1 INTRODUÇÃO
A defesa do discurso da qualificação profissional reclama um verdadeiro poder de salvação para os indivíduos inseridos na chamada situação de risco social. De acordo com seus patronos, a modificação do Ensino Médio, sob uma perspectiva de expansão alinhada ao desenvolvimento do país como um todo, resolveria os altos índices de desistência dos jovens, bem como o problema do desemprego por falta de qualificação. Ademais, o Ensino Médio público, sobretudo o noturno, funciona desde a década de 1970 como profissionalizante, formando comerciários, escriturários, auxiliares de escritórios, ajudantes de assessorias diversas, entre outras profissões que, apesar de necessárias ao modo de produção capitalista, não exigem um alto padrão formativo alinhado ao conhecimento científico universal (SANTOS, 2017b). O contido nível de educação, a limitada experiência profissional e as novas ocupações de serviços - absorvedoras do enorme exército industrial de reserva gerado anteriormente pelo auge do neoliberalismo brasileiro - resgataram milhares da extrema pobreza, permitindo relativa ascensão social. Pochmann (2012) esclarece, entretanto, que tal fato não configura uma mobilidade social efetiva, visto que essa camada passa longe de qualquer classificação que não seja a de classe trabalhadora, precarizada em sua maioria, senão na totalidade.
Historicamente, conforme demonstrado em Ribeiro (2015), o Ensino Médio esteve voltado ao mercado de trabalho capitalista e, durante o projeto nacional-desenvolvimentista, a possibilidade ampla de emprego passou a ser o principal objetivo almejado pelos jovens concludentes. A finalidade principal da educação, afinada a esse ideário, passou a ser a preparação para o mercado de trabalho da forma mais aligeirada e barata possível. De acordo com Ramos (2010), no entanto, esse projeto exibe sua fragilidade diante do profundo desemprego e de novos padrões estabelecidos na sociedade capitalista, caracterizados pela desregulamentação da economia e flexibilização das relações e direitos sociais. Dada a mudança de cenário, o discurso oficial também foi modificado com a LDB 9.394/1996, cujas orientações alinharam-se ao modelo das competências “genéricas e flexíveis, de modo que as pessoas pudessem se adaptar facilmente às incertezas do mundo contemporâneo” (RAMOS, 2010, p. 47).
O atual Plano Nacional de Educação foi sancionado no Congresso Nacional em junho de 2014. Apresenta, na meta número 11, o objetivo de triplicar as matrículas da chamada Educação Profissional Técnica de nível médio, observando pelo menos 50% de gratuidade na expansão de vagas. Destaca-se, ainda, que a proposta aprovada pela Câmara dos Deputados defendia “50% da expansão no segmento público”, porém o Senado substituiu a expressão anterior pela nova redação, “50% de gratuidade na expansão de vagas”, facilitando, assim, o caminho para a iniciativa privada.
No caso do sistema público, objeto deste estudo, o atendimento é realizado pelos governos federal e estadual, por meio de suas instituições, como o Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará (IFCE) e a rede estadual de Educação Profissional do Ceará, por intermédio da Secretaria da Educação do Estado do Ceará (Seduc/CE) e do Instituto Centro de Ensino Tecnológico (Centec) - vinculados à Secretaria da Ciência, Tecnologia e Educação Superior do Estado do Ceará (Secitece). A oferta dos ditos cursos técnicos nessas duas esferas ocorre na modalidade integrada ao Ensino Médio, excluindo os cursos do Centec, cujas modalidades são ofertadas de forma concomitante e subsequente. Também há a possibilidade de oferta pela rede federal de ensino, em conformidade com o Decreto 5.154/2004 e as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Profissional Técnica de Nível Médio (BRASIL, 2000).
Nesse contexto de expansão da Educação Profissional insere-se o modelo aplicado no estado do Ceará que, por sua vez, organiza-se em duas esferas administrativas, que compreendem o sistema público e o sistema privado. Ambas ofertam programas didáticos que cobrem a formação inicial e continuada, com cursos profissionalizantes, de nível técnico e superior. No âmbito geral do sistema de Educação Profissional e Tecnológica, o setor privado tem como seu principal representante o Sistema S1, composto por uma ampla rede de qualificação profissional, garantindo a oferta de cursos de educação inicial e continuada, além de cursos técnicos de nível médio.
Para uma melhor aproximação do objeto de estudo, optou-se por relatar a gênese das políticas educacionais gestadas no Ceará, considerando as condições internas - por parte dos governos que se sucederam - e externas - reformas de Educação Profissional elaboradas no plano macro do governo federal, sob influência de organismos internacionais. Ainda no intuito de estabelecer as características próprias e específicas da Educação Profissional por meio do projeto Ensino Médio Integrado, tornou-se primordial compreender a realidade política do estado que serviu de base para dar corpo às diretrizes educacionais implantadas de acordo com o contexto liberal em que o Brasil se inseriu a partir da década de 1990.
Por meio de pesquisa teórico-bibliográfica, houve a intenção de submeter, de forma dialética, o objeto de estudo às interlocuções críticas necessárias. Tal exercício determinou, do ponto de vista metodológico, a seleção de dispositivos legais e documentos oficiais centrais à apreensão do objeto, quais sejam: Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB - 9.394/1996); Decreto 5.154/2004, que regulamenta a Educação Profissional no âmbito da LDB; o Decreto 6.302/2007, que institui o Programa Brasil Profissionalizado, visando fomentar o Ensino Médio integrado à Educação Profissional; o Decreto 6.094/1997, que dispõe sobre a implementação do Plano de Metas Compromisso Todos pela Educação, pela União Federal, em regime de colaboração com municípios, Distrito Federal e estados; o Decreto 2.208/1997, cuja principal característica foi a desvinculação dos Ensinos Médio e Técnico; a Lei do Estagiário 11.788/2008, que dispõe sobre o estágio de estudantes. No âmbito estadual, foram examinados o Plano Integrado de Educação Profissional e Tecnológica do Estado do Ceará (2008) e o Decreto Estadual 30.933/2012, que institui o Programa de Estágio para Alunos Egressos do Ensino Médio da Rede Pública Estadual voltado à Formação Técnica e Qualificação Profissional, entre outros.
O recorte temporal da pesquisa contempla o período 2008-2018. O intervalo se justifica pelo marco da oferta de matrículas no Ensino Médio integrado à Educação profissional no Ceará, em 2008, perfazendo uma década no Estado, momento oportuno para realizar o balanço dessa política educacional voltada à juventude trabalhadora. Em 16 fevereiro de 2017, foi sancionada a Lei 13.415/2017, conhecida como reforma do Ensino Médio. Todavia, como as escolas têm até 2022 para entrar em conformidade com as novas diretrizes legais, o modelo de Ensino Médio Integrado do Ceará ainda não efetuou qualquer alteração estrutural ou curricular. A adequação das escolas ao novo modelo, guiada pela Base Nacional Comum Curricular (BNCC), segue sem efetividade prática. Na rede pública estadual cearense, apesar de 460 escolas já terem aderido ao Programa de Apoio ao Novo Ensino Médio2, nenhuma mudança real de perspectiva deve acontecer em 2020, segundo informado pela Seduc. Apesar de reforçar a lógica de profissionalizar a clientela da rede pública mediante eixos formativos à “escolha” dos estudantes, as alterações legislativas da reforma do Ensino Médio e da BNCC ainda não modificaram a rotina pedagógica das EEEPs no estado do Ceará.
2 POLÍTICAS PARA A EDUCAÇÃO PROFISSIONAL NO CEARÁ: APROXIMAÇÕES HISTÓRICAS NECESSÁRIAS
Conforme registrou Oliveira (1987), o interesse imediatista sempre foi o princípio norteador do poder oligárquico no Nordeste, o que resultou, historicamente, numa pequena elite a se beneficiar da miséria e da precariedade a que grande parte da população foi sentenciada. Sobre o perfil da política nordestina, Santos, Farias e Freitas relembram que o discurso para modificar a realidade social sofrida dessa região continua a se arrastar sem grandes avanços: “às vezes até belíssimo na retórica, mas independentemente de seu refinamento estético, é concretamente contraditório quando se é necessário sua impossível efetivação” (2013, p. 261).
Xerez (2013), ao fornecer a resenha do poder político no estado Ceará nas últimas décadas, demonstra que os governos do PSDB e aliados mantêm-se no poder por mais de 30 anos3. No trato das questões históricas que permearam a política cearense ao longo de sucessivos governos, ficam nítidos muitos prejuízos sociais, como enriquecimento ilícito, tráfico de influência, esbanjamento de verbas públicas e outros tipos de corrupções que retardaram políticas públicas de atendimento aos direitos sociais, como a educação.
Algebaile (2009) fornece elementos contextuais sobre a utilização eleitoreira e ideológica constantes do discurso de modernização, afirmando que, no caso brasileiro - especialmente o nordestino -, o processo de equilíbrio entre conservação e mudança ocultou a desqualificação das reais condições de vida das classes populares e garantiu apenas a promoção da modernização que interessava às classes dominantes.
Para Xerez (2013), o Pacto de Cooperação4, iniciativa da elite empresarial cearense, foi um mecanismo para garantir a participação das elites no governo. Compartilhando do mesmo pensamento, Bessa, Arrais Neto e Albuquerque (2012, p. 167) escrevem que, a partir do governo Tasso Jereissati (1987-1990; 1995-1998; 1999-2002), concretizou-se um projeto neoliberal no Ceará:
As empresas tinham cada vez mais espaço no território cearense principalmente na região metropolitana do estado, a classe burguesa industrial agora tinha domínio não só do setor da economia, mas também do setor político, situação que sempre foi desejosa pela classe. Essa fase constituída pela entrada da burguesia empresarial cearense transforma não só o cenário político, mas o cenário social cearense.
Apesar de todo o destaque dado pela mídia ao Pacto de Cooperação, o fato de os indicadores educacionais permanecerem estáticos parecia ser ignorado. Tais índices educativos, mesmo com toda a pompa do título do programa implantado, “Escola Pública: a revolução de uma geração”, não acompanhavam o discurso de modernidade e demonstravam que a educação, além de não ser prioridade nesse modelo administrativo, estava longe de alcançar a realidade propagada:
O índice de analfabetismo era de 44% (IPLANCE, 1993) e a cobertura do ensino de primeiro grau no Ceará era das mais baixas do país: 65%, enquanto a da região Nordeste como um todo era de 72% e a do Brasil 87%. Cerca de 200 mil crianças estavam fora da escola, perfazendo um déficit que chegava a 30% na zona rural e a 15% na zona urbana (HAGUETTE, 1993 apud GONDIM, 1998, p. 60-61).
Segundo o apanhado de Gondim (1998), os governos pós-militares reclamavam o corte drástico de professores da folha de pagamento da rede estadual de ensino, alegando que o campo da educação havia sido privilegiado nos governos anteriores, por meio da política clientelista de distribuição de empregos. Sobre o momento político e social vivido pelo Ceará à época e com respeito às políticas de contenção de despesas pela folha de pagamento dos servidores, a pesquisadora chama atenção para o modelo de racionalidade administrativa adotado: “se por um lado eliminou-se o nepotismo e o empreguismo típicos do regime neopatrimonialista, por outro lado verifica-se uma tendência à ‘terceirização’ da administração pública” (GONDIM, 1998, p. 53), que ficou claramente expressa na utilização cada vez mais intensa de mão de obra sem vínculo empregatício.
A partir de Xerez (2013), constatou-se que o Ceará continuava a sofrer com as consequências dos desmandos clientelistas dos governos militares pretéritos e com a racionalidade administrativa dos “governos das mudanças”. Acerca do princípio de contenção de gastos, principalmente com o quadro de pessoal, Gondim (1998, p. 62-63) levanta a hipótese de que
[...] para explicar o medíocre desempenho dos “governos das mudanças” no que se refere à educação é que na SEDUC a política de cortes nos gastos com pessoal e o estilo autoritário de gestão, praticado por Tasso e Ciro inviabilizam melhorias substanciais na qualidade.
Neste ponto cabe uma formulação: se a situação da Educação Básica era tão crítica em meados da década de 1990, o que afirmar sobre as políticas para a Educação Profissional no estado? Ramos (2009) é quem vai responder ao expor que, ao final do governo de Ciro Gomes (1991-1994), ainda não havia escolas públicas de Ensino Médio Profissionalizante5, e compreender o panorama político dos anos que se sucederam permite uma melhor análise dos fundamentos dos planos de governo que compuseram a gênese da Educação Profissional e Tecnológica do Ceará.
Antes de apresentar o percurso de ampliação da Educação Profissional, ressalta-se não ser objetivo desta comunicação defender a ampliação do Ensino Médio Integrado como única - ou melhor - via de possibilidade de formação escolar, o que seria o mesmo que robustecer o discurso burguês que dá a essa modalidade um caráter solucionador dos diversos problemas frutos dos estratos sociais mais precarizados.
Também é necessário fazer a mediação de que a proposta curricular de integração da Educação Profissional (EP) ao Ensino Médio, apesar de se utilizar de categorias caras ao marxismo e contar com a contribuição teórica de autores respeitados desse referencial, por exemplo, Gaudêncio Frigotto, Maria Ciavatta e Marise Ramos, entre outros e outras, não apresenta nenhuma solução ou sugestão de ruptura com o capitalismo. Houve questionamentos dirigidos aos autores por terem trabalhado na constituição do Decreto 5.154/2004 que, em essência, se coloca como uma medida autoritária. Sobre a polêmica da integração, categoria contraditória dentro da apresentação da proposta, Ramos (2008) se pronunciou a respeito:
[...] paradoxalmente, têm-se duas visões diferentes convivendo na política educacional, quais sejam, aquela subjacente ao Decreto n. 5.154/2004 que discutimos aqui; e aquela que está dentro das diretrizes curriculares nacionais do ensino médio e da educação profissional, baseada em competências e habilidades, assim como nos princípios de adequação ao mercado de trabalho e de flexibilização do currículo à luz das dinâmicas socioprodutivas (RAMOS, 2008, p. 23).
Xerez (2013) ressalta a experiência do Programa de Expansão da Educação Profissional (Proep) como um exemplo significativo para ilustrar a maneira como o governo do Ceará se alinhou às políticas do governo federal, buscando financiamentos externos6:
O PROEP inspirou a Secretaria de Ciência, Tecnologia e Educação Superior do Ceará (SECITECE), que elaborou suas propostas registradas na documentação institucional, bem articulada com a política macro para a Educação Profissional adotada pelo Ministério da Educação (MEC) e alinhada a este Programa. Nesse período, precisamente em 1995, foi inaugurado no Ceará o Instituto de Ensino CENTEC, que iniciou com o atendimento à qualificação profissional de nível básico nos centros vocacionais tecnológicos (CVTs) (XEREZ, 2013, p. 87).
Depois de apresentar problemas operacionais já em 2003, o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) arcou com a gestão dos recursos do Programa na tentativa de imprimir maior controle. Ao final da vigência em 2008, 18 escolas comunitárias foram transferidas para a esfera federal de Educação Profissional e Tecnológica e duas para o segmento estadual. “Assim, é encerrada a parte de uma política gestada para atender os fundamentos da Reforma Educacional vinculada ao Decreto 2.208/97 e que deu suporte financeiro ao CENTEC no Ceará” (XEREZ, 2013, p. 88). Encontra-se na gênese do Centec um marco de interesse do governo pela ciência e tecnologia que, mais tarde, viria a concretizar-se na criação da Secitece.
O plano de governo de Tasso Jereissati explicita uma nítida aproximação com os princípios regulados pela Unesco, por meio do Relatório Jacques Delors (1998) e de seu lema: “Quem não planeja não executa, quem não mede não sabe de nada”. Os estudos de Xerez (2013, p. 92) comprovam que as políticas para educação desse governo “se guiaram por processos gerais, sendo influenciadas por organismos internacionais que objetivam o controle ideológico da educação dos países em desenvolvimento”.
O Plano Decenal da Educação, elaborado pelo Ministério da Educação e do Desporto em 1993, trazia as diretrizes políticas para recuperação da escola fundamental com o compromisso de executar, no espaço de uma década, as resoluções da Conferência Mundial sobre Educação para Todos7. O plano de governo do Ceará para o período (1995-1998), inserido nesse contexto, articulava-se às orientações das reformas educacionais que vigoravam no país e no mundo, e uma de suas metas era a implementação da Educação Profissional por meio da Secitece, criada em 1995. Essa Secretaria desenvolveu uma proposta de política de qualificação profissional embasada no modelo de produção flexibilizada, incorporado pelo governo a partir da década de 1990 e fundamentado nos princípios “da qualidade, avaliação e controle, desenvolvimento tecnológico, informatização e mecanismos de adequação” (XEREZ, 2013, p. 92).
No mandato de Lúcio Alcântara (2003-2006), não houve mudança significativa em relação ao governo antecessor, motivo pelo qual não será dada cobertura a esse período. Considera-se que esse governador desempenhou uma política bem próxima e afinada aos princípios do grupo político dominante do qual se fazia representante.
O governo de Cid Gomes (2007-2010; 2011-2014) traz a implantação das Escolas Estaduais de Educação Profissional (EEEPs) de tempo integral e a federalização de algumas unidades do Centec. Os jovens trabalhadores deparam-se com um currículo amplo nas EEEPs, cuja matriz está dividida em: 1) base nacional comum, com conteúdos iguais para todos os alunos; e 2) disciplinas de formação profissional, variáveis de acordo com cada curso profissionalizante. Além desses estudos, ao longo dos três anos do Ensino Médio, são ofertadas mais quatro disciplinas voltadas à formação profissional e empreendedora, a saber: Mundo do Trabalho, Formação para a Cidadania, Projeto de Vida e Empreendedorismo8.
Na pesquisa realizada por Nogueira (2014), foi considerada possível, a partir do modelo das EEEPs, a concretização de uma proposta de integração, consolidando a superação do “simples objetivo propedêutico de preparar para o ensino superior” (NOGUEIRA, 2014, p. 22). Apesar dessa perspectiva, o autor admite que:
As EEEPs propõem uma integração curricular, no entanto, essa integração, em diversas escolas com esse modelo educacional, ocorre apenas no âmbito da concomitância. Ou seja, o que se chama de currículo integrado são apenas disciplinas dos cursos profissionalizantes e disciplinas da base comum sendo ministradas em horários intercalados sem nenhuma interação entre elas. Muitas vezes nem os professores da base comum dialogam com os professores da base técnica (NOGUEIRA, 2014, p. 30).
Assim, a partir da legislação educacional federal, o governo do estado do Ceará aprova, em 2008, a Lei 14.273, que dispõe sobre a criação da Rede Estadual de Escolas de Educação Profissional (EEEPs), como parte de sua política voltada à juventude. Consta no discurso oficial que o objetivo imediato de tal dispositivo seria diversificar a oferta do Ensino Médio, articulando-o com a Educação Profissional, numa perspectiva propedêutica. Entretanto, a partir de Santos, Farias e Freitas (2013), pode-se afirmar que a dualidade da educação brasileira, que historicamente diferiu escolas para dirigentes e dirigidos, assim como a também histórica dicotomia entre formação propedêutica e profissionalizante, não podem ser superadas apenas pela legislação vigente. Ao contrário, dispositivos como o Decreto 5.154/2004 ampliaram a Educação Profissional ao permitir/determinar que os jovens filhos dos trabalhadores cursem o Ensino Médio com o Técnico, ou de forma integrada, naquilo que tais autores consideraram “o velho jeitinho da atrasada elite brasileira de misturar um pouco daqui e um pouco dali procurando agradar a ‘gregos e troianos’, ou melhor dizendo, favorecer os empresários aparentando agraciar o povo” (SANTOS, FARIAS e FREITAS, 2013, p. 267).
Em conformidade com a legislação federal, a Educação Profissional de nível médio pode se apresentar na modalidade integrada - em que o aluno matriculado cursa o Ensino Médio e o Técnico, ao mesmo tempo e na mesma instituição, mediante um currículo articulado. No caso do Ceará, sempre na rede pública. Já a modalidade concomitante
[...] permite que o aluno curse o Nível Técnico em uma instituição e o Ensino Médio em outra escola, mas a matrícula do curso técnico somente é autorizada quando o estudante conclui o primeiro ano do Ensino Médio. Essa modalidade no Ceará é ofertada na rede pública federal, nos cursos do Instituto CENTEC e naqueles da iniciativa privada. Enfim, na modalidade subsequente, o aluno poderá cursar o Nível Técnico quando tiver concluído o Ensino Médio. Essa modalidade é ofertada no sistema S, IFCE, CVTEC e nos demais cursos particulares (XEREZ, 2013, p. 97).
Na compreensão de Zibas (2007, p. 8) sobre o cenário do Ensino Técnico9 no Brasil, até 2004 o Ceará apresenta tímidos números com relação a essa modalidade:
O CENTEC oferece cursos técnicos apenas modulares. Em 2004, tinha 323 alunos matriculados nesses cursos. Esse tão reduzido número de matrículas sustentadas pelo Estado do Ceará se deve ao fato de que o governo do Estado, diante do decreto de 1997, que proibiu a oferta de ensino técnico articulado ao ensino médio, preferiu transformar todas as suas escolas de ensino técnico em escolas de ensino médio regular.
Ao apontar a realidade do Ensino Técnico bastante reduzido no estado do Ceará, Zibas (2007) classificou o Centec, responsável pela modalidade, como uma organização social10, guardando as devidas ressalvas. Um dado relevante observado pela autora atenta para o fato de que, apesar de o governo cearense receber financiamento federal para estruturar o financiamento do Centec, incentivava, todavia, a instituição a vender cursos e serviços às indústrias, a fim de complementar o ensino gratuito.
Xerez (2013) aponta o fato de que a mera expansão das matrículas da Educação Profissional no Ceará não significa, necessariamente, o aumento da excelência ou qualidade do ensino, assim como não garante o atendimento a “todos”. No entendimento da pesquisadora, que é também o nosso, é preciso resguardar a atenção aos processos formativos, enfocando principalmente a retenção, conclusão e aprendizagem efetiva, em oposição às propostas de formação dissipadas pelas agências internacionais de fomento da educação básica como mecanismo de elevação do nível de formação de mão de obra em função das exigências mercadológicas.
Cid Gomes inaugura o formato em tempo integral, novidade no Ceará. Há, entretanto, que se fazer a mediação necessária quanto às inspirações filosófica e educacional que moldaram o formato das EEEPs: a experiência do Ginásio Pernambucano. O projeto ganhou relevo no cenário nacional, com destaque para a eficiência dos resultados apresentados segundo o modelo da Tecnologia Educacional Socioeducacional (TESE) respaldado pela Tecnologia Empresarial Odebrecht (TEO).
Interessante observar como o fato - tão marcante - de uma proposta empresarial servir de alicerce para um projeto educativo dessa envergadura passe, praticamente, despercebido. Insistimos, na contracorrente, em evidenciar o caráter marcadamente mercadológico assumido pela escola pública cearense ao adotar parâmetros empresariais. Por meio da TESE/TEO, as relações parecem claramente estabelecidas: uma clientela formada pela comunidade estudantil; gestores escolares precisando atestar sua competência e sintonia com os anseios do mercado; e, na ponta, um empresariado pronto para absorver uma mão de obra barata e qualificada segundo suas necessidades.
Os governos de Camilo Santana (2015-2018; 2019-presente), plenamente alinhados ao contexto de adequação ao mercado, têm dado continuidade à política de expansão das EEEPs. As matrículas seguem aumentando no mesmo ritmo em que a rede se amplia, permanecendo no centro das políticas estatais para o alcance de uma suposta inclusão social. O tópico a seguir aborda especificidades e reflexões globais sobre as decisões e prioridades do estado do Ceará no tocante à Educação Profissional, buscando apreender as nuances ideológicas contidas nessa proposta de formação.
3 ESCOLAS ESTADUAIS DE EDUCAÇÃO PROFISSIONAL (EEEPs): NOVO MODELO EDUCATIVO OU FORMAÇÃO AO GOSTO DO PATRÃO?
No processo de construção da Constituição Federal de 1988 (BRASIL, 1988) e da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional 9.394/1996 (BRASIL, 1996), o país tentava superar o período ditatorial e empenhava-se na reconstrução de seu regime democrático-burguês. No campo educacional, a principal polêmica continuou sendo o entrave entre a defesa da educação pública, gratuita, laica e de qualidade e, no outro polo, a submissão desta à lógica de mercado por meio da qualificação de mão de obra. A alegação neoliberal da necessidade de diminuição do Estado já propagava, nesses tempos, o conhecido discurso de austeridade que considera investimento em educação como “gasto” e, portanto, questionava seu retorno e eficiência. Nesse embate, prevaleceu a lógica mercadológica e, portanto, a iniciativa privada pôde atuar livremente na educação em todos os níveis, conforme garantido pela nova Constituição Federal e ratificado pela nova LDB.
A Educação Profissional no Ceará, na modalidade integrada ao Ensino Médio, encontra-se em consonância com a legislação e as orientações políticas do governo federal. A LDB (BRASIL, 1996) vincula, já na sua introdução, educação escolar e mundo do trabalho (art. 1.º, § 2.º). O art. 2.º, por seu turno, arremata a finalidade da educação no desenvolvimento e preparação para o exercício da cidadania e qualificação para o trabalho. No centro da política estadual para as juventudes, essa finalidade ganha uma especificidade nítida ao eleger o trabalho como princípio de formação para todos os alunos, e não apenas para os egressos da Educação Profissional.
As matrículas no Ensino Médio integrado à Educação Profissional começaram a ser ofertadas no Ceará cinco meses após a divulgação do Plano Integrado (CEARÁ, 2008) e oito meses depois de instituído, no âmbito do Ministério da Educação, o Programa Brasil Profissionalizado, pelo Decreto 6.302, de 12 de dezembro de 200711. O principal objetivo do Programa engloba a modernização e a expansão desse modelo educativo por todo o país.
A política que dá guarida ao Brasil Profissionalizado, disseminada pelo MEC por todos os estados da Federação por meio de recursos do FNDE, tem inspiração em diretrizes que os organismos multilaterais encaminharam para os chamados países em desenvolvimento, que avançam sob a tutela dos países centrais. Tem por discurso a tentativa imediata da elevação do nível de formação do trabalhador para atender ao mercado, mediante o discurso de “melhor qualificação do cidadão, jovem trabalhador” (BRASIL, 2004, p. 8).
Segundo informações contidas no Anuário Brasileiro da Educação Básica (2018), as matrículas na modalidade da Educação Profissional no Brasil crescem a cada ano, correspondendo a 21,4% do total de matrículas no Ensino Médio12, até 2016. Em todo o país, entre 2008 e 2016, o número aumentou mais de 55%, sendo a maior parte desses novos estudantes matriculados na rede pública13. Atualmente, 119 escolas encontram-se em pleno funcionamento no estado do Ceará, presentes em 95 municípios. A evolução das matrículas se deu conforme tabela a seguir:
ANO | EEEP | MUNICÍPIO | CURSOS | MATRÍCULAS |
---|---|---|---|---|
2008 | 25 | 20 | 4 | 4.181 |
2009 | 51 | 39 | 13 | 11.579 |
2010 | 59 | 42 | 18 | 18.677 |
2011 | 77 | 57 | 43 | 23.370 |
2012 | 92 | 71 | 51 | 28.715 |
2013 | 97 | 74 | 51 | 35.928 |
2014 | 106 | 82 | 53 | 39.765 |
2015 | 111 | 88 | 52 | 43.280 |
2016 | 115 | 90 | 53 | 47.112 |
2017 | 117 | 91 | 53 | 49.627 |
2018 | 119 | 95 | 52 | 52.571 |
Progressão 2008 a 2018 (%) | 476% | 475% | 1300% | 1285% |
Fonte: SEDUC/COEDP (2018)
De acordo com o levantamento ora apresentado, que atualiza dados até 2018, dos 184 municípios cearenses, 95 possuem EEEPs. Conforme informado, são 119 escolas distribuídas pelo estado, totalizando um contingente de 52.571 estudantes. Com uma rede desse porte, é possível acompanhar a evolução dos gastos governamentais para a efetivação desse modelo. Entre 2008 e 2014, as obras corresponderam a 53,50% do total de investimento realizado, seguido da contratação de professores da Área Técnica, com 22,67%. Equipamentos e material permanente representaram 10,75% dos investimentos totais no período, conforme segue:
INVESTIMENTOS (em milhões de reais) | ||||||
---|---|---|---|---|---|---|
Ano | Obras | Equipamentos e Material Permanente | Veículos | Contratação de professores da Área Técnica | Bolsa Estágio | Outros investimentos |
2008 | 2,734 | 0 | 0 | 0 | 0 | 0 |
2009 | 38,008 | 6,270 | 0 | 4,141 | 0 | 4,325 |
2010 | 184,500 | 9,398 | 0 | 19,769 | 5,102 | 5,662 |
2011 | 104,493 | 25,665 | 0 | 24,565 | 5,599 | 1,483 |
2012 | 116,015 | 35,355 | 5,616 | 48,191 | 13,188 | 4,923 |
2013 | 66,929 | 5,719 | 0 | 58,210 | 19,453 | 3,644 |
2014 | 41,617 | 28,996 | 0 | 80,000 | 24,801 | 41,727 |
TOTAL | 554,294 | 111,403 | 5,616 | 234,876 | 68,143 | 61,764 |
Fonte: Sistema Integrado de Acompanhamento de Programas (SIAP)
O programa, iniciado em 2008, começou com 25 escolas. No ano seguinte, o número de escolas dobrou com a construção de mais 26 unidades. O investimento em obras e instalações é proveniente do MEC e do Tesouro Estadual. Conforme exposto na Tabela 2, desde a implantação e início dos investimentos devidos ao programa federal, o estado do Ceará recebeu diversos recursos para materialização do plano. Nesse sentido, chama a atenção o repasse de recursos à iniciativa privada para a remuneração dos estudantes que prestaram estágios durante o terceiro ano do curso.
A Lei de Estágio 11.788/2008 afirma que o poder público não tem obrigação de oferecer estágios remunerados aos estudantes das Escolas Estaduais de Educação Profissional, mas também não obriga que as empresas ou os órgãos o façam. Assim, a “saída” encontrada pela Seduc foi formalizada pelo Decreto Estadual 30.933, de 29 de junho de 2012, tornando o estágio curricular remunerado. Note-se que, apesar de o Decreto ser de 2012, a política de remunerar o estágio vigora desde o início. Desde a primeira turma a realizar o estágio, em 2010, até o final de 2014, foram investidos R$ 69.497.176,65 com o estágio remunerado, ou seja, o estado do Ceará garante, todos os anos, mão de obra gratuita a diversas instituições, sobretudo na iniciativa privada.14
Os dados analisados em 2019, relativos aos números do final de 2018, indicam uma crescente ampliação com 119 EEEPs funcionando em 95 municípios. As diretrizes de expansão assumidas pelo governo Cid Gomes e reforçadas nos mandatos de Camilo Santana, sob a tutela do Programa Brasil Profissionalizado, instituído pelo MEC, têm como objetivo central fortalecer as redes de Educação Profissional e Tecnológica nos estados do país.
Talvez o dado mais relevante a ser considerado acerca do Programa Brasil Profissionalizado e do aumento do percentual dos cursos profissionalizantes no Brasil seja o fato de que isso não signifique, em valores absolutos, real superioridade numérica. Isso porque o aumento das vagas dos chamados cursos técnicos ocorreu especificamente na rede federal de educação tecnológica, o que significa que não reflete a EP na totalidade, mas
[...] a expertise dos antigos centros federais de educação e seu legado, que ainda hoje continuam sendo campo de interesse de estudantes, trabalhadores e claro dos empresários que também fazem tal reconhecimento, motivo pelo qual é certa a contratação dos profissionais que são formados nestas instituições (SILVA; SANTOS, 2014, p. 10).
De forma específica, no entender de Silva e Santos, na medida em que houve baixa de vagas nas diversas iniciativas de cursos técnicos, somente a rede federal de educação tecnológica apresentou alta ou, melhor dizendo, índices superiores aos esperados, representando um aumento de quase 70% das vagas inicialmente disponibilizadas por essa rede. “É importante salientar ainda que a maior parte dessas vagas não têm a identidade da educação integral, pois representam ofertas de formação complementar por meio dos cursos subsequentes” (SILVA e SANTOS, 2014, p. 10-11).
O EMI do Estado do Ceará, amparado no Decreto 5.154/2004, inspira-se na essência da educação politécnica ao anunciar uma base teórico-prática capaz de integrar formação profissional e intelectual aos diversos aspectos da vida, ciência, cultura, tecnologia, trabalho e práticas sociais. A promessa é de formação plena, capaz de formar seres de práxis, situados historicamente, conscientes de seu papel social e capazes de buscar sua própria emancipação. Em contrapartida, constata-se que esse sistema de ensino tem preparado, numa escala muito desigual, mais sujeitos para executarem tarefas simples e submissos às forças produtivas do que homens e mulheres capazes de se integrar às forças sociais, compreendendo os impactos de suas ações dentro delas. Sobre essa contradição cabe a reflexão de Sousa Júnior (2010, p. 81): “A crítica de Marx condena não só a concepção de educação politécnica dos economistas filantropos, mas a própria redução em geral dos trabalhadores a uma mera formação técnica diversificada”.
Dando respaldo ao desejo de atar a educação ao mercado, o empresariado acena, com todos os seus artifícios, para a responsabilidade do trabalhador em manter-se interessante para o mercado de trabalho capitalista, lembrando-o constantemente de seu compromisso em desenvolver sua criatividade, empreendedorismo, dinamismo, entre outras potencialidades de saberes subjetivos. Os agentes defensores dessa perspectiva trazem, na ponta da língua, expressões prontas e acabadas sobre como deve ser a conduta do jovem trabalhador para enfrentar a competitividade do mercado de trabalho a partir das competências desenvolvidas. É sob essa lógica que o Estado cearense, a exemplo de outras tantas experiências Brasil afora, está oferecendo uma espécie de treinamento por meio das EEEPs, com a promessa de aumentar a empregabilidade dos jovens egressos. Além de obstaculizar o desenvolvimento livre da ciência e das forças produtivas, a profissionalização do Ensino Médio contribui para a subjugação da educação aos imperativos do mercado e das agências multilaterais, assim como impõe a esse complexo a chantagem da qualificação profissional como uma promessa de ascensão social e garantia de empregabilidade. Para o Estado, é confortável que a propaganda oficial apresente dados sobre o aumento do acesso das classes populares aos cursos profissionalizantes, alimentando a falsa impressão de propiciar valiosas oportunidades aos jovens, encobrindo a precariedade massificada por trás do falacioso acesso à era tecnológica.
4 CONCLUSÃO
O debate da Educação Profissional representa o entrave de várias correntes de pensamento e, em última análise, evidencia as determinações da postura do Estado em face do reforço do dualismo educacional. Kuenzer (1997) reforça que o enfrentamento da tensão entre as várias perspectivas educativas, principalmente no caso do Ensino Médio, tem levado não ao consenso, mas à polarização. A categoria da dualidade estrutural é discutida a partir das formulações propostas pela autora, o que conduziu ao enfrentamento da preparação para o mercado de trabalho capitalista e ao apontamento das impossibilidades de continuidade dos estudos para os jovens precocemente profissionalizados. Esclareceu-se que, no Brasil, a relação entre Educação Básica e Educação Profissional imprimiu-se a partir da funcionalidade da educação ao modelo de expansão econômica do país.
Como ponto inicial relevante, houve um esforço, ainda que breve, em demonstrar a cultura patrimonialista e personalista que caracteriza a política do Brasil e, destacadamente, do Ceará, onde as esferas públicas e privadas têm se confundido e reproduzido uma lógica patriarcal que assegura aos mesmos grupos políticos a permanência no poder. Há inúmeras diferenças pontuais em cada uma das administrações até a estrutura atual, porém, apesar das mudanças ocorridas ao longo do tempo, todas elas convergem para um ponto marcado pelo tradicionalismo e por projetos personificados de poder.
Para materializar o objetivo de esmiuçar o Ensino Médio Integrado do Estado do Ceará, objeto específico da comunicação ora exposta, foi necessário tomar para análise os documentos: Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio (1998) e Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Profissional de Nível Técnico (2000), entre outros. Por meio deles, foi possível apurar que as prescrições curriculares não apresentam homogeneidade ou articulação com os interesses da classe trabalhadora, representando o embate entre diferentes perspectivas, assim como as tensões existentes no campo da educação. O exame de tais documentos viabilizou uma investigação mais consistente em torno da Educação Profissional, no sentido de apreender as reformulações educacionais que têm sido sustentáculo ao projeto burguês de educação, caracterizado por segregar os estudantes em doutores e técnicos (no sentido menor da palavra), entre privilegiados e subalternos.
A leitura mais atenta dos documentos oficiais do MEC e o aporte apresentado em Santos (2017b) revelaram o desenvolvimento da ciência e da tecnologia no centro das transformações autônomas e, supondo existir neutralidade nessa esfera, desprezam as experiências sociais. À vista disso, é importante frisar que os cursos aligeirados, rasteiros e conciliados à lógica mercadológica nem mesmo mereciam ter a nomenclatura de cursos técnicos, tamanha é a deturpação de tal categoria.
A partir da análise das reformas e documentos da Educação Profissional, constatou-se que, a partir da década de 1990, em consonância com as políticas educacionais federais, os governos do Ceará adotaram práticas de gestão privada no espaço público, resguardados em pressupostos de base ideológica liberal, como o Relatório Jacques Delors (1998). O contexto político e social do Ceará nas últimas três décadas revela uma clara transição entre as atrasadas elites conservadoras, num verdadeiro jogo de poder que se expressa em todas as esferas, inclusive na educativa. A ostensiva propaganda oficial evidencia o investimento na Educação Profissionalizante como ápice da melhoria da educação, levando a opinião pública a crer que por esse caminho todos os outros problemas socioeducativos da classe trabalhadora serão resolvidos.
A orientação educacional para a Educação Profissional que redundou no atual Ensino Médio Integrado cearense já vinha sendo gestada desde o governo de Fernando Collor, embora somente tenha sido engendrada no governo Fernando Henrique Cardoso, por meio do então Ministro da Educação Paulo Renato Costa Souza. A política neoliberal implementada na década de 1990 serviu de pano de fundo para os fatores que desencadeiam relações empresariais mais nítidas dentro da escola. A fundamentação dessa proposta pedagógica ampara-se, fundamentalmente, no documento Modelo de Gestão TESE/TEO, o que demonstra a proximidade e a articulação com a ideologia neoliberal, com a reestruturação da força de trabalho e com a expansão do grande capital.
Diante do exame dos documentos e sítios oficiais, ficou nítido que o objetivo maior das reformas, financiamentos e projetos de expansão esteve, ao longo dos anos e governos, centrado em responder às exigências do mundo produtivo, sem, contudo, assegurar uma escola básica de qualidade que pudesse de fato dar conta dessa formação. A Educação Profissional Integrada ao Ensino Médio foi gestada a partir dos pressupostos do capital financeiro nacional e internacional, por meio de políticas endossadas pelas agências multilaterais.
Relembra-se, em última análise, a premissa de Nosella (2004), absolutamente correta e atual: o papel da educação é o de forjar indivíduos de visão ampla e complexa. Decididamente, não é esse o desiderato dos que decidiram politicamente pelo caminho mais estreito, qual seja, o da Educação Profissional como mote para habilitar jovens a competir no mercado de trabalho. Tal modelo, assentado em leis e decretos federais e estaduais, conforme indicados no transcorrer deste artigo, em nada se assemelha ao modelo de educação omnilateral defendido pelos clássicos do marxismo. O corpo legal, alinhado às políticas dos governos recentes no Ceará, trata a profissionalização a partir de um horizonte pedagógico inverso, embora haja contradições, às impostações de inspiração marxiana.
Portanto, não há por que não concluir o que parece patente: o caráter integrado à arena internacional do modelo de formação profissional hegemônico no Brasil; de mais a mais, de integração às demandas do capitalismo, em sua rude expressão contemporânea, realçada pelo receituário neoliberal. Essa talvez seja uma das conclusões que ajudam a emoldurar, mais de perto, a cena da Educação Profissional articulada ao Ensino Médio que perpassa um número determinado de escolas da rede estadual de ensino do Ceará.
O estudo chama atenção para o fato de a profissionalização do trabalhador-estudante ocorrer cada vez mais cedo, o que, em termos reais, significa que um grande contingente de jovens de aproximadamente 18-19 anos recebeu “habilitação” para exercer uma função precária atrelada à necessidade material de batalhar pelo sustento do dia a dia. Refletir sobre os impactos desse tipo de formação na sociedade constitui um imperativo real e urgente. O ideal de uma sociedade integradora coloca-nos, necessariamente, a favor de uma proposta que valorize os sujeitos e sua capacidade de produção da vida, muito distante do espírito do Ensino Médio Integrado do Ceará que, em essência, exclui, discrimina e fragmenta os sujeitos. Reitera-se, em contrapartida, a importância de repensar a dimensão integral da vida dos educandos, entendendo que, além do estudo, devem desempenhar outros papéis no sistema das relações sociais.