1 INTRODUÇÃO
A problemática que nos envolve para organizar este texto está inscrita no conjunto dos objetos de pesquisa com os quais temos nos envolvido nos últimos anos em torno do campo do currículo. A discussão feita aqui originou-se no grupo de pesquisa1 que coordenamos, no qual um dos objetos têm sido o impacto curricular da BNCC nas escolas de Ensino Médio, bem como um projeto de pesquisa2 em andamento.
Como bem caracteriza Freitas (2014), a agenda educacional brasileira, há algum tempo, vem sendo disputada entre os educadores profissionais e os reformadores empresarias da educação. A afirmação está embasada na ideia de que aos olhos da “racionalidade neoliberal” (DARDOT; LAVAL, 2016, p. 23), a educação é um campo muito estratégico e perigoso para ficar somente a mercê dos educadores.
Na atualidade brasileira, enfrentamos uma disputa de natureza curricular sobre o projeto de Educação e formação que deve ser ofertada nas escolas de Ensino Médio: se um projeto que valorize a relação ensino/aprendizagem e a formação humana integral, em uma visão que integre a educação profissional, a formação básica e a formação geral, atendendo às especificidades da juventude brasileira ou, simplesmente, um projeto de alinhamento à “agenda propositiva global3” (BALL, 2014, p. 11). Uma “agenda estruturada” (DALE, 2004) aos grandes modelos de políticas transnacionais com interesses, sobretudo, de natureza econômica e mercadológica.
Para Ravitch (2011), em outros países que passaram pela mesma situação, essa agenda, há algum tempo, revela sinais de fracasso e de insucesso. O exemplo que a Finlândia nos dá é emblemático para demonstrar que as políticas curriculares só podem ser pensadas na e para a escola, se houver valorização dos professores com muito investimento e financiamento na educação (SAHLBERG, 2015). Sem investimento, vê-se que essa disputa curricular tem apenas o foco de construir uma nova racionalidade para o currículo escolar de modo a suplantar “velhos” modelos que não atendem mais à racionalidade do mercado.
As práticas curriculares anteriores à reforma são negadas e/ou criticadas como desatualizadas, de forma a instituir o discurso favorável ao que será implantado: mudanças nas políticas educacionais visando à constituição de distintas identidades pedagógicas consideradas necessárias ao projeto político-social escolhido (LOPES, 2004, p. 110).
Nesse contexto, é que surge a discussão curricular que a construção de uma Base Nacional Comum Curricular (BNCC), que, por sinal, já está em sua terceira versão, como uma das estratégias-chave da racionalidade neoliberal para se defender uma visão de educação e formação como grande negócio global (BALL, 2014), atendendo, assim, aos interesses econômicos dos dominantes, sobretudo atrelada à política de avaliações em larga escala (ENEM, SAEB, PROVA BRASIL, PISA e várias outras). São essas avaliações que denunciam os baixos índices do Brasil, desencadeando um fluxo político-econômico de aquisições, compras, parcerias público-privadas em busca do apostilamento de materiais, formações, consultorias e gestão, todos com o rótulo de pedagógico, desvalorizando assim o professor e restringindo-o a um executor, um aulista/conteudista e um sabedor-fazedor (FREITAS, 2014; THIESEN, 2016).
Tomando alguns estudos de Apple (2008), podemos afirmar que essa BNCC, em processo de implantação no Brasil, estaria associada àquelas políticas de reorientação curricular de países centrais como os Estados Unidos da América (EUA), a Austrália, a Coréia do Norte, a Inglaterra, a Espanha e outros, além de países latino-americanos como Chile, México, Honduras, Colômbia, todas construídas a partir de determinadas alianças sociais, políticas e econômicas, embora sabemos que a diferença básica entre esses países e o Brasil está no investimento e no financiamento feito em Educação. Sobre essas alianças, na promessa de modernização e de atualização do Ensino Médio, emergem os reais objetivos da racionalidade neoliberal na educação, como a melhoria da produtividade, dos custos, do controle e eficiência dos índices escolares (DARDOT; LAVAL, 2016).
No Brasil, em especial, essas alianças utilizam-se de slogans midiáticos e panfletários, oriundos da internacionalização dos modelos educacionais (THIESEN, 2018), nos mais diversos territórios empresariais e educacionais, bem como no campo da opinião pública. Atrelada à ideia de legitimação pública, configura-se também a construção de um discurso que reverbera internacionalmente, enfatizando ao mundo que o Brasil tem a capacidade de ofertar um projeto de Ensino Médio, por meio da reforma de seu currículo oficial, atendendo às demandas dos grandes modelos internacionais e centrada na formação por competências (THIESEN, 2018) para ocultar a tradicional lista de conteúdos a serem ensinados. Todavia, esses slogans midiáticos não revelam à opinião pública como essa reforma curricular vem ocorrendo de forma turbulenta, caótica e distante das realidades das escolas e de seus atores envolvidos. Sobre a reforma curricular, Thiesen (2018) afirma que
[...] há uma concentração de esforços, nitidamente voltados para reconfiguração, restruturação e redesenho dos currículos. Esse movimento representa a tentativa de dar ao EM [Ensino Médio] esse caráter da integração entre a formação básica, a formação no sentido mais acadêmico, na continuação dos estudos e na formação profissional (THIESEN, 2018, p. 153).
A partir desse contraditório e complexo cenário educacional brasileiro, nosso objetivo neste artigo é problematizar algumas das tensões entre as políticas curriculares para o ensino médio da atualidade, a saber: a reforma do Ensino Médio com a Lei No 13.415, de 16 de fevereiro de 2017, e o lançamento da terceira versão da BNCC, em abril do ano de 2018, caracterizando-se, assim, como tensões que se engendram por meio de disputas e interesses em jogo. São tensões que se intensificam após uma virada educacional pós-golpe midiático, jurídico e parlamentar que culmina com a saída da Presidenta Dilma Rousseff, em torno da formação humana que fica sob responsabilidade do Ensino Médio, fazendo emergir relevantes impactos não só na perspectiva curricular, mas, sobretudo, na formação docente.
Como bem nos lembra Silva, M. R. da (2015), Adorno já nos alertava para o controle ao que ele denominava de sociedade administrada, com educação específica para atividades rotineiras e cotidianas, em contraposição a uma educação em que pese a formação humana como sendo socialmente mediada, já que o homem é, sobretudo, um ser social e histórico.
Ressaltamos a crítica de T. W. Adorno, especialmente a formulada em Teoria da Semicultura sobre a educação que se limita a formar para a resolução de tarefas cotidianas e impõe à formação um caráter pragmático. O autor assevera que, nessa condição, a educação se volta para atender prioritariamente, quando não exclusivamente, às necessidades do trabalho, da indústria, do mercado, e impõe ênfase à instrumentalização que conduz à adaptação dos indivíduos ao que chama de ‘sociedade administrada’ (SILVA, M. R. da, 2015, p. 369).
Esse reducionismo limitador da experiência formativa do humano tem sido alvo de inúmeras práticas presentes nos currículos escolares, responsável, sobretudo, pela limitação da formação em si, por seu confinamento à condição de semiformação de que Adorno nos alerta (SILVA, M. R. da, 2015). Uma limitação que fragiliza o conhecimento a ser problematizado nas escolas, reduzindo-se à preocupação apenas com aquilo que tem aplicabilidade no mercado de trabalho ou com o “saber-fazer”. Nessa óptica, qual seria o espaço institucional que deveria problematizar as eleições, as migrações internacionais e tantos outros dilemas da nossa sociedade contemporânea? Qual a razão para não discuti-los na escola de modo crítico e analítico?
Em relação ao caminho teórico-metodológico, a partir de estudos e de concepções do campo curricular, sobretudo as teorias do currículo, propomos uma discussão teórica e sistematizada de caráter bibliográfico, em torno de alguns conceitos como disputa curricular, política curricular e currículo, em interface com concepções/visões de educação e formação humana que têm sido negligenciados em meio à racionalidade ultraliberal, marcada pelo conservadorismo e autoritarismo social. Tal discussão é feita acompanhada de uma análise documental, tomando como fontes duas políticas curriculares brasileiras que impactam no Ensino Médio, no período de 2016-2018, que compreende o final do governo Dilma e início do governo golpista de Temer, que são: a Lei No 13.415/2017 - Reforma do Ensino Médio; e, a BNCC do Ensino Médio - 3ª versão (2018). Complementando a análise, valemo-nos da leitura de outros documentos oficiais em vigência como a LDB No 9.394, de 20 de dezembro de 1996, a Lei No 13.005, de 25 de junho de 2014, e as Diretrizes Curriculares para a Educação Básica (BRASIL, 2013).
Para facilitar a compreensão, este artigo está organizado em quatro partes: a primeira identifica quem são os sujeitos, as ações, as forças e as resistências nas tensões curriculares; a segunda aborda as políticas curriculares para a escola de Ensino Médio em destaque no cenário nacional contemporâneo, sobretudo a reforma do Ensino Médio com a Lei No 13.415/2017 e a implantação da terceira versão da BNCC (BRASIL, 2018); a terceira reflete sobre os impactos dessa última BNCC para o contexto escolar; e a quarta e última parte identifica quais as reflexões possíveis a serem descortinadas em meio à disputa curricular do Ensino Médio na atualidade.
2 DISPUTAS CURRICULARES: FORÇAS E RESISTÊNCIAS
Desde os anos de 1970 e, no Brasil, nos anos de 1980, existem discussões teóricas afirmando que não é nova a concepção de currículo como campo de disputa e conflito de interesses e poderes entre dominantes e dominados, opressor e oprimido (APPLE, 2008; FERNANDES, 2015; SILVA, T. T. da, 2015). Uma disputa para aquilo que Young (2007) diferencia como sendo “conhecimento poderoso” e “conhecimento dos poderosos” (YOUNG, 2007, p. 1293) e, portanto, uma disputa em torno de qual conhecimento (o quê) deve ser ensinado nas escolas, dicotomizada por classes sociais diferentes que demandam interesses das mais diversas ordens: financeiros, políticos, mercadológicos, religiosos, etc. Assim, manifesta-se o tempo todo entre as políticas e as práticas escolares um conhecimento fragilizado com intencionalidades reduzidas a um grupo dominante de interessados e não uma educação democrática para todos, mais humana, crítica e analítica.
Apple (2001, 2002) já nos alertava para essa disputa que não é nova e tem sua origem a partir da emergência de alianças de classes que se configuram em quatro grandes grupos: neoliberais, neoconservadores, populistas autoritários e classe média profissional. Sobre esses grupos, resumidamente, no que tange ao campo educacional, para os neoliberais as escolas públicas são instituições sem resultados adequados que devem atender aos padrões do mercado, transferindo as tomadas de decisões da esfera pública para a privada; para os neoconservadores, há uma defesa de que o Estado tenha um currículo único, defendendo os valores tradicionais (brancos, cristãos, etc.), sem o reconhecimento das minorias, com conteúdo e métodos definidos; para o populismo autoritário, de origem direita cristã, tem-se que o gênero e a família são princípios divinos, desconsiderando por completo as minorias, os direitos das diferentes classes e as condições histórico-sociais. Por último, para a classe média profissional, tem-se como ideal o gerenciamento das escolas públicas pela rede privada, preocupadas somente com os resultados e defendendo as disciplinas tradicionais e o ensino prático, com forte discurso opressivo e preconceituoso (APPLE, 2002).
Para além dessas alianças de classes, ainda em nome da velha disputa sobre o currículo escolar, podemos dizer que, na atualidade, entram no jogo, com mais força e resistência, aqueles que Arroyo (2011, p. 23) chama de sujeitos da ação educativa, os “docentes-educadores e os alunos-educandos”, exigindo não apenas serem ensinantes e aprendizes dos conteúdos curriculares, mas serem reconhecidos como sujeitos de experiências sociais e de saberes que podem reinterpretar e reinventar o que se apresenta como verdade nos currículos prescritos.
Como exemplos, tivemos o movimento de ocupação das escolas pelos alunos do Ensino Médio em 2016, as várias manifestações de associações e entidades4 que representam os profissionais da Educação Básica e Ensino Superior durante os anos de 2016, 2017 e 2018, os movimentos de resistência nas últimas audiências públicas sobre a BNCC do Ensino Médio em São Paulo e Fortaleza no ano de 2018 e, por último, o recuo5 de Temer e do Conselho Nacional de Educação (CNE) para mudar novamente a BNCC do Ensino Médio e “[...] atenuar as resistências à proposta”6, de modo a detalhar a presença das ciências humanas e da natureza em uma espécie de disciplinas a la carte, bem como dar mais rigor e clareza para as disciplinas de Matemática e de Português, únicas áreas citadas no documento como obrigatórias. Na mesma reportagem da Folha de São Paulo, o Ministro da Educação, Rossieli Soares da Silva, afirma que “[...] entendemos agora, ouvindo a sociedade, que devemos aprofundar isso, e faremos” (SALDAÑA, 2018, n.p.).
Na afirmação de Cesar Callegari7, ex-presidente do CNE, após sua renúncia em junho de 2018, o recuo do MEC para reelaborar a BNCC é coerente: “A base traz apenas generalidades sem nenhuma capacidade de orientar as escolas. Fico feliz em saber que pelo menos o MEC assume que o trabalho que realizou é incompleto e que precisa ser modificado, mas defendo que o texto seja refeito” (SALDAÑA, 2018, n.p.).
Assim, os coletivos populares, embalados por um amplo movimento de afirmação, inverteram a antiga lógica: articulam seu direito à escola à conquista e ocupação de outros espaços e, com isso, pressionam o currículo oficial para incorporar o resultado de suas lutas (FAVACHO, 2012, p. 929).
O embalo desses movimentos sociais tem ameaçado fortemente o currículo oficial, prescrito, denominado de BNCC, uma vez que faz brotar uma inesperada ação que adentra os processos de escolarização por diferente via, a do acesso pelo direito, rechaçando o caráter excludente, antidemocrático, conteudista e cognitivista da escolarização, bem como de privilégio para somente algumas áreas do saber.
Podemos afirmar que estamos em um tempo que nós, educadores críticos que somos, moralmente obrigados, mais do que outros tempos, a retomar perguntas cruciais sobre o nosso ofício, a nossa profissão, o nosso trabalho e a nossa intelectualidade. Estamos em meio a uma luta decisiva sobre qual a formação humana que cabe ao Ensino Médio, resumido em o que ensinar nas escolas, caracterizado pelo MEC, não como currículo, mas como base8 reduzida a uma listagem de competências, “[...] conteúdos travestidos ‘direitos e objetivos de aprendizagem’ [...]” (SILVA, M. R. da, 2015, p. 368), para fins mercadológicos na última BNCC e distanciadas da formação integral do ser humano. Essa base, nada mais que um currículo prescrito de saberes a serem dominados, com uma roupagem atualizada da conhecida e ultrapassada racionalidade sistêmica que traz em seu bojo a elaboração curricular tecnicista, recheada dos já conhecidos modelos de Benjamin Bloom e Robert Mager, detalhando as habilidades, codificadas com letras, números e códigos, em uma lógica positivista e com alto grau de tecnibilidade (MACEDO, 2018).
A luta é maior ainda, já que se caracteriza pelas concepções que se têm sobre o que significa currículo, que se estabelece de forma diversa entre os seus críticos e teóricos e aqueles sujeitos mentores e decisores de políticas curriculares do MEC, os conhecidos policy makers, sem esquecer de seus interlocutores que não são somente os profissionais da educação, mas, em sua maioria, integrantes dos movimentos financiados pelos empresários e políticos, com o slogan de institutos educacionais e do bem-estar social, a exemplo do Todos pela Educação9 e Movimento pela Base10.
Mais ainda, é uma luta sobre o que significa uma educação ideal no Ensino Médio para a sociedade atual. De qualquer forma, na racionalidade neoliberal, somos cientes de que aquilo que o Ministério da Educação tem denominado de BNCC, conceituada pelo ele próprio como uma base para construção dos currículos nas redes municipal e estadual, e que nós, os críticos do currículo, definimos como sendo um currículo prescrito, oficial, apresentado em forma de competências, trata-se, na verdade, de um projeto hegemônico, centrado na primazia do mercado, nos valores puramente econômicos, nos interesses dos grandes grupos sociais, financeiros e empresariais, além de organismos internacionais e multilaterais (FREITAS, 2014).
Para além dessa dimensão prescritiva, é preciso reconhecer que por meio da palavra currículo se expressam também o fazer propriamente dito, as ações por meio das quais se realiza o processo formativo no tempo-espaço da escola, processo este nem sempre circunscrito ao que está prescrito (SILVA, M. R. da, 2015, p. 370).
As palavras-chave desse contexto de tensão no Ensino Médio e seu currículo em que os dominantes expressam sua visão de mundo, seu projeto social e sua verdade educacional estão travestidas de termos, como competitividade, flexibilização, ajuste, globalização, privatização, mercado, desregulamentação, qualificação, consumidor, treinamento, técnica; enfim, todos ocultando em muito a racionalidade da lógica neoliberal (DARDOT; LAVAL, 2016). Tais termos emergem em detrimento de outros, como: igualdade, direitos sociais, justiça social, cidadania, espaço público, democracia, etc. Nenhum desses termos é novo e emerge na atualidade com algum vigor que não aquele que Brandão (1989) já nos apresentava quando produziu um grande clássico ao questionar o que é educação.
‘Investimento’, ‘mão-de-obra’, ´preparação para o trabalho’, ‘capacidades técnicas adequadas’... são os nomes que denunciam o momento em que os interesses políticos de emprego de uma força de trabalho ‘adequadamente qualificada’ misturam a educação antiga da oficina com a da escola, reduzem o seu compromisso aristocrata com a ‘pura’ formação da personalidade e inscrevem o ato de educar entre as práticas político-econômicas das ‘arrancadas para o desenvolvimento’. (BRANDÃO, 1989, p. 84-85).
Essas arrancadas das sociedades capitalistas são na maioria das vezes estratégias de reorganização da vida social, que vão e vem com mais intensidade a depender da racionalidade global contemporânea, atendendo sempre aos interesses de reprodução do capital em que pese a multiplicação dos ganhos dos poderosos capitalistas e a exploração do trabalhador. Essa tem sido a crítica feita por educadores e teóricos que procuram compreender como a Educação tem sido perspectivada na sociedade, bem como sob que condições ela tem sido praticada contra o homem ou a seu favor. Nesse processo de tensionamento, o currículo escolar que emerge não é apenas objeto de disputa, mas mais do que isso, ele se materializa como local de luta e de conflito (APPLE, 2008). Mais do que comparar e discutir as diferentes visões de sociedade, Educação e formação humana que estão em jogo, é fundamental procurar reconhecer de onde, para que e em nome de quem essas visões vêm e se conformam na sociedade. Assim, é importante problematizar como e para que este ou aquele tipo de educação e currículo são pensados, criados e postos a funcionar.
Na atualidade, tem-se que o projeto de sociedade contemporâneo perpassa pela consolidação de um projeto neoliberal em que a educação é um grande e poderoso negócio (DARDOT; LAVAL, 2016). A respeito do neoliberalismo, ele “[...] não é apenas uma ideologia, um tipo de política econômica. É um sistema normativo que ampliou sua influência ao mundo inteiro, estendendo a lógica do capital a todas as relações sociais e a todas as esferas da vida” (DARDOT; LAVAL, 2016, p. 7). Para o neoliberalismo, a Educação é vista como simples instrumento de acesso para atingir as metas econômicas compatíveis aos seus interessados que culminam com um único objetivo: de um lado, um grupo de indivíduos privilegiados, selecionados, adaptados à suposta competição do cenário ideal criado pelos mecanismos do mercado; e, de outro, a grande massa de indivíduos relegados a trabalhos rotineiros e repetitivos ou ainda ao rol dos desempregados (SILVA, 2010).
Como centro do projeto de Educação, a racionalidade neoliberal toma o currículo como um dos espaços de profusão da sua dominante proposta. Pela tradição crítica, viu-se que é no currículo que se se estabelecem as interfaces entre as práticas de significação, de identidade social, de poder e de saber, e, por isso, ele se encontra no centro dos atuais projetos de reforma social e educacional em diversos países, reforçando a legitimidade e a autoridade, em nome da eficiência e controle (RAVITCH, 2011; APPLE, 2008).
É pelo currículo que vemos um grande tensionamento, ou seja, um jogo em disputa e, nesse cenário, é preciso que nos atemos a problematizar qual é a nossa aposta, qual é o nosso lado no jogo; enfim, que crítica e resistência construímos ao currículo que chamam de base que nos é apresentado sem qualquer discussão democrática.
3 AS POLÍTICAS CURRICULARES DE ENSINO MÉDIO: O FETICHE DA BNCC E DA REFORMA CURRICULAR
O que nos move neste item é a problematização em torno do campo de produção, de elaboração e de implantação, no Brasil, de modo contraditório, arbitrário e antidemocrático, de duas políticas curriculares para a escola de Ensino Médio no período de 2016-2018: a Lei No 13.415/2017 - Reforma do Ensino Médio e a BNCC do Ensino Médio - 3ª versão (2018). Esse período compreende a transição do governo Dilma Rousseff e início do governo Michel Temer após um golpe midiático, jurídico, parlamentar e político, abrindo um espaço no cenário nacional para um desmonte das políticas curriculares de Ensino Médio que estavam em curso (Ensino Médio Integrado à Educação Profissional; Ensino Médio Integrador; etc.). Caracterizou-se, assim, uma virada educacional pós-golpe que se propagou nas mídias sociais e opinião pública a partir da pulverização do slogan intitulado Novo Ensino Médio, que ressaltou o aumento da qualidade de ensino, bem como a possibilidade de escolha pelos jovens dos seus processos formativos.
Quanto à justificativa para escolha dessas políticas curriculares, compreendemos que elas fazem retroceder algumas construções epistemológicas já engendradas nas últimas políticas curriculares destinadas ao Ensino Médio, pelo menos, na última década.
As políticas curriculares [...] fabricam os objetos ‘epistemológicos’ de que falam, por meio de um léxico próprio, de um jargão, que não deve ser visto apenas como uma moda, mas como um mecanismo altamente eficiente de instituição e constituição do ‘real’ que supostamente lhe serve de referente (SILVA, 2010, p. 11).
Além disso, essas políticas curriculares:
Mesmo que não tivessem nenhum outro efeito, nenhum efeito no nível da escola e da sala de aula, as políticas curriculares, como texto, como discurso são, no mínimo, um importante elemento simbólico do projeto social dos grupos no poder (SILVA, 2010, p. 10-11).
Para alguns pesquisadores (DALE, 2004; BALL, 2014; COSSIO, 2015), as políticas educacionais estão atreladas a uma agenda global e estruturada com propósitos transnacionais em torno da eficiência, da inovação e da qualidade, que se desdobram em uma verdadeira indústria cultural, “[...] montada em torno da escola e da educação: livros didáticos, material paradidático, material audiovisual (agora chamado de multimídia)” (SILVA, 2010, p. 11). São pesquisas que revelam uma pauta particular dessa agenda no que tange ao contexto educacional, cruzando três diferentes campos: as avaliações em larga escala, as políticas internacionais curriculares e parcerias entre o estado e o mercado. Para Thiesen (2016), minimamente, essa pauta se resume a quatro movimentos:
Um movimento pela internacionalização curricular; a estratégia de centralização e/ou unificação curricular nas esferas nacional e regional; a universalização das avaliações em larga escala e o fortalecimento das chamadas parcerias público-privadas no território curricular (THIESEN, 2016, p. 91).
Continua mais latente do que nunca na educação uma agenda internacional em que pese a forte presença dos organismos internacionais e multilaterais11 com suas prescrições e estratégias de controle e monitoramento por meio, fundamentalmente, das políticas de reforma e reorientação curriculares, sobretudo para o ensino secundário, no Brasil, denominado de Ensino Médio (THIESEN, 2016).
No Brasil, a forte justificativa do Ministério de Educação para a proposição de criação de uma BNCC, aproveitando-se também para estabelecer uma reforma no Ensino Médio, está ancorada em discursos construídos na Lei No 9.394/1996 - Lei de Diretrizes e Bases da Educação, em seu art. 26, o qual afirma:
Art. 26. Os currículos da educação infantil, do ensino fundamental e do ensino médio devem ter base nacional comum, a ser complementada, em cada sistema de ensino e em cada estabelecimento escolar, por uma parte diversificada, exigida pelas características regionais e locais da sociedade, da cultura, da economia e dos educandos (BRASIL, 1996, n.p.).
Além disso, consta ainda na Lei No 13.005/2014, instituída como Plano Nacional de Educação para o decênio 2014-2014:
Pactuar entre União, estados, Distrito Federal e municípios, no âmbito da instância permanente de que trata o § 5º do art. 7º desta lei, a implantação dos direitos e objetivos de aprendizagem e desenvolvimento que configurarão a base nacional comum curricular do ensino médio (BRASIL, 2014, p. 53).
Mesmo estando contempladas nesses documentos oficiais, somos cientes de que a criação da BNCC e a reforma do Ensino Médio estão alinhadas às perspectivas de ajustamento dos sistemas educativos à institucionalização dos mecanismos de regulação e controle por meio das avaliações padronizadas em larga escala, previstas na pauta da agenda global (FERNANDES, 2015).
Muitos são os discursos que constam nessas políticas curriculares, a exemplo da BNCC (BRASIL, 2018), afirmando a justificativa por parte do governo de que essas reformas e reorientações curriculares têm como objetivo principal reduzir as desigualdades sociais e aumentar a qualidade do ensino no país:
No Brasil, um país caracterizado pela autonomia dos entes federados, acentuada diversidade cultural e profundas desigualdades sociais, os sistemas e redes de ensino devem construir currículos (BRASIL, 2018, p. 13, grifos nossos).
[...] as decisões curriculares e didático-pedagógicas das Secretarias de Educação, o planejamento do trabalho anual das instituições escolares e as rotinas e os eventos do cotidiano escolar devem levar em consideração a necessidade de superação dessas desigualdades (BRASIL, 2018, p. 15, grifos nossos).
[...] passarão a ter uma referência nacional comum e obrigatória para a elaboração dos currículos e propostas pedagógicas, promovendo a elevação da qualidade do ensino [...] (BRASIL, 2018, p. 7, grifos nossos).
Entretanto, já temos pesquisas internacionais, revelando que em outros países não houve qualquer diminuição das desigualdades e aumento da qualidade da educação com políticas curriculares centralizadas e unilaterais dessa natureza, pois esses não eram os reais objetivos dessas políticas. Como exemplo atual, tem-se os resultados de aplicação do Common Core americano12 (RAVITCH, 2011).
Na verdade, esse discurso enganador já conhecemos desde os anos de 1970 com os estudos de Young (1971) com a Nova Sociologia da Educação, em que se revela que, mesmo naquela época quando ainda não tínhamos as atuais avaliações em larga escala e propostas de unificação curricular, as desigualdades não diminuíram. De lá para cá, a tradição crítica que estamos inseridos já compreendeu que o currículo está no centro da relação educativa, estabelecendo-se em diferentes correntes, que vão desde a ideia de “conhecimento verdadeiramente útil” com os primeiros socialistas britânicos até a crítica ao cânone europeu, masculino e heterossexual feita por diferentes movimentos sociais da contemporaneidade (VALLE, 2014).
Existe entre os discursos dos curriculistas formalistas a ideia de fetichização do currículo, como algo que se possui, que se carrega, que se transmite, que se transfere, que se adquire. Nessa perspectiva, o currículo é uma grade, um guia, está em um livro, é um livro; em suma, uma coisa. “[...] o currículo é matéria inerte, inanimada, paralisada, a que se atribui, entretanto, poderes extraordinários, transcendentais, mágicos” (SILVA, 2010, p. 101). Com o fetiche do currículo, parecem emergir algumas subjetividades: a segurança, o conforto, a proteção contra a incerteza, a indeterminação; enfim, o progresso.
Para os que compartilham da agenda global estruturada em torno da ideia de educação como negócio, esse fetiche é mais enfatizado ainda com a ideia de
[...] educação como estratégia para o desenvolvimento econômico, a importância das parcerias do setor público com a iniciativa privada, a relevância das novas tecnologias, a necessidade de novas formas de gerenciamento, a importância da implantação dos mecanismos de acompanhamento, controle e avaliação dos sistemas e instituições educacionais, o fortalecimento da ideia de construção de culturas transnacionais, as vantagens do intercâmbio de saberes na escala global-local, dentre tantos outros (THIESEN, 2016, p. 97).
Cabe aos teóricos do currículo criticar esse fetiche e suas subjetividades, denunciando-os e revelando-os de modo a acabar com as confortantes ilusões do fetichista (neoliberal) que a qualidade de ensino na escola e sua gestão são resolvidos com apenas a mudança do currículo de modo a unificá-lo em todo o sistema educativo nacional. Assim, ao intelectual crítico compete a tarefa da desfechitização do currículo. “A crítica do fetiche do currículo supõe um corte nítido entre consciência lúdica e consciência alienada” (SILVA, 2010, p. 103). Para as teorias críticas, conceber o currículo como fetiche é algo que precisa ser descontruído, desnaturalizado, desreificado, pois o “[...] fetiche tem sido tradicionalmente visto como um objeto que permite que aquele que nele acredita mantenha sua fantasia de presença mesmo quando todos os sinais apontam para a ausência” (SILVA, 2010, p. 105).
Em outro nível, enfim, a política curricular, agora já transformada em currículo, tem efeitos na sala de aula. Ela define os papéis de professores e alunos e suas relações, redistribuindo funções de autoridade e de iniciativa. Ela determina o que passa por conhecimento válido e por formas válidas de verificar sua aquisição. O currículo desloca certos procedimentos e concepções epistemológicas, colocando outros em seu lugar. A política curricular, metamorfoseada em currículo, efetua, enfim, um processo de inclusão de certos saberes e de certos indivíduos, excluindo outros (SILVA, 2010, p. 11-12).
Em síntese, é partindo dessa ideia que agora queremos problematizar os impactos dessas políticas curriculares no contexto escolar e alguns dos seus impactos para os professores e alunos.
4 IMPACTOS E PERIGOS DA BNCC DO ENSINO MÉDIO
Neste item, problematizamos a complexidade que se estabelecem entre os espaços de produção de uma política curricular e os espaços em que de fato essas políticas se realizam: as escolas.
Se por um lado o currículo assume o foco central da reforma, por outro as escolas são limitadas à sua capacidade, ou não, de implementar adequadamente as orientações curriculares oficiais. O currículo oficial, com isso, assume um enfoque sobretudo prescritivo. Por vezes o meio educacional se mostra refém dessa armadilha e se envolve no seguinte debate: os dirigentes questionam as escolas por não seguirem devidamente as políticas oficiais, e os educadores criticam o governo por produzir políticas que as escolas não conseguem implantar (LOPES, 2004, p. 110-111).
Sobre essa ideia, é preciso refletir sobre os impactos e os perigos que essa tensão curricular representa para a escola e a sociedade. Uma tensão caracterizada pela disputa acirrada, que, em 2018, representa um orçamento valiosíssimo, expresso em mais de 1,5 bilhão de reais para a implementação da base obtido por empréstimos (CNTE, 2018), além de um mercado em potencial, com uma população em idade escolar de aproximadamente 45 milhões de pessoas13.
Um mercado que nas escolas se materializa com os livros didáticos, ambientes instrucionais informatizados, seminários e cursos com vistas à capacitação e atualização de professores aos interesses das empresas e conglomerados nacionais e internacionais, consultorias na formulação dos currículos em ação nos municípios e nos estados, movimentos14 das diversas fundações15 e institutos16 no sentido de produção de material e capacitação, tendo como fim o desenvolvimento de competências técnicas e socioemocionais.
A centralidade da noção de competências no currículo, especialmente porque justificada e proposta pela via unidimensional do mercado, produz uma formação administrada, ao reforçar a possibilidade de uma educação de caráter instrumental e sujeita ao controle (SILVA, M. R., 2015, p. 372).
É em meio à promessa, ao encanto e à ilação que emerge, na escola, a terceira versão da BNCC do Ensino Médio, feita às pressas, indefinida e ancorada na proposta de reforma desse nível de ensino que a Lei No 13.417/2017 estabelece, replicando em muito a racionalidade curricular da década de 1970 com a Lei No 5.692/1971. Emerge completamente mutilada em relação às versões anteriores no que tange aos campos da ciência, cultura e arte, além de alijada dos debates e da discussão curricular teórica atualizada, restando, assim, reducionista e autoritária. Vemos, claramente, a perda da identidade da formação humana da juventude brasileira em uma concepção sócio-histórica e emancipadora e, mais grave, mascarando um quadro de privatização e empresariamento da oferta pública de Ensino Médio, bem como a desresponsabilização do Estado da sua obrigatoriedade constitucional de gestão do processo educativo. Essa é a catástrofe que o governo Temer nos deixa de herança, como um canto de sereia, aprofundando ainda mais as desigualdades sociais, ameaçando por completo a democratização do ensino público e precarizando a última etapa da Educação Básica que carece de investimentos e atenção para a formação dos adolescentes e dos jovens.
Essa precarização da BNCC não se reduz somente à legitimidade da proposta curricular, à sua desvinculação da Educação Básica (contrária à LDB No 9.394/1996), aos investimentos e aos financiamentos que serão reduzidos, mas entre outros reducionismos, ao retrocesso e ao desmonte do Currículo Mínimo, com impactos e perigos de todas as ordens à formação humana e técnico-científica, plena, integral, plural, crítica e de qualidade.
São tensões como a orientação curricular a partir de parâmetros mercadológicos, em forma de competências, técnicas e socioemocionais, dissociadas dos conteúdos curriculares; ausência das discussões em relação à inclusão e à diversidade; obrigatoriedade apenas dos saberes da língua portuguesa e matemática, menosprezando as demais áreas que compõem o currículo essencial; exclusão das ciências humanas deteriorando a compreensão crítica sobre a realidade; indução à oferta de ensino em grande parte (até 40%) na modalidade a distância, reduzindo o tempo presencial para apenas três dias da semana; sem garantias de obrigatoriedade dos itinerários formativos, caracterizando-se em uma escola pobre para os pobres e em uma escola que não é igual para todos; sem requisitos e critérios para cumprimento da parte diversificada para além da obrigatória; a retomada da superada diferenciação e separação do ensino propedêutico e profissionalizante; impactos reducionistas para a formação inicial docente em relação aos programas PIBID e Residência Pedagógica que devem estar articulados à BNCC e reduzidos ao “como-fazer”.
Dessa forma, a atual BNCC reduz a formação humana à homogeneização e centralização, ignorando as realidades locais e contextuais, e mais, ignorando a diversidade humana e sua complexidade. A ideia de nacional como homogêneo representa um grande perigo à democracia, pois uma proposta que se almeja curricular necessita contemplar as adversidades e as diversidades locais (social, cultural, política, econômica, étnica), bem como as individuais e relacionadas aos interesses e às capacidades de aprendizagem, dentro e fora da escola, para além das aprendizagens relativas aos conteúdos prescritos. Ao fazê-la assim, a BNCC demonstra-se hegemônica com uma única forma de perceber os estudantes, seus conhecimentos e aprendizagens e, não diferente, as escolas, a atividade docente, os currículos e as avaliações.
Nesse contexto, os direitos de aprendizagem e de ser sujeito ativo no processo de aprender divergem da ideia de prescrição de conteúdos que se restringem às obrigações de aprendizagem atestadas em avaliações de larga escala. Nessa última, descaracteriza-se a condição de diferença dos estudantes e desumaniza-se o trabalho dos professores em sua condição criativa e formativa, perdendo a formação humana sua essência social, plural e democrática (EVANGELISTA; SEKI, 2017). Uma BNCC que pretende se legitimar a partir de objetivos de aprendizagem pré-determinados que não considere a complexidade das escolas nunca será representada pelos professores e teóricos do currículo. Não podemos perder de vista que educação não se restringe à aprendizagem, bem como aprendizagem não pode se reduzir em uma lista de conteúdos (ANPED, 2015).
Pela racionalidade apresentada na BNCC proposta, vê-se um projeto claro de unificação e mercantilização da educação construído, inegavelmente, a partir de propostas internacionais associadas à tríade: unificação/centralização curricular, avaliações em larga escala e transferências de responsabilidades aos professores e aos gestores pelos baixos índices dessas mesmas avaliações (ANPED, 2015). Uma tríade que consolida um projeto de desvalorização e privatização do público na busca da eficiência e redução de gastos por parte do estado sem perder o controle do que, para que e para quem ensinar. Uma tríade que, atendendo aos interesses do mercado, silencia as denúncias em torno dos movimentos de centralização e unificação curricular em vários países, como: EUA, Suécia, Finlândia. Trata-se de denúncias não só feitas por professores e críticos do currículo, mas, sobretudo, por reformadores assumindo suas culpas como o caso do Common Core americano (RAVITCH, 2011). Entre os críticos, tem-se o trabalho de Süssekind (2014) o qual aponta para o processo de demonização17 dos professores com estudos baseados em Willian F. Pinar, bem como para uma reflexão sobre a divisão que se faz entre quem planeja (reformadores do estado) um currículo mínimo e quem o executa (escola). Ainda sobre o processo de demonização, tem-se o trabalho de Penna (2017, p. 1), que aborda “o ódio aos professores”.
Para a docência, os impactos refletem no modo como a BNCC descaracteriza e desqualifica não só a formação docente, mas a sua atividade pedagógica ao centralizar em grande parte o sucesso da educação como unicamente de responsabilidade do professor, o que sabemos é uma falácia. Essa não é uma problemática nova, pois data desde os anos 1990 quando os discursos oficiais das políticas curriculares de cunho neoliberal já vinham ancorados em perspectivas teóricas de responsabilização que transferiam ao professor a culpa pelo fracasso da escola (EVANGELISTA; SEKI, 2017). Como pode uma BNCC admitir em seu bojo a desmoralização dos professores frente aos processos de reformas curriculares mercadológicos, antidemocráticos e desumanizadores? A resposta está na linguagem que ela usa, ao conotar que o professor é o grande herói da educação e que a ele basta seguir o currículo oficial.
Quanto à gestão escolar, os perigos da BNCC se dão no nível da democratização, esta já conquistada pela LDB No 9.394/1996 (BRASIL, 1996) e pelo Plano Nacional de Educação (PNE) estabelecido na Lei No 13.005/2014 (BRASIL, 2014). A democratização cederá lugar à gestão, administrativa e pedagógica, de forma empresarial, não-participativa e restrita aos diretores e administradores externos às escolas, com pouco ou nenhum espaço para construção de projetos político-pedagógicos participativos no que tange à elaboração de ações e currículos escolares, de modo a restringi-las ao mínimo e eficiente. Para Mendonça (2018, p. 39):
Como compreender os impactos que a BNCC aprovada causa nos processos de gestão dos sistemas de ensino e das escolas? O primeiro elemento a considerar é o rompimento com a concepção de Educação Básica insculpida na LDB, uma vez que o CNE foi levado a considerar a aprovação de proposta incompleta encaminhada pelo MEC sem contemplar o ensino médio, sem a modalidade Educação de Jovens e Adultos e sem a Educação do Campo, além de outras fragilidades (MENDONÇA, 2018, p. 39).
Em se tratando de LDB e PNE, é na contramão deles que a BNCC parece vir a operar. Como bem asseveram Aguiar e Dourado (2018), o MEC assume pela Base que o currículo se resume à ideia de a escola obter notas altas nas avaliações em larga escala para melhorar os índices da própria escola e da educação nacional. Essa intencionalidade curricular valoriza assim a perspectiva18 de que o índice é o parâmetro orientador para a criação de novas políticas curriculares quando na verdade deveríamos ter o contrário. Para Lopes (2018, p. 30), “[...] não teremos uma educação de qualidade se não envolvermos os docentes na produção do currículo e não envolveremos esses docentes sem salários melhores e possibilidades de realização do que sabem fazer”.
Enfim, daquilo que argumentamos até agora, cabe-nos algumas importantes reflexões, tomando assim o outro lado da moeda, uma posição mais crítica sobre o projeto de Ensino Médio em tensionamento na atualidade com os retrocessos da reforma do Ensino Médio e da BNCC. Nessa racionalidade, a quem interessa a BNCC? Quem são os produtores, enfim, planejadores do currículo, que materializam seus discursos na BNCC? Para além da produção que o Estado fez na figura dos experts em currículo, importante é considerar como se dará a participação e consulta pública das demais instâncias, como associações e instituições representativas dos órgãos de classe e do currículo, críticos do currículo, educadores, gestores e alunos? Somente por meio das audiências mudas feitas para legitimar um currículo escolar que já está pronto e acabado? Em que medida as redes municipais e estaduais de ensino serão ouvidas? Ou serão apenas executoras do currículo?
Essas são algumas das perguntas que precisam ser descortinadas no ilusório palco que o MEC insiste fazer seu show midiático, caracterizado em muito pelo sedutor slogan da melhoria da qualidade da educação e diminuição das desigualdades sociais. São perguntas que rondam apenas o imaginário social, pois, para os críticos do currículo, são perguntas que já estão respondidas frente às experiências de outros países. Ponce e Chizzotti (2012) afirmam que a internacionalização das políticas educacionais, mais uma vez, mobilizou os sistemas de ensino e trouxe o currículo escolar para o centro da disputa econômica, política e cultural da atualidade. Assim, estamos frente à nova roupagem do velho modus operandi de financeirização da educação pública de Ensino Médio pelo setor privado, denominada de BNCC. Uma política curricular orientada somente por competências e definida apenas no âmbito do Estado e que está fadada ao fracasso e com os dias contados.
5 ENFIM: PARA ONDE CAMINHA O ENSINO MÉDIO?
De início, nosso objetivo era problematizar as tensões entre as políticas curriculares para o Ensino Médio na atualidade, a saber: a reforma do Ensino Médio e o lançamento da terceira versão da BNCC, caracterizando-as, ou seja, apresentando as disputas e os interesses que estão em jogo nessa virada educacional pós-golpe, bem como os impactos dessa BNCC para a escola.
Assim, apresentamos, neste texto, várias das tensões que se estabelecem no processo de unificação e de centralização curricular e, por isso, não reconhecemos e pactuamos da ideia de se construir uma Base para o Ensino Médio, que nada mais é do que um Currículo Mínimo, oficial e prescrito, estabelecendo perversamente as orientações estruturadoras de conteúdos, conhecimentos ou competências para as escolas. Em nossa perspectiva, essa será uma política curricular descontínua e que já nasce morta porque não problematiza o que é currículo, avaliação, direitos de aprendizagem e tantos outros conceitos que merecem ser acordados.
Antes dessas concepções, precisamos ainda questionar que sociedade queremos formar, qual a função da escola nessa formação, quem é a juventude brasileira e o que demandam e, em particular, que sentido assume o Ensino Médio na racionalidade neoliberal. Precisamos corrigir a visão estreita de que currículo se confunde com a prescrição e se encontra apenas no “formal”, “oficial”, “programado”, “técnico”, “tecnocrático”, deixando de lado a ideia de currículo, como um entre os instrumentos de desigualdade, alienação e reprodução social para o capital, para imaginá-lo essencialmente como aventura do gênero humano.
Vimos, no texto, que o controle sobre o saber se faz em boa medida por meio do controle sobre o que se ensina e a quem se ensina, de modo que, travestida de educação erudita, educação das elites ou educação oficial, o saber oficialmente se transforma em instrumento político de poder e dominação. Só os reformadores políticos ou curriculistas formalistas enxergam o currículo apenas dentro dos sistemas restritos da prescrição, discutindo apenas problemas de operacionalização curricular, de programação sistemática e assim por diante. Instrumentos úteis, mas pequenas algemas de controle quando empregados sem a crítica do lugar e do sentido de sua aplicação e uso.
Como diria Brandão (1989, p. 109), “[...] só o educador ‘deseducado’ do saber que existe no homem e na vida poderia ver educação no ensino escolar, quando ela existe solta entre os homens e a vida”. Esse reducionismo à Educação, de que fala Brandão (1989), é o mesmo que usamos para problematizar o caminho que estamos a tomar na aceitação de uma BNCC para o Ensino Médio. Um caminho que pode não ter volta na medida que simboliza um retrocesso para a educação escolar brasileira, uma ameaça aos direitos já conquistados em meio às lutas e às resistências feitas por professores e alunos em épocas anteriores a esta. É localizando esse debate que o slogan midiático de manobra do Governo Federal brasileiro “Para onde caminha o Ensino Médio”, precisa ser recontextualizador “Para onde retrocede o Ensino Médio”, já que não faz avançar em nada as conquistas históricas já adquiridas e insiste no tecnicismo.
Se desejamos avançar, precisamos reafirmar a vigência das já existentes Diretrizes Curriculares para a Educação Básica e aplicadas ao Ensino Médio, como caminho já construído para a diversidade e a autonomia necessárias na escola democrática que respeita a juventude, garantindo o pleno desenvolvimento humano com competências interculturais e de justas oportunidades iguais a todos(as) de modo a reduzir as desigualdades e as injustiças sociais, bem como exigir reais e verdadeiros investimentos em educação, a exemplo de países que têm os primeiros lugares nas avaliações em larga escala.