidade e na identidade humana.

Devido à esta negação da profundidade do sexo biológico, a historiadora conclui que “o Segundo Sexo é como uma antevisão da teoria de gênero” (CAMPAGNOLO, 2019, p. 166). Em outro momento, a antifeminista afirma: “Não impressiona que a ama de leite da ideologia de gênero, Butler, recorra tantas vezes a Simone de Beauvoir. Mesmo que ‘gênero’ não seja um termo utilizado na publicação de 1949, ele aparece conceitualmente” (CAMPAGNOLO, 2019, p. 164 e 165).

Essa afirmativa está de acordo com a percepção de que Beauvoir foi uma das primeiras autoras a fazer a separação conceitual entre sexo e gênero, o que permitiu que análises mais complexas sobre a opressão feminina fossem desenvolvidas. No entanto, para Campagnolo, o que importa ressaltar é que aí está a “invenção” do gênero, pois a sua concepção reflete ainda aquela visão de sexo e gênero como essência. Do ponto de vista antifeminista, a análise sobre o conceito de gênero na teoria feminista poderia acabar por aqui, pois a partir da “invenção” do “gênero” por Beauvoir, tudo o que veio depois seria continuidade do “plano” de destruição do “feminino” e da “família”. Mas continuaremos com as críticas tecidas sobre o binômio sexo/natureza versus gênero/cultura para compreender quais seriam as “contribuições” de Butler para tal “plano”, segundo o pensamento antifeminista.

Diferentes pensadoras feministas problematizaram a visão dual de sexo e gênero, recorrente em teóricas da segunda onda, pois ela mantém a fixidez do sexo enquanto um atributo estritamente biológico, natural. Judith Butler publicou em 1990 uma das principais obras sobre o tema, Problemas de gênero, em que a autora reflete sobre a constituição do sexo, do gênero e da identidade. Uma das questões que nos levam a refletir sobre a fixidez do sexo passa pela sua própria definição. Butler (2017, p. 27, grifos da autora) questiona:

E o que é afinal, o “sexo”? É ele natural, anatômico, cromossômico ou hormonal, e como deve a crítica feminista avaliar os discursos científicos que alegam estabelecer tais “fatos” para nós? Teria o sexo uma história? Possuiria cada sexo uma história ou histórias diferentes? Haveria uma história de como se estabeleceu a dualidade do sexo, uma genealogia capaz de expor as opções binárias como uma construção variável?

Para a antropóloga Susan Paulson (2002), a discussão sobre as relações dinâmicas entre biologia e cultura requer a dissolução de dois mitos. O primeiro deles é a crença de que a natureza oferece apenas duas possibilidades de diferenciação sexual, ou seja, “os humanos aparecem em duas formas fisiológicas: um com características femininas e outro com características masculinas”. (PAULSON, 2002, p. 29). Paulson argumenta que há inúmeras variantes na diferenciação fisiológica dos sexos, não apenas na diferença cromossomática entre xx e xy, mas também variações intermediárias dos órgãos sexuais e no balanço bioquímico e hormonal. Em outras palavras, a constituição física do que é um macho e uma fêmea entre seres humanos não pode ser encaixada em um padrão binário. Menos ainda se observarmos as características sexuais secundárias, que, ressalta Paulson, variam muito entre os povos. Europeus, asiáticos, africanos, povos indígenas dos diferentes continentes, por exemplo, não seguem todos a classificação genérica de constituição do corpo (por exemplo, homens grandes, ombros largos, com pelos no rosto, voz grossa, etc.).

O segundo mito apontado por Paulson (2002, p. 30) é que “a biologia sexual forma o corpo até o nascimento; depois, a identidade é formada pelo gênero”. Essa premissa leva ao senso comum de que o sexo é definido no nascimento, pela constatação do olhar médico, e o gênero é construído ao longo da vida e dá significado ao corpo. Paulson (2002, p. 30) afirma que “desde o nascimento até a morte, o corpo segue se desenvolvendo e nossas visões culturais de como devem se desenvolver os corpos femininos e masculinos interagem com os processos biológicos”. A forma como determinada cultura compreende como deve ser o corpo de um homem ou de uma mulher interfere em como esse corpo será transformado ao longo do tempo, pois as características sexuais são suscetíveis aos esforços humanos de modificação.6 “Através de toda a história, os humanos têm utilizado diferentes tecnologias para transformar o corpo, muitas vezes com enfoque nas características sexuais” (PAULSON, 2002, p. 29).

Da mesma forma, Butler (2017, p. 28) argumenta que “em algumas explicações, a ideia de que o gênero é construído sugere certo determinismo de significados do gênero, inscritos em corpos anatomicamente diferenciados, sendo esses corpos compreendidos como recipientes passivos de uma lei cultural inexorável”. Assim sendo, a cultura estaria a determinar o que é um homem ou uma mulher, com a mesma fixidez que a biologia é concebida. “Nesse caso, não a biologia, mas a cultura se torna o destino” (2017, p. 29). Para Butler, o corpo não é um “mero instrumento”, “o corpo é em si mesmo uma construção” (2017, p. 30), pois ele não existe significativamente antes da sua marca de gênero.

A fragilidade dos critérios que separam as categorias de sexo e gênero sugerem, como afirma Butler, que a distinção entre elas é irrelevante.

Se o caráter imutável do sexo é contestável, talvez o próprio construto chamado “sexo” seja tão culturalmente construído quanto o gênero; a rigor, talvez o sexo sempre tenha sido o gênero, de tal forma que a distinção entre sexo e gênero revela-se absolutamente nula. (BUTLER, 2017, p. 27).

Na perspectiva de Butler não há, portanto, nada de natural por trás daquilo que a cultura estaria supostamente modificando na “superfície”. Não existe sujeito anterior à ação, sexo e gênero são ambos constituídos por matrizes de poder e discurso que os atravessam. “Assim como um roteiro pode ser interpretado de diferentes formas, e uma peça demanda texto e atuação, os corpos atribuídos de gênero atuam num espaço corporal culturalmente restrito e performam suas interpretações de acordo com as diretrizes existentes” (BUTLER, 2019, p. 223). A reiteração das práticas que formam o gênero não cessam, o gênero nunca está plenamente acabado, pois ele é um ideal.

Se há algo de certo na afirmação de Beauvoir de que ninguém nasce e sim torna-se mulher decorre que mulher é um termo em processo, um devir, um construir de que não se pode dizer com acerto que tenha uma origem ou um fim. Como uma prática discursiva contínua, o termo está aberto a intervenções e ressignificações. [..] O gênero é a estilização repetida do corpo, um conjunto de atos repetidos no interior de uma estrutura reguladora altamente rígida, a qual se cristaliza no tempo para produzir a aparência de uma substância, de uma classe natural de ser. (BUTLER, 2017, p. 69).

Esse deslocamento no conceito de gênero proposto por Butler foi fundamental para as discussões sobre quem são as(os) sujeitas(os) do feminismo. A pressuposição de que haja uma categoria de “mulher” ou “mulheres” prédefinida acarreta alguns problemas de ordem teórica e política. Um deles é a suposição de que possa haver uma forma de opressão compartilhada por todas as mulheres, uma estrutura universal ou hegemônica da dominação masculina. Butler (2017, p. 21) afirma que “a noção de um patriarcado universal tem sido amplamente criticada em anos recentes, por seu fracasso em explicar os mecanismos da opressão de gênero nos contextos culturais concretos em que ela existe”. Em outras palavras, essa é uma forma colonizadora de se “interpretar” culturas não ocidentais, pois impõe noções ocidentais de opressão.

Deriva daí a ideia de que as “mulheres” compartilham uma certa vivência de opressão ou que haja uma forma “feminina” de ver ou experenciar o mundo. Se a noção de patriarcado tem sido problematizada nos últimos anos, essas pressuposições têm se mostrado mais difíceis de ser superadas. (BUTLER, 2017). Além disso, Butler afirma que a categoria “mulheres” carrega intrínseco um binarismo de gênero, pois ela é constituída em relação ao seu oposto, o masculino. “Em que medida a categoria das mulheres só alcança estabilidade e coerência no contexto da matriz heterossexual?” (2017, p. 24). Butler ressalta ainda que a adoção de uma noção binária de feminino e masculino produz uma análise descontextualizada, pois ignora outros eixos de relações de poder que se interseccionam com o gênero, como classe, raça e etnia.

Percebemos que são muitos os tensionamentos colocados por Butler em relação ao pensamento que se desenvolveu na segunda onda feminista. Dentre a publicação de O segundo sexo, de Beauvoir, e de Problemas de gênero, de Butler, passaram-se quarenta e um anos e certamente outras teóricas feministas fizeram contribuições significativas para a reelaboração desse conceito. Agora que essas diferenças foram expostas, ainda que de forma generalista, veremos como a narrativa antifeminista apresenta a obra de Butler, especificamente.

Butler é apresentada no livro Feminismo: perversão e subversão (2019) com a introdução da chamada terceira onda feminista. São dedicadas 10 páginas para explicar a sua teoria, embora o tema e a autora sejam citados em outras seções do livro. Ao contrário de Beauvoir e de Wollstonecraft, a filósofa recebe poucos insultos de Campagnolo.7 O pensamento de Butler é frequentemente relacionado à ideia de que há um plano feminista em curso para “subverter” os gêneros.

Quando o movimento feminista insiste em falar sobre “mulheres” e em nome delas, é apenas uma questão de marketing. A propaganda é a alma do negócio e a clientela ainda é feminina. Butler confessa: “Para a teoria feminista, o desenvolvimento de uma linguagem que plena ou adequadamente represente as mulheres pareceu necessária para promover a visibilidade política das mulheres” (BUTLER, 2017, p. 40, apud, CAMPAGNOLO, 2019, p. 230).

Tenho tentado demonstrar que o movimento feminista não representa nem se interessa pela condição das mulheres, apenas se vale dessa propaganda para alcançar sua real intenção: instaurar uma revolução sexual que subverta os sexos e o sexo. A teoria de gênero estruturada por Judith Butler deixa isso claro. Ela não tem problemas em admitir seu caráter subversivo e isso nos coloca, portanto, outro dilema: será que as mulheres sabem disso? (CAMPAGNOLO, 2019, p. 231, grifos da autora).

A presença constante do tom conspiracionista é coerente com a compreensão que Campagnolo apresenta sobre Butler, afinal sua teoria seria toda uma manipulação ideológica sobre a compreensão dos gêneros. Baseada nas produções de Felipe Nery, Gênero: ferramenta de desconstrução da identidade (2017), e de Olivier Bonnewijn, Gender, quem és tu? (2015), sobre o tema, a historiadora explica o que seria a teoria de Butler:

Conforme sua teoria, a condição e conceito de “feminino” são artimanhas discursivas arquitetadas por uma sociedade masculinista e falocêntrica. Nessa sociedade, concebida na cabeça de Judith, existe uma hierarquia de gêneros - o gênero masculino controla a área de atuação do gênero feminino - que se manifesta em todos os âmbitos: desde a linguagem até a política. Ainda nessa sociedade, identifica-se que a heterossexualidade é compulsória e a impressão que temos de que o conceito “mulher” é natural não passa de outro condicionamento cultural governado pelos homens: mais uma estratégia de poder. (CAMPAGNOLO, 2019, p. 232).

Ainda citando Bonnewijn, Campagnolo (2019, p. 235) localiza a produção do conceito de gênero no meio acadêmico a partir da década de 1970, pelo “feminismo radical norte-americano”. Na sequência, a autora passa a relacionar o âmbito acadêmico a organizações, como a Fundação Ford, como se esta tivesse financiado tudo o que se produziu sobre o tema. O dinheiro de tais fundações teria aglutinado feministas em torno de uma causa:

Em 1972, a Fundação Ford começou a financiar o Women’s Studies que, em 1990, incluiu o termo “gênero” e passou a se chamar Gender Studies. Desde então, o termo tem se difundido como peste. Os professores de história e sociologia vêm adotando o “gênero” como uma “categoria de análise” e os pesquisadores o tratam por “teoria de gênero”. Torcem o nariz toda vez que chamamos a coisa pelo seu nome: ideologia de gênero. (CAMPAGNOLO, 2109, p. 235).

Alguns trechos apresentam certa coerência com o pensamento de Butler, ainda que sejam mais frases soltas do que parágrafos com uma argumentação articulada. “Ela [Butler] vai além do conceito de gênero mais conhecido; afirma que é mais do que uma interpretação cultural, sendo ele mesmo responsável até pela forma com que se ‘constroem’ os fatos biológicos” (CAMPAGNOLO, 2019, p. 237). Mas em outros momentos a interpretação que a historiadora faz dos recortes do texto de Butler são visivelmente equivocados.8 A autora insiste na afirmação de que, para Butler, “o ser humano nasce ‘neutro’ e o gênero constrói tudo” (idem, p. 236). Ou seja, apesar de algumas frases soltas ter alguma coerência, a antifeminista não consegue diferenciar o conceito de gênero para Beauvoir e Butler.

Portanto, este parece ser o ponto em que a teoria de Butler é tomada como uma extensão do pensamento de Beauvoir. Esta já teria afirmado que “ninguém nasce mulher”, expondo o caráter construído do gênero, depois Butler teria afirmado a ficção das categorias mulher e homem, afirmando que as pessoas nascem “neutras” e por isso poderiam “escolher” qualquer gênero. Essa é a interpretação vulgar da teoria de Butler, que fundamenta o pânico em torno da palavra “gênero”, a ideia de que as pessoas poderiam mudar seu gênero a qualquer momento. “A opção de gênero não é uma escolha que se faz de uma vez por todas na vida e pode mudar quantas vezes quisermos” (MARTINS NETO, 2017, p. 37, apud, CAMPAGNOLO, 2019, p. 232 e 233). Sobre a terceira onda, Campagnolo (2019, p. 235) afirma: “finalmente, as feministas apresentaram a multiplicidade de gêneros”.

A ideia de que Butler defende que todos nascem “neutros”, e que essa suposta neutralidade seria um ideal para o movimento feminista, é recorrente na produção antifeminista.

O feminismo não propõe a destruição de todas as normas, apenas deseja substituir aquelas baseadas na tradição por novíssimas normas fluidas e, até o momento, fluídas e autoritárias demais. (CAMPAGNOLO, 2019, p. 230)

Em suma, a proposta é que a participação na revolução sexual feminista se inicie com a negação da nossa identidade sexual (sexo) e passando a adotar posturas e comportamentos (gênero) que não se defina nem para masculinidade nem para a feminilidade, que nos tornemos todos nós uma réplica da própria Butler: alguém para quem se olha sem conseguir enxergar uma mulher, tampouco um homem completo. (CAMPAGNOLO, 2019, p. 234).

Esse argumento pretende inverter a lógica das análises feministas. Butler afirma que a heteronormatividade é coercitiva e que corpos ininteligíveis são excluídos e são passíveis de uma série de violências. Então, a narrativa antifeminista dirá o mesmo sobre o feminismo, que essa teoria é “autoritária”, que pretende impor uma nova norma, e até mesmo a palavra “homonormatividade” é utilizada (CAMPAGNOLO, 2019, pp. 306, 373). A base empírica (os dados sobre violências de gênero) ou a base teórica (a complexidade do conceito de gênero e suas mudanças dentro do próprio pensamento feminista) são irrelevantes, pois no final a conclusão da narrativa é sempre a mesma: há um plano de destruição da moral, da família, da tradição cristã e etc. que estaria em curso através da implementação da “ideologia de gênero”.

Considerações finais

Tomando como base as concepções sobre sexo e gênero presentes no pensamento de Wollstonecraft, Beauvoir e Butler, podemos afirmar que o antifeminismo se afasta de todas, negando conceitualmente o gênero. Em outras palavras, a categoria ou a palavra “gênero” seria uma invenção das feministas para subverter uma ordem já estabelecida pela “natureza”. Porém, a própria negação dessa palavra afirma a sua potência política. É uma palavra perigosa, não por acaso é o alvo do recente processo de pânico moral no Brasil, que encontra sua expressão na chamada “ideologia de gênero”. O perigo está no questionamento de uma ordem natural dos gêneros, que supostamente equilibraria a família, o mundo, e a civilização ocidental. Por isso, todo o esforço da retórica antifeminista está ancorado em afirmar que existe uma natureza que funda os sexos/gêneros (feminino e masculino, apenas), determinando o papel que cada um deles deve desempenhar na sociedade.

Esses princípios fundamentam concepções de educação que ainda estão ancoradas na dualidade dos gêneros. Nessa perspectiva, as diferenças entre meninas e meninos são afirmadas como parte de uma natureza inquestionável, como se pudéssemos afirmar que todas as meninas ou todos os meninos compartilham de certas características em comum que decorrem da sua natureza, independente de outros marcadores da diferença, como classe, raça, região ou idade, por exemplo. É uma tentativa de reforçar normas e padrões ancorados na heterossexualidade patriarcal, em que mulheres tinham sua função principal no lar, no cuidado com casa, filhas(os), marido e não na sua independência e autonomia.

Os ideais que fundamentam práticas educacionais feministas prezam pela diversidade, pela multiplicidade de corpos, experiências e vivências. Portanto, ao projetar-se contra os ideais de uma sociedade mais diversa, as narrativas antifeministas não apenas reforçam estereótipos de gênero, mas também atacam a própria democracia. Como bem apontou Biroli (2020, p. 137), “o fato de que as reações contra o gênero são uma característica comum dos processos de erosão da democracia” na América Latina e no mundo, aponta para o fato de que esse tema precisa ser considerado nas análises sobre os rumos da política atual no Brasil.

1Maria Rita de Assis César e André Duarte (2017) consideram que o processo de pânico moral em torno do “gênero” no Brasil se iniciou com a rejeição do programa Escola Sem Homofobia pelo Congresso Nacional em 2011, quando este ficou pejorativamente conhecido como “kit gay”. A partir desse ponto a pauta antigênero ganhou força em outros momentos, como a aprovação do Plano Nacional de Educação em 2014 e dos Planos Municipais e Estaduais de Educação em 2015.

2Christine Bard (2000) aponta que no contexto francês, já no início do século XX a figura das “masculinettes” aparece representando as inimigas do feminismo. No Brasil, Rachel Soihet (2008) analisa a atuação de mulheres públicas que se posicionavam contra o feminismo, nas décadas de 1970 e 1980.

3Neste texto, “conservadorismo” e “bolsonarismo” são conceitos pertinentes para descrever a atuação de uma “nova” direita no Brasil, que cresceu afirmando-se “conservadora” e em torno da figura do ex-presidente da República Jair Bolsonaro. Marina Lacerda (2019, p. 18) afirma que “a nova direita é aquela em torno da família tradicional, do anticomunismo e do militarismo; e de valores de mercado, nesse aspecto com várias nuances”.

4Com relação à flexão de gênero dos substantivos, optei pelo uso do feminino antecedendo o masculino, como forma de evidenciar e quebrar a tendência em generificar no masculino.

5A historiadora Sylvie Chaperon (2000) afirma que O segundo sexo foi um dos livros (escrito por uma mulher e para mulheres) mais debatidos nos meios intelectuais franceses. A obra gerou intensas polêmicas e provocou reações violentas por parte de intelectuais e do público em geral, desde a sua publicação. Em virtude disso, diversas biografias sobre Beauvoir e sua relação com Jean-Paul Sartre foram produzidas, desde autobiografias escritas pela autora até trabalhos mais recentes. Campagnolo (2019) usa como referência o livro Uma relação perigosa, escrita por Carole Seymour-Jones, publicada em 2020.

6Por exemplo, a prática de amarrar os pés para que eles não cresçam ou a prática de utilizar uma faixa apertada ou espartilhos para afinar a cintura, pois são ideais de feminilidade em certas culturas. Paulson (2002, p. 30) afirma que até mesmo a oferta diferenciada de alimentos a meninos e meninas, principalmente em contextos de escassez, podem influenciar no desenvolvimento do corpo. A crença de que as mulheres “nascem fracas” ou que têm a “saúde delicada” é instalada em contextos em que restrições culturais “não permitem a elas andar, fazer exercício, respirar profundamente, comer muito etc. são práticas de gênero que influenciam a saúde e o corpo durante o seu desenvolvimento”.

7Os ataques pessoais a Butler são todos centrados em sua aparência. Por exemplo, “sua aparência física transmite a mesma sensação de confusão que sua obra mais célebre” (CAMPAGNOLO, 2019, p. 232). Certamente isso não se deve a alguma simpatia da autora, mas possivelmente, à ausência de biografias publicadas sobre Butler e ao fato de ela estar viva, e portanto, os insultos poderem ter consequências legais.

8Por exemplo: “A professora Butler define ‘gênero’ como um conceito concebido para: ‘questionar a formulação de que a biologia é o destino, a distinção entre sexo e gênero atende à tese de que, por mais que o sexo pareça intratável em termos biológicos, o gênero é culturalmente construído: consequentemente, não é nem o resultado causal do sexo nem tampouco tão aparentemente fixo quanto o sexo’” (BUTLER, 2017, p. 26, apud, CAMPAGNOLO,2019, p. 236). Neste Corpos, gêneros e sexualidades utilizei essa mesma citação de Butler por ilustrar um momento em que ela refere-se às feministas radicais, e não ao conceito de gênero que ela própria desenvolve.

REFERÊNCIAS

BARD, Christine. Para una historia de los antifeminismos. In: BARD, Christine (org.). Un siglo de antifeminismo: el largo camino de la emancipación de la mujer. Madrid: Editorial Biblioteca Nueva, 2000. p. 25 - 39. [ Links ]

BEAUVOIR, Simone. O segundo sexo: fatos e mitos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2016. [ Links ]

BIROLI, Flávia. Gênero, “valores familiares” e democracia. In: VAGGIONE, Juan Marco; MACHADO, Maria das Dores Campos; BIROLI, Flávia. Gênero, neoconservadorismo e democracia. São Paulo: Boitempo, 2020. p. 135-187. [ Links ]

BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2017. [ Links ]

BUTLER, Judith. Atos performáticos e a formação dos gêneros: um ensaio sobre fenomenologia e teoria feminista. In: HOLLANDA, Heloísa Buarque de. (Org.) Pensamento feminista: conceitos fundamentais. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2019. p. 213 - 230. [ Links ]

CAMPAGNOLO, Ana Caroline. Feminismo: perversão e subversão. Campinas, SP: VIDE Editorial, 2019. [ Links ]

CÉSAR, Maria Rita de Assis; DUARTE, André de Macedo. Governamento e pânico moral: corpo, gênero e diversidade sexual em tempos sombrios. Educar em Revista, v. 33, n. 66, p. 141-155, 2017. [ Links ]

CHAPERON. Silvie. Justicia para el “segundo sexo”. In: BARD, Christine (org.). Un siglo de antifeminismo: el largo camino de la emancipación de la mujer. Madrid: Editorial Biblioteca Nueva, 2000. p. 11 - 23. [ Links ]

LACERDA, Marina Basso. O novo conservadorismo brasileiro: de Regan a Bolsonaro. Porto Alegre: Zouk, 2019. [ Links ]

PAULSON, Susan. Sexo e gênero através das culturas. In: ADELMAN, Miriam; SILVESTRIN, Caelsi B. Coletânea gênero plural. Curitiba: Ed. UFPR, 2002. p. 23-32. [ Links ]

RUBIN, Gayle. Políticas do sexo. Ubu Editora LTDAME, 2018. [ Links ]

SOIHET, Rachel. Mulheres investindo contra o feminismo: resguardando privilégios ou manifestação de violência simbólica?. Estudos de Sociologia, v. 13, n. 24, 2008. [ Links ]

WOLLSTONECRAFT, Mary. Reivindicação dos direitos da mulher. Tradução Ivania Pocinho Motta. - 1ª ed. - São Paulo: Boitempo: Iskra, 2016. [ Links ]

Recebido: 29 de Agosto de 2023; Aceito: 14 de Outubro de 2023

*

Doutoranda em Educação pela Universidade Federal do Paraná. Pesquisadora do Laboratório de Investigação de Corpo, Gênero e Subjetividades na Educação (Labin). E-mail: karimottin@gmail.com

Creative Commons License Este é um Corpos, gêneros e sexualidades publicado em acesso aberto (Open Access) sob a licença Creative Commons Attribution, que permite uso, distribuição e reprodução em qualquer meio, sem restrições desde que o trabalho original seja corretamente citado.