1 UMA INTRODUÇÃO
Nunca me contento com alguma coisa. Como já lhe revelei, estou buscando o impossível, o infinito. E, além disso, quero escrever livros que depois de amanhã não deixem de ser legíveis. Por isso acrescentei à síntese existente a minha própria síntese, isto é, incluí em minha linguagem muitos outros elementos, para ter ainda mais possibilidade de expressão.
João GuimarãesRosa, 2019
Em 2015, o termo professoralidade é acionado nos estudos do grupo de pesquisa Formação em Exercício de Professores, da Faculdade de Educação, Universidade Federal da Bahia (FEP/UFBA), e no grupo Formação, Experiência e Linguagens, do Departamento de Educação, Universidade do Estado da Bahia (FEL/UNEB - Campus de Conceição do Coité), a partir da obra Estética da professoralidade: um estudo crítico sobre a formação do professor, de Marcos Villela Pereira (2016), professor da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Essa obra partiu de sua tese, defendida em 1996, Estética da professoralidade: um estudo interdisciplinar sobre a subjetividade do professor, publicada, em sua primeira edição, em 2013. Em 2015, o professor participou de um evento organizado por esses grupos de pesquisa e outros parceiros, o III Seminário sobre Formação em Exercício de Professores (SEMFEP), na atividade Roda Viva, em que lançou esse livro e foi arguido por questões atravessadas pela estética, cultura de si e maneiras de compor a professoralidade.
A partir da presença de Pereira no III SEMFEP e posterior experiência com seu livro, esses grupos de pesquisa incluíram o termo professoralidade em seu léxico. Era mais um entre tantos neologismos; uma desconstrução léxica necessária devido à fluidez de pensares no interior dos grupos. Novos termos, que são deslocamentos, planos de fuga ou fugas (quase) plenas. Sendo uma fissura, não é qualquer coisa, exige rigor. Qualquer operação com um rigor outro exige o se imiscuir na coisa. A coisa para esses grupos de pesquisa era um neologismo: professoralidade.
Se, depois de um tempo, as palavras (quaisquer palavras) se esvaziam de significado, no caso dos neologismos, muitas vezes, já nascem cacofônicos e são utilizados desde sempre, paradoxalmente, no conforto da repetição, independentemente da funcionalidade conceitual da comunicação. Se as coisas se tornam o que são (NIETZSCHE, 2005), problematizar o uso dos neologismos - que, muitas vezes, são “cacoetes” - implica tentativas de compreender a potência de cada termo/contexto. As potências do contexto inventado no futuro uso da criação do neologismo e as potências da pretérita criação, em uma complexidade reativa ao fato de as palavras não ressoarem apenas no cérebro, mas também nos ouvidos - no corpo todo.
No caso de professoralidade, de um lado, o do futuro uso, um encontro em contextos em que o não finalismo, mesmo quando já defendido teoricamente, não se apresenta ainda como potência; de outro, o da criação pretérita, em que se pode argumentar o quanto é potente lexicalmente uma formação por derivação sufixal para a atualização da intenção de denotar um não finalismo e consequente ideia de “em movimento”. O termo sempre é um arranjo sistêmico em base lexical diacronicamente constituída e sincronicamente em funcionamento, uma função morfológica e de significado que complexamente estará no plano do acontecimento e sujeito a todas as contingências.
Para esses grupos de pesquisa, que discutem currículo e formação de professores em exercício, professoralidade pertence, desde então, a um híbrido edifício linguístico constituído por um acervo lexical derivado de abordagens não essencialistas, com ênfase nos estudos pós-estruturais. Compreende-se, assim, que professoralidade comportaria um radicalismo “outro” que impõe a presença sígnica como estruturante na construção da própria coisidade, bem como exporia - com a visibilização do constante movimento de vir a ser - a idealização presente no projeto identitário de professor/a vigorosamente presente na legislação relativa a essa formação e em outras ancoragens institucionais que operam em sua composição.
Após cinco anos de utilização do termo professoralidade, nesses grupos de pesquisa foram produzidos artigos, teses, dissertações e Trabalhos Finais de Conclusão de Curso de mestrados profissionais e de graduação; conversas que, recorrentemente, acionaram tal termo, em tentativas de: 1) se opor à ideia de identidade docente limitada à profissionalidade; 2) apresentar a negação de todo e qualquer fundamento último, transcendental, que defina um projeto de docência.
Como nem todo fundamento é último, não se trata de uma negação de toda e qualquer possibilidade de fundamentação, pois todo projeto, mesmo sempre provisório, tem fim e começo. Tal posicionamento diante do termo professoralidade vincula-se às ideias de “sujeito não pleno” marcado por uma falta constitutiva lacaniana em substituição ao sujeito consciente e onisciente cartesiano e de que, no plano do acontecimento, qualquer tentativa de domesticação da diferença é fadada ao fracasso. Diferença, aqui, compreendida a partir de Derrida (2014), como différance, a incompletude e inacabamento das significações do ser, que podem ser sempre adiadas por não haver relação direta entre significante e significado.
Isso posto, este artigo tem como intenção compreender como tal termo tem sido operado conceitualmente nos trabalhos produzidos nos programas de pós-graduação stricto sensu no Brasil. A revisão sistemática de literatura anunciada pretende cartografar as desconstruções presentes em cada conceito de professoralidade acionado pelos diversos autores, distanciando-se de um resumo crítico dos trabalhos selecionados com posterior análise contrastiva. A desconstrução pode ser compreendida pela forma como Derrida (1973) construía seus textos, numa escrita filosófica desconstrucionista, pondo sempre em perspectiva as sustentações lógicas de um regime de verdade.
Como as coisas do mundo são fluxos de sentidos e significados que se fixam contingencialmente diante de uma demanda discursiva, a própria realidade não tem referente, àquilo que é, ou deva ser, definitivamente. Há o limite da significação. Logo, a desconstrução, ou melhor, a desmontagem da linguagem, volta-se às discursividades, decompondo os discursos com os quais opera, apresentando seus pressupostos epistêmicos, possíveis deslocamentos, ambiguidades e contradições. A desconstrução tensiona as condições discursivas necessárias e contingentes, mas não suficientes per se, para a construção lógica de um texto.
Utilizado pela primeira vez por Jacques Derrida em 1967 na Gramatologia, o termo “desconstrução” foi tomado da arquitetura. Significa a deposição, decomposição de uma estrutura. Em sua definição derridiana, remete a um trabalho do pensamento inconsciente (“isso se desconstrói”), e que consiste em desfazer, sem nunca destruir, um sistema de pensamento hegemônico e dominante. Desconstruir é de certo modo resistir à tirania do Um, do logos, da metafísica (ocidental) na própria língua em que é enunciada, com a ajuda do próprio material deslocado, movido com fins de reconstruções cambiantes (DERRIDA; ROUDINESCO, 2004, p. 9 apudPEDROSO JUNIOR, 2020, p. 12).
Deleuze e Guattari (1992) vão nessa direção ao discutirem a natureza da filosofia, que é o ato de inventar, ressoar acontecimentos conceituais, contextualizando uma situação problemática a partir do exercício de conceituar num plano de imanência, independentemente de qualquer espécie de modelo transcendente. Dessarte, todo conceito possui devir, ressoando questões não previstas, pois “Não há conceito simples. Todo conceito tem componentes, e se define por eles. Tem, portanto, uma cifra. É uma multiplicidade” (DELEUZE; GUATTARI, 1992, p. 23).
2 ATRÁS DAS FABULAÇÕES
Para a cartografia, são utilizados os descritores “professoralidades” e “professoralidade” no Catálogo de Teses e Dissertações da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), no espaço temporal de 2010 a 2019, centrando nos trabalhos contemporâneos da última década. Com o primeiro descritor, foram encontrados uma dissertação, um Trabalho Final de Conclusão de Curso (TFCC) de mestrado profissional e uma tese. Com o segundo, foram encontrados dezessete dissertações, cinco TFCC e vinte teses.
A partir desse universo identificado, o critério de inclusão do corpus do estudo são dissertações, TFCC e teses de doutoramento que têm o descritor no título, resumo e/ou palavras-chave, bem como são selecionados os trabalhos completos disponíveis no Catálogo. Após essa seleção, constitui-se o corpus da pesquisa com vinte e dois trabalhos: doze dissertações, seis TFCC e quatro teses. Segue quadro com indicação de título, autoria e instituição de vínculo e ano da produção.
Título - D (dissertação)/TFCC/ T (tese) | Autor/a | Instituição de vínculo da produção | Ano |
---|---|---|---|
“Os professores da educação profissional: sujeitos (re) inventados pela docência” - D | Angelita da Rocha Oliveira Ferreira | Universidade Católica do Rio Grande do Sul | 2010 |
“A escuta em equipe na escola: um estudo sobre linguagem e produção de professoralidades” - D | Lúcia Lima da Fonseca | Universidade Federal do Rio Grande do Sul | 2011 |
“Movimentos da professoralidade: a tessitura da docência universitária” - T | Ana Carla Hollweg Powaczuk | Universidade Federal de Santa Maria | 2012 |
“Sobre o mal-estar docente: constituindo percepções a partir de um grupo de professores da rede pública estadual de ensino do RS” - TFCC | Clara Lisandra de Lima Silva | Universidade Federal de Pelotas | 2014 |
“Docência universitária: o professor agrônomo na construção de sua professoralidade” - D | Marly Nunes de Castro Kato | Universidade Federal de Uberlândia | 2015 |
“Movimentos de professoralização: enlaces com a experiência estética” - D | Maria Emerita Jaqueira Fernandes | Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia | 2015 |
“O memorial de formação como gênero do discurso: marcas da professoralidade docente Vitória da Conquista - BA 2015” - D | Leidiane Santos Dourado | Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia | 2015 |
“A Constituição da professoralidade do docente bacharel: o aprender a ensinar na educação superior” - D | Luiz Eduardo das Neves Silva | Fundação Universidade Federal do Piauí | 2016 |
“Fazendo a diferença. Histórias de professoras alfabetizadoras participantes do pacto nacional pela alfabetização na idade certa (PNAIC)” - T | Crystina di Santo d Andrea | Universidade Federal de Santa Maria | 2016 |
“A construção das práticas docentes do professor iniciante” - D | Luiz Antonio Frezzarin | Centro Universitário Salesiano de São Paulo | 2017 |
“Tessituras dos currículos formação e a constituição da professoralidade” - D | Marlene Moreira Xavier | Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia | 2017 |
“Constituição da professoralidade no ensino superior: percursos de professores bacharéis em Administração” - T | Kelsen Arcangelo Ferreira e Silva | Fundação Universidade Federal do Piauí | 2017 |
“Um olhar acerca do sentido da experiência na formação de professores” - T | Anthony Fabio Torres Santana | Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul | 2017 |
“Escrita em dois tempos: o vivido e o refletido por um professor iniciante” - D | Raul Sardinha Netto | Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho | 2017 |
“O ser e o tornar-se docente em alternância: memórias do presente, passado e futuro” - D | Grasiela Lima de Oliveira | Universidade Estadual de Feira de Santana | 2018 |
“Constituição da Docência no Curso de Licenciatura em Matemática à Distância da Universidade Aberta do Brasil (UAB): um itinerário formativo” - TFCC | Ana Cristina Medina Pinto | Universidade Federal de Pelotas | 2018 |
“Memórias da professoralidade: Trajetórias de professores de matemática da cidade de Pelotas” - D | Cris Elena Padilha da Silva | Universidade Federal de Pelotas | 2018 |
“Formação continuada docente: a diversidade como princípio educativo no IFBA de Jacobina - Bahia” - TFCC | Eliene Maria Sales Santos | Universidade do Estado da Bahia | 2018 |
O Papel da Formação e das Crenças no Desenvolvimento da Professoralidade de Professoras Polivalentes para o Ensino de Matemática - TFCC | Luana Leal Alves | Universidade Federal de Pelotas | 2019 |
Educação emocional, mal-estar e identidade docente: discutindo sobre a docência em uma escola pública em tempo integral - TFCC | Jonatas Silva Santiago | Universidade do Estado da Bahia | 2019 |
“Cartografia docente: Alinhavos entre imagens, experiências e naturezas na formação de professores de ciências e biologia” - D | João Paulo dos Santos Silva | Universidade Estadual de Feira de Santana | 2019 |
“Currículo, professoralidades e sexualidades” - TFCC | Maria Goretti Ramos de Almeida | Universidade do Estado da Bahia | 2019 |
Fonte: Elaboração própria.
O olhar para esses trabalhos é mais uma tentativa de ir ao encontro de fabulações outras do termo professoralidade e menos uma tentativa de analisar sua consistência e coerência com a perspectiva usualmente utilizada pelos grupos de pesquisa supracitados. A fabulação é uma faculdade voltada para a criação de novas e potentes imagens conceituais, sem as quais a criação possa se perder de sua política de sentido. Então, a intenção da revisão sistemática não é verificar se o uso do termo condiz com a inventividade de Pereira, em sua tese, em 1996, e posterior publicação do livro, em 2013, mas experimentar o produzido (do termo) em sua relação com outros regimes de verdade.
Acionando a ideia de imagem-fábula de Deleuze (1992), interessa-nos ver os possíveis devires de tal termo. A imagem-fábula é a imagem da dobra, que instala algo ou alguma coisa, não na ordem do tempo, mas na coexistência do passado e do futuro, com a construção da subjetividade em constante mudança. De acordo com Pimentel (2010, p. 248), “Não há sujeito igual a si mesmo porque pensamos, existimos, e vivemos no tempo; subjetividade é vir a ser, mudança, desterritorialização, repetição da diferença, o singular tornando-se múltiplo”. Numa analogia, fabular perspectivas é, então, estar no esteio de referências como potência do vir a ser, provocando deslocamentos que (des/re)configuram as estruturas discursivas sobre um conceito.
Na leitura dos trabalhos, um mundo em desconstrução se revela/desvela, cobre/descobre e, a partir desse universo interpretativo, é fabulado dois movimentos desconstrucionistas, o das fabulações hermenêuticas e o das fabulações teleológicas. O encontro com fabulações outras do termo professoralidade em cada um dos movimentos é descrito a seguir. Considerando que as fabulações tecidas apresentam potentes marcas da subjetividade de cada autor e, visando uma maior fluidez da leitura, são acionados para a identificação de cada um dos trabalhos, o título, o ano de defesa e o primeiro nome do autor, por ser uma estética de pessoalidade, em vez do normativamente burocrático sobrenome.
2.1 Movimento hermenêutico das fabulações
Nesse movimento, são considerados, entre teses, dissertações e TFCC, doze trabalhos. Entre estes, destaca-se Antony que, em 2017, orientado por Marcos Villela Pereira, defende a tese “Um olhar acerca do sentido da experiência na formação de professores”, partindo das seguintes perguntas que se assentam em proposições possíveis a partir da ideia de seu orientador: Como a prática docente se constitui em experiência? Como a experiência se constitui conhecimento na formação do/a professor/a? E quais as implicações da experiência na constituição da professoralidade?
Nessa tese, a relação entre prática docente e formação docente é investigada, por meio do conceito de experiência na perspectiva das hermenêuticas filosóficas de Gadamer (2005), que traz ao ser a dimensão ontológico-hermenêutica. A experiência se dá na compreensão de que a própria consciência faz de si mesma ao experimentar as coisas do mundo. A consciência volta-se a si mesma e reconhece-se na alteridade, e não como mero reflexo do mundo objetivo. Logo, a consciência nas hermenêuticas filosóficas consolida-se a partir do ser-no-mundo, imerso na tradição, em oposição à consciência do sujeito transcendental autônomo que planifica, objetiva, controla suas experiências.
Nessa linha, mesmo que apenas como pano de fundo, encontra-se o entendimento da negatividade da experiência que possibilita a compreensão de que, ao se abrir para o reconhecimento de que existe algo contra si, torna a docência (prática), em si, formação docente. E esta não se limita aos programas institucionais de formação, ampliando como espaço formativo os tempos-espaços curriculares. Ao operar com o esvaziamento da ideia de estabilidade e finitude da formação docente, logo da sua identidade, a tese de Antony se aproxima da de Pereira (2016, p. 35):
[...] a professoralidade não é uma identidade que um sujeito constrói ou assume ou incorporamos, de outro modo, é uma diferença que o sujeito produz em si. Vir a ser professor é vir a ser algo que não vinha sendo, é diferir se si mesmo. E, no caso de ser uma diferença, não é a recorrência a um mesmo padrão ou modelo. Por isso, a professoralidade não é, a meu ver, uma identidade: ela é uma diferença produzida no sujeito, E, como diferença, não pode ser um estado estável e que chegaria o sujeito. A professoralidade é um estado em risco de desequilíbrio permanente.
Nesse sentido, como Pereira, Antony fabula a professoralidade na perspectiva da formação dos/as professores/as ao longo da sua história de vida, atravessada pelas contingências. O tornar-se professor/a constitui-se como campos de negociações entre o horizonte de mundo do ser e as experiências que põem em crise hermenêutica o ser-no-mundo. Nesse devir, substantiva o termo professoralidade que pode ser compreendido como trajetividade do/a professor/a. Trajetividade que extrapola as ancoragens institucionais da profissionalidade do docente (universidades, sindicatos, associações e outras comunidades instituídas), para ir em direção à “vida”, ou melhor, a professoralidade assume o estar no mundo na dimensão estética: possibilitar existir como, mostrar-se como, ser como obra de arte.
Assim, a ontologia acionada aqui é o pôr-se-em-obra da verdade do ser. Verdade, para Gadamer (2007), é um acontecimento de encobrimento e não encobrimento do ente. A desocultação do ente é o acontecimento que se constitui um combate entre a desocultação e reserva e é uma experiência que lança o ser no esteio da linguagem e da tradição. Partindo dessa fabulação, a professoralidade é o resultado de experiências hermenêuticas que colocam o ser na disposição à abertura, no remeter-se à alteridade e no âmbito da linguagem.
Clara, em 2014, produz o TFCC, intitulado “Sobre o mal-estar docente: constituindo percepções a partir de um grupo de professores/as da rede pública estadual de ensino do RS”, que segue a dimensão estética da professoralidade ao investigar os afastamentos oficiais de professores/as de suas atividades de trabalho nos anos de 2010/2011. Esse trabalho marca que o exercício da professoralidade deve incluir a existência do/a professor/a como uma totalidade. Trata-se, então, de tomar, como fio condutor da formação, experiências que acontecem a partir do que é vivido, experimentado, do que foi vivido em múltiplos espaços e com variados textos.
Maria Emérita, na dissertação “Movimentos de professoralização: enlaces com a experiência estética”, em 2015, expõe entrelaçamentos entre docência e pesquisa, memória e formação, como possibilidades de produção de experiências estéticas. Assim, os movimentos das professoralidades se dão na dimensão de novas sensibilidades, rompendo com discursividades dominantes e solicitando estranhamentos estéticos envolvidos no processo educativo. Logo, fabula a ideia de abertura de horizontes gadameriana e de afecção de Deleuze (1992) para defender a articulação da dimensão humana sensível como produtora de dinamismos e diferenças em tramas professorais.
Nesse movimento hermenêutico, há trabalhos que aproximam a constituição da professoralidade ao cotidiano curricular mais radicalmente, expondo o quanto a professoralidade vai além dos cursos de formação docente, que são pensados no campo da representação e coisificação da docência ao construírem políticas de identidade do que é ser professor/a voltado para demandas e políticas públicas. Marlene, na dissertação “Tessituras dos currículos formação e a constituição da professoralidade”, em 2017, tem como foco os currículos praticados pelos professores/as e alunos/as num programa de formação inicial em exercício, no processo de constituição da professoralidade. Apostando numa discussão cotidianista, atenta à multiplicidade de experiências tecidas no processo de constituição da professoralidade, inclusive com as táticas de subversão às estratégias historicamente hegemônicas. Nessa perspectiva, há também os trabalhos de Maria Goretti, em 2019, e de Lúcia, em 2011, respectivamente, “Currículo, professoralidades e sexualidades” (TFCC) e “A escuta em equipe na escola: um estudo sobre linguagem e produção de professoralidades” (dissertação). As autoras relacionam a construção da professoralidade aos atos de currículo, atrelando-os à formação docente por meio da experiência hermenêutica do/a professor/a ao fazer o currículo.
Agrupamos seis trabalhos que ratificam a dimensão histórica da professoralidade, buscando as redes envolvidas na constituição do/a professor/a, a partir do entendimento sobre “como e por que tenho sido o que tenho sido”. Pereira (2016, p. 38) está na base desse veio, marcadamente quando defende que, “quanto ao sujeito e à subjetividade, eles serão compreendidos, respectivamente, como uma formação existencial singular, uma emergência constituída em um campo de coletividade”. Esses trabalhos acionam metodologias que são agenciadas na epistemologia hermenêutica, como cartografia, (auto)biografia e história oral.
Com a intenção de compreender como a professoralidade é constituída na história de vida do/a professor/a, por meio das experiências - discutida a partir de Bondía (2002), Grasiela, em “O ser e o tornar-se docente em alternância: memórias do presente, passado e futuro” (dissertação defendida em 2018), apresenta recortes das histórias de vida, memórias (auto)biográficas (PASSEGGI; SOUZA; VICENTINI, 2011) dos docentes das Escolas Família Agrícolas da rede REFAISA, a partir do alternar, do ser e do tornar-se docente, por meio do processo de construção e reconstrução da professoralidade desses educadores.
Esse trabalho aciona as subjetividades como essenciais na constituição da professoralidade e o dever ético de autoria no processo de tornar-se professor/a, ao criticar as referências que aparecem na história de vida. Coloca a consciência de si como possível ao rememorar-se e experimentar-se em busca da produção de uma professoralidade nova e na tentativa de atingir as perspectivas críticas da Educação do Campo. Nessa dissertação, com a fabulação hermenêutica de professoralidade, centrada em Pereira (2016), Grasiela assume a fabulação teleológica no momento em que referencia os estudos críticos da Educação do Campo. Portanto, esse trabalho compõe os dois movimentos de fabulações tratados neste artigo.
Na dissertação “Cartografia docente: alinhavos entre imagens, experiências e naturezas na formação de professores de Ciências e Biologia”, João Paulo, em 2019, propõe uma cartografia (ROLNIK, 1989) das professoralidades, sendo estas entendidas como processos de subjetivação atravessados pela imprevisibilidade da vida e da produção de diferença na perspectiva de Deleuze e Gattari (2012), como movimentos desejantes que impedem a mesmidade das repetições. As subjetividades aderem a normalizações hegemônicas contingencialmente. O estabelecido é a ambição, evitando acontecimentos que perturbem uma ordem dada, embora seja impossível a manutenção da mesmidade em razão do cotidiano que impõe a ação criativa e inovadora.
Cris, em “Memórias da professoralidade: trajetórias de professores de Matemática da cidade de Pelotas” (dissertação produzida em 2018), interpreta a trajetória de quatro professores de Matemática do Rio Grande do Sul com base na perspectiva teórico-metodológica da história oral (PORTELLI, 2010; 2016). Ao entrevistar professores de Matemática, observando a trajetória de cada um, a professoralidade foi pensada em três traços: a formação em espaços acadêmicos, no cotidiano escolar e em outros espaços no início da carreira docente; as referências de educação acionadas nas práticas escolares e nos agenciamentos de subjetividades do/a professor/a; e o momento de encerramento de um ciclo profissional. Esse trabalho, ao buscar uma ideia de totalidade na história de vida do/a professor/a, limita a professoralidade ao que acontece na trajetividade do/a professor/a enquanto institucionalmente é professor/a.
Leidiane, na dissertação “O memorial de formação como gênero do discurso: marcas da professoralidade docente”, em 2015, aborda o memorial de formação docente como um gênero discursivo que permite, numa abordagem autobiográfica e dialógica, indiciar as marcas da professoralidade docente. A partir de relatos dos percursos de vida, percursos de formação e percursos profissionais, ratifica a proposição de Pereira de que as professoras/alunas de um curso de formação continuada constroem a professoralidade a partir das interações que vão se estabelecendo entre as esferas da vida cotidiana e os horizontes da vida acadêmica.
Coadunados às teorizações de pessoalidade e professoralidade do/a professor/a como indissociáveis das fabulações hermenêuticas, seguem nessa direção os trabalhos de Luiz Antônio, de 2017, e Eliene Maria, de 2018: “A construção das práticas docentes do professor iniciante” (dissertação) e “Formação continuada docente: a diversidade como princípio educativo no IFBA DE Jacobina - Bahia” (TFCC), respectivamente.
2.2 Movimento teleológico das fabulações
Para esse movimento, identificamos dez trabalhos que reivindicam tratar professoralidade como uma ação de ensino e aprendizagem fundamentada apenas pelos saberes e fazeres do/a professor/a, permeando suas vivências profissionais, a reflexão e a ressiginificação dessa prática. Essa perspectiva dialoga com égide mais teleológica e racionalista. Nessa fabulação, usa-se como ponto de partida não mais Pereira (1996; 2016), mas Bolzan (2002) e Bolzan e Isaia (2006).
A tese de 2017, “Constituição da professoralidade no ensino superior: percursos de professores bacharéis em administração”, de Kelsen, guia-se pelo seguinte problema de pesquisa: de que forma se constitui a professoralidade de docentes bacharéis em Administração que atuam no ensino superior? O estudo defende que a professoralidade do/a professor/a é tecida nas variadas experiências vivenciadas com a prática docente em seu cotidiano, tendo a reflexão crítica sobre essa atuação profissional como componente intrínseco à sua constituição. A criticidade é posta como elemento emancipador que garante que uma pessoa seja considerada apta para a docência.
Nessa perspectiva, a professoralidade implica ser “pesquisador/a de si”, um sujeito que reflete sobre sua atividade docente e se reconhece como produtor de novos saberes. O/A professor/a necessita refletir na ação, no momento em que esta ocorre e também desenvolver essa ação reflexiva sobre sua reflexão na ação. Isaia e Bolzan (2006, p. 108) afirmam que o pensamento e reflexão sobre a constituição da professoralidade dos/as professores/as do ensino superior implicam o “desenvolvimento profissional consistente, mediado por espaços institucionais nos quais redes de interação e mediação permitem aos professores refletir, compartilhar e reconstruir experiências e conhecimentos próprios à especificidade do ensino”.
Para tanto, classifica professoralidade em inicial/primária, perceptível, única/singular e coletiva. A inicial/primária compreende os primeiros anos da docência em que o/a professor/a bacharel não tem consciência de sua atuação na carreira. A perceptível é o momento pós-início da carreira em que o/a professor/a aciona formações para responder às demandas da prática da profissão. A única/singular é o momento em que o/a professor/a, consciente, atua de forma autoral em seu exercício docente. Na coletiva, ele expande sua atuação numa escala maior e se responsabiliza por compartilhar os conhecimentos e experiências de sua professoralidade crítica e reflexiva. Percebe-se uma gradação de consciência crítica nessa fabulação.
Na mesma direção, Luana, em 2019, no TFCC “O papel da formação e das crenças no desenvolvimento da professoralidade de professoras polivalentes para o ensino de matemática”, objetiva identificar o desenvolvimento da professoralidade de professoras polivalentes, no que se refere ao ensino de Matemática nos anos iniciais. Ana Cristina, no TFCC “Constituição da docência no curso de licenciatura em matemática a distância da Universidade Aberta do Brasil (UAB): um itinerário formativo”, em 2018, busca uma compreensão sobre a forma como se constituiu o/a professor/a de Matemática em um curso de Licenciatura a Distância.
Por sua vez, Luiz Eduardo, na dissertação “A constituição da professoralidade do docente bacharel: o aprender a ensinar na educação superior”, de 2016, analisa a constituição da professoralidade do docente bacharel no exercício da docência superior. Os estudos pontuam que o/a professor/a atua, dentro de suas possibilidades, como pesquisador de suas próprias práticas e de que necessita de ampliação de qualificação e requalificação de sua formação continuada. “Escrita em dois tempos: o vivido e o refletido por um professor iniciante” é a dissertação de Raul que, defendida em 2017, tem a pretensão de realizar uma reflexão metacrítica sobre o processo de elaboração de saberes sobre a própria docência no início da profissão e analisar a importância do registro escrito para a emergência da compreensão da experiência docente. A professoralidade crítica possibilitaria a constituição de um lugar de troca em que possa construir coletivamente instrumentos emancipatórios, como o Projeto Político-Pedagógico das escolas. A fabulação teleológica é construída em torno da ideia de que a criticidade busca rastros, como pistas semióticas, que rastreiam sintomas do que se é, em essência, para se ter acesso à totalidade última de significação da professoralidade.
O TFCC de Jonas, “Educação emocional, mal-estar e identidade docente: discutindo sobre a docência em uma escola pública em tempo integral”, trata, em 2019, sobre a importância da educação emocional do/a professor/a no contexto de sala de aula da Educação Básica, no Programa Educação em Tempo Integral. As dificuldades emocionais no/a professor/a ocasionam um mal-estar no ambiente escolar, desafiando o/a professor/a com as demandas de sua profissão e, dessa forma, interferindo em sua construção identitária. Portanto, para o/a professor/a alcançar o bem-estar docente, é necessário que amplie sua professoralidade. A professoralidade, aqui, é fabulada como o processo de construção do sujeito professor/a ao longo de sua trajetória pessoal e profissional, envolvendo espaços e tempos em que o docente reconstrói sua prática educativa.
Duas teses, “Fazendo a diferença. Histórias de professoras alfabetizadoras participantes do Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa - PNAIC: tecendo a vida em (trans)formação: o diário de bordo em escrituras de si e do outro”, de 2016, e “Movimentos da professoralidade: a tessitura da docência universitária”, de 2012, respectivamente, de Crystina e de Ana Carla, consideram que a professoralidade abriga processos de formação com suas intencionalidades e de desenvolvimento profissional docente, como um movimento não aleatório e espontâneo, que se realiza no fazer cotidiano. Refere-se, portanto, a professoralidade a processos de reprodução/repetição e de criação/invenção da docência universitária, expressos pelos movimentos de individuação e de particularização. Movimentos que retraduzem os enfrentamentos docentes em aliar os conhecimentos que compõem o repertório de saberes elaborados ao longo de seus percursos e a produção de modos de ser e fazer-se como professor/a. Esse processo se dá na consciência crítica emancipadora.
Por último, há duas dissertações, das autoras Angelita e Marly, de 2010 e 2015, que utilizam o termo professoralidade como sinônimo de identidade docente, atrelada à profissionalidade do/a professor/a, construída como resultado do acúmulo de saberes, legitimados institucionalmente pelos cursos de formação inicial e continuada. Esse horizonte pode ser considerado um desvio da natureza originária do termo professoralidade, uma vez que não se aciona um mínimo deslocamento da perspectiva tradicional de compreender a identidade docente como reflexo da trajetória profissional do/a professor/a que é o fundante do termo em estudo.
3 CONCLUSÕES E OUTRAS FABULAÇÕES
As problematizações acionadas pelos Grupos FEP e FEL - nesses cinco anos nos quais o termo professoralidade passou a fazer radicalmente parte do edifício linguístico desses grupos - desconstroem ao tempo em que reativam os entendimentos de professoralidade sempre com potentes ligações com a área do currículo. Movimento de professoralidade singular, mas forjado no currículo e forjador desse mesmo currículo, sempre um produto provisório.
O estudo apresentado neste artigo constata a difusão do termo pelo País, com forte concentração nos estados de Rio Grande do Sul e da Bahia. Independentemente do caminho das fabulações, essas pesquisas citadas tratam de um continuum de articulação em que a constituição da professoralidade passa a ser um exercício resultante dos saberes pedagógicos, estéticos, políticos, cotidianos na escola e fora dela, atravessados pelas contingências. Continuum este que, pelas interpretações realizadas, é atravessado por duas abordagens epistêmicas de fabulações: as hermenêuticas fenomenológicas, que partem das obras de Pereira (1996; 2016), e as racionalistas teleológicas, com a base de Bolzan (2002) e Bolzan e Isaia (2006). São pesquisas fabuladas que abordam: a) a organização escolar e a socialização profissional de professores/as; b) as percepções do exercício da docência; c) a identificação profissional docente vinculada às memórias e experiências do fazer-se professor/a; entre outros.
Entretanto, os trabalhos apresentados, mesmo que, em diferentes formas e em diferente intensidade, fixam-se em sujeitos definidos e individuados, operando a trajetividade por via das narrativas memorialísticas, desvelando fenomenologicamente o que aparece nas narrativas ou criticando o que aparece nas narrativas, ou seja, busca-se inferir sobre um sujeito a ser resgatado ou identificado. Essas fabulações do conceito de professoralidade se afastam, mesmo quando sem intenção anunciada, das abordagens não essencialistas, com ênfase nos estudos pós-estruturais, pois há um desejo latente de plenitude da professoralidade. Logo, a professoralidade operada conceitualmente como algo alcançável, dificulta, senão impossibilita, a interpretação do “como e por que tenho sido o que tenho sido”.
Após o término da revisão sistemática que visou compreender como o termo professoralidade tem sido operado conceitualmente nos trabalhos produzidos nos programas de pós-graduação stricto sensu no Brasil, adentraremos em outro movimento investigativo que, em face do conhecimento desconstruído no primeiro movimento, intenta ser um movimento de operacionalização conceitual no qual o acesso às professoralidades pode acontecer num potente caldo plasmático de experiências - contadas/inventadas por professores/as atravessados/as pelo “fio da memória” - fecundador de uma rede de sentidos e significações descentradas e, ao mesmo tempo, interligada em relações frágeis e não causais.
A professoralidade, portanto, realiza-se contra o presente, contra o eu constituído: “Para chegar a ser o que se é, há que combater o que já se é” (BONDÍA, 2002, p. 61). É um estado de risco que se coloca o ser-aí em constante produção de um ser Outro. Esse entrelugar, que interessa em nossa fabulação do termo professoralidade, materializa-se na experiência, não como algo natural ou mesmo essencial, ao contrário, como “um evento linguístico (não acontece fora de significados estabelecidos), mas não está confinada a uma ordem fixa de significados” (SCOTT, 1999, p. 16). Quando se trata de professoralidade, não se refere à própria realidade, àquilo que alguém é, ou deva ser, como professor em sua totalidade; concerne às discursividades que aderem a normalizações, como performatividade de poder que, ao mesmo tempo que impõe uma repetição, expõe o limite dessa repetição.
Recorrendo a Butler (2017), as professoralidades estão contaminadas por performatividades de poder, num caráter não determinista, na incompletude e opacidade, pois não há constituição de professoralidade exterior a um determinado regime de verdade e período histórico. As condições de seu surgimento/consciência/compreensão não estão ao alcance do estabelecimento da singularidade do/a professor/a, de modo que “sou usada pela norma precisamente na medida em que a uso” (BUTLER, 2015, p. 51). Nesse sentido, as discursividades sobre professoralidades são produzidas no âmbito da rememoração do/a professor/a, que inclui lembrança e esquecimento, contingencial e retoricamente no jogo do aparecimento e reconhecimento desses quadros de normas.