1 INTRODUÇÃO
[...] é indispensável se contrapor a processos de assimilação a pensamentos, comportamentos, projetos unicamente de raiz europeia. O diálogo entre culturas é o grande desafio da educação das relações étnico-raciais. Como estabelecer diálogo entre distintas visões de mundo? Como negociar mudanças? Como estabelecer metas e atingi-las, sem imposições? Que elos queremos criar?
Que elos há que romper?[…] (SILVA, 2018, p. 136).
No Brasil, a Lei nº 10.639/20031, que altera a Lei de Diretrizes e Bases da Educação, Lei nº 9.394/1996, tornou obrigatório o ensino da História e Cultura Afro-Brasileira e Africana, e suas decorrentes regulamentações (o Parecer CNE/CP 03/2004 e a Resolução CNE/CP 01/2004) situam, na discussão curricular, a imediata inserção da temática. A implementação de arcabouço legal pelo Estado brasileiro na área educacional, a partir de 2003, é um dos resultados das lutas empreendidas pelo movimento negro brasileiro2 e representa um importante avanço jurídico-político para superar as desigualdades étnico-raciais3. Deste modo, a Lei nº 10.639/2003; a Lei nº 11.645/2008; as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana (BRASIL, 2004); o Plano Nacional de Implementação das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino da História e Cultura Afro-Brasileira e Africana (BRASIL, 2009) e as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar Quilombola (BRASIL, 2012) impulsionam os debates sobre o ensino da História e Cultura Afro-Brasileira e Africana.
Os dilemas e os desafios para a implantação da referida legislação estão provocando instigantes e tensos debates em torno do que é considerado valioso para ser transmitido nas instituições educacionais por meio dos seus currículos - que têm sido, predominantemente, eurocêntricos, como discutiremos a seguir. Tal problematização exige questionamentos contundentes à naturalização do currículo hegemônico para possibilitar que a diversidade étnico-racial brasileira e a História e Cultura Afro-Brasileira e Africana estejam presentes nas práticas curriculares de modo estrutural, o que requer a discussão acerca de outras formas de produzir conhecimento; de sentir; de viver e de se relacionar. Para tanto, é imprescindível que ocorra a descolonização dos currículos, o que demanda a ruptura com a hegemonia da lógica eurocentrada sobre o entendimento do que é considerado conhecimento, bem como dos sujeitos vistos como legítimos para produzi-lo, pois, conforme Dei (2012), há múltiplas formas de conhecimento com respectivos modos de conhecer e a tradição científica europeia e ocidental é apenas uma expressão do conhecimento científico. Gomes (2012, p. 107) considera que “a descolonização do currículo implica conflito, confronto, negociações e produz algo novo. Ela se insere em outros processos de descolonização maiores e mais profundos, ou seja, do poder e do saber”. Tais processos podem ser substancialmente enriquecidos a partir da conexão com os debates realizados na diáspora africana com os que ocorrem em diversos países africanos acerca da crítica ao eurocentrismo que, historicamente, também fundamentou seus currículos.
Nessa discussão, os conhecimentos indígenas africanos4 são percebidos como base para reestruturar os diferentes sistemas de educação africanos e os seus currículos; para a criação de uma identidade africana e para uma discussão mais elaborada sobre as diferenças e as semelhanças entre a produção de conhecimento indígena e o ocidental (SEEHAWE, 2018). Conforme Nhalevilo (2018, p. 7) “[...] é relevante referir que o termo indígena tem diferentes conotações em diferentes partes do mundo. Aqui uso o termo indígenas para referir aos nativos de um país, sejam eles no Brasil, no Canadá ou em Moçambique ou outro país qualquer”5.
Mapara (2009) destaca que os Indigenous Knowledge Systems (IKS) são um corpo de conhecimento, ou corpos de conhecimento dos povos indígenas de áreas específicas nas quais sobreviveram por muito tempo; são formas de conhecimento que não morreram, apesar do ataque racial e colonial a que foram submetidos pelo imperialismo colonial e que são mais do que a mera demonstração de conhecimentos e crenças dos sistemas de conhecimento dos/as que foram colonizados/as: é uma das maneiras de questionamento do mito da superioridade ocidental. Iwuanyanwu e Ogunniyi (2019) ressaltam que, como acontece com todo conhecimento, o conhecimento indígena é um processo dinâmico; vivo e em constante mudança e renovação. De acordo com Mapara (2009, p. 143),
IKS são tentativas de esclarecer várias questões, entre elas aquelas que se relacionam com a história, educação, arquitetura, filosofia, linguagem e ciência, afirmando que os anteriormente colonizados foram mal compreendidos ou foram deliberadamente ignorados, porque se eles e seus sistemas de conhecimento tivessem sido reconhecidos pelos colonizadores, não haveria justificativa para o colonialismo6.
Neste contexto, pretendemos apresentar resultados de investigação7 de pós-doutorado que objetivou discutir sobre as contribuições do debate acerca da incorporação do conhecimento indígena nos currículos da África do Sul, de Moçambique, do Zimbabwe e da Tanzânia para o ensino da História e Cultura Afro-Brasileira e Africana, no Brasil, previsto na alteração da Lei de Diretrizes e Bases da Educação, Lei nº 9.394/96, pela Lei nº 10.639/03.
No presente artigo, focaremos as reflexões em torno do conhecimento indígena, particularmente sobre as políticas curriculares para IKS, na África do Sul e em Moçambique, para a inclusão do conhecimento local (termo usado em grande parte da literatura internacional designada por Indigenous Knowledge Systems)8. Para a realização da investigação, por meio de pesquisa bibliográfica (SOUSA; OLIVEIRA; ALVES, 2021), inicialmente, aprofundamos a reflexão teórica sobre as temáticas estudadas nesta pesquisa, tais como: ensino da História e Cultura Afro-Brasileira e Africana; currículo; políticas curriculares; conhecimento local e Indigenous Knowledge Systems. Para fundamentar as reflexões em torno das problemáticas discutidas, usamos como referências discussões realizadas, por exemplo, na Association for the Study of Indigenous Knowledge Systems (AASIKS) e na Associação Brasileira de Pesquisadores/as Negros/as (ABPN). Utilizamos como referencial teórico autores/as como Dei (2012), Gomes (2012, 2017), Mapara (2009), Nhalevilo (2013, 2018) e Shizha (2013).
Em seguida, levantamos e analisamos o arcabouço legal acerca do tema, destacando os seguintes documentos legais: a) na África do Sul, o Curriculum 2005 (REPUBLIC OF SOUTH AFRICA, 1997) e o National Curriculum Statement Grades R-12 (REPUBLIC OF SOUTH AFRICA, 2012); b) no Brasil, a Lei nº 10.639/2003; a Lei nº 11.645/2008; as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana (BRASIL, 2004); o Plano Nacional de Implementação das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino da História e Cultura Afro-Brasileira e Africana (BRASIL, 2009) e as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar Quilombola (BRASIL, 2012) e c) em Moçambique, o Plano Curricular do Ensino Básico (MOÇAMBIQUE, 2003) e o Plano Curricular do Ensino Secundário Geral (MOÇAMBIQUE, 2007).
A análise da legislação mencionada acima, articulada com as indagações suscitadas pelo referencial teórico utilizado na investigação, levou-nos à reflexão sobre os seguintes aspectos, que serão abordados neste artigo: a) a crítica à hegemonia do paradigma ocidental hegemônico, que menospreza a diversidade epistemológica do mundo; b) se as Histórias e culturas construídas pelos/as próprios/as moçambicanos/as e sul-africanos/as integram os seus currículos e c) o entendimento sobre dilemas e potencialidades da implementação de currículos que valorizem os conhecimentos indígenas na África do Sul e em Moçambique, que podem contribuir para os estudos, no Brasil, sobre História e Cultura Afro-Brasileira e Africana.
Entendemos que estas inquietações podem oferecer importantes subsídios para as disputas políticas no Brasil para a implementação da Lei nº 10.639/2003, visto que a efetivação da diversidade étnico-racial nas políticas públicas educacionais brasileiras necessita romper com o viés único da lógica eurocêntrica, que despreza e deslegitima as possibilidades de produção do conhecimento pelos/as africanos/as e pelos/as afrodescendentes da diáspora. A fundamentação teórica necessária, a partir de novos embasamentos epistemológicos, pode ser obtida por intermédio do conhecimento da integração de IKS nos currículos escolares africanos no momento em que, conforme Nhalevilo (2018, p. 14), tal integração encontra-se no estágio da teorização: caracterizado, principalmente, por visões críticas na formulação de teorias que “não objetivam conformar ou formatar IKS de maneira ocidental, mas estão preocupadas em justificar a reivindicação de coexistência de diferentes discursos nos currículos escolares”. Essa percepção corrobora a perspectiva de Castiano (2013, p. 55), que realça a importância da tomada de consciência de uma posição epistêmica ao “[...] assumir crítica e conscientemente o facto de que nenhum ser humano, seja ele do ocidente ou do oriente, sul ou norte, pode pretender assumir-se como sujeito possuidor de um saber absoluto”.
2 DA CRÍTICA AO DESPREZO DA LÓGICA EUROCENTRADA PELA DIVERSIDADE EPISTEMOLÓGICA DO MUNDO
Quando o eurocentrismo surge como eixo político-ideológico hegemônico de dominação, o faz a partir do desprezo pelos ‘outros’ povos do mundo, com fins totalmente econômicos. E por trás disso, a desqualificação com argumentos religiosos, intelectuais e biológicos. [...] Essa filosofia de desprezo tornou-se ‘eurocentrismo’ e daí passou para o ‘universalismo’. Surge, assim, o ‘clássico’ eurocêntrico como resultado do geo-euro-narcisismo. Em suma, o mundo começou a girar em torno da hegemonia eurocêntrica ocidental 9
(GARCÍA, 2018, p. 59).
Os Estados coloniais utilizaram metodicamente um modelo político-cultural hierárquico, patriarcal e autoritário para que pudessem governar de modo efetivo as colônias. A diversidade sócio-legal existente foi, de modo abrangente, substituída por um sistema de justiça moderna monolegal, na qual a estrutura legal atuava como uma linguagem universal de governação. O eurocentrismo é uma maneira de pensar, binária, que constrói e estimula uma identidade europeia, moderna e civilizada, contrapondo-se a um habitante colonizado, subdesenvolvido, tradicional e bárbaro (MENESES, 2019). A autora destaca que, partindo desta conexão de poder-conhecimento “a Europa autorizou-se a categorizar o ‘resto’ do mundo como periférico face ao curso da ‘sua’ história. […] O resultado desta operação é a transformação do projeto político europeu numa trajetória histórica supostamente universal” (MENESES, 2019, p. 3).
De acordo com Dussel (2002), o eurocentrismo constitui-se ao estabelecer como universalidade abstrata humana, em geral, ocasiões da particularidade europeia. Na mesma direção, Quijano (2005, p. 126) compreende o eurocentrismo como uma “perspectiva de conhecimento que se torna mundialmente hegemônica colonizando e sobrepondo-se a todas as demais, prévias ou diferentes, e a seus respectivos saberes concretos, tanto na Europa como no resto do mundo”. Munanga (2015) ressalta que se chegou ao ponto de negar que o continente africano possuía uma história antes das invasões coloniais, como se essa só começasse a existir apenas a partir do tráfico ou a partir da Conferência de Berlim (1884-1885). Evidentemente, como a História de todos os povos, a da África tem passado, presente e continuidade: a África é o berço da humanidade, é a partir dela que a História da humanidade começa e nela se desenvolveram as grandes civilizações que marcaram a História da humanidade, como a civilização egípcia. A este respeito, o autor levanta instigantes indagações: por que esta História foi negada e quem a negou? Como o fizeram? De acordo com Munanga (2015), o filósofo Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831) foi, sem dúvida, o primeiro pensador nos tempos modernos a conceber e interpretar racionalmente a História como dimensão fundamental da existência do mundo.
Hegel dividiu a África em três partes distintas: (a) a África Setentrional aberta ao Mediterrâneo e ligada à Europa - (b) o Egito, que tira sua existência do Nilo e destinado a se tornar um centro de grande civilização autônoma - (c) a África propriamente dita, fechada em torno de si e desinteressada de sua própria história.
Esta África dita negra, Hegel vai excluir da totalidade da história universal; e disse a respeito que “o homem na África negra vive no estado de barbárie e selvageria que o impede ainda de fazer parte integral da civilização” (MUNANGA, 2015, p. 26).
García (2018) ressalta que os filósofos como Kant (1724-1804), Hegel, Hume (1711-1776) e Voltaire (1694-1778) se somariam na construção da filosofia do desprezo. Por exemplo, Kant, em sua intenção de desqualificar a estética e a existência de algum conhecimento científico na África e em sua diáspora, apoia-se em outro filósofo, Hume, que sustentava que o conhecimento provinha de uma alta sensibilidade e, segundo ele, os/as africanos/as não teriam sensibilidade suficiente para alcançar algum tipo de conhecimento. A maioria dos cronistas europeus, ao entrarem em contato com a África Subsaariana, foi descrevendo o que para eles era diabólico, bestial e que não correspondia ao seu modelo civilizatório. O processo de estruturação da ideia de inferioridade dos/as africanos/as e de seus e suas descendentes na América e no Caribe tinha o objetivo de exploração econômica. Rincón (2018) considera que desde a invasão europeia em África e América, a forma de representação dos/as africanos/as e de sua diáspora permanece a mesma: seres despossuídos de virtudes, percebidos como inferiores devido à sua má semente.
[...] existe uma ignorância arrogante, que se assume como detentora do monopólio do conhecimento dominante, que é o único a que reconhece como critério de verdade. As verdades que não cabem nesta verdade monopolizadora não são reconhecidas, tal como não se reconhecem os saberes e as experiências dos povos e comunidades que as produzem. [...] O conhecimento colonial em que assenta o saber do Norte global procurou sobretudo a partir do século XIX, consagrar o seu saber como único com caracter global, assumindo uma posição de ignorância arrogante. É esta razão ignorante que (re)produz estereótipos raciais e insiste numa matriz hierarquicamente arrogante na interpretação da relação com a alteridade [...] (MENESES, 2019, p. 1-2).
A percepção de que a única forma de produzir conhecimento seja possível apenas a partir da matriz eurocentrada conduz à desvalorização e à negação dos sistemas de conhecimento dos povos africanos. Ki-Zerbo (2006) realça que o sistema colonial estendia-se até o campo da investigação científica, sendo a pesquisa um dos instrumentos de colonização de tal forma que a investigação histórica (oficial) havia determinado que não existia uma História da África e que os/as africanos/as colonizados/as deveriam simplesmente endossar a História do/a colonizador/a.
Para Mapara (2009), IKS são conhecimentos que foram postos de lado, vistos pelos/as colonialistas e suas ciências como empíricos e supersticiosos, já que procuraram se dar alguma forma de justificativa sobre por que tiveram que colonizar as terras de outras pessoas. Ao ocupar esses países, não sujeitaram apenas os/as indígenas a tratamentos desumanos: também retiraram suas terras e as renomearam usando nomes da metrópole, e acrescentaram insulto à injúria, alegando que os/as indígenas estavam no escuro e estavam atrasados. Shizha (2013) destaca que o advento da colonização na África subsaariana trouxe os conhecimentos estrangeiros, o chamado “conhecimento científico”, que depreciou os sistemas de conhecimento indígena, percebendo-os como não científicos, não experimentados e não testados para a educação e para o desenvolvimento social:
O conhecimento colonial na África Subsaariana foi baseado em subjugar e silenciar as vozes africanas. Os missionários e seus compatriotas (os governos coloniais) viam as maneiras africanas de conhecer, sua cosmologia, sua espiritualidade e sua existência ontológica como "bárbaras", "atrasadas", tradicionais e "não científicas". Os africanos foram retirados das conversas de conhecimento e de suas experiências existenciais e forçados a assimilar uma cultura estrangeira hegemônica (SHIZHA, 2013, p. 7)10.
Conforme Smith (1999), a globalização do conhecimento e da cultura ocidental reafirma constantemente a visão ocidental de si mesmo como o centro do conhecimento legítimo, o árbitro do que conta como conhecimento e a fonte do conhecimento “civilizado”. O nexo entre formas culturais de conhecimento, descobertas científicas, impulsos econômicos e poder imperial permitiu ao Ocidente fazer reivindicações ideológicas de ter uma civilização superior. A “ideia” do Ocidente tornou-se realidade quando foi reapresentada às nações indígenas por meio do colonialismo. Shizha (2013, p. 6) ressalva que “[...] Os resíduos coloniais continuam aprisionando as ações, sentimentos, atitudes, crenças e capacidades conceituais dos povos indígenas”11.
A exclusão epistêmica do pensamento produzido em África e na diáspora, a permanente negação e subalternização dos sujeitos e dos conhecimentos para além dos eurocentrados; a naturalização das desigualdades e dos processos de desumanização traz a tona a reflexão acerca da colonialidade do conhecimento que, conforme Walsh (2012) é a percepção do eurocentrismo como ordem exclusiva da razão, do conhecimento e do pensamento, que desconsidera e desqualifica a existência e a viabilidade de outras racionalidades epistêmicas e outros conhecimentos que não são os dos homens brancos europeus ou europeizados. Obviamente, cruza o campo do conhecimento como dispositivo de dominação, a colonialidade adentra e organiza os quadros epistemológicos, acadêmicos e disciplinares (WALSH, 2012). De acordo com Quijano (2009, p. 73), a colonialidade “[…] Sustenta-se na imposição de uma classificação racial/étnica da população do mundo como pedra angular do referido padrão de poder e opera em cada um dos planos, meios e dimensões, materiais e subjectivos, da existência social quotidiana e da escala societal […]”. Evidentemente, a colonialidade adentra as instituições educacionais, nas quais permanece a hegemonia do eurocentrismo, o que nos impõe a necessidade de pensarmos criticamente acerca dos processos educativos a partir de diferentes âmbitos: a invisibilização de outras formas de pensar, de produzir conhecimento e de viver para além da lógica eurocentrada; o ocultamento das relações de dominação, que contribui para a reprodução das desigualdades; as implicações da colonialidade naquilo que é selecionado para integrar os currículos escolares. Essas reflexões implicam, necessariamente, na desnaturalização dos currículos eurocêntricos vigentes relacionado ao tensionamento das estruturas dominantes na sociedade para possibilitar a descolonização das mentes e dos currículos, para que nas práticas curriculares, de forma estrutural, a diversidade epistemológica do mundo seja contemplada.
3 DA CRÍTICA À NATURALIZAÇÃO DA HEGEMONIA DO EUROCENTRISMO: POSSIBILIDADES PARA A DESCOLONIZAÇÃO DOS CURRÍCULOS
A educação anticolonial deve fortalecer e ser fortalecida pelo desenvolvimento de práticas eficazes de descolonização pessoal e coletiva, bem como nosso envolvimento em lutas políticas coletivas contra todas as formas de opressão12
(DEI, 2012, p. 107).
O currículo escolar é uma prática social complexa. Ao admitirmos que o currículo é uma construção histórica, vinculada às relações sociais, políticas, econômicas e culturais, na qual são realizadas opções dentre as possibilidades que nos são apresentadas e esse currículo real é uma possibilidade dentre outras alternativas, já que o que está em vigência em determinado momento é um produto incerto, que poderia ser outro, e que pode ser diferente, atualmente e no futuro (GIMENO SACRÍSTAN, 2013). Conforme Shizha (2013, p. 3), a criação do conhecimento é um processo político e ideológico e “Quando se trata de saberes escolares, são aqueles que controlam os recursos políticos e econômicos que impõem suas ideias, opiniões, pensamentos e ideologias aos considerados ‘subordinados’”13. Ao compreendermos que no processo de construção do currículo são realizadas escolhas dentre as possibilidades existentes, há disputas em torno do que é considerado legítimo para ser veiculado nas instituições educacionais, visto que, de acordo com Gimeno Sacristán (2013, p. 28) “As polêmicas em torno dos conteúdos dos processos de ensinar constituem, sem dúvida, o debate por excelência na educação. Sobre esses conteúdos são feitas escolhas sobre o papel da escolarização nas sociedades atuais [...]”.
Os currículos se relacionam com o contexto no qual se situam, ele próprio e as instituições escolares, e expressam o conflito de interesses e os valores dominantes que orientam a escolarização, mesmo que de modo não absoluto, e têm sido, predominantemente, eurocêntricos. Estruturante dos currículos, o eurocentrismo contribui para os processos de inferiorização, de hierarquização e de subalternização da população afrodescendente em sociedades, como a brasileira, marcadas pelo racismo estrutural14, pelo patriarcado e pelo neoliberalismo, nas quais a exploração, a exclusão e a dominação estão presentes em todas as esferas da vida. Neste contexto, a História e Cultura Afro-Brasileira e Africana é silenciada e/ou distorcida. A preponderância desta perspectiva nos currículos transparece como se fosse, naturalmente, a melhor e/ou a única forma possível de construção da realidade, omitindo os conflitos para que esse referencial se torne e permaneça hegemônico. Entretanto, Ponce (2018) destaca que currículos são espaços de disputas em torno do tipo de educação que se pretende oferecer para crianças, jovens e adultos de determinada sociedade e que
As disputas não têm sido sempre leais e legítimas e podem produzir processos curriculares humanamente devastadores que, no lugar de promoverem a superação das desigualdades e o respeito às diversidades, impedem os sujeitos escolares de se emanciparem, afastando-os de seus direitos, como o de ter na vida escolar uma experiência de construção de dignidade (PONCE, 2018, p. 786).
O ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana não pode se limitar a fazer pequenos acréscimos à cultura dominante, por meio de ações pontuais e isoladas. É necessário repensar a lógica curricular que simplesmente desconsidera e desqualifica as diferentes perspectivas epistemológicas. Trata-se de repensar a própria lógica do currículo, descontruindo as relações de poder que hierarquizam as diferenças, transformando-as em desigualdades. Ademais, há o relevante destaque de que a alteração de tais práticas curriculares implica a transformação estrutural das instituições educacionais, bem como de seus currículos, o que tem sido proposto e reivindicado pelo movimento negro brasileiro.
A hegemonia do paradigma eurocêntrico nos currículos escolares e a permanência do racismo nas instituições educacionais do Brasil podem ser demonstradas por meios dos resultados de uma ampla investigação, coordenada por Silva, Regis e Miranda (2018), que revela quão grandes são os desafios para que as instituições educacionais cumpram o arcabouço legal sobre a temática. A pesquisa definiu como objetivo geral sistematizar e analisar a produção acadêmica sobre Educação das Relações Étnico-Raciais entre 2003 e 2014 por meio da análise das teses e das dissertações realizadas nos programas de pós-graduação stricto sensu em Educação, dos periódicos Qualis A e B na área da Educação e livros produzidos pelos Núcleos de Estudos Afro-Brasileiros (Neabs) e grupos correlatos. A pesquisa selecionou 494 artigos, 476 dissertações e 122 teses da área de educação. Esse vasto levantamento do conhecimento produzido no Brasil sobre o tema revelou que um dos aspectos recorrente nas teses, nas dissertações e nos artigos investigados é o destaque da permanência institucionalizada do racismo na educação, por exemplo, por meio do currículo, dos livros didáticos e da formação de professores/as. Ademais,
No âmbito do currículo, as investigações constatam a incidência da lógica eurocêntrica das práticas curriculares que perpassam as relações étnico-raciais no cotidiano escolar e o tratamento desigual destinado aos/às estudantes brancos/as e estudantes negros/as, interferindo negativamente na trajetória educacional dos/as estudantes negros/as. Ocorre também o destaque de que, em uma escola homogeneizadora e estruturada a partir da perspectiva do universalismo abstrato, as diferenças são tratadas como desigualdades e de maneira discriminatória (SILVA; REGIS; MIRANDA, 2018, p. 660-661).
Os currículos escolares serão sempre seletivos, mas podem ser menos parciais em um processo que, trazendo à tona os conflitos e as tensões, as diferentes perspectivas epistemológicas sejam abordadas, pois conforme Casali (2018, p. 565) “Sendo uma prática social, o currículo é atravessado pelas contradições e conflitos inerentes a toda prática social”. A mesma percepção acerca das tensões inerentes ao processo de construção dos currículos é destacada por Silva (2015, p. 173), que compreende que o projeto de sociedade é estruturante nas “[…] políticas curriculares, tanto na sua concepção como na sua execução. Projetos de sociedade geram conflitos ou criam acordos ao se desenvolverem programas, atividades em salas de aula, laboratórios e outros ambientes de aprendizagens e de ensino”.
A perspectiva eurocêntrica também tem fundamentado as práticas educacionais em África. Dei (2012) considera que dos currículos às pedagogias, os sistemas de conhecimento dominantes foram organizados por meio de paradigmas eurocêntricos historicamente governantes dentro das especificidades coloniais e que os sistemas e processos de educação, bem como as ideias sobre o que conta como educação, foram enraizados na reprodução de formas coloniais de saber. A esse respeito, Shizha (2013, p. 8) destaca que:
O propósito da educação durante o período colonial era, principalmente, para a conversão religiosa (silenciando as vozes das religiões indígenas), a exploração econômica e a assimilação dos africanos. [...]
Assim, a escolaridade colonial levou à perda de vozes indígenas, autoidentificação e autoconfiança. Por meio da escolarização colonial via conhecimento eurocêntrico, os missionários e os governos coloniais foram capazes de estabelecer a hegemonia cultural, econômica e política importada15.
Em Moçambique, a sociedade e a educação foram construídas a partir do tensionamento com as cicatrizes profundas deixadas pelo colonialismo, com as marcas da escravatura, do trabalho forçado e da repressão colonial. A educação colonial relaciona-se com intencionalidades econômicas, políticas e culturais do sistema e objetivava reproduzir as relações de exploração e de dominação. Segundo Gómez (1999, p. 20),
[...] no campo educacional, especificamente, muitos foram os desafios, entraves, as limitações humanas e materiais que Moçambique independente encontrou. No passado colonial, deve-se procurar a génese das condições herdadas: o limitado alcance da rede escolar e do próprio sistema educacional, os seus objetivos “desafricanizantes” e as suas práticas e métodos autoritários [...].
Na África do Sul, o governo do Apartheid fornecia sistemas de educação separados, divididos racialmente, com financiamento desigual e que objetivava preparar os/as sul-africanos/as para papéis diferenciados no mundo do trabalho e na sociedade. A educação colonial desvalorizou o conhecimento indígena, percebido como primitivo. Depois de 1994, quando o governo do African Nacional Congress (ANC) eleito democraticamente chegou ao poder, a educação foi uma das primeiras áreas de reforma e de reparação. A revisão do currículo começou imediatamente após a eleição (JACOBS, 2015).
Shizha (2013) destaca que a existência de sistemas de conhecimento colonizados na África levanta a questão: conhecimento de quem as escolas transmitem? Considera que o conhecimento escolar deve expressar os desejos sociais e necessidades socioculturais para o desenvolvimento socioeconômico e estar articulado às experiências dos/as estudantes, que são caracterizadas por suas visões de mundo socioculturais. Deste modo, Shizha (2013) enfatiza que a questão sobre a definição e validação do conhecimento curricular para as escolas africanas é pertinente. Mji et al. (2017, p. 16) acreditam que a África só demonstrará sua natureza criativa quando os conhecimentos e habilidades indígenas do povo africano forem incluídos e integrados estrategicamente com outros sistemas de conhecimento dentro do sistema escolar “[...] para aumentar e endossar a existência e o devir de uma pessoa africana em crescimento [...]”16. Ademais, destacam que a estrutura atual de exclusão do IKS da educação dos/as africanos/as não está funcionando e há a necessidade de um sistema diferente. McKinley e Smith (2019) destacam que a educação indígena nem sempre foi marginalizada. As comunidades indígenas sempre mantiveram e desenvolveram sistemas de educação complexos. A invasão e a exploração coloniais destruíram o conhecimento e as formas de conhecimento indígenas, “[...] e como resultado as peças ficaram espalhadas - destruídas, escondidas e outras partes apenas esperando para serem reconstruídas [...]” (MCKINLEY; SMITH, 2019, p. 2)17.
Segundo Basílio (2010), o sistema de educação com características africanas começou a ser organizado em África após as independências com objetivos de africanização de conteúdos e da construção da sua identidade pós-colonial. Habte, Wagae e Ajayi (2011) destacam que nos países africanos, após as independências, a educação foi percebida como um instrumento de descolonização mental e do desenvolvimento econômico, não sendo suficiente expandir e consolidar o sistema herdado dos regimes coloniais, sendo fundamental reformá-lo e adaptá-lo às necessidades africanas pós-coloniais. Segundo Nhalevilo (2013), com o final da colonização, diversos países africanos passam a questionar as bases axiológicas e epistemológicas que fundamentavam os currículos nacionais: […] “Questões, por exemplo, sobre a língua usada na instrução, sobre o conteúdo e até sobre as pedagogias ditaram transformações curriculares” (NHALEVILO, 2013, p. 25).
Conforme destacamos, o Brasil, um dos países da diáspora africana, e Moçambique e África do Sul, países etnicamente diversificados e profundamente desiguais, possuem currículos escolares que historicamente têm se fundamentado em uma perspectiva eurocêntrica, revelando as marcas estruturais deixadas por um passado colonial e atestando as estruturas de dominação capitalista e eurocentrada do presente. Entretanto, como discutiremos a seguir, estes países passam por alterações curriculares com intencionalidades de inserção da diversidade para possibilitar a efetivação de um currículo intercultural, o que pode possibilitar a descolonização dos currículos. De acordo com Walsh (2012), interculturalidade e decolonialidade são projetos que caminham junto e a construção da interculturalidade em uma perspectiva crítica exige transgredir, interromper e desmontar a matriz colonial ainda presente e criar outras condições de poder, saber, ser e viver que se distanciam do capitalismo e de sua razão única.
4 DAS POSSIBILIDADES E DOS LIMITES DA INCORPORAÇÃO DOS CONHECIMENTOS INDÍGENAS NOS CURRÍCULOS DA ÁFRICA DO SUL E DE MOÇAMBIQUE
Em Moçambique, no período da dominação portuguesa, seu sistema de educação estava relacionado aos programas, aos conteúdos e aos objetivos portugueses e possuía dois tipos de ensino: a) o ensino oficial destinado à formação dos/as filhos/as dos/as colonizadores/as e assimilados/as18 e que objetivava inculcar nos/as estudantes o conceito de Portugal como pátria-mãe e nação intercontinental por meio de conteúdos como leitura, escrita, cálculo, domínio da História e Geografia de Portugal e b) o ensino indígena destinado à formação dos/as moçambicanos/as19. O processo colonial impôs aos/as moçambicanos/as a negação de suas origens históricas e culturais, suas línguas e tradições, suas maneiras de produzir conhecimento para assimilar uma cultura que seria alheia às suas vidas. Nesse período de dominação política, social, econômica e cultural, os/as habitantes do território moçambicano foram obrigados/as a ‘adotar’ a cultura portuguesa colonial. Para tanto, a educação escolar nas colônias era um processo de “transmissão” e “assimilação” das tradições culturais do/a colonizador/a, como se elas fossem únicas e universais (BASÍLIO, 2006, 2010).
Desde a independência, em 1975, Moçambique realizou significativas alterações no seu sistema educativo. No período imediato pós-independência procurou romper com o sistema educacional de inspiração colonial. Esse rompimento preparou as bases para mudanças mais profundas, que ocorreriam em 1983 pela introdução do Sistema Nacional de Educação (SNE). Em 1992, a lei foi revista para incorporar mudanças decorrentes da nova Constituição da República, de 1990 (SELIMANE, 2011).
Em maio de 1992, o parlamento aprova a Lei nº 6/92 sobre o “Sistema de Educação de Moçambique”. Revogando a Lei de 1983, a Lei de maio de 1992, reformula os fundamentos filosóficos e a estrutura do Sistema Nacional de Educação. O Plano Curricular do Ensino Básico (PCEB) de 2003 reformula o introduzido em 1983 e revisto em 1992. Segundo o Plano (MOÇAMBIQUE, 2003, p. 7),
O principal desafio, que se coloca ao presente currículo, é tornar o ensino mais relevante, no sentido de formar cidadãos capazes de contribuir para a melhoria da sua vida, da vida da sua família, da sua comunidade e do país, dentro do espírito da preservação da unidade nacional, manutenção da paz e estabilidade nacional, aprofundamento da democracia e respeito pelos direitos humanos, bem como da preservação da cultura moçambicana.
De acordo com o PCEB (MOÇAMBIQUE, 2003), a estrutura curricular existente até então era demasiado rígida e prescritiva, deixando pouco espaço para adaptações regionais ou locais, não abrindo, de maneira explícita, a possibilidade de integração do Currículo Local (CL), acarretando que os conteúdos temáticos fossem abordados homogeneamente em todo o país. As inovações propostas pelo Plano são as seguintes: os ciclos de aprendizagem; o ensino básico integrado; o Currículo Local; a progressão por ciclos de aprendizagem e a introdução de línguas moçambicanas, do inglês, de ofícios e de educação moral e cívica. Este Plano possui a intencionalidade de contribuir para a inserção da diversidade moçambicana nos currículos, por meio da afirmação da História e culturas locais. Segundo Dias (2010, p. 06), Moçambique é um país multilíngue, pluriétnico, multirracial e socialmente estratificado; há várias formas de organização, social, cultural, política e religiosa e “A principal característica do patrimônio cultural moçambicano é a sua diversidade”. Nhalevilo (2013, p. 31) pontua que “[…] sou de opinião que o Currículo Local devia aparecer com uma grande agenda de emancipação, de descolonização, de verdadeira liberdade”. Conforme Basílio (2017), o CL constitui uma das inovações que perpassa todo o sistema educacional moçambicano do ensino básico ao ensino superior:
De facto, para dar continuidade a reforma do Ensino Básico, foi operada reforma curricular do Ensino Secundario Geral, em 2007. No ano seguinte, foi introduzido o currículo do Ensino Secundário em todas as escolas. Nesse currículo, e sublinhada mais uma vez, a componente do Curriculo Local. A reforma curricular deste Subsistema do ensino moçambicano dá relevo a busca e o resgate dos aspectos da vida quotidiana, ou seja, resgata a cultura local construída e partilhada pelos sujeitos nas suas relações vitais (BASÍLIO, 2017, p. 18-19).
Contudo, há desafios para a efetivação do previsto na legislação educacional moçambicana. Mangrasse (2014, p. 79) aponta que não é o suficiente a mera reforma de currículos, de programas, de horários e de manuais: “[...] Deve-se privilegiar a capacitação de docentes e de alunos para conduzirem e tomarem conta das reformas institucionalizadas [...]”. Conforme Mangana (2018, p. 14),
Os saberes locais continuam ficando às margens do conhecimento moderno ocidental, auxiliando sempre que necessário no processo de ensino e aprendizagem para que se atinjam os objetivos orientados ao modelo de racionalidade científica ocidental. A forma como está elaborado o currículo mostra, em certa medida, uma reedição da lógica ocidental. Permanece em Moçambique uma ideia conservadora de um currículo nacional/currículo comum, mostrando que o currículo continua a representar homogeneidades. Não obstante a aparente tendência de conteúdos heterogêneos, as políticas educativas são cada vez mais globalmente administráveis, onde a sua esfera decisiva ultrapassa as fronteiras do Estado-Nação.
A configuração do Sistema Nacional de Educação em Moçambique, bem como todas as mudanças advindas do questionamento da imposição colonial a partir das lutas por libertação revelam que as mudanças curriculares que rompam com o colonialismo na educação constituem campos em disputa. As críticas que os/as autores/as citados fazem ao lugar ainda não ocupado pelos conhecimentos locais são exemplos dessa situação.
Na África do Sul, a educação colonial, assim como a baseada no apartheid, via o conhecimento indígena local como primitivo e insignificante, e ensinava os/as estudantes a acreditarem que as suas culturas e tudo que era africano eram inferiores. O período após 1994 foi seguido por um processo de transformação em todos os setores da sociedade e a educação foi um dos focos da mudança. Uma alteração fundamental, que veio com a Constituição da África do Sul (1996), foi um sistema unificado de educação. Um departamento de educação foi estabelecido e encarregado de fornecer educação equitativa e de qualidade a todas as crianças sul-africanas, independentemente de raça, credo, religião e sexo. Em 1997, o Departamento Nacional de Educação lançou o Curriculum 2005 (REPUBLIC OF SOUTH AFRICA, 1997), com a determinação da inclusão dos conhecimentos indígenas (MURIEL, 2019).
O Curriculum 2005 foi revisado e lançados os Revised National Curriculum Statement Grades R-9 (RNCS) em 2002 e o National Curriculum Statement Grades 10-12 (NCS) em 2003. A partir de 2012, o RNCS (REPUBLIC OF SOUTH AFRICA, 2002) e o NCS (REPUBLIC OF SOUTH AFRICA, 2003) são combinados em um único documento, conhecido como National Curriculum Statement Grades R-12 (NCS), que reconhece a importância da integração dos sistemas de conhecimento indígenas. Entre os seus sete princípios, há o destaque de que valorizar os sistemas de conhecimento indígenas é reconhecer a rica história e herança deste país como contribuintes importantes para nutrir os valores expressos na Constituição da África do Sul. De acordo com Muriel (2019), o NCS representa uma declaração de política para aprendizagem e ensino nas escolas sul-africanas. Os conhecimentos, conceitos e habilidades contidos no NCS foram organizados no Curriculum Assessment Policy Statements (CAPS), que oferece aos/às professores/as, por exemplo: conteúdo, conceitos e habilidades a serem ensinados por semestre; diretrizes para alocação de tempo; requisitos para as atividades de avaliação formal e sugestões para avaliação informal.
A integração dos conhecimentos indígenas nos currículos sul-africanos ocorre desde 1997 e está presente no documento de política nacional Indigenous Knowledge Systems Policy (2004). Entretanto, há desafios para a incorporação destes conhecimentos nas práticas curriculares, bem como a percepção da legitimidade dos mesmos, o que requer a descolonização de suas práticas curriculares. Iwuanyanwu e Ogunniyi (2019) realçam que, apesar de o NCS (REPUBLIC OF SOUTH AFRICA, 2012) e o CAPS (REPUBLIC OF SOUTH AFRICA, 2011) destacarem que o ensino de ciências deva promover a compreensão dos/as estudantes sobre o conhecimento indígena na sociedade e no ambiente, a formação inicial que os/as professores/as recebem raramente é orientada para esta abordagem e que, em decorrência, a maioria dos/as docentes hesite em se aventurar longe da segurança da abordagem recebida durante seu treinamento.
Muriel (2019) considera que a introdução de práticas indígenas no sistema escolar da África do Sul é essencial para a redução da ênfase ou descolonização da educação sul-africana; o que não significa, necessariamente, a desconsideração total de todos os elementos do sistema ocidental, mas a garantia de que os sistemas de conhecimento indígenas tenham espaço, sejam integrados e tenham mais destaque do que antes. Seehawer (2018, p. 106) destaca que
No caso da África do Sul, a era pós-apartheid viu várias reformas educacionais, todas as quais trouxeram algumas mudanças, mas nenhuma delas abordou adequadamente a descolonização do sistema educacional. Apesar de reconhecer o conhecimento indígena como um dos sete princípios de educação, o IK tem, até o momento, permanecido um acréscimo principalmente retórico que deixa os professores se perguntando sobre como proceder20.
O desafio de construção de um currículo descolonizado no país passa, também, pela superação do racismo na sociedade sul-africana, o qual, mesmo com o término do Apartheid tem se reinventado de várias maneiras. A educação escolar e os currículos vivem uma encruzilhada de tensões, pois não se muda a realidade escolar sem mudanças profundas e emancipatórias na sociedade mais ampla.
5 CONCLUSÃO
No entanto, é importante considerar que há alguma mudança no horizonte. A força das culturas consideradas negadas e silenciadas nos currículos tende a aumentar cada vez mais nos últimos anos. As mudanças sociais, os processos hegemônicos e contra-hegemônicos de globalização e as tensões políticas em torno do conhecimento e dos seus efeitos sobre a sociedade e o meio ambiente introduzem, cada vez mais, outra dinâmica cultural e societária que está a exigir uma nova relação entre desigualdade, diversidade cultural e conhecimento [...] (GOMES, 2012, p. 102).
O currículo é um campo de atividade para diversos sujeitos, com competências divididas em diferentes proporções, no qual as decisões não acontecem linearmente concatenadas, tampouco são o resultado de uma coerência ou expressam uma mesma racionalidade, são instâncias que agem convergentemente na definição da prática com poderes distintos, como ressalta Gimeno Sacristán (1998, p. 101-102), representando “[...] forças dispersas e até contraditórias que criam um campo de ‘conflito natural’, como em qualquer outra realidade social, abrindo, assim, perspectivas de mudança nas próprias contradições que apresentam [...]”.
Deste modo, as disputas para a realização de mudanças estruturais nos currículos para que a História e Cultura Afro-Brasileira e Africana seja percebida como legítima para constituir as práticas curriculares precisam, constantemente, questionar o referencial eurocêntrico, conforme o discutido ao longo deste artigo.
Compreendemos que os debates realizados em diferentes países africanos e, particularmente, na África do Sul e em Moçambique podem oferecer instigantes contribuições sobre a questão na medida em que trazem à tona a reflexão sobre a tensão acerca da diversidade epistemológica do mundo e as marcas da colonização presentes nas sociedades com passado colonial e que lutam por edificar seus próprios sistemas educativos no equilíbrio entre os conhecimentos sobre o mundo e os conhecimentos indígenas que conformam saberes locais.
Neste tenso e denso debate, Shizha (2013) destaca que reivindicar IKS no currículo escolar africano não deve ser uma ação mal interpretada, como um projeto para substituir a educação racista por outra. As cosmovisões mudam com os momentos históricos e o momento histórico atual, devido à globalização e a translocação de saberes, exige o reconhecimento das diferenças e da diversidade. Ademais, considera que a desconstrução do currículo escolar colonial requer a ruptura das estruturas hegemônicas do conhecimento definido pelo Ocidente. Mawere (2015) destaca o papel que os conhecimentos indígenas podem desempenhar nos sistemas educacionais, entre os quais, promover os relacionamentos interpessoais e obrigações recíprocas, já que isso distingue a educação ocidental, que enfatiza o individualismo competitivo ao eliminar os/as estudantes por meio do fracasso em testes, e a educação africana, que enfatiza o comunalismo cooperativo, ao se esforçar para incluir todas as crianças da comunidade. No entanto, pondera Mawere (2015), a plena realização do conhecimento indígena só pode ser reconhecida se for totalmente implementada nos currículos de educação e se sua importância for popularizada.
A importância da conexão entre África e diáspora para a descolonização dos currículos é destacada por Dei (2012) ao apontar que reconhecendo as ligações entre cultura, produção de conhecimento e colonização de terra e espaço, como sujeitos da diáspora africana, nosso desenvolvimento da produção de conhecimento e intelectualidades anticoloniais deve permanecer enraizado em histórias, culturas e tradições políticas revolucionárias da resistência radical do povo africano ao colonialismo; nosso trabalho se beneficia de ricos legados de ação política comprometida e visionária, e nossas teorias devem ser sofisticadas o suficiente para abordar e sustentar boas práticas políticas e que devemos desafiar as maneiras como discursos e corpos de conhecimento são controlados, policiados, arregimentados, selecionados, organizados e distribuídos em nossas academias e espaços públicos, sem qualquer base em práticas políticas significativas ou concretas. Ainda conforme Dei (2012), a intelectualidade anticolonial não permanece abstrata - não depende da separação de corpo, mente e espírito - e em sua integridade envolve, necessariamente, um senso de mundo e estilo de vida que ameaça ativamente as estruturas de poder opressoras.
O estabelecimento de conexões entre os debates realizados em África e na diáspora acerca da crítica ao paradigma eurocêntrico hegemônico sobre a diversidade epistemológica do mundo pode oferecer interessantes fundamentos para a implantação da Lei nº 10.639/2003 no Brasil. Inclusive, os/as próprios/as africanos/as podem oferecer importantes elementos acerca do que é considerado importante para ser ensinado sobre sua própria História. Nesta perspectiva, Regis e Sengulane (2018), a partir de pesquisa que objetivou problematizar os desafios e as possibilidades do ensino da História e Cultura Africana e Afro-Brasileira no Brasil e da inclusão dos conhecimentos locais em Moçambique; realizaram a pergunta direta a todas as pessoas entrevistadas na investigação (docentes e gestores dos ensinos básico e secundário e professores/as universitários/as): o que poderia/deveria ser ensinado, na educação básica no Brasil, sobre a História e Cultura de Moçambique e da África? Diferentes aspectos foram citados: destacar a resistência e as lutas dos diferentes países africanos contra a dominação colonial e contra a exploração; abordar a diversidade sem hierarquizá-la, para possibilitar superar visões de superioridade e inferioridade sobre os diferentes países do mundo; discutir novas teorias, metodologias e didáticas a partir do conhecimento construído no Continente Africano; refletir sobre as dificuldades, as contradições, o desenvolvimento social, econômico, político e cultural e as potencialidades da África atual e construir práticas curriculares que não se centrem na História da Europa. Tais indicações oferecem instigantes sinalizações para o tencionamento do currículo eurocêntrico, que hierarquiza as diferenças e nega as diversas possibilidades de estar no mundo e de produzir conhecimento.
Conforme discutimos, nas políticas curriculares na África do Sul e em Moçambique há a determinação para a incorporação dos conhecimentos indígenas: no NCS (REPUBLIC OF SOUTH AFRICA, 2012) e PCEB (MOÇAMBIQUE, 2003), respectivamente. No entanto, há dificuldades para que tais conhecimentos integrem os currículos, dos quais destacamos os processos de formação de professores/as e a permanência da percepção de deslegitimidade desses conhecimentos em relação aos conhecimentos ocidentais, sendo necessária a descolonização das mentes e dos currículos.
A reflexão sobre os dilemas presentes nestes países leva-nos à reflexão de que no Brasil, para que o ensino da História e Cultura Afro-Brasileira e Africana não se limite à pequenos acréscimos ao currículo hegemônico, é fundamental que no processo de formação de educadores/as, os conhecimentos produzidos a partir dos/as africanos/as e pelos/as afrodescendentes na diáspora sejam reconhecidos enquanto tais, compreendidos como legítimos e como importantes. Essa mudança só será realizada por meio do permanente questionamento sobre a subalternização e a inferiorização das diferentes maneiras de ser, viver e conhecer impostas aos povos africanos e afrodescendentes na diáspora e presentes nos currículos escolares, conectado aos processos de lutas políticas contra as diferentes desigualdades, pois, segundo Freire (2001, p. 88), “[...] A mudança do mundo implica a dialetização entre a denúncia da situação desumanizante e o anúncio da sua superação. [...] mudar é difícil, mas é possível [...]”.